D. JOÃO DA CAMARA

O CONDE

DE

CASTEL MELHOR

ROMANCE HISTORICO

(ILLUSTRADO)

VOLUME I

Segunda edição

PORTO

Edição d'O PRIMEIRO DE JANEIRO

199, Rua de Santa Catharina, 201

e Rua Formosa, 232

1903

Todos os direitos reservados

Introduccão

Nas casas de Paulo de Carvalho, em Alcantara, expirava o principe D. Theodosio.

De nada lhe valeram a sciencia dos fisicos, nem os ares de Palhavã, d'onde voltára.

Em sua vigorosa mocidade viera-lhe a morte ao encontro, espesinhando esperanças, aluindo sonhados castellos.

Havia duas semanas que nos conventos e freguezias tocavam os sinos afflictivamente.

Complicadas drogas nenhum effeito produziam. O Principe, a cada hora, mais na garganta lhe doía o aperto da gélida mão.

Um dia, ao romper da alvorada de maio, perfumada e cheia de cantos, ouvindo os sinos a tocarem, pediu que se mudasse de rogativas, que não importunassem a Deus com lagrimas para salvação d'um corpo já sem forças, mas que todos lhe rogassem auxilios efficazes para salvação de sua alma.

A quinta communicava com a d'El-rei, para Alcantara se mudára, como era seu costume, pela Paschoa. Elle e a rainha D. Luiza de Gusmão e as as duas infantas, a que já tinha a morte no seio e a que mais tarde havia de ser rainha de Inglaterra, soluçavam, ajoelhados todos junto ao leito do muribundo.

As mais altas personagens da côrte, n'uma sala cá fóra, todas de coração opprimido pela desgraça inevitavel, falavam baixo, apurando o ouvido aos menores rumores, como temendo perceber os passos abafados da morte que viesse entrando.

A um canto do vasto salão conversavam baixo os gentis-homens da camara do Principe, Condes de Miranda, de Valle de Reis e de Villa Nova. O conde dos Arcos e o Barão d'Alvito informavam sobre o estado do enfermo umas senhoras que haviam chegado em suas liteiras. O Conde de Cantanhede e seu irmão D. Rodrigo passeavam ao longo da sala, e ouvia-se-lhes, de quando em quando, o tilintar das espadas.

-- Perde-se um homem, meu Rodrigo, dizia o Conde de Cantanhede. Erudito demais, gostava falar latim; mas...

-- Grego e hebraico tambem sabia, entendia o italiano e o francez, falava o castelhano, observou D. Rodrigo.

-- Grandes prendas de principes! commentou o Conde. Mas...

-- Diziam-o admiravel theologo. Muita vez o encontrei folheando o direito canonico.

-- A arte da guerra, porém...

-- Ultimamente dedicava-se ao estudo dos astros, continuou D. Rodrigo, inflammando-se no elogio da omnisciencia que era maravilha no Principe. Dizia o padre Cosmander -- eu lh'o ouvi -- que achára n'elle mais mestre de que aprender que discipulo que ensinar. Sabia direito civil...

-- Lindas prendas! Mas muito mais me agradou saber que delineava perfeitamente as fortificações.

-- Manejava a primor um cavallo, exclamou D. Rodrigo, vendo para onde o irmão, cheio de tendencias militares, desejava levar a conversação.

-- Admiravelmente!

Os olhos do Conde de Cantanhede luziram. Mas, logo, todo o brilho lhes apagou a mesma nuvem de tristeza.

-- Perde-se um homem, Rodrigo!

D. Antonio Luiz de Menezes, Conde do Cantanhede, fôra dos conjurados de 1640. Tinha as barbas já cheias de brancas, mas no olho negro ainda toda a viveza e energia da mocidade.

Afóra a batalha do Montijo, poucas haviam sido as acções decisivas no Alemtejo. De menos importancia ainda, as da Beira e as de Entre Douro e Minho.

D. Antonio de Menezes sentia ferver-lhe o sangue, e não poucas vezes se revelára contra as opiniões pendentes, que com tamanho peso obravam nas decisões d'El-rei.

Tivera confiança, um dia, no Principe D. Theodosio, na pobre creança que ali dentro agonisava, abraçada a uma imagem de Christo na cruz, já com o pensamento desviado do mundo e com os labios embranquecidos murmurando: Sicut desiderat cervus ad fontes aquarum, ita desiderat anima mea ad te, Deus!

Brilhou uma lagrima nos olhos do Conde, deslisou devagarinho sobre as faces requeimadas do sol, pelos fios brancos da barba.

-- Quando elle fugiu do paço e, sem consentimento, dos pais, atravessou todo o esse Alemtejo!

Calou-se, D. Rodrigo nada lhe respondeu, e ambos, de cabeça baixa, continuaram no passeio, amortecendo os passos e segurando as espadas para que não tinissem.

Entretanto, o Condo de Miranda approximava-se das senhoras e contava-lhes baixinho uma historia, que ellas commentavam com exclamações logo refreadas e pequeninos gestos de espanto.

-- Foi quando adoeceu Fr. Miguel de S. Jeronimo.

-- Do convento da Graça, não era? Ouvi-o prégar uma tarde, disse uma menina muito nova, muito bonita, que, olhando muito para o grupo de fidalgos, decerto pouco se lembrava do frade.

-- Não, prima, era carmelita descalço.

-- Varão de singular virtude! disse uma velha, arreganhando o beiço n'um sorriso extatico.

-- Morreu a dezenove do mez passado, continuou o Conde de Miranda. Mandou-me sua alteza que o visitasse, sabendo de sua enfermidade, e esse varão de singular virtude, como v. ex.ª lhe chama com tanta justiça, depois de agradecer a mercê que o Principe lhe fizera, ordenou-me lhe dissesse poder segurar a sua alteza que depressa se haviam de encontrar... no céo.

A velha benzeu-se, as outras imitaram-a. Vozes devotas ciciavam baixinho.

O Conde de Cantanhede retorcia o bigode nervosamente, como embrenhado em pensamentos escuros.

-- El-rei D. João, disse por fim, merece-lhe a saude poucos cuidados. Deveria tel-os agora, sem principe que...

D. Rodrigo olhou para o irmão.

-- É muito doentinho o infante D. Affonso.

-- E tolo! disse o Conde em voz mais alta do que desejara.

Todos os fidalgos se voltaram para elle.

Continuou:

-- Ha treze annos, que alegria, quando ouviamos D. João da Costa a inflammar-nos com suas falas em casa do Conde de Almada! Mostrava-nos o perigo e incitava-nos a elle! E n'aquella manhã do primeiro de dezembro, quando ambos nós subimos aos quartos da duqueza de Mantua, o arcebispo de Braga a querer dar suas razões...

-- Traidôr! disse D. Rodrigo. Não se passaram muitos tempos, fui eu que no paço lhe deitei mão. Traidôr e principal culpado das mortes infames do Marquez de Villa Real, do Duque de Caminha, do Conde de Assumar, no patibulo, a que elle os levou com seus conselhos!

-- Nosso encontro com nosso querido pai, que havia cerrado as portas do tribunal, ignorando o que se tratava! Como veio gostosamente comnosco, santo velhinho! Fomos todos buscar o arcebispo de Lisboa, e Christo crucificado despregou da cruz o braço direito, como querendo abençoar o povo!

Calou-se. Havia na grande sala um profundo silencio. Os sinos, ao longe, tocavam em todas as egrejas da cidade.

-- Como os sinos repicavam alegres n'essa manhã! disse o Conde.

E os dois pararam junto d'uma grande janella que dava para os jardins.

Lá em baixo, andavam brincando os dois infantes. D. Affonso tinha dez annos, D. Pedro apenas cinco.

Ajudado por um rapazola, filho d'um moço de estribeira, D. Affonso, tropegamente, já cançado dos muitos esforços que fizera, tentava subir para um cavallo de baloiço, esculptura tosca de madeira, com as quatro patas sobre duas vigas curvas. Uma pequenina loira, d'olhos azues muito doces, animava o infante, e pôz-se, muito contente, a bater as palmas, quando o viu sobre a sella. D. Pedro ria muito da falta de geito do irmão, do medo que mostrava.

O Conde de Cantanhede contemplou o quadro um instante.

-- Se El-rei morre cedo, teremos a regencia da rainha por muito tempo.

-- É mulher d'animo varonil, observou D. Rodrigo.

-- Decerto. Muito nos valeu nas indecisões do Duque de Bragança. Mas é mulher.

E pôz-se a olhar para D. Affonso, com um olhar em que havia desdem e tristeza.

-- Foi tão doente!... A paralisia que teve aos tres annos... Aquelle lado direito ainda não se concertou. E a cabeça... alguma coisa deve de ter soffrido.

-- Não parece irmão do sr. D. Theodosio, disse D. Rodrigo, vendo o pobre infante cheio de susto porque estremecêra o cavallo.

-- O Principe era gentil cavalleiro com effeito. E as armas... como as jogava! Deveu-o ao excellente mestre. Ah! se todos fossem como Diogo Gomes...!

-- Caluda! observou-lhe D. Rodrigo, apontando para um fidalgo que vinha entrando.

-- E que me ouvisse ? Se digo a verdade!... D. João da Costa, nem porque deixa muita vez levar-se da ira, deixou nunca de ser justo.

D. João da Costa, desde havia pouco feito Conde de Soure, governadôr da provincia do Alemtejo, vinha entrando acompanhado pelo general de artilharia André de Albuquerque.

A observação de D. Rodrigo, mandando calar o irmão, ao ouvir-lhe o elogio ao mestre d'armas do Principe, fôra motivada pelas differenças que sabia desde ha muito existirem entre o governadôr das armas e Dioge Gomes de Figueiredo. O Principe D. Theodosio, nomeado por seu pai capitão general do reino, mandára, a pedido de Diogo Gomes, retirar da guarnição d'Elvas o terço de que era mestre de campo. Replicára o Conde, representando que mal poderia sem aquelles homens guardar e guarnecer as muralhas da cidade. Azedára-se a questão, Diogo Gomes marchou para Evora e o Conde obteve licença para passar a Lisboa.

Não lhe faltavam emulos na côrte, que logo acharam meio de malquistar D. João da Costa, alcunhando de desobediencia seu excessivo zelo pela honra do exercito portuguez.

O Conde de Cantanhede caminhou para o velho amigo, socio em perigos varios desde a acclamação do duque de Bragança, e cumprimentou-o familiarmente.

-- Uma desgraça! disse D. João da Costa, esquecido de todos seus resentimentos.

O Conde e D. Rodrigo cumprimentaram André de Albuquerque.

-- Ignoro a conta em que me tinha D. Theodosio. Não sabe um soldado ser côrtezão, nem eu sei se me voltaria seu valimento. Dizem mal de mim na côrte. Mas vós sabeis que não sou de reservas, digo o que penso, e mal visto antes me quero no paço que em minha consciencia.

-- Quem póde querer-vos mal? perguntou D. Rodrigo.

-- Quem póde El-rei escolher que dignamente vos substitua? acrescentou o Conde de Cantanhede.

-- Com mais talentos, muitos; nenhum com maior lealdade. Falar claro é talvez na côrte defeito grave.

-- A D. João IV falastes sinceramente e El-rei soube agradecer-vos.

-- Sim. Mas falei-lhe em nome de muitos, porque todo o tempo gastava em caçadas e solfas e descurava os interesses do reino. Entre Douro e Minho não tinha quatrocentos soldados pagos; não tinham soldados a Beira nem a provincia de Traz-os-Montes; O Algarve era sem meios de defeza; não tinham guarnições, Cascaes, Peniche, S. Filippe nem Outão. Como eram os negocios de Angola, de S. Thome, do Brazil? Havia anno e meio que El-rei fôra acclamado e nem uma só vez assistira no seu conselho de guerra! Lembra-me ter-lhe dito que os soldados, além de mal pagos, eram muito desfavorecidos dos ministros, negando-lhes não só os despachos, mas as palavras côrtezes, que obrigam muito e custam pouco.

-- Admittiu El-rei o vosso memorial e pouco depois passava ao Alemtejo, disse D. Rodrigo.

-- E' certo, continuou o Conde de Soure. Mas nunca foi deleite seu formar esquadrões de cavallaria, metter terços em batalha, visitar fortificações, quanto é digno emfim d'um alto coração e approvado com exemplo dos maiores principes do mundo. Mais inclinado á guerra me parecia o sr. D. Theodosio, apesar do muito latim que lhe ensinaram.

D. Rodrigo sorriu-se. Já o Conde de Cantanhede se mostrára pouco satisfeito de tanta sciencia.

-- Ha-de um dia Castella vêr-se desembaraçada das guerras de Catalunha, de França, de Hollanda, que por emquanto a divertem, e então, com todas suas forças, cairá sobre a nossa fronteira. Excellente nos fôra um principe como este que vai morrer.

-- Será desgraça nossa, disse baixinho André de Albuquerque. Sem principe que nos mande, soldados que mandemos... Uma desgraça!

-- Desgraça! exclamou o Conde de Soure, parecendo não ter gostado de vêr o general de artiIharia cm tão prompto accôrdo com suas palavras desanimadas. Parece não saberdes que, poucos contra muitos, é costume de portuguezes alcançar victorias.

André de Albuquerque empallidecendo, mais visivel se lhe tornou a cicatriz da testa; tremeram-lhe as azas do nariz; os olhos scintillaram com um lume de colera. Calou-se.

O Conde de Cantanhede pensou:

-- Breve te vais despicar, militar dos mais valentes!

O Conde de Soure tinha d'aquelles rompantes.

Haviam chegado á janella.

-- Devagarinho, Simão! dizia D. Affonso, emquanto, com o pé na viga curva, o filho do moço de estribeira ia baloiçando o cavallo.

E a cada movimento mais rapido, o Infante segurava-se-lhe ao pescoço, todo a tremer.

A pequenina continuava olhando para elle, ternamente, e, quando o via assustado, assustava-se.

Os quatro fidalgos ficaram observando, pensativos, o quadro de tamanha tristeza. N'aquelle dia, n'aquella mesma hora talvez, o desgraçadinho ficaria herdeiro da corôa de Portugal.

-- Tenho medo! dizia o Infante.

E no sorriso do pequenino D. Pedro olhando para o irmão, havia desprezo e mofa e por vezes raiva.

-- Um sapo escarrapachado! exclamou alto uma voz.

Era o Marquez de Cascaes, D, Alvaro de Castro, que as côrtes estrangeiras nunca tanto souberam polir, que lhe impedissem demasias de lingua, nunca tanto ensinaram na diplomacia, que o obrigassem a mentirosas falas, a caminhos tortos.

Pouco a pouco, em bicos de pés, encaminhavam-se todos para a janella, excitados pela curiosidade que provocára a frase do Marquez, quando um ruge-ruge de sedas os fez voltar os rostos para a porta de entrada. Chegava a Condessa de Castel Melhor com seu filho mais velho Luiz de Vasconcellos e Sousa.

Todos se inclinaram, que na côrte não havia senhora que maior respeito inspirasse. Vinha offegante, com a mão no peito. Mal pôde dar uma rapida noticia do marido, que breve devia chegar da Bahia, em cujo governo fôra substituido pelo Conde de Atouguia, D. Jeronimo de Ataíde. Seguiu logo para os quartos, onde a Rainha exigia sua assistencia.

Luiz de Sousa e Vasconcellos, muito novo, muito gentil com seu fato de côrte, acanhavam-o os seus dezoito annos, em meio dos velhos capitães, conselheiros, diplomatas, que, pouco a pouco, haviam entrado e enchiam agora o salão.

Approximou-se d'elle o Conde de Cantanhede.

Luiz de Sousa passava a mão pelos cabellos, puxava pelo buço que mal vinha despontando e córou quando, familiarmente, o Conde lhe poz a mão sobre o hombro.

-- Tão tarde chegaste! Tua mãe esteve doente?

Então explicou os motivos da demora: o pae, que esperavam a todo o momento, a mãe, que tudo por suas mãos queria ordenar sempre, negocios nos tribunaes...

E o Conde de Soure, que d'elle não tirava os olhos, dizia para D. Rodrigo de Menezes:

-- Que bello sangue gira n'aquellas veias! A mãe, fica-lhe o nome na historia. Que nobres sentimentos a heroina deve ter inculcado ao filho! Como ella soube tudo mover para que se aprestasse o navio que havia de salvar o marido preso em Cartagena de Nova Granada! Com que prudencia! Com que valor! Lembra-vos decerto. E em Monsão? Era então o Conde governadôr de Entre-Douro e Minho. Estavam no combate empenhadas todas as tropas, á doida. Já era morto o capitão Rodrigo de Sousa Coutinho, quando Christovam Mousinho, saindo com os seus para fóra dos vallados, deu com sua imprudencia maior animo aos inimigos. A Condessa desde Monsão reconhece o perigo que estavam correndo as nossas tropas. Desce ao rio, faz conduzir a toda a pressa duas peças de artilharia e a tempo tão proprio as põe jogando, que maior pressa que as balas para attingil-os, mostraram na fuga os castelhanos. A historia das nossas guerras ha de citar sempre o nome da Condessa.

-- Decerto, confirmou D. Rodrigo.

-- O Conde é um santo, continuou D. João da Costa. Um heroe tambem. Toda a historia em Cartagena lembra aventuras d'um romance de cavallaria. Arribando áquella terra, depois d'um violento temporal, ali o surpreende a noticia da acclamação do Duque de Bragança; planeia deitar mão aos galeões castelhanos, carregados de prata; é traído, preso e posto a tormentos; condemnado á morte; com as mãos aleijadas pela tortura, consegue, ainda assim, descer por uma corda desde a fortaleza até á praia, embarcar e fugir! Com maior prazer em seus governos se tem vingado agora dos castelhanos. Mas ainda mais uma virtude; todo o dispendio da guerra tem saído de seus cabedaes.

-- Um só defeito lhe condemno, disse D. Rodrigo, defeito grave nos que teem de governar.

-- Qual ? perguntou o Conde de Soure.

-- Urbano de mais, temeroso de offendôr qualquer, duvida sempre, porque a todos quer deixar satisfeitos.

-- Tendes razão, disse D. João da Gosta.

E como n'esse instante, o Conde de Cantanhede novamente se approximasse da janella, acompanhado por Luiz de Sousa, D. João, pondo a mão sobre o hombro do herdeiro do Conde de Castel Melhor, e como se este até ali o tivera ouvido, disse-lhe com singular ternura:

-- Rapaz, livre-te Deus da virtuosa herança.

E poz-se novamente a olhar para o Infante D. Affonso.

Luiz de Sousa approximou-se.

E disse o Conde de Cantanhede:

-- Houvera um homem em Portugal!

Luiz de Sousa olhou para elle.

-- Vês aquella creança? D. Theodosio está expirando e com elle a melhor esperança de nós todos. Não ha confiar na saude d'El-rei, que o profundo desgosto vae abalar muito mais. Será regente a Rainha por uns annos -- Deus a alumie! -- depois... aquelle pobresinho ha-de ser rei.

Calou-se. Passados instantes, repetiu:

-- Houvera um homem em Portugal, que, a corôa na cabeça, o sceptro nas mãos, segurasse d'aquelle fantasma! O manto real é largo, e onde se abriga uma sombra ainda póde caber um homem.

Luiz de Sousa escutava attento. Passou-lhe um clarão pelos olhos.

Reparou no Infante pequenino, que já não sorria, que falava colerico ao criado.

Houve um borburinho na sala. Era o arcebispo de Lisboa, capellão-mór, D. Manuel da Cunha, que fôra chamado a toda a pressa.

Correram alguns para beijar-lhe o annel. Velhos militares dobraram o joelho, que o arcebispo era de todos estimado.

Muito velho, magro, amarello, resequido, de faces amachucadas como pergaminho, com tremulos passos, muito vergado, lembrando uma mumia, atravessou offegante, o salão.

E todos então se lembraram da graça que elle um dia dissera a D. Theodosio, quando declarado Principe do Brazil: -- «Dou os parabéns a V. Alteza de o vêr Principe do Outro Mundo». E D. Theodosio, rindo, respondêra: -- «Similhante nova só m'a podia trazer um embalsamado!»

Corria agora a deitar-lhe a ultima absolvição.

No encalço do arcebispo entrou o Conde de Abrantes, o mais velho dos fidalgos portuguezes, tão velho que sabia contar o grande alvoroço de Lisboa antes da partida do exercito para Alcacer-Kibir, El-Rei D. Sebastião percorrendo a Rua Nova em meio da mais opulenta comitiva de fidalgos, que jámais se houvera visto, em terras da christandade, e o luto ao chegar a noticia da derrota, e as tropas do Duque d' Alba entrando a ponte de Alcantara, e os negros sessenta annos de captiveiro; tudo sabia contar o Conde de Abrantes. Atravessára uma noite muito longa; já muito velho vira raiar uma aurora. Para que darem-lhe na decrepitude uma esperança, se tão curto lhe havia de ser o dia?

Com a mão na testa, ensombrando os olhos contra a luz que entrava em jorros pela janella, com um tremor senil da cabeça toda branca e das pernas já sem forças, hesitava em meio da sala, e a todos doía contemplar-lhe a dôr.

-- Dê-me a sua mão, sr. Conde, disse Luiz de Sousa, approximando-se do velho meio cego.

A porta por onde saíra o arcebispo tornou a abrir-se e apareceram os dois medicos, logo por todos, anciosamente rodeados.

Só Paio Martins falava. Martim dos Reis, muito mais novo, de mãos cruzadas sobre o peito, ouvia humildemente. Com repetidos signaes de cabeça approvava as opiniões do collega, seu velho mestre, eruditamente salpicadas de latim.

-- Provêm os achaques do Principe, sympathice, do grande estillicidio que lhe caíu no peito et, ideo pathice, de haver eleito seus remedios, muitos mezes, por filosofia propria. Ad tempus, se a tempo fôra chamado...

Luiz de Sousa encaminhou o Conde de Abrantes para junto da janella.

No jardim travára-se lucta entre os dois irmãos. O Infante D. Affonso, choroso, não queria largar o cavallo, a cujo pescoço se agarrava desesperadamente. A pequenina choramigava; o moço, com um ar apatetado, não sabia que opinião seguir, falando a um, falando a outro. Até que D. Pedro, de dente ferrado no beiço, agarrou n'uma das pernas do irmão e derrubou-o da sella.

N'isto, um grito enorme de dôr horrivel atravessou a casa.

-- A Rainha! disseram vozes assustadas.

E todos logo perceberam.

Ia descendo o sol do dia esplendido de maio.

O Conde de Abrantes e D. Luiz de Sousa, encostadas as cabeças aos vidros da janella, ambos choravam.

O final d'uma tragedia seria principio d'outra. Reinava na sala um profundo silencio, como se aquella hora todos esmagasse, todos convencidos da sua gravidade.

Lá no jardim, D. Affonso, sentado n'um degráo de pedra, com o beiço a tremer de raiva impotente, queixava-se á pequenina, que o consolava, passando-lhe as mãos pelo cabello, sorrindo-lhe, mostrando-lhe as suas lagrimas.

Luiz de Sousa olhava para elle e sentia o coração a doer-lhe, cheio de piedade.

-- O Principe! mormurou.

-- Morreu! disse o Conde de Abrantes.

O sino da capella proxima começou dobrando a defuntos.

O pequenino D. Pedro saltou para cima do cavallo, ajudado pelo moço, já todo do lado d'elle, dizendo-lhe segredos, piscando-lhe o olho, apontando-Ihe o irmão que chorava.

O sol ia a descer glorioso. Umas nuvens muito altas pareciam de seda purpurina, agaloada de carbunculos e rubins. Passavam pardaes em revoada em busca das arvores que se tingiam d'oiro por toda a encosta. Rolavam pombos no telhado seus amores alegremente, e tudo era paz, tranquillidade, vida na natureza a sorrir-se na tarde esplendida de primavera.

A luz do poente circumdou d'uma aureola d'ouro a cabeça muito branca do Conde de Abrantes e o rosto deloridamente inspirado de Luiz de Sousa.

Passaram duas andôrinhas voando na brisa que se perfumara roçando as flôres silvestres da Tapada.

E o infantesinho victorioso, lindo, de cabellos esvoaçando ao vento, balouçava-se, intrepido, no cavallo, erguendo o braço direito n'um gesto de triumfo! Era um encanto sua infancia resplendente, de si mesmo luminosa, e toda banhada pela luz do sol!

Já em todas as freguezias e conventos da cidade dobravam os sinos a defuntos.

PRIMEIRA PARTE

A REGENCIA

CAPITULO I

Cerco á quadra!

Sentados, atraz d' uns penedos encostados á muralha, muito embrulhados nos capotes por causa do frio, conversavam os dois alferes e o padre.

-- Melhor sorte nos traga o anno do Senhor de mil seiscentos e cincoenta e nove, dizia o clerigo, acommodando-se n'um pedregulho e arrumando as pernas com um gemido.

-- Melhor sorte! exclamou o alferes Pero Rolão, com os olhos azues muito esbogalhados. Apanhaste-me hontem quatro cêrcos a fio!

-- Melhot sorte! disse a rir Manuel Furtado. Que mais quer elle do que esta doce paz, suavissima tranquillidade, socego infinito, ociosidade bemdita que nos outorga, generoso, D. Luiz de Haro, cercando-nos n'esta praça d'Elvas!

-- Uma gallinha para o Conde da Torre custou hontem sete mil reis e as caixas de doce já não teem preço! soluçou o padre.

-- Não fales em coisas tristes, interrompeu Pero Rolão. Meu querido estomago, que tão amimado eu sempre trouxe, e agora tão merencorio!... Para mim tenho a minha filosofia; mas elle, coitado, nunca foi dado a humanidades.

-- Tendes o pão fabricado com o suor dos nossos soldados, riquissima agua da cisterna, e ainda vos queixaes, patifes Deus nobis haec otia fecit! E se houve aqui sillabada, o padre Ventura que a emende. Que nos falta! Bella mesa, lindas mulheres, noites conchegadas em camas fôfas...

E Manuel Furtado poz-se a cantarolar.

-- Descalça vai para a fonte

Leonor pela verdura.

Vai formosa e não segura.

-- Cala-te com a cantiga disse Pero Rolão. Mal hontem te puzeste a cantar, veio-lhe a sorte ao reverendo!

Mas o padre erguera-se, horrorisado.

-- Chita, diabo!

Todo elle tremia. Os dois alferes puzeram-se de pé e desmaiou-lhes a côr nos rostos.

Um cão goso, amarello, chagado, muito magro, passava, com os olhos ferinos, injectados de sangue, levando atravessado na bocca o braço d'um homem.

E' que já não havia tempo nem logar para enterrar os mortos.

Os castelhanos que, desde outubro cercavam Elvas, julgavam que eram mais na praça os soldados que os mantimentos, e esperança tão mentirosa os alentava pacientes nos quarteis em volta da cidade e «a fome nol-os entregará» diziam. Mas a peste dizimára a população. De onze mil soldados, que se haviam recolhido entre as muralhas, não chegavam agora a mil os que estavam capazes de tomar armas. Dias houve em que morreram trezentos. Não convinha sepultar os cadaveres fóra das muralhas para não tirar os inimigos do engano em que descançavam; não podiam abrir-se sepulturas no fosso que era de pedra; breve se encheram as das egrejas; nos terraplenos das muralhas já eram mais os mortos do que a terra. Os cães e os corvos padeceram menos fome do que a gente.

Durava o cêrco havia mais de dois mezes.

D'onde estavam, viam os alferes o campo castelhano fortificado, a barraca luxuosa que D. Luiz de Haro mandára construir, e as tendas dos generaes.

O exercito invasor compunha-se de quatorze mil infantes, cinco mil cavallos, artilharia, munições, mantimentos e grande numero de carruagens.

Apenas o valido d'el-rei D. Filippe IV de Castella, deliberou rogar a sea amo lhe désse o commando do exercito com que havia do entrar em Lisboa, conforme arrogantemente affirmava, bandos não foram precisos, nem editaes. Correram, pressurosos e lisongeiros, a cantar victoria os melhores officiaes, a sentar praça o melhor da nobreza. Dinheiro nao faltava: grossos cabedaes de particulares.

Era capitão-general do exercito D. Luiz Mendes de Haro, marquez del Carpio, cavalhariço-mór d'El-rei e chanceller-mór das Indias. Todos queriam agradal-o .

Governadôr das armas era o Duque de S. German; general da cavallaria o Duque de Ossuna.

-- Formosos quarteis ! disse Pero Rolão mostrando o punho ao arraial castelhano. E nós aqui nem os sete palmos de terra que sao devidos a todo o christão quando morre! Dente de cão ... e é favor!

Manuel Furtado já sacudira o torpor em que o puzera a visão horrorosa.

-- Vamos, Pero, não te queixes do luxo dos quarteis castelhanos, porque havemos de lá entrar um dia que não tarda.

O padre resava, benzia-se...

-- A guerra, disse em tom de voz cavernosa, a guerra...

-- Não botes sermão. Senta-te, rapaz. O Pero vai pôr-te quatro cartas de apetite em cima d'esta pedra... Ainda tens dinheiro ou já o fundiste nas orgias!

A fisionomia do padre illuminou-se. Olhou, tentado, para as cartas que Pero Rolão, deitado de bruços, ia baralhando methodicamente.

-- Não me ponhas um conde na mesa, que me perco! disse, já esquecido de maiores miserias.

Ainda os distraíu uma bomba jogada por um dos morteiros do forte de Nossa Senhora da Graça e que lhes passou assobiando por cima das cabeças.

-- Saude! gritou-lhe Manuel Furtado.

-- Raios partam os castelhanos! Nem para um montesinho nos deixam socegados! queixou-se Pero Rolão.

O Padre benzera-se. A bomba estourou.

-- Dominus tecum! disse o Furtado.

Pero Rolão começou outra vez a baralhar, não houvesse o padre, aproveitando a distracção em que o puzera a bomba, feito malicioso pescanço a alguma carta.

Andavam n'aquella lucta desde o principio do cêrco. O capital não passava de meia duzia de cruzados, que não havia maneira de aquietar n'um bolso. Padre e militar desconfiavam muito um do outro; frequentes vezes trocavam as maiores injurias; mas logo no dia seguinte se buscavam, mais podendo o vicio que o resentimento.

Manuel Furtado contentava-se com vel-os. O dinheiro era pouco e não o tentavam cartas. Sentia entretanto muita vez na alma impulsos e ambições de jogadôr. Mas as paradas tinham de ser outras. Pouco lhe importava arriscar a vida, mas o premio, que ás vezes sonhava, a ninguem o dizia.

Filho d'um velho capitão da India, morto na fronteira logo ás primeiras escaramuças da guerra da restauração, passara em Lisboa uns annos, vivendo com sua mãe da pequenina pensão laboriosamente conquistada pela viuva, repellida muita vez, voltando ao sotão em que viviam lavadinha em lagrimas.

E elle, uma criança, pensava que a lucta na vida não era só expôr-se um homem á morte, a peito descoberto contra balas e partasanas. Outra havia de risco maior e melhor resultado e n'ella tinha de vencer. Quando? Como?... Fiava-se no acaso, fiava-se na tempera em que horas de miseria lhe haviam posto a energia.

Tinha quinze annos apenas, quando a mãe lhe morreu. Embrulhou-a n'um lençol, deixou-a dôrmindo para sempre no adro da egreja do Salvadôr, e, depois de haver devotamente beijado a pedra que recobria a adôrada reliquia, correu a sentar praça.

Andou pelas provincias, sempre a mudar de terço e de capitães, na grande confusão de ordens e de contra-ordens, em que nem governadôres nem soldados se entendiam. Subira postos. Alferes, havia meia duzia de mezes, sonhava dia e noite com as insignias de capitão.

-- Jógo! Jógo! gritou o padre encantado de ver na mesa um conde de copas. Jógo um vintem contra esse diabo!

Manuel Furtado poz-se a cantarolar. Pero Rolão, cheio de agoiros, olhou para elle desconfiado, Tirou vima carta, depois outra; o padre ganhava sempre.

-- Descalça vai para a fonte

Leonor pela verdura.

Vai formosa e não segura.

cantava Manuel Furtado.

E o padre, augmentando as paradas:

-- Um rei ... um az... um duque! Paga, Rolãosinho!

O Rolão furioso pagava.

Entretanto, por um caminho superior, vinham-se aproximando o mestre de campo general D. Sancho Manuel e o general de cavallaria André de Albuquerque. Chegaram a tempo em que Pero Rolão d'olhos saídos, raiados de sangue, dizia ao padre Ventura:

-- Ladrão, marcaste os condes!

Tinha perdido doze vintens.

Manuel Furtado poz-se a rir.

-- Culpa foi tambem da tua cantoria. Puzeste-te com ella á ilharga do padre. Que demonio! Sempre, sempre :

Vai formosa e não segura !

Vai formosa e não segura !

-- Que queres? Quando me vejo triste...

-- Agoiras os teus amigos!

-- Lembro-me d'ella e passa-me a tristeza.

-- Custou-me doze vintens o teu remedio!

-- Tristeza remedio de tristes, disse-o Luiz de Camões. Consola-te com ella.

D. Sancho Munuel e André de Albuquerque pararam junto da cortina, por cima d'onde os trez rapazes se achavam, sem que nenhum d'estes reparasse na perigosa visinhança. O Padre Ventura contava os vintens! Pero Rolão bufava; Manuel Furtado monologava... ou conversava com os amigos, nem elle sabia.

-- Maria da Boa Hora!... Que linda era!... Uns olhos côr da noite com mais luz que uma aurora!

-- Até rimaste! disse o padre mettendo na bolsa o dinheiro.

-- Ai, padre, dei cabo das rimas em ora! E um signalsinho que tinha no beiço... Tu, padre, não entendes nada d'isto. Um signal com que um homem, só de vê-lo, se embebedava! Mais branca do que uma pomba e os cabellos negros como a aza d'um corvo! Quando, ha dois annos, estive em Lisboa... Como voaram aquelles quinze dias!... Esquecia-me dizer-te que a minha Venus tinha um defeito.

-- A tia, disse o padre.

-- Como o sabes?

-- Se já me constaste a historia trinta e duas vezes!

-- Mil e uma teremos de atural-a, disse Rolão ao padre Ventura, começando a preparar as pazes, não fosse perder o parceiro.

-- Se não posso calar-me!...

E continuou na ladainha das perfeições da sua dama, em quanto D. Sancho Manuel, cá em cima, explicava a André de Albuquerque como, para introducção na praça do soccorro que esperava do Conde de Cantanhede, lhe parecia acertadissimo o parecer de D. Luiz de Menezes.

E explicava, apontando para os quarteis do inimigo, os postos do rio Caia, e o forte de Santa Luzia, como seria facil ludibriar o inimigo.

André de Albuquerque não concordava, seguindo o parecer de Diogo Gomes de Figueiredo. O valor dos portuguezes não necessitava de industrias nem a gente, pela maior parte bisonha, dava logar a grandes operações. Era investir as linhas com as espadas na mão, ao favor das baterias da praça, da sortida da infantaria e da misericordia de Deus, Nosso Senhor.

Desde que D. João da Costa, Conde de Soure, trocára os campos de batalha pelas missões diplomaticas, não havia em Portugal dois cabos de guerra como aquelles. Fôra D. Sancho Manuel vencido em conselho, mas continuava teimoso em sua opinião. Tornava a explicar.

Cá em baixo, d'olhos em alvo, Manuel Furtado redizia as graças da sua bella.

-- Uma palavra não trocámos, uma só carta não pude áquellas mãos passar, em que puzera minha ventura. Outro defeito ainda tinha, além da tia muito ciosa de sua virtude...

-- Mais um! exclamou o padre. Ah! já me lembra: cantava versos d'esses poetas d'agora...

-- E eu cantei-lhe Camões e Bernardim Ribeiro e Francisco Rodrigues Lobo e versos meus.

-- Os quatro maiores poetas que ha visto a nossa terra!

-- Ah! meus amigos! Dava-lhe eu de noite a minha musica... E tanta foi que os visinhos se queixaram... Que noites!... Até que uma vez...

-- Cantou ella o que tu cantavas, interrompeu o padre.

-- Unica prova que tive de seu amor!

E, logo a toda a voz, Manuel Furtado poz-se a berrar:

-- Descalça vai para a fonte...

Só então deram por elle os dois generaes. E tanto a alegria de tanta mocidade contrastava com a desgraça da guerra, que os dois quedaram-se um momento, olhando para o grupo, como enlevados. Tanto havia que não ouviam cantar!

-- Doido estarei, mas que importa? A imagem que me acompanha me dá forças. Vejo-a sempre ante meus olhos. Queria encher-me de gloria, para glorioso me ajoalhar a seus pés! E, se me rodearem os terços castelhanos e uma bala me encontrar em seu caminho, vendo um anjo á hora da minha morte, morrerei contente!

D. Sancho Manuel, a sorrir-se, olhou para André de Albuquerque.

-- Em que pensaes ? perguntou-lhe.

Sabia que o valente general amava apaixonadamente a noiva, D. Anna de Portugal, filha segunda de D. João d' Almeida.

Um sorriso de felicidade despontou sob o farto bigode do velho militar, illuminou-lhe com viva côr as faces queimadas pelo sol, alegrou-lhe o doce olhar, que logo pousou em Manuel Furtado com meiga sympathia.

-- Se te rodearam os terços castelhanos!... disse Pero Rolão. Quando o trigo se acabar na cidade e todos morrermos á fome, hão de elles rodear-nos, mas é n'um bailarico. Entrámos para aqui sem dever, já d'aqui não sahimos.

-- A culpa foi de quem nos manda, disse o padre Ventura, sentenciosamente.

-- Que diz elle? perguntou André de Albuquerque franzindo o sobr'olho.

-- Opiniões de clerigo, respondeu D. Sancho Manuel, rindo e encolhendo os hombros.

-- Para que levantámos nós o cêrco de Badajoz? Para que deixamos chegar os castelhanos a S. Francisco sem ao menos retirar do mosteiro o Conde camareiro-mór expirante?

-- Joanne Mendes breve ha-de ser julgado porque abandonou a empreza de Badajoz; mas saberá defender-se, disse Pero Rolão.

-- E o Conde?... Não foi uma vergonha?...

-- Sempre me ha-de lembrar... disse Manuel Furtado, repentinamente sério. Foi elle que não quiz recolher-se á cidade... Com o rosto furado por uma bala... Um ferimento horrivel! Sobre veio-lhe a febre... perdeu o juizo. Tinha a espada á cabeceira... Gritava que só elle defenderia o convento contra o inteiro exercito de Castella... Os primeiros que entraram matei-os eu com duas pistoladas; abri depois caminho á ponta da espada...

-- Manuel Furtado, disse baixo André de Abuquerque a D. Sancho.

-- E ainda vi o Conde, com a cabeça envolta em pannos ensanguentados, delirante, a brandir com os braços mirrados uma espada chimerica!

-- Conheceis aquelle alferes? perguntou D. Sancho.

-- De nome, respondeu André de Albuquerque. É um valente.

-- E um companheiro enamorado, accentuou o mestre de campo, provando ao general que bem lhe percebera os motivos da sympathia.

-- Fallam agora de soccorros... Alimentam uma esperança, já que o mesmo ás barrigas não sabem fazel-o. Se eu fosse mestre de campo general...

E o padre poz-se de pé, para provar como em dois dias desbaratava o poderoso exercito de D. Luiz Mendes de Haro.

-- Olhai!

-- O padresinho é atrevido, disse D. Sancho Manuel ao general. Punhamos-lhe ponto na rhetorica.

Mas já Pero Rolão, adeantando-se ao governadôr da praça, com a mão papuda abatêra o gesto eloquente d'aquelle extremado capitão a despontar n'um clerigo.

-- O que tu queres é escapar-te á desforra!

-- O padre sorriu-se. Se apanhasse os seis cruzados inteirinhos ao alferes...

-- Eu...! Nunca!... Um portuguez de quatro costados nunca foge! Venham as cartas!

Com os mesmos gemidos queixosos tornou a sentar-se. Pero Rolão tirou quatro cartas, que collocou em cima d'uma pedra. Era uma d'ellas a quadra de paus. Sem saber porquê, Manuel Furtado tentou-se. Tinha na algibeira uma moeda castelhana.

-- Dás licença? disse a Pero. Jogo-a de cêrco á quadra. Quero perdel-a, porque é castelhana e porque... infeliz ao jogo, feliz nos amores!

Pero Rolão não teve tempo para voltar o baralho. Contornando o penedo, que occultava os jogadôres, surgiu-lhe pela frente o mestre de campo.

O olho muito azul pasmou; a bocca escancarou-se.

Manuel Furtado poz-se de pé e cumprimentou D. Sancho Manuel, como garboso militar.

Este franzira o sobr'olho. Trazia na mão direita um junco. Com a esquerda arripiava o bigode.

-- Bom passatempo de soldados portuguezes, quando o inimigo ali defronte continuamente nos insulta, quando tantos camaradas nos morrem e não ha mãos piedosas que os enterrem.

O padre pensava, e com razão:

-- Mas quem ha-de responder ao inimigo? Mas onde a terra para cobrir os mortos?

O beiço de baixo de Pero Rolão tremia-lhe como em terçãs. Manuel Furtado enfiára. Não se lhe mostrava a fortuna favoravel. André de Albuquerque approximou-se.

-- É V. Mercê Manuel Furtado, quem nos primeiros dias do cêrco acompanhou um comboio de mantimentos, o ultimo que entrou em nossa praça?

-- Eu fui, senhor.

-- Além do trigo trouxe V. Mercê sete prisioneiros e quatro cavallos?

-- E verdade, senhor.

-- Tendes o chapéu enfeitado com um furo de bala ao lado da pluma. Foi dadiva dos castelhanos essa noite?

-- Fôram generosos, agora o vejo, disse Manuel Furtado curvando-se gentilmente.

D. Sancho Manuel atalhou n'este ponto a conversação. Voltando-se para o padre Ventura, disse-Ihe ironicamente:

-- Hei-de chamar V. S.ª a conselho, se me quer dar tamanha honra.

Os joelhos do padre batiam um no outro como castanholas.

D. Sancho voltou-se para André de Albuquerque e disse-lhe :

-- Vamos!

E baixinho accrescentou:

-- Se eu jogasse, era na quadra.

Os tres ficaram silenciosos, extaticos, Pero Rolão, sem fala, d'olho pasmado, o padre a tremer como varas verdes. Outra bomba sibilou por sobre elles, mas, ainda antes que rebentasse, Manuel Furtado, que ouvira D. Sancho, apanhou o dinheiro de sobre a quadra e, mettendo-o na algibeira, disse victoriosamente:

-- Ganhei!

CAPÍTULO II

As linhas d'Elvas

Posto de joelhos, beijando a mão da Rainha, dissera-lhe o Conde de Cantanhede, eleito governadôr das armas para o soccorro da praça d'Elvas:

-- Eu parto. Senhora, a Extremoz, a obedecer a V. Majestade, e espero na justiça da causa que defendemos e nos valerosos animos dos vassallos de V. Majestade que brevemente hei-de voltar aos pés de V. Majestade a render-lhe a gloria de vencedôr do exercito de Castella.

Havia dois annos que El-rei D. João expirára e a Rainha D. Luiza, ralada de desgostos, vira anciada por negros, irrequietos agoiros, acclamar seu filho D. Affonso rei de Portugal.

Regente, mais que as luctas contra Castella, combates intimos despedaçavam seu coração de mãe. Ferviam as intrigas no Paço, e a mão da Rainha, cançada do esforço com que segurava o sceptro, mal sabia reger o filho.

Era D. Affonso quasi um homem; mas a paralysia de que fôra em pequenino atacado parecia não lhe haver deixado inteiras as faculdades. Já em conselho, antes da acclamação, alguns haviam emittido parecer favoravel ao adiamento da cerimonia. Em torno da creancinha formára-se, crescia a desconfiança.

Distraía-se D. Luiza tratando da guerra, em defeza da patria que havia escolhido ao casar com o Duque de Bragança. Desviava assim do pensamento mais espinhosos cuidados.

Partira para Extremoz o Conde de Cantanhede. Grandes, complicadas difficuldades venceu, das povoações tirando as levas necessarias para commetter sua empreza. A um fraco exercito de gente quasi toda bisonha juntou as guarnições de Juromenha, de Villa Viçosa, de Borba, de Campo Maior, de Arronches e de Monforte. Na segunda-feira, 13 de Janeiro de 1659, occupava o exercito as collinas da Assomada, d'onde toda a praça d'Elvas se descobre. Logo disparou a artilharia a dar signal de sua chegada; responderam-lhe com repetidas salvas a praça e o forte de Santa Luzia.

Entrou finalmente a esperança no coração dos sitiados. Doentes e sãos saíram de seus alojamentos, contentes, em alvoroço, dispostos a pegar em armas.

D. Sancho Manuel, vestido de galas, com o chapéu ornado de plumas, como costumava em occasiões solemnes, prazenteiro e gentil, montou em seu cavallo de batalha.

Avistou Manuel Furtado e disse-lhe:

-- Amigo, quereis desenferrajar os braços, para tel-os ámanhâ bem dispostos?

E, sahindo da praça com a cavallaria, carregou furiosamente as sentinellas e companhias da guarda do quartel da Côrte, que lhe nao puzeram resistencia.

Voltaram. Manuel Furtado trazia pela redea dois cavallos do inimigo. D. Sancho Manuel sorria.

Ao recolherem para dentro da cidade, o mestre de campo voltou-se para o alferes e perguntou-lhe:

-- Que nome tem ella?

Manuel Furtado sentiu todo o sangue do coração a subir-lhe ás faces.

-- Boa Hora, respondeu.

-- Que te queria o mestre de campo? perguntou Pero Rolão, que trotava ao lado do companheiro.

André de Albuquerque parára á porta vendo desfilar a cavallaria. Reconheceu os alferes, fez-lhes um pequenino signal com um riso dos olhos.

-- Ando com má sorte! dizia dolorosamente Pero Rolão. Não ha no exercito cavallo com trote mais duro. Então desde que emmagreci... Que te disse D. Sancho?

-- Que em boa hora o encontrei, respondeu Manuel Furtado. Boa Hora!...

Com alegre impulso haviam os soldados do Conde de Cantanhede acclamado a sortida de D. Sancho Manuel. A praça, com seu aspecto formidavel, parecia dominar todos os quarteis do inimigo. Mal sabiam em que cemiterio se tornara, quantos, ainda vivos áquella hora, não veriam amanhecer o novo dia. Ignorantes de tantas miserias, acclamavam a victoria que tinham por certa.

Em mais fundada razão confiados, sorriam desdenhosos os castelhanos. N'esse mesmo dia lhes havia chegado um reforço de tres mil infantes e quinhentos cavallos. Era o exercito portuguez formado de gente nova e mal disciplinada. Passado o primeiro ardôr, nem seria gloria desbaratal-o.

Causavam riso ao inimigo as tropas de soccorro; infantaria toda composta de gente auxiliar e da ordenança; cavallaria remontada das éguas das caudelarias; os terços pagos, uns sem mestres de campo, outros sem capitães que os soldados conhecessem e respeitassem.

Na barraca luxuosa, ornada com adereços e alfaias de alta valia, D. Luiz de Haro reunira seu conselho, cabos e officiaes praticos e valorosos, saídos da primeira nobreza de Hespanha. Para que discutir planos? O exercito castelhano em seus quarteis esperaria o ataque das tropas portuguezas, faceis de desbaratar, e, quando Elvas fôsse tomada e guarnecida, sem outra fortaleza que em toda a provincia o detivesse meia duzia de dias, marcharia em facil triumpho, Alemtejo fóra, até á vista de Lisboa, que uma só fortificação não tinha a defendel-a.

E o valído de Fillippe IV, despedidos os generaes, adôrmeceu tranquillo em seu leito opulento, recoberto por uma colxa bordada a ouro, e sonhou sonhos de gloria.

Em casa do padre Ventura, Manuel Furtado não dôrmia, mas sonhava; sonhava como Luiz de Haro. E, se houvessem de trocar as visões, não sei dos dois qual perderia.

-- Sabes que ámanhã é dia julgado infausto desde toda a antiguidade? perguntou Pero Rolão, que, desassocegado desde o encontro com D. Sancho Manuel, nunca mais pudera conciliar o somno.

Manuel Furtado não lhe respondeu. O padre, que tambem não dôrmia, interrompeu o bichanar das orações.

-- Infausto! infausto!...

-- Calai-vos, disse Manuel Furtado.

-- Infausto foi o dia em que nasci!

-- Calai-vos, repetiu o alferes. Já deram duas e tres quartos na torre e ao amanhecer havemos de estar a cavallo. Se nos virem, com a noite perdida, mais pallidos que meninas, vão dizer que havemos medo.

-- Quatorze de janeiro! Só me faltava que fosse a batalha em quatorze de janeiro! Que vai ser de nós? suspirou Pero Rolão.

-- Ou dos castelhanos, respondeu-lhe o companheiro.

-- E d'ahi deixal-o. Antes uma cova lá fóra que dente de cão cá dentro. Desde aquelle maldito encontro...

O padre suspirou e repetiu:

-- Desde aquelle maldito encontro...

-- Ando agoirado. Parece que me vou para o fundo.

-- E eu! exclamou o padre Ventura com um ai tão lá de dentro que Manuel Furtado poz-se a rir.

-- Descançai; eu vos puxarei pelos cabellos, quando fôr general e ministro!

O sino lá fóra bateu tres horas.

-- Durmamos! Sonhemos!... Já não temos senão uma hora para dôrmir e sonhar!

-- Nao digas isso! bradou Pero Rolão cheio de agoiros.

Mas nenhum mais dôrmiu.

Uma hora depois, quando já vestido e prompto, Manuel Furtado abriu a janella, alegrou-se de vêr a estrella da manhã, branca, muito cheia de luz, a brilhar muita viva no céu purissimo.

Lá de baixo, dos campos, vinha subindo, subindo uma neblina.

-- Que lindo nome ella tem!... Maria da Boa Hora! murmurou elle.

Pero Rolão batia o queixo com frio.

-- Bebe, disse-lhe o padre, offerecendo-lhe uma gota de vinho branco.

-- Devo-te um cruzado, disse Pero Rolão, pegando no copo. Se eu lá ficar, pede-o aos meus herdeiros e dize uma missa por minh'alma.

-- Cá fico rezando por todos nós, respondeu o padre commovido e abraçando os dois alferes.

-- Resa por mim, que resas por ti, disse Manuel Furtado a rir. Vamos, Pero, não tremas, que póde alguem cuidar que te põem medo os castelhanos.

O alferes sentia, no peito a aquecel-o o calor d'uma esperança.

A neblina fôra subindo. Occultara as estrellas do céo.

Logo de manha, por mandado de D. Luiz de Haro, saíra D. João Pacheco com alguns batalhões a reconhecer o exercito portuguez.

Nem mudara de alojamento nem pegara em armas, á espera que a nevoa se desfizesse, em vez de aproveital-a. Grande erro havia commettido o Conde de Cantanhede, e o mesmo erro o salvou. Voltou D. João Pacheco e segurou a D. Luiz que não haveria n'aquelle dia novidade, segundo o que observara.

O capitão general castelhano mandou retirar da linha opposta ao exercito os terços e cavallaria, deixando apenas guarnecidos os fortins.

André de Albuquerque, em trajos magnificos, com suas plumas voando ao vento, impaciente, mordia o bigode.

Já Manuel Furtado o cumprimentara de longe.

-- Logo estarei a teu lado, pensara. Em dia agoirento ha-de nascer a aurora do meu dia.

Pedro Jacques de Magalhães, no baluarte do Principe, commandava vinte peças de artilharia das mais grossas e não ouvindo rumores de batalha, passeava, furioso, praguejando.

Mas n'isto o sol rompeu a nevoa e os sitiados viram o erro dos castelhanos e o Conde de Cantanhede, ao longe, arengando as suas tropas.

Tocaram caixas e trombetas, estenderam-se as bandeiras o poz-se em marcha a vanguarda, mil infantes escolhidos, com sons mosquetes, pistolas, partezanas, espadas e rodelas.

Todo o exercito portuguez acclamava o Conde de Cantanhede e suas palavras cheias do enthusiasmo e de amor patrio.

-- Até que emfim! exclamou André de Albuquerque.

E, pelas Portas da Esquina, saíndo com a sua gente, marchou a formar-se junto ao ribeiro que corre entre a cidade e o forte de Nossa Senhora da Graça occupado pelo inimigo. D'ali correria em soccorro do exercito, como e quando o tivesse por mais conveniente.

Continuavam os portuguezes caminhando em boa ordem, levando cada soldado em sua alma a certeza da victoria. A maior parte entrava em fogo pela vez primeira aquella manhã. Temiam os capitães o effeito que n'elles obrariam os primeiros tiros e iam-Ihes repetindo, para animal-os, as palavras do Conde.

Aos primeiros mil infantes seguiam-se os cinco terços de tres mil homens, commandados pelo Conde de Mesquitella.

Guarneciam-lhes os flancos dezaseis batalhões de cavallaria, com mil e duzentos homens. Constava a batalha, a cuja frente marchava o governadôr das armas, de dois mil infantes e de outros dezaseis batalhões com novecentos cavallos. Era a reserva de dois mil infantes. Oito batalhões seguravam as bagagens.

-- A'vante!... A'vante!... gritavam os capitães.

Retiniam na serra os eccos das caixas e trombetas.

-- Olá, vós! disse André de Albuquerque a Manuel Furtado. Vêdes aquelle outeiro? E' logar muito exposto; mas na vossa edade o perigo é coisa de tentar. Levai comvosco vinte cavallos e avisai-me do que houver.

N'um só movimento d'olhos escolheu Manuel Furtado os homens que haviam de acompanhal-o no arriscado lance. Metteu esporas ao cavallo e galopou alegremente.

Subira Affonso de Mendonça a uma eminencia e, fazendo jogar as peças, levou o primeiro sentimento de terror ao coração de D. Luiz de Haro.

Continuava o exercito em seu caminho e ainda não voltara a si da surpreza o general castelhano, reconhecendo o desgraçado engano que padecêra.

Rubro de vergonha e de colera, chamou os mestres de campo e os generaes, deu ordens e contraordens, montou a cavallo e subiu ao forte de Nossa Senhora da Graça, d'onde se pôz observando a marcha do exercito portuguez, clamando a todos que viessem defender as linhas, confusa e atabalhoadamente falando da honra da nação.

Fazendo marchar os terços e batalhões, que ao acaso iam encontrando, maldiziam da má sorte o duque de S. German e o duque de Ossuna.

Já Pedro Jacques de Magalhães começara fazendo troar a artiliiaria da praça, mas ainda mais do que balas sobro o exercito inimigo caíam d'elle as pragas sobre a cabeça de D. Luiz de Haro.

Sitiado em Badajoz, nunca se atrevêra a atacar as fraquissimas linhas portuguezas; não embaraçara, quando o exercito se retirou, a passagem do Caia, o que lhe seria empreza facil; sitiara Elvas, deixando Extremoz e Evora, logares abertos; só lhe faltava, para mais desastrado governo, deixar sem guarnição a linha opposta ao alojamento inimigo.

-- Que mais quer para uma entrada triumphal em Madrid? perguntava, ironico, o Duque de Ossuna.

E a resposta envolvia-a nas mais sonoras exclamações castelhanas.

Entretanto, pouco a pouco, foi unindo os batalhões que marchavam sem ordem, emquanto o Duque de S. German e o mestre de campo general formavam a toda a pressa os terços, que vinham de cada quartel, acudindo.

D. Gaspar de la Cueva fez jogar a artilharia com pouco damno contra o exercito portuguez, quando já este ia chegando á linha, lançando as fachinas no fosso, saltando nas trincheiras, emquanto Pedro Jacques de Magalhães, desde a Praça, fazia furiosamente laborar as suas peças.

Já dois terços, apesar das cargas repetidas dos castelhanos, se haviam formado dentro da linha.

E D. Luiz do Haro, apavorado, perguntava se eram soldados bisonhos, se veteranos os que assim o atacavam, todos clamando victoria.

Deu-lhe animo o avistar D. João Quintanal, o qual tendo recebido ordem para se oppôr á sortida da praça, e, por demasiada confiança, passado a noite fóra dos Olivaes para o lado do Campo Maior, vinha a toda a brida, ardendo em furia, á frente dos quinhentos cavallos de seu commando, com o fim de romper a infantaria victoriosa.

Avistou-o Manuel Furtado. Encheu-se-lhe o coração de esperança. Tinha visto, a seu lado, caírem-Ihe doze homens dos que levára. O soldado, que lhe ficava mais perto, apontou para o inimigo, ia a falar, mas não chegou a dizer palavra, nem terminou o gesto; uma bala de artilharia levou-lhe o braço.

-- Será hoje...? pensou Manuel Furtado.

E, emquanto corria a participar a André de Albuquerque a carga de D. João Quintanal, via a imagem de Maria da Boa Hora a sorrir-llie, a dizer-lhe muito amor com o meigo olhar de seus olhos negros.

-- Nossa Senhora!... Maria da Boa Hora!...

Ao receber a nova, André de Albuquerque puxou do peito alegre a ordem de avançar.

Havia um claro entre os terços portuguezes e os batalhões castelhanos. Por ahi os investiu e, com tal impeto, que, pondo-os em fuga, muitos saltaram fóra das linhas, outros despenharam-se da serra.

Em meio do alarido, entre nuvens de poeira, Pero Rolão, de espada em punho, com o olho muito espantado, veio collocar-se ao lado de Manuel Furtado. Respirava alto, inchando as bochechas.

Já começavam na carreira a descer a serra, quando acudiu aos castelhanos espavoridos um grande troço de cavallaria, que os obrigou a formar de novo.

-- Agora é que são ellas! disse Manuel Furtado ao amigo.

-- Agora... pensa em tua dama! gritou-lhe André de Albuquerque.

E illuminou-se-lhe o rosto.

Era aspera a serra, o sitio estreito.

A lucta continuava. Chapou-se o cavallo do Conde da Torre.

-- Com mil raios!... gritou elle, cambalhotando.

Cercaram-o logo os inimigos.

-- Acudam áquelle patarata! gritou André de Albuquerque.

E Manuel Furtado e Pero Rolão atiraram-se para a frente.

-- Toma! gritou Pero Rolão a um castelhano.

-- Caramba! exclamou este, e caiu.

Pero Rolão assoprou.

-- Agora eu! disse Manuel Furtado.

E atirou-se intrepido para d'onde mais compactos os castelhanos vinham surgindo.

O Conde da Torre recuperára o cavallo.

Entretanto, os portuguezes acosssados pelo maior numero, fazendo varias voltas, retiravam devagar, dando logar a que os terços da vanguarda, fôssem, pouco e pouco, ganhando os fortins que guarneciam a linha. O Conde de Cantanhede, fundando esperanças de exito em tão bons principios, marchára com a batalha, todos os terços divididos em varias operações. Acudiu um grande troço de castelhanos a defender um forte; investiram-o os batalhões da segunda linha.

Vinha retirando a cavallaria portugueza, sempre defendendo-lhe á rectaguarda Manuel Furtado e Pero Rolão, animados pelo elogio de André de Albuquerque. Assim recuaram até o alto da serra e já começavam a descel-a, quando lhes acudiram os tenentes-generaes Tamaricourt e Diniz de Mello e Castro.

Novamente os castelhanos viraram costas.

Todos os fortes íam caíndo nas mãos dos portuguezes.

Alastrava o terror nas fileiras do inimigo. O Duque de S. German, furioso, vendo inutil todo o seu valor, tentava reduzir os terços e cavallaria á forma conveniente, enviando seus homens onde mais urgente lhe parecia o soccorro. O duque de Ossuna com um grande grosso de cavallaria resistia tenazmente na linha opposta ao lado direito do exercito portuguez.

D. Luiz de Haro, vencido pelo medo, não havendo sabido cuidar da saude do exercito, tratára da propria salvação, abandonando o forte da Graça e no melhor cavallo e mais rapido procurando abrigo nas muralhas de Badajoz.

-- Diabos o levem! disse o Duque de S. German, avistando-lhe as plumas brancas, que pareciam no alto do chapéu ir dizendo adeus pela estrada fóra.

E metteu-se no unico forte que ainda faltava vencer.

André de Albuquerque susteve a cavallaria na perseguição dos castelhanos desbaratados.

-- Ali!... A victoria é nossa!

E, á frente dos batalhões, galopou para o forte em que o Duque de S. German se recolhera.

Era a defeza desesperada. Caíra mortalmente ferido Luiz de Sousa de Menezes e o terço de que fôra mestre de campo, perdia terreno, já muitos soldados viravam costas ao inimigo, quando André de Albuquerque arrojou o cavallo para o centro do esquadrão exortando os que se retiravam. E, com a furia d'uma onda, todos se atiraram novamente contra a estacaria.

Por todos os lados retiniam gritos de victoria. Ouviam-se ao longe os brados afflictos dos castelhanos em fuga, tão precipitada, que muitos morreram afogados nas aguas do Caia. Passavam pelos ares, sibilando, as bombas, que íam estoirar dentro do forte.

-- Grande dia para vós! disse André de Albuquerque a Manuel Furtado.

-- Deve sêl-o, visto que m'o affirmaes, respondeu o alferes.

E que sonho de gloria o deslumbrou! Era pela [...] d'aquelle official valentissimo que havia de [...], de vencer. J;á se via na côrte, engrandecido, [...]...

Uma bala matou-lhe o cavallo, já na estrada do [...]. Ergueu-se no mesmo instante.

Uma lufada de vento abrira um claro na densa [...]. N'esse momento, Manuel Furtado avistou o Duque de S. German, arrancou a arma das mãos [...] mosqueteiro, apontou devagarinho, deu fogo. O Duque caiu desamparado para traz.

-- A'vante! A'vante! gritou o alferes.

André de Albuquerque junto ás estacas e tocando-lhes com a bengala, advertia os soldados de como as haviam de arrancar.

Um mosqueteiro castelhano apontava para elle [...] mosquete.

-- Derribei o Duque de S. German! gritou Manuel Furtado.

-- Que alegrias vamos ter... disse André de AIbuquerque.

Mas nao terminou a frase. Penetrára-lhe uma bala por debaixo do braço e elle caiu, amparado na queda pelo alferes.

As estacas não haviam resistido ao valente impulso dos portuguezes. O ultimo forte estava-lhes nas mãos. Por todos os lados tudo eram gritos de victoria.

Manuel Furtado sustinha sobre o joelho a cabeça do valente general expirante. Expirava-lhe tambem o sonho.

-- Victoria!... Victoria!... murmurou André de Albuquerque, com voz desfallecida.

Cerraram-se-lhe os olhos um momento. Encheram-se de lagrimas os de Manuel Furtado.

-- Escuta...

Custava-lhe a fallar. Veio-lhe aos cantos da bocca uma espuma avermelhada pelo sangue dos pulmões.

-- Escuta... Aqui... ao pescoço... um retrato... Leva-o comtigo... Dize-lhe...

Abriu muito os olhos já sem luz. Pelos labios ainda lhe esvoaçou um sorriso.

Rodearam-o todos afflictos, com os corações enlutados entre alegrias tamanhas.

Tocavam cornetas, rufavam tambores.

André de Albuquerque arquejava. Caíram-lhe no rosto as lagrimas de Manuel Furtado.

-- Como dizias tu?... Morro contente... Vejo um anjo... na hora da minha morte!...

Caíu-lhe o braço, percorreu-lhe o corpo um estremecimento, os olhos ainda mais se lhe dilataram, escorreu-lhe pelo canto da bocca um fio de sangue.

-- Anninhas! murmurou.

E o alferes, a soluçar, agarrou-lhe nas mãos e beijou-as como doido.

D. Sancho Manuel veio fora da praça receber o Conde de Cantanhede, acompanhando-o depois até á Sé, onde foi cantado o «Te-Deum».

Manuel Furtado, com mais tres homens transportando o cadaver do André de Albuquerque, entrou na egreja.

Chamou-o D. Sancho Manuel e quiz, com muitas lagrimas, que lhe contasse os ultimos instantes de tão valente soldado. Repetiu o alferes as ultimas palavras do apaixonado general e mostrou a D. Sancho o retrato, formosa miniatura suspensa d'um fio d'oiro.

Approximou-se o Conde de Cantanhede e soube por D. Sancho Manuel a derradeira vontade do heroe.

-- Ide, pois, a Lisboa, disse o Conde a Manuel Furtado. Cumpri o doloroso dever de que vos incumbiu o vosso general. Eu vos encarrego tambem da mensagem para a Rainha, dando-lhe parte da nossa victoria.

-- Volta-me o sonho! disse entre si Manuel Furtado.

O padre Ventura, rouco do enthusiasmo com que entoára o «Te-Deum», veio ter com o alferes.

-- Tanto rezei, que Nossa Senhora ouviu-me!... Heide apanhar os ultimos cruzados ao Pero Rolão.

-- Hoje mesmo parto! pensava Manuel Furtado. Atravessar o Alemtejo... o Tejo... ver a côrte, El-rei, a Rainha... Maria da Boa Hora!...

Encontrou Pero Rolão muito pallido, deitado de bruços nos degraus do adro. Assustou-se ao vêr-lhe o ar abatido, os olhos ainda mais fóra das orbitas.

-- Estás doente?

-- Muito!

-- Ferido?

Pero Rolão, mal podendo falar, disse que sim, meneando a cabeça desconsoladamente.

-- Onde?

Pero Rolão, olhou para elle.

-- Onde queres que seja? Diabo de cavallo!... Que galope tão duro!

CAPITULO III

Maria da Boa Hora

Batiam onze horas da noite e Manuel Furtado, de capa caída, chapeu para a nuca, subia devagarinho pelas travessas ingremes e tortuosas da Mouraria.

Escolhêra para voltar a casa o caminho mais longo. Deixava alto pairar a phantasia, percorrer caminhos luminosos. Sabia-lhe bem o silencio da noite. Nem a quem o accordasse poderia dizer que luz lhe fascinava os olhos, lhe abria nos labios um sorriso encantado.

Olhava para as casas, todas silenciosas áquella hora, palacios velhos que um resto de luar branqueava e engrandecia, casarias pobres em que dôrmia o povo.

Cruzou os braços e, mordendo o pollegar, ficou-se um instante a scismar, sorrindo sempre. Alguma linda imagem de mulher perpassaria ante seus olhos, alguma visão de gloria.

-- Has-de ser minha!... murmurou.

Sorriu-se ouvindo a propria voz.

-- Estou doido.

Continou subindo.

-- Ou bebado.

Chegára n'aquella manhã com a nova da victoria.

Que dia aquelle!

Queria rememoral-o, mas cada um de seus pontos luminosos era fonte de milhões de estrellas, que esfusiavam pelo céu. E já nem sabia o que fôra realmente nem o que a phantasia lhe criára a cada passo. Já a verdade lho parecia um sonho e cada sonho que sonhara acreditava ser verdade.

Dissera-lhe Pero Rolão vendo-o montar a cavallo: -- «Não te esqueças de entrar em Lisboa com o pé direito». Dissera-lhe o padre Ventura: -- «Deus vá comtigo!» Entrára com o pé direito e Deus viera com elle.

Quem lhe déra gravar na memoria para sempre cada minuto d'aquelle dia! Mas como? Era um sonho; tudo se emmaranhava!

Mal tivera tempo para correr á velha casa tão cheia de recordações, ajoelhar no adro da egreja do Salvadôr, resar um padre-nosso pela mãe, rogar-lhe que lá do céo o protegesse. Mas só ahi tivera um máo instante. Maria da Boa Hora!... Que fôra feito da linda mulher, da que devia ser seu ultimo pensamento, se uma bala o houvesse levado?

Só n'ella pensara durante a viagem, dia e noite, á redea solta pelas charnecas do Alemtejo, espalhando por villas e cidades a boa nova, sempre de espora nos flancos dos cavallos, rebentando-os, correndo, voando, e sempre com esta ideia:

-- Vou vel-a!... Vou vel-a!

Que alegria, quando da falua que o transportava de Alcochete á praia de Xabregas, á luz da manhã muito serena, avistou as collinas de Lisboa! Viu as torres da Sé e as de S. Vicente, e por ellas se guiou de longe, procurando o sitio do Salvadôr.

-- Maria da Boa Hora!

Que seria feito d'ella? Desapparecêra um dia, havia dois ou tres mezes, contara-lhe a boa Lourença.

Havia de encontral-a... Por Deus! se havia!

Mas o desgosto foi breve, foi como lagrima pequenina no grande brazeiro em que lhe estava ardendo a fantasia.

Que dia aquelle!

Decerto no aviso, que o Conde de Cantanhede mandára á Rainha com respeito á victoria alcançada, alguma fraze devia haver que ao portadôr se referia. Que lhe dissera D. Luiza de Gusmão dando-Ihe a mão a beijar? Palavra a palavra, queria reconstituir o elogio.

Estavam El-rei, a Rainha e a côrte assistindo ao sermão do primeiro dia de festa que a nobreza costumava fazer na freguezia de Santa Engracia ao Santissimo Sacramento, em desaggravo do insulto que n'aquella egreja lhe fôra feito no tempo do governo de Castella. Prégava D. Prospero doa Martires, e o sermão começado entre lagrimas terminou n'um cantico de graças.

Apontou o frade para Manuel Furtado, n'um rompante de gongorismos ao divino, e para elle se dirigiram os olhos de toda a côrte. Baixou os seus o alferes, e tanta modestia attraíu-lhe as simpatias das senhoras mais edosas.

O sacerdote no altar entoára o Te-Deum, e quando cantou: Sanctus, Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth, e todos ajoelharam, n'esse instante, Manuel Furtado deu vista do reposteiro-mór, D. João d'Almeida, que olhava para elle cheio de anciedade. O alferes recordou-se da nova lutuosa, que tambem trazia, e deu-lhe um remorso de havel-o um momento esquecido.

Reparou D. João no enleio do moço alferes e apertou-se-lhe o coração.

-- Pobre Anninhas! pensou.

E, mal terminou a festa, approximou-se do mensageiro, que o fôra de tão boa nova, e perguntou-lhe:

-- E a mim e a minha filha, que novas nos trazeis?

-- O snr. André de Albuquerque, respondeu Manuel Furtado sentindo um nó doloroso quasi a abafar-lhe a voz, andou como soldado valente que o era mais que nenhum. Já todos acclamavam a victoria quando me expirou nos braços.

Outros o rodeavam, anciosos de pormenores, quando o Duque de Cadaval, chegando-se ao alferes, lho ordenou em nome da Rainha. que o seguisse até os Paços da Ribeira.

E recordando agora, pelo silencio da noite, os factos que desde então se haviam dado, seu dialogo com o Duque e a recepção que lhe fizera a Rainha, de novo a fantasia lhe fugia da verdade para o sonho, com tintas do sonho já tingindo a verdade.

D. Affonso dera-lhe a mão a beijar.

Que triste rei!... E o que d'elle se contava!... Tão novo, parecendo tão pobresinho de forças... A doença, aquella paralysia que tivera em pequeno... Como acreditar o que se dizia d'elle, das correrias nocturnas em que andava?

E, de quando em quando, n'um scenario ou n'outro, surgia-lhe, luminosa esperança, a imagem de Maria da Boa Hora.

Que seria feito d'ella?

Que tristeza em casa do reposteiro-mór! Quizera D. João d' Almeida que o prpprio Manuel Furtado contasse a D. Anna de Portugal os ultimos instantes do noivo que tanto amára, que sempre via, orgulhosa de seu amor, na aureola de sua nobre fama.

De lá vinha agora. Horas e horas ella o retivera junto de si, anhelando tudo saber, a accumular dôres, consolação unica de sua dôr.

E nunca Manuel Furtado vira mulher assim tão bella. Vinte e dois annos. Loira como a nossa Senhora d'um quadro velho, que era toda a devoção de sua mãe d'elle. Os olhos azues, cheios de lagrimas, eram pedaços de céo constellado. Offegante, queria saber quanto Manuel Furtado sabia, quanto havia podido adivinhar. Via elle o estofo negro do vestido erguer-se e abaixar-se-lhe sobre o peito em ondas irregulares, inquietas.

-- Contai!... Contai!... dizia, sequiosa dos mais leves pormenores, para mais exasperar saudades de que havia de viver.

E Manuel Furtado contou quanto vira, tornou a contar, e o que suppunha, e já, pelas perguntas que lhe ella fazia, adivinhava que resposta esperava anciosa. E foi fallando horas e horas, e ella bebia-lhe as palavras.

-- Contai!... Contai!...

Interveio por fim D. João d'Almeida.

-- Anninhas, minha filha! O sr. alferes deve estar morto de cançasso. E' tarde. Precisas d'algum repouso tambem.

D. Anna de Portugal ergeu-se. Estendeu a mao ao alferes, que, posto de joelhos, lh'a beijou.

-- Voltai a minha casa, muita vez, a fallar comigo. Não sei como pagar-vos. Melhor o saberão os meus com sou valimento na côrte.

E com longo vestido negro a arrastar, a cabeça angelica inclinada para a frente, pelo braço do pae, sahiu da sala a passos lentos.

Um escudeiro acompanhou o alferes até á porta.

O valimento d'aquella familia!

Manuel Furtado trazia um remorsosinho a moer-Ihe um cantinho occulto da consciencia. A' força de tirar conclusões, mentira um pouco, inventára... Mas a culpa não fôra d'elle... Um bocadinho talvez... Aquelle sestro de poesia!... Ella dizia o villancete; que poeta lhe não faria as voltas?

Não havia duvida. Entrára na côrte com o pé direito.

Podia a Rainha esquecer-se d'elle; mas D. Anna de Portugal... De cada insignificante gesto de André de Albuquerque comporia um tomo para recitar á desconsolada noiva. Que muito era que lh'o ella pagasse, lembrando-o de quando em quando á munificencia regia?

Parou novamente, já perto do Castello, contemplando a cidade adôrmecida, e com a cabeça fez um gesto de triunfo. Via-se, pelo menos, mestre de campo a commandar um terço, tão garboso e gentil como D. Sancho Manuel, triunfante pelas ruas da cidade, olhando para a janella, d'onde Maria da Boa Hora lhe sorria.

E, mergulhado no sonho esplendôroso, poz-se a caminhar devagarinho.

-- Alto! gritou-lhe uma voz.

Manuel Furtado levou a mão á espada.

N'aquelle rapido movimento, caíram-lhe a capa e o chapeu.

Embargavam-lhe o passo tres homens embuçados, de chapeus sobre os olhos. Ouviu estalar o gatilho de uma pistola.

Correu para elles. Um ultimo raio de luar descendo pelo vão entre duas altas casarias, illuminou-lhe o rosto. Deteve-se, ouvindo uma exclamação de espanto:

-- O sr. Manuel Furtado!

-- Conheceis-me ?

-- Quem hoje vos não conhece?

-- Razão de mais!... Deixai-me passar! Os homens arredaram-se.

-- Passe V. Mercê.

Era tão humilde a voz que lhe fallava, que o alferes, movido pela curiosidade, perguntou:

-- Quem sois?

-- Não queira sabel-o. Siga V. Mercê seu caminho e perdoe a quem lhe não quer mal. Mal de nós se vos algum fizessemos. Estamos de guarda-costas n'uma aventura d'amor. Já vê V. Mercê, melhor é deixar-nos.

Um dos homens apanhára a capa e o chapéu de Manuel Furtado. O alferes reparou n'elle, era um mulato.

-- Uma aventura ingloria por uma historia de amores, com que nada tenho! pensou. Devéras, não valia a pena desembainhar a espada.

Olhou sobranceiro, um instante, para os homens.

-- Era doidice por tão pouco arriscar a vida a que sinto apêgo tamanho.

Enfiou a espada na bainha e continuou seu caminho.

A lua occultara-se completamente.

Teria andado uns cincoenta passos, ouviu vozes falando, lá d'onde deixára os embuçados.

-- Aventuras d'amor!

Apressou o passo.

-- Que me importa? Se uma unica imagem me occorre, quando penso em amores?

Pela travessa muito escura vinham-se os passos approximando. A rua formava um cotovello; á esquerda havia um bêcco, e, logo na esquina, uma casa com escada exterior e alpendre. Manuel Furtado trepou os degraus. Escondeu-se.

Não, não lhe valia a pena tentar uma aventura, quando a noiva de André de Albuquerque lhe promettêra seu valimento. Um tiro de pistola, uma facada talvez, podiam pôr-lhe um ponto na carreira.

O bando passou. Todos fallavam baixo. Manuel Furtado apenas percebeu meia duzia de palavras:

-- A Falcôa... Olhos tão negros... V. Majestade...

-- El-rei! disse comsigo espantadissimo. Então é certo!... El-rei com a sua pandilha!

Nem respirava.

- Bemdita prudencia!... Olhai, se eu fôsse intromettido!

Afastavam se os passos. Já longe ouviu um apito. E, como se fôsse um signal a querer resposta, no silencio uma voz ergueu-se cantando:

-- Em má hora me deixáras...

-- Aquella voz!... Aquelle verso!...

A cantora continuava o villancete:

-- Maria da Boa Hora;

Quem se muda não melhora.

-- Ella! gritou como doido Manuel Furtado.

Desceu n'uma furia a travessa. De que antro saíra aquella voz?... Mas já tudo recaíra no silencio. Nem o indicio d'uma luz nas frinchas d'uma janella! Qual d'aquellas portas arrombar?

-- Ali! seja El-rei!... seja quem fôr!

Outra vez voltando, de espada em punho, procurou o rasto do bando ignobil. Crusavam-se as travessas. Qual haveria tomado? Punha-se á escuta. Em todas o mesmo silencio!

-- Maria da Boa Hora!... E's tu!... E's tu!... A amante d'El-rei!

Crescia-lhe no peito um odio sevo contra a mulher que, assim tão cedo, o esquecêra e contra aquella creança, enfermo despresivel, que viera encher-lhe de sombra e lama um sonho lindo!

-- E's rei!... Que mo importa?... Hei-de vingar-me!... Tenha embora de sentar-me no banco infame e dar minha cabeça ao algoz!

Cambaleava como bebado. Chegou finalmente à porta de casa e erguendo o olhar para a janella fronteira d'onde tanta vez, nos d'elle, os olhos de Maria da Boa Hora se haviam pousado, viu que trevas lhe enchiam agora a alma toda.

Lindos olhos, porque lhe haviam mentido?...

Bateu á porta. Veio abrir-lhe a velha Lourença, a visinha que, desde os tempos da mãe, cuidava dos arranjos da casa.

-- Tão tarde V. Mercê recolhe! Pois não sabe que maiores perigos que nas guerras do Alemtejo se correm em Lisboa a deshoras?

-- Perigos de morte, querida Lourença.

-- Que mal lhe aconteceu?

Ergueu alto a candeia para vêr melhor o rosto do alferes.

-- Vem enfiado!... Chorou?

-- Que sabes de Maria da Boa Hora?

-- Ah! se é historia de amores, já fico socegada. Na edade de V. Mercê, deixe romper o sol e está curado. Sei lá d'essa má peste!

-- Má peste lhe chamas!... Conta-me o que sabes.

-- Sei que era V. Mercê pobre e que outro mais rico a levaria.

-- E para onde foi?

-- Não sei de gente perdida. Vá V. Mercê para a cama e encommende-se a Nossa Senhora. Deve de estar cançadinho. Quer comer alguma coisa?

-- Não; não tenho fome. Dá-me um copo de vinho.

Atirára a capa e o chapeu para cima da cama. Bebeu. Passou a mão pelos cabellos. Respirou fundo.

-- E', pois, verdade o que de El-rei me diziam!...

-- D'el-rei!... Deve ser isso. Quem mais vinha por ahi era Fr. Bernardo...

-- Um frade!

-- Que foi. Expulsaram-o do convento; recolheu-o El-rei no paço. Uma vergonha. Dizem que anda sempre com elle em touradas e pagodes. Apparecia ahi a cavallo e a alcaiota da tia... Deus me perdoe!... ria-se para o excommungado, tao contente como se visse n'elle o anjo da guarda!

-- Porque m'o contaste ainda agora?

-- Para quê? Vinha V. Mercê tão satisfeito!... O diabo tece-as! Como soube?...

Mas, de repente, Manuel Furtado viu no gibão um fio loiro. Pegou n'elle delicadamente, estendeu-o a todo o comprimento dos braços. Lembrou-lhe então que D. Anna de Portugal, n'um momento de mais dolorosa expansão, reclinara sobre seu peito a formosa cabeça, deixando caír suas lagrimas, ali, onde o noivo expirara, invocando-o em sua ultima visão de amor.

-- Deixa-me, Lourença. A viagem e as commoçoes d'este dia estafaram-me. Não posso já com o corpo. Doe-me a cabeça, doe-me o coração.

-- Passa-lhe, verá. Aos vinte e tres annos... Com a ajuda de Nossa Senhora... Aqui lhe deixo a candeia. Boa noite. Quer que lhe bata cedo á porta?

-- Não. Naturalmente não durmo... Não preciso que me accordes.

Deitou-se, e novamente o dia que passara poz-se a revêl-o. De quando cm quando, suspirava, estremecia, cerrava os punhos, afogava gritos na garganta... Sentia-se estafado. Fechou os olhos. Batiam-lhe as arterias.

Que noite!...

Eram com certeza menos amargas do que as d'elle as lagrimas de D. Anna de Portugal. Antes Maria da Boa Hora houvesse morrido! Menos dolorosa é a morte do que uma traição. Como chorava a triste noiva! Encostára a cabeça ao hombro d'elle. Sentira-lhe o perfume dos seus cabellos loiros... Como era linda! Com que voz suavissima lhe falava!... Quanto mais valêra a bala que levou André de Albuquerque havel-o morto a elle!... Que lindo sonho sonhára ao expirar!... Breve havia de voltar a casa de D. Anna de Portugal, falar muito com ella. Seu coração muito triste melhor agora saberia inventar consolações.

Parecia que uma dulcissima mão lhe afagava as palpebras; o coração batia já mais socegado; sentia em todo o corpo um torpor delicioso.

Uns olhos cheios de lagrimas... Ella afastar-se, o busto pendendo para a frente... Que suavidades na voz!...

Lourença cuidadosa veio escutar á porta. Ouviu a respiração muito socegada de Manuel Furtado. Entrou. Apagou a candeia e saíu nos bicos dos pés.

-- Vinte e tres annos... Aquillo passa!

CAPÍTULO IV

D. Luiza de Gusmão

Do que se dizia de el-rei ninguem na côrte o duvidava.

Tristes dias levava a rainha D. Luiza.

Terminára o conselho e ella sentára-se á janella, d'onde avistava o Tejo luminoso. Descia o sol. Sentia a rainha uma funda melancolia invadir-lhe a alma. Como era lindo o Tejo! Que formidavel imperio fôra n'outros tempos o de Portugal! Coalhado era então aquelle rio de naus que vinham carregadas das regiões da Asia e da Africa, novas chegavam de cada vez maiores opulencias nas terras do Brazil.

Nas mãos sustinha ella agora o sceptro que fôra dos reis D. Manuel e D. João III. Ah! se tivera o condão de adivinhar, não houvera dito em Villa Viçosa ao marido hesitante: -- «V. ex.ª ha de morrer; se ha de ser sendo duque, seja sendo rei».

Que saudade agora de seus tempos de duqueza! Rainha e viuva, quebrava-se-lhe a energia a cada nova difficuldade. Luctaria pelo filho!

O filho...!

E caíu em funda meditação.

Entrou na sala, por seu mandado, o Conde de Odemira, aio de D. Affonso VI.

Curvou o joelho deante da Rainha, beijou-lhe a mão.

D. Luiza chamou D. Antonia da Silva e disse-lhe um segredo. A dama retirou-se. A Rainha voltou-se para o Conde.

-- Más novas?

O Conde baixou tristemente a cabeça muito branca.

-- Pois terá meu filho tão empedernido o coração?... Pedi-lhe hontem, quasi de joelhos, que mudasse de vida, de companheiros... Sabeis, Conde, quanto me havia de custar ao meu orgulho.

Os poucos annos d'El-rei não lhe permittem considerar...

-- E o Infante D. Pedro tanto mais novo?...

Calou-se. Ergueu-se, approximou-se da janella e quedou-se um momento silenciosa, olhando para toda a gloria do poente. Quando voltou a sentar-se em sua cadeira de espaldar, corriam-lhe duas lagrimas pelas rugas precoces.

-- Não ha descançar!... não ha descançar! disse, reclinando para traz a cabeça e levando as mãos ao peito.

-- Alguma vez a mão do Senhor se nos revelou propicia, disse o Conde.

-- A grande victoria das linhas d'Elvas? perguntou a Rainha com leve inflexão de ironia na voz. A incapacidade de que deu provas Luiz de Haro, o ferimento que padeceu o Duque de S. German, o valor dos portuguezes derrotando um exercito muito maíor em numero, onze mil e duzentos castelhanos que se perderam, entre mortos, feridos e prisioneiros, levaram o luto a Castella; mas não me foi o bastante para me consolar de vinte annos tormentosos. Assim lá pudesse levar o exercito portuguez! Era o meu sonho orgulhoso! Quando Joanne Mendes de Vasconcellos me pediu licença para retirar-se do cerco de Badajoz, respondi-lhe só estas palavras, de meu proprio punho: -- «Ou a Badajoz ou ao céo!» Deveis sabel-o.

-- Sei que a epidemia grassava em nosso exercito, que perdia cada hora seus melhores soldados. Por ordem de V. Majestade Joanne Mendes foi preso e julgado. A junta dos ministros formada por decreto de V. Majestade, enviou a V. Majestade sua consulta e o capitão general foi julgado digno de que V. Majestade o honrasse, fazendo-lhe mercê em paga do descredito que sem culpa na prisão padecera.

-- Arma-se novamente Castella; que é do exercito do Alemtejo? No dia seguinte ao da batalha, mandou o Conde de Cantanhede desfazer as linhas e fortins, que circumvallavam a praça e não teve homens que lh'o executassem. Gente collecticia, contente com a preza, não esperou licença para ausentar-se.

-- Foi grande a victoria, senhora, observou respeitosamente o velho Conde. Elvas tomada, em poucos dias estariam os castelhanos ás portas de Lisboa.

-- Mas, logo depois, o desastre de Monção!

-- Que deu a V. Majestade a certeza de quanto querem portuguezes a seu rei natural. Combateram em defeza da praça as mulheres e os enfermos. Capitulou finalmente Lourenço de Amorim; mas de dois mil homens, pois que de tantos constava a guarnição, saíram apenas duzentos e trinta e seis soldados, cheios de fome e de doenças; saíram formados, com bala em bocca e corda acceza, bandeiras despregadas, tocando caixas e com uma peça de artilharia. Foi tal o espanto do D. Baltazar Pantoja, vendo-os tão poucos e tão enfraquecidos, que os apontou como exemplo a seus soldados.

-- E não pude eu valer-lhes! exclamou dolorosamente a Rainha.

-- Vê V. Majestade que deve contar com a fidelidade do povo.

-- E com a dos grandes tambem?

O Conde de Odemira baixou a cabeça, envergonhado.

-- O duque de Aveiro!... A' carta que o Conde de Soure lhe escreveu, ainda a sustel-o no deshonroso passo... Aqui tenho a resposta que o Duque lhe enviou e o Conde me remetteu de França.

A Rainha abriu a secretária.

-- Lêde.

Emquanto o velho desenrolava o papel, que lhe tremia na mão, a Rainha passeava pelo quarto, ferida em seu orgulho, não sustendo os impetos da ira.

-- Porque mentiu vinte annos? Agora, vendo o perigo que nos ameaça e Portugal desamparado pela França e a paz que este reino tratou com Castella e desoccupado o exercito d'El-rei catholico, corre a beijar a mão a D. Filippe. Traidôr!

O Conde de Odemira lia a carta:

«Sempre conheci a V. Ex.ª com o achaque de zeloso do bem publico, e, n'esta consideração, lhe prometto fazel-o meu alferes-mór, quando fôr rei de Portugal!»

-- E tal infame havia de encontrar parceiro!... D. Fernando Telles, meu embaixadôr na Hollanda!... Miserias, traições, vinte annos de martirio, de insomnia, de pesadelos para...

A Rainha abafava; deixou sobre a secretária descaír a cabeça e sacudiu-a toda um choro convulso.

-- Se ao menos de França me viessem boas novas! Mas o projectado casamento do rei Luiz XIV com a filha d'El-rei catholico despedaçou minha ultima esperança.

Ergueu-se n'um impeto.

-- Não!... não!... nunca! Luctaremos!

E limpando os ollios, recostando-se na cadeira, perguntou:

-- Que novas me trazeis d'El-rei?

-- Cada vez mais affeiçoado a Antonio Conti, agora se vingou de quando expulsei do pateo o vil concurso de mercadôres, moiros e mulatos da estrebaria, entre os quaes escolhêra El-rei seus amigos.

-- Antonio Conti? disse com amargura a Rainha. Como soube insinuar-se!

-- Ainda hontem a pandilha insultou a ronda, que, batendo á porta d'uma casa de má nota, exigia silencio.

-- Estava El-rei?

-- Senhora... estava. Desagrado ao Senhor D. Affonso, bem sei; por isso muitos me perseguem. O mercadôr vil, que, ha dois dias, ainda tinha armada sua tenda no claustro que cerca o pateo da capella, soube andar seu caminho. El-rei concedeu-lhe hoje o habito de Christo.

D. Luiza empallideceu.

-- O miseravel italiano teve artes para capacitar S. Majestade da nobreza de seus paes. Chama-se agora Antonio Conti de Vintimiglia. Já tem no paço aduladôres; muitos, que me voltam costas, cercam-o respeitosos, buscam seu valimento.

O Conde de Odemira sabia que já, mais d'uma vez, a Rainha se servira de Antonio Conti para obter do filho o que não conseguiram sua auctoridade e seu amor. Fitos n'ella os olhos, continuou:

-- Um dia ha-de chegar em que D. Francisco de Faro, Conde de Odemira, neto do Duque de Bragança D. Fernando, vosso parente, senhora, tenha de curvar a cabeça branca ante o valído de vosso filho.

-- Calai-vos! bradou a Rainha n'um grito que lhe dizia a alma despedaçada. Pelo amor de Deus!...

O Conde recuou até á porta. Saíu. A'quella mulher varonil nunca ouvira palavras de maior angustia.

Ficou-se a Rainha com a cabeça entre as mãos, olhos postos no chão onde o sol se estirava, os labios murmurando incompletas phrazes queixosas.

Quizera ser rainha!... Para quê?

A porta tornou a abrir- sedevagarinho. Appareceu espreitando a cabeça de D. Antonia da Silva.

A Rainha deu um grito :

-- Filho!

E o Infante D. Pedro, com os cabellos esvoaçando, entrou correndo, lançou-se nos braços da mãe.

-- Filho!... Filho!... dizia ella, limpando as lagrimas das faces aos cabellos negros que beijava.

Um ultimo raio de sol trepou pela parede, beijou os frescos do tecto. Desceu a noite silenciosamente.

CAPITULO V

Os da pandilha

-- Se vos eu digo que bem lh'o conheci no olhar! dizia Simão Peres a Antonio Conti. Ouvindo-vos falar, toda se derretia.

Fr. Bernardo, que, fazendo tinir as esporas, passeava de cá para lá, meditabundo, parou um instante para dizer sentenciosamente:

-- A mulher dada ás musas prefere á do sol a luz do luar.

Simão Peres não percebeu, mas approvou.

Antonio Conti, deitado de costas sobre a cama, passava a mão pelo bigode, querendo esconder o sorriso de vaidade, que se lhe via a brilhar nos olhos.

-- Tenho mais em que meditar. Não são mulheres que me hão de entreter o pensamento, quando tantas nuvens negras se accumulam sobre o nosso porvir.

-- Bem falais! disse Fr. Bernardo, erguendo alto as mãos. Melhor, nem com mais eloquencia, o diria o padre Antonio Vieira!

E, exagerando cinicamente o tom sentencioso de Antonio Conti, repetiu:

-- Nuvens negras!... O porvir!...

João Conti jogava a espada contra a hombreira da janella, onde, com pequeninos furos, ia desenhando uma letra.

Olhai, continuou Fr. Bernardo; vosso irmão vos está dizendo onde o nosso porvir se funda. Que letra desenhais?

-- Um F respondeu João Conti, envaidecido de sua destreza.

-- Um F quer talvez dizer Falcôa. Pois bem, na ponta das nossas espadas e nas amantes d'El-rei temos a nossa ventura. Sonhaveis talvez ser ministro um dia?

-- E porque não? disse Antonio Conti, sentando-se na cama.

-- Em bom caminho andais, diga-se a verdade. De longe viestes...

Antonio Conti franziu o sobr'olho.

O frade emendou logo.

-- Vosso pae, quero dizer.

E' porque bem sabia que o italiano, desde que se dissera aparentado com a familia siciliana de Vintimiglia, detestava quem lhe recordasse o tempo em que armava sua tenda nos claustros do paço. Com pequenas dadivas, lisonjas, conselhos, soubera insinuar-se no animo d'El-rei ainda criança; acompanhara-o depois nas primeiras expedições; escolhera seus primeiros socios nas aventuras; acariciara-lhe os vicios; soprara-lhe a vaidade; fôra-lhe a melhor arma de vingança em todos seus odios.

O frade, boa sombra o cobria tendo o valído d'El-rei á sua ilharga.

E continuou falando:

-- Quando vosso illustre pae veio de Italia, quem lhe diria...

E logo, occorrendo-lhe comparação com que Antonio Conti devia lisonjear-se, interrompeu o discurso.

-- Italiano é o cardeal Mazzarino, ministro d'El-rei de França, Luiz XIV. A Italia a toda a Europa fornece os melhores politicos!

E a um signal de João Conti, despregando da parede uma espada, começaram os dois a esgrimir, melhor do que o faria o mestre d'armas d'El-rei, Diogo Gomes de Figueiredo.

-- Olá! disse envaidecido João Conti. Não esperavas este fendente!

-- Nem vós este revez ! respondeu o frade, todo animado no jogo.

Simão Pores chamára Antonio Conti para o vão da janella. Tambom elle, como todos, astuciosamente, pretendia insinuar-se, pelo melhor caminho da lisonja, no animo orgulhoso do valído.

-- Que vos importa? El-rei só pretende a fama, já que o proveito nao é com elle. Vós lhe puzeste o nome de Falcôa, fostes vós, porque em suas garras a todos apanha. Mulher linda como outra não ha, não é para desprezar-se.

E puxava-o mais para longe, falava-lhe quasi ao ouvido, sorrindo-se por baixo do farto bigode, piscando o olho malicioso.

Era o Conti para El-rei o que elle era para o Conti. O discipulo honrava o mestre.

-- De mulheres entendo eu, sr. Conti, e sei lêr-lhes nos olhos. E' distraírmos El-rei para outro lado e eu ponho uma mordaça na tia. A Falcôa faz-se pomba.

Antonio Conti sacudia a cabeça.

-- Mulheres ha muitas ! Mas Simão Peres teimava, aferrado áquella idéa.

-- Outra não ha como a Falcôa ! Os olhos são dois brilhantes negros e nas ondas de seus cabellos afogam-se as almas! A graça que tem a rir, a falar, a cantar!...

Puxou-o ainda mais para longe, e, mesmo dentro do ouvido, soprou-lhe tentadôramente:

-- Que vos importa El-rei ? Com a tia cá me avenho. Arranjo-vos uma casa...

Mas, n'esse instante, bateram á porta. Era Fr. Gregorio, de saccóla ao hombro.

-- Ora seja Deus comvosco!

-- Olá, collega ! exclamou Fr. Bernardo, limpando o suor da testa. Como vâo os reverendos em teu santissimo convento?

O leigo mendicante sorriu-se; ainda mais no rosto se lhe emmaranharam as rugas; ostentou na bocca escancarada o unico dente, muito comprido, muito amarello com pintas negras.

-- Bemdita seja Nossa Senhora! Vae tudo sem novidade.

-- E d'El-rei D. Sebastião que novas temos? perguntou João Conti, batendo com a mão brutalmente no hombro do frade, que, com um grito comico, se foi abaixo.

-- Ainda os altos decretos estão por cumprir-se.

Poz-se serio de repente. Brilharam-lhe os olhos pequeninos lá no fundo escuro das orbitas, em que pareciam querer sumir-se entre mil prégas.

-- Não tardará, porém, que o vejamos. Diz-me o coração: não tardará!

E, voltando-se para Antonio Conti, com um sorriso humilde:

-- Venho á esmolinha.

Antonio Conti abriu a secretária.

-- E a dar-vos o meu parabem e o dos santos padres superiores pela vossa nomeação de cavalleiro de Christo.

Antonio Conti que já dera volta á chave, tornou a abrir a gaveta.

O olho do Fr. Gregorio luziu. Seria dobrada a esmola.

Simão Peres passeava nervoso, de punhos cerrados. Maldito frade, que viera interrompel-o em tão bom caminho!

O valído d'El-rei entregou ao leigo uma moeda d 'oiro.

-- Dizei a Fr. Prospero que lhe agradeço muito seu parabem.

-- Nossa Senhora da Conceição, padroeira d'este reino, ore por vós a seu bemdito filho. Eu tambem vos encommendarei a Ella em minhas orações e a El-rei D. Sebastião quando chegar.

Uma gargalhada de todos acolheu o final da phrase.

-- Ride! Ride! disse ironicamente. Ai de vós, se vos não valerem perante Deus as esmolinha s que dais. Santo foi o sapateiro Simão Gomes, ainda mais santo o Bandarra...

-- E mais sapateiro ! accrescentou Simão Peres. Fr. Gregorio olhou para elle e, tremulo, ergueu a mão como a querer amaldiçoal-o. Nunca aquelle homem lhe déra uma esmola e sempre o maltratava de palavras e, ás vezes, por obras, empurrando-o, batendo-lhe brutalmente, sem respeito ao habito que o via envergando.

-- No inferno has de chorar tuas lagrimas eternamente pelas heresias que disseres em vida.

E, como se um véo misterioso ante os olhos se lhe rasgasse, de olhar fito, com o dedo a tremer apontando para alguma luz que só elle avistava, recitou:

A giesta não se torce,

E' muito amargo o sargasso;

Tudo quanto agora faço

São bocados de erva doce!

Todos riam. Mas Fr. Gregorio respeitava Fr. Bernardo pelas ordens que recebêra, Antonio Conti pelas esmolas que lhe dava, João Conti porque era irmão do válido. Recaiu-lhe a nova furia outra vez sobre Simão Peres.

-- Quem ri na tua bocca é Satanaz ladrão das almas. «Vae tibi, Lusitania, quia veniet profecto dies, in quibus, lux tua extinguetur!»

Fr. Bernardo rebolava com as sillabadas do leigo, que se offendeu.

-- Desculpe V. Reverencia. E' profecia de um padre napolitano de S. Francisco. «Ai de ti, Portugal, porque ha de vir sem falencia o dia em que tua luz ha de apagar-se!» Todos estão cegos, todos, a propria gente da Egreja...

E apontava para Fr. Bernardo, que arripiava marcialmente a bigodeira. Fr. Gregorio desviou os olhos offendidos e continuou:

-- ... o povo...

E apontou para Simão Peres.

-- ...e a mais alta nobreza! concluiu, curvando-se perante Antonio Conti, que, sorrindo, lisonjeado, pondo-lhe a niao no hombro.

-- Gosto d'este pobre diabo! disse com ares protectores.

Fr. Gregorio encolhia-se todo, muito modesto.

-- V. ex.ª desculpe.

Ouvindo o titulo, perguntou Antonio Conti:

-- Serás tambem tu propheta?

E' que os sonhos de ambição já não sabia aonde ir parar com elles.

-- Não! não! disse Fr. Gregorio, cheio de modestia, curvando muito a cabeça, levando á altura das orelhas as mãos espalmadas. Não era digno, eu que não sou santo...

-- Por artes diabolicas talvez... começou dizendo Simão Peres em tom de mofa.

Mas Antonio Conti deitou-lhe um olhar tão aborrecido, que logo Simão percebeu ter encetado um mau caminlio.

O leigo puzera as mãos sobre os hombros do valído, acariciando-o.

-- Não busqueis nunca as artes magicas, com que Satanaz nos vem tentar. Offerece-nos todos seus bens pela nossa alma, que depois leva comsigo para o inferno. Olhai a desgraça do sr. Conde Duque de Olivares, que foi ministro de S. Majestade el-rei D. Fillippe IV de Castella. Applicou-se aos caracteres magicos, que lhe vaticinavam que de El-rei D. Filippe III se avisinhava a morte, e então puxou de todos seus meios a insinuar-se no animo do principe, herdeiro da corôa. O diabo ajudou-o e elle foi valído, e fez-se tyranno por conselhos do diabo. Ha quinze annos morreu em Toro; levaram para Loeches o seu corpo, e sabeis o que houve, quando com elle atravessaram Madrid. Então mostrou Deus que não se amerceára da sua alma.

O frade esgaseava os olhos. Eram seus gestos como do endoidecido. A voz tremia-lhe com o terror do que ia descrevendo. Antonio Conti sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha.

-- Era o sol claro e o céu sereno. Cobre-o repentinamente um negrume; cresce no mesmo instante a tempestade; rolam os trovões; rasgam-se as nuvens e por todos os lados, em volta do coche, eram os raios caindo, só elles vencendo a escuridão. O demonio, com quem, segundo se murmurava, o Conde-Duque tratára em vida, tomára-lhe talvez conta do corpo morto. Não, não!... não busqueis nunca as artes magicas!

-- Se me queres dar a certeza de que sem ellas conseguirei meus intentos...

Antonio Conti sorria com ar de escarneo, mas nos olhos scintillava-lhe a curiosidade.

O leigo meditava.

O valído sentia que, de impaciencia, de quasi anciedade, lhe vibravam os pequeninos musculos do rosto.

João Conti e Fr. Bernardo tinham novamente pegado nas armas e esgrimiam, fazendo tinir as esporas a cada bote.

Simão Peres escutava attento, como se estudasse uma lição. O filho do moço da estribeira conseguira entrada livre no quarto do valído; com elle saberia trepar; não se deixaria ficar no primeiro degráu da escada.

Falou o frade:

-- Quem sabe se é comvosco? O Bandarra tambem disse:

Ergue-se a aguia imperial

Com seus filhos ao rabo

E com as unhas no cabo

Faz o ninho em Portugal!

-- Patife! pensou Simão Peres, vendo sério o rosto de Antonio Conti. A lamber-se porque o Bandarra falasse d'elle!

-- E' quasi noite, disse Fr. Gregorio. Nossa Senhora vos acompanhe.

Lançou ao hombro o alforge recheado.

-- Espera, disse-lhe Antonio Conti.

E voltou de novo á secretária.

-- Agora me déste a conhecer os pontos da tua guitarra, pensou Simão Peres.

-- El-rei saí esta noite? perguntou João Conti.

-- Mandou-me, ha pouco, aviso, respondeu-lhe o irmão.

E, enchendo as mãos de pequenas moedas de prata, entregou-as ao sebastianista.

-- E' para ti. Guarda.

O frade ajoelhou, beijando a mão generosa. Saíu recuando.

Simão Peres approximou-se, murmurando como comsigo, mas de fórma que o ouvissem:

-- Aguia imperial... Faz o ninho em Portugal... Quem sabe?

-- Estavas morto! gritou João Conti atirando uma cutilada á cabeça de Fr. Bernardo.

-- Admiravel golpe! exclamou este, convindo-lhe, de quando em quando, deixar-se vencer pelo irmão do valído.

Antonio Conti estirará-se outra vez sobre a cama. Sorria contente. Chamou para junto de si Simão Peres.

-- Que dizias ainda agora da Falcôa?

CAPITULO VI

Linhas tortas

Antonio Conti de Vintimiglia, cavalleiro de Christo, estirado sobre a cama, d'olhos meio cerrados, ouvia o murmurar lisongeiro de Simão Peres e deixava-se ir enlevando no sonho.

Onde já chegavam suas ambições! Tinha quarto no paço; nenhum como elle dominava o espirito fraco d'El-rei; vinham bater-lhe á porta os melho- res fidalgos do reino, offerecer-lhe seus serviços em troco de seu auxilio; mais d'uma vez a Rainha Regente implorara favores de seu valimento. Seria um dia ministro?... E porque não?

Havia tres annos, no pateo da Capella líeal, ainda elle vendia bugiarias em sua tenda. Como galgára depressa o caminho!

Quanta vez, ambicioso, olhara cá de tão baixo para as janellas do corredôr, d'onde El-rei espreitava os rapazes, no pateo, jogando as pedradas! Logo nos gestos de D. Affonso adivinhara o bando que favorecia e esse applaudia Antonio Conti, se o via sair da lucta victorioso.

Sorria-se para El-rei, como a felicital-o, apontava-lhe alegremente os vencedôres. Quiz D. Affonso conhecel-o. Chamava-o das janellas, vinha falar-lhe á portaria das Damas. O italiano atreveu-se um dia a offerecer-lhe uma funda de sêda, outra vez uma faca doirada. Como lhe fôra facil conquistal-o!

Tinha El-rei fumos de valente; metteu-o nas emprezas arriscadas. Queria El-rei fama de fortunoso em amores; bateu, de companhia com elle, ás portas miseraveis dos bêcos mal afamados. E nem d'umas nem d'outras aventuras saía glorioso o nome d'El-rei. O povo murmurava, ora de punhos cerrados pelo odio, ora com sorrisos de ironia e de piedade.

Que lhe importava a Antonio Conti? Na fraqueza moral e physica do infeliz fundára seus castellos.

Ah! tinham-o expulsado do paço! Artes descobrira para novamente n'elle se introduzir, nas horas mais solitarias, porque o vicio de D. Affonso exigia quem soubesse encaminhal-o. Tivera o Conde de Odemira a audacia de, ainda outra vez, elle proprio, com a ajuda do estribeiro menor, escorraçal-o, de envolta com os moiros e negros da estrebaria!... Não lh'o perdoava!

Jurou El-rei que não tomava mais lições nem havia de comer, emquanto o amigo lhe não fôsse restituido á sua presença. E então, porque o viram desgostoso do aio e tão saudoso do amigo, quantos do paço vieram ter com Antonio Conti, offerecer-lhe serviços, ajudal-o na vingança!

Ministro!... Se havia de ser ministro um dia?

O velho Conde, ralado pelos desgostos, pouco tempo de vida lhe sobejava. Era uma sombra, um phantasma; era já misericordia não desfazel-o com um sopro. A Rainha, sim, ainda era de temer; mas quando o filho chegasse á edade de cingir a corôa, n'uma só hora se ajustariam as contas. Era necessario que, dia a dia, pela mãe lhe crescesse o odio. Estudaria o problema. Entretanto era forçoso dominal-a, obrigal-a a curvar a cabeça orgulhosa.

Simão Peres puxára uma cadeira para junto da cabeceira da cama e continuava em seu papel de tentadôr.

Fazia-lhe compaixão a Falcôa, tão nova, tão linda, a cuja bocca entre-aberta, sequiosa d'amor, apenas offereciam os beijos frios d'El-rei D. Affonso.

O leigo sebastianista puzera Antonio Conti de boa feição. Déra-lhe uma esperança maior á vaidade.

Espreguiçou-se na cama. Olhou sorrindo para Simão Peres.

-- E dizes tu...

-- Não ha que duvidar. Já quando Fr. Bernardo lhe falava d'El-rei, quem sabe se não foi por ella vêr caminho de approximar-se...

-- De mim? perguntou Antonio Conti.

-- Pois de quem? Do pobre Simão Peres?

-- Mas como e d'onde me conheceu?

-- Boa pergunta! Quem vos não aprecia? Quem me désse um cruzado por quantas mulheres sonham comvosco!

Um amôr!... Talvez para distrair d'outras preoccupações... Ser amado!

Era realmente linda a Falcôa ! Simão Peres tinha razão. Quanto a El-rei, pouco importava. Ser amado! Ter umas horas por dia em que ouvisse palavras carinhosas entrando-lhe no coração por um novo caminho! Quantos o lisonjeavam, pensavam em El-rei; ter alguem que só n'elle pensasse, e o amasse um pouco tambem pela sua mocidade!

Aquella noite havia de reparar.

E sentiu de repente um desejo apoderar-se-lhe dos sentidos com tal vehemencia, que, n'um movimento nervoso, saltou da cama.

João Conti e Fr. Bernardo, porque já vinha escurecendo, haviam pendurado as espadas na panoplia.

Conversavam.

-- Uns bens ecclesiasticos é que vos convinham, dizia Fr. Bernardo. Bons rendimentos e boa vida!

-- Já falei n'isso a meu irmão. Hei de obtel-os. Preciso furar mais umas barrigas do boa gente do povo para de todo me impôr a El-rei. A segurança d'uma vida farta, que mais quero?

-- Recommendo-me á vossa protecção, disse ironicamente Fr. Bernardo, com modos fradescos e, de mãos sobre o peito, curvando-se reverente.

Vinha anoitecendo.

Simão Peres enchia o cachimbo e a soslaio olhava para Antonio Conti, que passeava pelo quarto, de braços em cruz, meditando, puxando o bigode.

-- E' quasi noite. El-rei não tarda por ahi, disse Simão Peres, ferindo lume na pederneira.

As janellas do quarto deitavam para um dos pateos interiores. A noite descia com uma melancolia profunda. Ao longe dobrava um sino a defuntos. Iam amortecendo todos os rumores da cidade. Antonio Conti scismava na Falcôa. Se fôsse verdade que ella gostava d'elle? E, ao mesmo tempo, sorria com uma esperança e irritava-se comsigo. Sentia, nem sabia porque, um desejo agudo de tornar a vêr aquella mulher. Porque? Nunca; junto d'ella experimentára a menor impressão e agora, longe, é que lhe via perfeições! Devia de ser veneno subtil das palavras de Simão ou razão misteriosa... Se alguem lhe quizesse mal e por artes magicas... Vieram-lhe á lembrança as palavras do frade maluco. Era já tal a escuridão no quarto que a brasa do cachimbo de Simão Peres fazia um clarão na parede. Um cão uivou no pateo. Antonio Conti estremeceu. A porta abriu-se e El-rei entrou.

O valído curvou o joelho e beijou-lhe a mão.

-- Dava-me cuidado a deinora de V. Majestade.

Vinha D. Affonso tão melancolico, tão cabisbaixo, d'olhos tão amigos do chão, que ninguem mais se moveu nem falou n'aquelle quarto. Antonio Conti ía a fazer uma pergunta, mas El-rei calou-o com um gesto de desalento, de preguiça.

Deu uns passos, coxeando um pouco; tornou a parar.

No clarão do cachimbo de Simão Peres passou, voando, uma borboleta negra. Logo João Conti, muito agoirento, deitou-lhe a mão e esmagou-a.

O sino já não tocava.

D. Affonso respirou fundo e soltou como um rugido abafado.

-- Vamos ter uma noite divertida! disse Simão Peres baixinho a Fr. Bernardo.

Mas este bateu-lhe no cotovello para que se calasse.

E disse El-rei:

-- Estou velho!... Estou velho!

E era tão deveras triste o cançado tom em que o dizia, que a nenhum accudiu de repente o dito hypocrita de consolação, implorado pela queixa da infeliz crença.

Anoitecera completamente. Não se tornava necessario o sorriso forçado com que haviam de acompanhar a resposta.

-- Velho!... Mal o buço vos aponta! disse emfim Antonio Conti.

João Conti soltou uma gargalhada estrondosa, logo imitada por Simão Peres e Fr. Bernardo.

El-rei bateu com o pé no chão.

-- Calai-vos!

E, de subito, as gargalhadas pararam como se uma rija mola as calasse.

-- Boa! murmurou Simão Peres.

Mas Fr. Bernardo deu-lhe no cotovello um tal beliscão, que elle teve de suffocar um grito.

-- Se, ao menos, continuou D. Affonso, tivesseis cuidado, como vos cumpria, de inventar... Mas quê! Sempre a mesma taberna onde bebeis e eu não bebo!... Aventuras nocturnas de que saio mal ferido na minha honra... E o povo murmura e queixa-se... E de mim se queixa minha mãe... e eu não quero ouvil-a... não quero!

E ficou-se por um boccado, no meio do quarto, de dentes ferrados, cerrados os punhos, erguendo-os ameaçadôr.

-- De junto de vossa mãe veio agora V. Majestade? perguntou Antonio Conti.

-- Estava passando a mão pelos cabellos do Pedrinho, beijava-os... Nem um olhar me deu, nem me deu a beijar sua mão! E um dia d'estes ha de chamar-me... e eu não quero saber o que sente por mim aquelle coração de pedra!

O valído aproveitou logo a occasião. Tambem elle tinha queixas da Rainha. Mas contentou-se com dizer, piedosamonte:

-- Como póde uma mãe fazer differenças taes entre seus filhos!

-- Não é verdade? perguntou El-rei.

Mas Antonio Conti calára-se, como abysmado em amargos pensamentos.

D. Affonso continuou movendo-se desordenadamente pelo quarto, coxeando, gesticulando com o braço tremulo, presa d'uma d'aquellas coleras que os proprios amigos lhe temiam:

-- Para que nasci? Para que nasci! Doente... velho... desprezado... Ninguem quer ter dó de mim, ninguem!

-- Senhor!... disse o valído, buscando pôr na voz um tom de compaixão.

Mas não o ouviu El-rei.

-- Minha mãe! Minha mãe!... Ha muito esqueceu que me tem por filho, nem se recorda de que sou rei de Portugal!

-- E' lembrar-lh'o! exclamou Antonio Conti.

Mas logo se arrependeu. Era cedo ainda. Emendou:

-- Com o maior respeito fazer-lh'o sentir.

-- Para que nasci? Para que nasci? tornou El-rei a perguntar.

E passava as mãos pelos cabellos e todo se torcia n'um desespero.

De repente, voltou-se com o punho fechado para o grupo medroso de João Conti, Simão Peres e Fr. Bernardo.

-- Inventai, co's diabos, inventai! De que me servis vós outros? Dai-me uma idéa, dizei-me onde posso ir afogar esta minha raiva, buscar o esquecimento d'esta minha miseria!

Simão Peres, desejando agradar ao valído, lembrou uma ceia em casa da Falcôa.

-- Mulheres!... Estou farto de mulheres! disse El-rei estendendo o braço, como afastando uma ideia dolorosa.

-- Que melhor quer V. Majestade para esquecer tormentos?

-- Que melhor quer? disse Antonio Conti, insistindo.

-- Levaremos d'aquelle vinho de Campo Grande, que desce com um veludo e trepa rapido, disso Fr. Bernardo.

-- E o vinho e os olhos da Falcôa depressa hão de mandar para o inferno as tristezas de V. Majestade, concluiu Simão Peres.

El-rei sorumbatico pensava na Falcôa e novamente nas primeiras palavras que soltára: «Estou velho! Estou velho!» Mas só mostrava vontade durante os impetos de colera, de que saía com as forças quebradas. Havia desviado seu pensamento para outros cuidados, na incerteza que sempre lhe accorria.

Silenciosos, os amigos esperavam-lhe a resposta.

-- Sim... Pois sim... disse D. Affonso ainda indeciso. Ide vós adiante. Preparai tudo. Irei lá ter com Antonio Conti.

-- Quer que avise... ia a perguntar João Conti.

-- Não. Ninguem. Embuçados em nossas capas ninguem nos conhece. Iremos sós. Dizei á Falcôa que me prepare as mais alegres de suas canções.

Saíram os tres.

Ao passar junto de Antonio Conti, disse-lhe Simão Peres baixissimo, piscando o olho amavelmente:

-- Já vêdes que sou amigo.

El-rei sentára-se na cama.

-- Accende uma vela. A escuridão faz-me ás vezes medo.

O valído obedeceu.

-- Mulheres! tornou D. Affonso a exclamar, mas já n'um tom differente. Mulheres!

E, quando Antonio Conti voltou, viu-lhe duas lagrimas correndo-lhe pelas faces. Perguntou-lhe:

-- Que tem, senhor? Que novas maguas são essas?

El-rei deixou caír a cabeça sobre o travesseiro e poz-se a chorar devagarinho. Elle, que abafára rugidos, tremia agora como um passarinho ferido. Antonio Conti, de braços cruzados, olhava para elle e pensava:

-- Assim me convens, porque na tua fraqueza edifico meus alicerces. Tuas horas de agonia hão de gerar as do meu triunfo. Não saberás dar um passo sem que a meu braço te ampares. Sustenta o diabo a roldana por onde passa a nossa fortuna; quanto mais fundo tu desceres, mais alto eu subirei. Volve para mim teu rosto cheio de lagrimas, para que o riso illumine o meu. Hei de lisongear teus vicios para que todos acclamem minhas virtudes. Desgraçado rei, tua impotencia e tua cobardia hão de ser minha força e meu valor!

Crente em agoiros, lembrou-lhe outra vez a quadra do frade sebastianista, e, emquanto El-rei continuava abafando soluços no travesseiro, só ideias risonhas lhe vinham ao espirito.

Ser ministro, ministro omnipotente! Vêr ante seu poderio curvarem-se as mais nobres cabeças de Portugal, dispôr do exercito e da armada, tratar da paz e da guerra! Viver n'um palacio e tambem elle ter a sua côrte! Seguido por um esquadrão, correr as ruas da cidade! Apear-se de seu coche em casa da amante e vêr a formosa Falcôa sorrir-se-lhe da janella!

A Falcôa!

E outra vez veio tental-o a imagem da linda mulher.

Para que tanto havia de subir senão para gosar um pouco de sua mocidade, a florescer entre honrarias que lisongeavam sua ambição? Se fosse verdade o que Simão Peres lhe dizia!... Se fosse realmente amado!... Havia de reparar.

E, já impaciente por vêl-a, movia nervosamente os dedos, enfastiado com a demora d'El-rei, quando este, virando-se na cama, ergueu para elle os olhos chorosos.

-- Gosto d'ella!... Gosto d'ella ! murmurou n'um tom de voz, que outro, que não fosse Conti, teria d'elle piedade.

-- De sua mãe falla V. Majestade?

-- Minha mãe!

E El-rei saltou da cama.

-- Porque me lembraste outra vez minha mãe? E' maldade tua! Já quasi a havia esquecido n'outra dôr maior! Odiar faz-me mal, bem sabes. Antes quero chorar que odiar. Gosto d'ella!... Gosto d'ella!

Antonio Conti percebeu e, pela primeira vez, sentiu um nó na garganta ao ter que animar El-rei em seus amores. Foi com um riso forçado que lhe disse, sabendo como a ironia de suas palavras havia de embravecer uma ferida:

-- E não é vossa a Falcôa?

-- Minha!... D'um velho!... Sinto-me velho, Antonio Conti, velho em tudo. Quando, de dia, passo por essas ruas, quanta inveja leio ás vezes nos olhos com que me olham, porque sou rei! Se todos soubessem, quando olho para mim, que miserias vejo! Quem me déra ser um cabreiro das charnecas do Alemtejo, e ser novo, e viver!

Olhou para o valído, e seus olhos muito grandes, muito abertos, adoidados, exprimiam uma tal angustia, que Antonio Conti entendeu nao dever calar-se. Mas só com esforço as palavras lhe saíam.

-- Que deseja, senhor?

El-rei não respondeu logo.

-- Amo-a tanto! disse por fim.

Conti sentiu-se estremecer. Dominou-se, porém.

-- Se alguem de mim tivesse dó! Fui tão doente!... Não é culpa minha. Mas a gente que é assim não move mulheres á piedade e apenas ao despreso!

Segurou os braços do amigo, fincou-lhe as unhas no musculo.

-- E eu gosto tanto d'ella!... tanto!

Olhou para elle e os olhos injectaram-se-lhe de sangue.

-- Nada respondes!... E' porque sabes tudo!... Já ellas te contaram!

Conti balbuciou:

-- Nada sei, meu senhor!. . .

-- Estou velho!... Estou velho! Nasci maldito! E quanto mais amor me abraza por uma mulher, mais velho me sinto ao pé d'ella... e envergonhado! Conheces maior miseria?

Cruzou os braços, poz-se a passear pelo quarto, em quanto Antonio Conti, sem convicção, só por dever de vassallo lisongeiro, lhe fallava de phantasia inquieta, de remedios possiveis, da arte magica de uma cigana de quem já ouvira fallar...

E lembrou-se de aproveitar a occasião e disse:

-- A não ser...

E logo se calou, como quem se arrepende.

Mas El-rei não o attendia; de braços cruzados, passeava pelo quarto.

Antonio Conti repetiu:

-- A não ser...

E, como querendo afastar um pensamento máo:

-- Não!... não!... Não quero crêr em tamanha crueldade!

-- Suspeitaste de algum maleficio? perguntou El-rei.

-- Talvez... Não...

-- Mas quem...?

Conti, fingindo-se confuso, murmurou:

-- Não sei; senhor... Por umas palavras que me escaparam...

--Falla!

-- Que lhe direi?... O muito amor que tenho a V. Majestade faz-me sonhar perigos... Até já me dá vontade de rir o que sonhei!

D. Affonso olhou para elle um instante. Antonio Conti desviava os olhos.

-- Minha mãe?... perguntou El-rei em voz muito baixa.

-- Não! gritou o italiano, como a querer defender-se. Juro...

El-rei tapou-lhe a bocca.

-- Para que has de mentir? Em minha mãe pensaste!

-- Fal-o-ia por bem, senhor! Talvez para vos afastar d'uma vida que julga má, como sabeis. Alguma droga vos daria. O seu muito amor apontou-lhe talvez um caminho errado...

-- Cala-te, que estás mentindo! Bem sabes em que má conta devo ter o seu amor e de quantos lidam junto d'ella, favorecendo a meu irmão! Sim, é jutas -- quem sabe? -- a tua suspeita! Ah! querem privar de toda a alegria a minha mocidade!... Conti, havemos breve de saber quem vence!... Já lá deve ter chegado a nossa gente, a ceia estará na mesa, espera-nos a Falcôa com sua viola, suas cantigas e o vinho do Campo Grande! Conti, a caminho!

Embrulhou-se na capa, puxou para os olhos o chapéu. Antonio Conti imitou-o. Saíram.

De espaço a espaço, uma lanterna em nicho de santo, deixando cair na calçada uma rodela de luz entre as cruzes negras dos caixilhos, dançava a compasso do vento que vinha soprando da barra. Era outras vezes a luz tibia de candeia em alguma taberna que, por entre as frinchas da porta mal fechada, se estirava pela rua n'uma fita luminosa, se quebrava na casa fronteira, trepava pela parede. Mais negra parecia depois a escuridão, irmã do silencio, que reinava na cidade adôrmecida.

D. Affonso e Antonio Conti caminhavam calados, d'olho attento, levando as mãos ao punho da espada, ao passarem sob os arcos, em cujos recantos sombrios era fácil á traição abrigar-se.

Na sombra deslisavam por vezes sombras mais escuras, vultos que mais depressa desappareciam, se tilintavam as esporas de prata ou o aço das espadas de encontro ás pedras.

Andava a população assustada com os bandos que de noite percorriam as ruas e com tantos crimes impunes, dos quaes só em voz muito baixa alguem se atrevia a murmurar.

Os dois, já no alto da cidade, pelas ruas tortuosas de Alfama, continuavam a caminhar silenciosos, cada qual dando largas a seu pensamento, Conti a desfiar ambições, El-rei a desfiar miserias.

Aonde iam? Para onde caminhavam? Qualquer d'elles esquecêra o que, nao havia uma hora, lhes dominava as almas com um desejo absoluto, n'um d'elles todo esperanças, no outro desesperos sómente.

Nem D. Affonso nem o valído scismavam agora na Falcôa, mero incidente na vida do italiano, descanço anhelado; na vida de El-rei, mais um episodio sombrio.

Encadeando phantasias, d'aquelle triumpho insignificante para o vencedôr já Conti passára a rever-se n'outros, muito mais altos. Faceis lhe seriam tambem, no apogeu do poderio, da gloria, vencidos quantos se lhe oppuzessem em seu caminho de ambicioso.

Pensamento negro apoz negro pensamento, em volta da tristeza de sua miseria, da consideração de sua fraqueza, fôra El-rei ennovelando seus pesadelos. Odios, ciumes, receios de traição, desejos de vingança, tudo ia remoendo em seu coração, de que sentia despedaçarem-se as fibras. «A quem amparar-me?» perguntava a si mesmo. Olhou de revez para Antonio Conti por um instinto de desconfiança. Carregou o sobr'olho. Se até aquelle o traísse? Afastou o pensamento que lhe doía.

-- Desgraçado! Desgraçado que eu sou!

Outra vez se recordou da mãe.

Porque beijava os cabelloa de seu irmão d'elle e o festejava com termos carinhosos? Porquê? Era mais formoso decerto, mais forte... Pois era a culpa sua?

E de repente deu-lhe uma grande compaixão de si mesmo. Parou um instante na carreira, como se o cançára a subida, respirou fundo, limpou os olhos que se lhe enchiam de lagrimas.

-- Que tem V. Majestade? perguntou-lhe Antonio Conti em voz muito baixa, como receando que o ouvisse alguem occulto na sombra.

-- Nada! respondeu D. Affonso seccamente. Vamos!

E alargou o passo.

Antonio Conti encolheu os hombros.

Ah! Pudesse elle encontrar alguem mais desgraçado, a quem estendesse a mão generosa e que lh'a beijasse agradecido, a quem tratasse como a irmão que não tinha, a cujo peito se acolhesse chorando as lagrimas que tanta, tanta vez escondia! Mas quem haveria no mundo, com tão má estrella nascido, que se pudesse comparar-lhe? Lembrou-se de um lobo que, n'uma montaria em Salvaterra, levára uma bala nos quartos trazeiros e que, tres dias depois, encontrara no fundo d'um corrego, entre o mais espesso do matto, moribundo, ainda a arreganhar-lhe o dente. Elle lhe acabára o martirio com tres zagalotes nos olhos, O lobo, talvez! Miseria humana não a conhecia maior que a sua.

Travou-lhe o andamento melancolico do meditar um grito, que logo não pudéra dizer se era d'homem ou fera acossada, e que retiniu pelo silencio da noite.

Estacou.

-- Vamos, senhor! disse-lho Conti, inquieto, apressando o passo, medroso, passando-lhe á frente.

Mas El-rei não o attendeu.

-- Ouviste?

-- Soccorro!... Acudi-me!... gritava uma voz afogada pelo medo.

O italiano lançou mão nervosa á capa do companheiro; puxou-o.

-- Que diabo! disse impaciente. Em boa nos mettemos se não damos ás pernas! Olhai que estamos sós!

Repelliu-o El-rei. Um suor muito frio corria-lhe pelas costas. O grito, que ouvira, parecia-lhe ter saído de sua propria alma. Era assim que, n'aquelle mesmo instante, ella se lhe ia pôr a gritar.

Sentiram passos correndo pela travessa. Voaram umas pedras. Uma d'ellas, de recochete veio caír aos pés d'El-rei. Tiniram vidros feitos pedaços.

Os gritos continuavam, cada vez mais roucos, mais cançados. Ouviram-se umas gargalhadas.

-- Foge, maluco!

D. Affonso tirou da da espada.

A casa de Falcôa era a cem passos. Antonio Conti teve apenas tempo de dizer-lhe:

-- Senhor! fuja!... São bebados!

E virou costas, correndo.

D. Affonso enfiára, em sentido opposto, pela travessa. O valído susteve a carreira.

-- Com mil demonios, endoideceu! pensou.

E com a espada desembainhada, o punhal na mão esquerda, de má vontade e animo receoso, resmungando, sempre com o pé disposto a uma volta rapida, seguiu no encalço d'El-rei.

-- A garra! Agarra o maluco! gritavam as vozes avinhadas.

Um vulto quasi sem fórmas humanas, um monstro arquejante, dobrado, torcido, ennovelado, que vinha subindo, tropeçando nos degraus, batendo com o corpo pelas paredes, dirigiu-se para El-rei que, na escuridão, lhe viu os olhos a luzirem doidos. Acertou-lhe uma pedra nas costas; zuniram-lhe duas ou tres por cima da cabeça; mais outra lhe acertou sobre a nuca. Atirou as mãos para a frente. Caíu.

-- Soccorro! disse com voz desfallecida.

Os outros vinham correndo.

-- Alto! gritou-lhes D. Affonso.

Eram uns dez ou doze.

-- Fugi! disse ainda uma vez Antonio Conti com voz estrangulada.

-- O primeiro que se chegar é morto! gritou El-rei, pondo-se em guarda.

Respondeu-lhe uma gargalhada.

-- Toma pelas tuas ferroncas! disse uma voz.

Um pedregulho que lhe acertou violentamente, arrancou a D. Affonso um gemido abafado. Cuidou que lhe houvease esmigalhado o peito. Cambaleou, mas logo cobrou animo, caminhou para a frente.

-- Patife! disse, mal podendo ainda respirar.

E foi de tal ordem a cutilada, que o homem foi a terra.

Vinham todos armados de cacetes.

-- A elles! gritou uma voz de commando, a mesma que primeiro respondêra á d'El-rei.

-- Soccorro! berrou Antonio Conti com toda a força dos pulmões.

Era a propria vida que tinha que defender. Não havia remedio. No proprio medo achou forças.

Enterrou o punhal no que lhe ficava na frente e que, sem dar um ai, caíu.

D. Affonso ergueu segunda vez a espada; mas os homens, armados de varapaus, collocavam-se a distancia, a que não era facil chegar-lhes. Uma nova cutilada achou o adversario em defeza. Uma valente bordoada no braço arrancou a El-rei um grito de dôr.

Um dos varapaus caíu com toda a força sobre o hombro de Conti.

-- Soccorro! tornou elle a berrar com voz estridula, a que a dôr e o susto davam uma vibração tragica.

Os homens sabiam do officio, pulavam, fugiam com o corpo, sempre a distancia prudente da ponta das espadas. Começavam a cercal-os.

-- Mais um por terra! gritou D. Affonso, atirando a espada contra um peito.

Mas o homem desviara-se, e logo El-rei sentiu uma pancada secca, fortemente vibrada, partir-lhe pelo meio a lamina de Toledo. Recuou, defendeu-se com o braço, amorteceu com elle o golpe que lhe acertou um pouco acima d'uma fonte. Caíu-lhe o chapéu. Estava perdido. Atirou-se para a frente, buscando, desesperado, uma lucta corpo a corpo.

Antonio Conti poz-se outra vez a gritar.

Os homens furiosos rogavam pragas.

-- Berras agora! Vamos metter-te os uivos pelas guellas dentro!

-- Canalha ! gemou D. Affonso, sentindo as costellas a estalarem com o abraço robusto do homem contra quem se atirara.

Mas, de repente, os braços perderam a força, largaram-o; o homem caíu desamparado e D. Affonso ainda viu o aleijado, de joelhos, a remexer-lhe a navalha no ventre.

-- Canalhas! gritou mais uma vez, sentindo o sangue correr-lhe abundante da larga brecha.

-- Canalhas! gritou uma voz já quasi ao lado d'elle.

Ouviu-se um tiro. Mais um homem foi a terra. Era um soccorro! D'onde vinha? Que importava?

Mas, immediatamente, os homens recuaram. As cutiladas caíam-lhes como saraiva sobre as cabeças.

Antonio Conti, mais a sangue frio perante aquelle auxilio, chamou a si toda a prudencia de que podia dispôr. Sentiu uma porta abrir-se ao longe, gente a correr; ouviu gritos ; deviam de ser os amigos e os mulatos. Chamou-os com um berro e, sentindo-os mais perto, poz-se ao lado do recemvindo, que mais dois prostrára no chão e os outros obrigava a recuar.

El-rei, desarmado, encostado á parede, cuspindo sangue e de angue todo o rosto innundado, contemplava, cheio de pasmo, a victoria tão rapida que lhe parecia milagrosa, a serie dos golpes que nào paravam, a fuga apressada dos que ainda tinham algum vigor nas pernas.

D'onde viera aquelle homem? Quem era? Seria um auxilio do céu?

Benzeu-se.

Approximarara-se d'elle os mulatos.

Ainda ao longe se ouviam os passos dos que íam fugindo, a perderem-se na rêde confusa dos bêcos estreitos.

Atraz dos mulatos, a prudente distancia, appareceram, correndo, João Conti, Fr. Bernardo e Simão Peres.

Rodearam El-rei.

-- Que tem, senhor?

-- Está ferido?

-- Que imprudencia metter-se assim a caminho, tão desacompanhado!

-- Quero saber quem é o homem que me salvou, disse El-rei.

Todos olharam para o vulto que, acompanhado pelo valído, vinha subindo vagarosamente os degraus, já com a espada outra vez mettida na bainha.

Os feridos gemiam no chão, implorando piedade.

-- Quem sois? perguntou D. Affonso. A escuridão da noite não me deixa vêr-vos as feiyoes, nem sei se vos alguma vez encontrei.

-- El-rei deseja saber o vosso nome, disse Fr. Bernardo.

-- El-rei! exclamou o desconhecido.

E logo envolveu o rosto no vasto manto de cavalleiro e puxou para os olhos o chapéo de abas largas.

D. Affonso continuou:

-- Surgiste em hora boa e tão denodado vos mostrastes que vos quero para amigo.

O homem estremeceiu.

-- A vós, ao valor de vosso braço devo o estar em vida. Quem sois?

-- Vi dois homens assaltados por uma duzia de bandoleiros; corri em seu soccorro, respondeu por fim o desconhecido. Não cuidei que fosse El-rei quem por elle me gritava.

D. Affonso passou a mão pelos olhos, limpando-os do sangue, que lhe pareceu correr mais abundante da larga ferida.

-- Sois audaz! disse Antonio Conti.

Ouviu-se como um murmurio ameaçadôr. Os feridos continuavam gemendo. Um d'elles murmurou apavorado:

-- El-rei!

Um dos mulatos deu-lhe um pontapé.

-- Caluda!

-- Como vistes, continuou D. Affonso, sei castigar traidôres; quero o vosso valor premiar; não me julgueis avaro da recompensa.

-- Protegeu-vos o céu; ao céu agradecei. Nunca haveis de saber quanto hoje lhe devestes.

-- Muito lhe devi por certo, respondeu D. Affonso, em cuja voz transparecia o espanto. Mas, se viestes a seu mandado, porque não acceitaes o que de tão bom grado vos offereço?

-- Hoje e nunca!... Guardai vossos favores para quem melhor vol-os saiba agradecer. Boa noite, senhor!

-- Esperai! disse D. Affonso, com a voz a estrangular-se-lhe na garganta.

Já o homem ía descendo pela travessa. Estacou.

-- Somos tantos! Bem podiamos castigal-o! murmurou baixo Simão Peres aos companheiros.

El-rei tremia de raiva e de vergonha; mas apavorava-o o mysterio. Não era um ente vulgar quem assim o salvára da morte já certa e despresava agora seu alto valimento. Ouviu a phrase de Simão Peres e mandou a todos que se afastassem.

O desconhecido, sempre de braços cruzados sob a capa, continuava esperando.

-- Approximai-vos e ouvi-me, disse-lhe El-rei, que, já mal podendo firmar-se nas pernas, procurou o amparo da parede. Ireis vosso caminho sem que eu tente saber quem sois. Um inimigo decerto. Os mais que eu venha a ter sejam todos do mesmo estofo; não temerei d'elles traição.

Custava-lhe a falar. Tornou a limpar o sangue.

-- Quebrei a minha espada. Os copos eram de ouro e prata; a lamina não prestava. Mandai que lhe ponham outra. Honrai vossa espada em melhores lanços do que muitos em que por vezes deshonrei a minha. Tomai!

E entregou-lhe a espada.

-- Um dia, contra vós terei de puxal-a talvez, disse o homem com voz rancorosa.

-- Do céu viestes para valer-me; não era muito virdes um dia para castigar-me. Deus vá comvosco!

Sentiu na mão um beijo, como de cão que lh'a lambesse. Olhou; era o aleijado. Passou-lhe uma nuvem negra pelos olhos, pareceu-lhe depois que se incendiava, cheia de estrellas; vergou as pernas; caíu.

O desconhecido desapparecera.

Os outros approximaram-se, ergueram o corpo d'El-rei desmaiado.

-- Para que saiba! disse Fr. Bernardo ao ouvido de Simão Peres.

Antonio Conti, mal ferido tambem, impacientado por ver o transtorno de seu desejo, mandou dois mulatos correndo a casa da Falcôa, que trouxessem a cadeirinha.

E, quando, silenciosos, amortecendo os passos, seguiam devagarinho pelas ruas escuras, sob a chuva que caía fria e miudinha, os feridos abandonados gritavam lá em cima:

-- Aqui d'el-rei! Aqui d'el-rei!

Fr. Bernardo e Simão Peres desataram a rir.

O aleijado seguia-os, coxeando, gemendo, medroso, implorando com o olhar que nfio o affastassem da unica protecção que achara na vida.

-- Foi por mim!... Foi por mim!... E' o meu paesinho!... E' o meu paesinho!

Chegaram ao paço, caminharam pelos longos corredôres, que grossas lanternas de latão pendentes do tecto alumiavam lugubremente. Levavam em braços o ferido. Deitaram-o sobre a cama, lavaram-lhe os longos cabellos empastados em que o sangue coalhara.

El-rei abriu os olhos e viu o aleijado. Coxo, corcunda, o ventre muito saído, a bocca torta...

-- Como te chamas? perguntou-lhe com um tom de carinho.

-- Braz. Sou o maluco de Alfama.

-- Dêem-lhe de comer, disse D. Affonso.

Olharam uns para os outros duvidosos. A'quella hora... Falaram baixinho. Um dos mulatos saíu, voltou com um resto de comida na gamella d'um cão.

Os olhos do Braz scintillaram; arreganhou os beiços, mostrando os dentes ralos, muito agudos; deitou-se á comida, sôfrego. El-rei olhava para elle, cheio de piedade.

Fr. Bernardo examinava o ferimento, lavava-o com cautella. Dois dedos mais abaixo... Mas ali não era de gravidade. Havia licor d'oiro no bufete de carvalho, um remedio milagroso. O curativo não levou tempo.

Braz acabara de comer. El-rei chamou-o, e elle ajoelhou junto do leito, segurou-lhe na mão, beijou-a, encheu-a de lagrimas. El-rei commoveu-se.

-- Tu, que me beijas a mão, tu, que eu pude proteger, serás mais desgraçado do que eu?

Pousou n'elle quietamente, o olhar amortecido, muito piedoso.

-- Deixa-te ficar ao pé de mim. Teus beijos não me doem.

Passou-lhe pelo cerebro a lembrança da Falcôa. Fechou os olhos.

Antonio Conti apagou a luz no quarto. Ficou apenas accêsa a lanterna em frente da imagem da Senhora das Dôres. Saíram todos pé ante pé. El-rei adôrmecera. No pateo, os cães uivavam á lua que vinha nascendo.

CAPITULO VII

D. Anna de Portugal

Quando a velha Lourença, com todas as cautellas que os perigos do tempo exigiam, veio abrir a porta a Manuel Furtado, mal para o rosto lhe dirigiu a luz da candeia, soltou um grito assustado.

-- Que foi, senhor? Quem vos poz de tal modo?

Manuel Furtado só então reparou no fato que vinha todo sujo de sangue.

-- Um mau encontro, minha boa Lourença. Lisboa anda pouco segura. Mas socega; o sangue não é meu, que o eu sentisse.

-- Valha-me Deus! Valha-me Deus! dizia a velha toda afflicta. Mas porque andaes a deshoras por essas ruas, como ladrão ou namorado? Entrai, antes que voltem a perseguir- vos. Valha-me Deus! Valha-me Deus!

E, muito dobradinha, ía subindo a escada ingreme, erguendo alto a candeia, não fôsse Manuel Furtado tropeçar nos degraus esburacados.

Ia falando sempre.

-- Estava cá tão assustada! Quando, depois que saistes, vim arranjar o quarto, reparei que vos tinham esquecido as medalhinhas ao pé do oratorio. Fiquei sem pinga de sangue! Não ha como um cordãosinho e trazel-as ao pescoço. Tanto malvado por ahi e vós sem o soccorro de Nossa Senhora!... Puz-me a rezar-lhe, o tempo todo que por lá andastes, e não foi pouco. Mas que tendes que fazer todas as noites por essa Lisboa, mais perigosa que a praça d'Elvas rodeada de castelhanos? Bem vêdes, se não voltaes ferido, é porque ouviu Deus as minhas orações.

-- Ouviria, Lourença, ouviria, disse Manuel Furtado a sorrir-se.

-- Vamos, depressa, despi-vos. Não tendes mais que esse fato já no fio e a nodoa de sangne é das peores de tirar-se.

O alferes despira a capa, e ao pé da candeia sobre a mesa, examinava os copos da espada que D. Affonso lhe entregára.

-- Que vem a ser? perguntou a Lourença muito curiosa.

-- Uma espada com a lamina quebrada.

-- Do vosso adversario ?

-- Que m'a deu como prova d'amizade.

-- Que dizeis?

-- Um mysterio, Lourença.

E, comsigo mesmo, outra vez vendo um claro por entre o emmaranhado das ambições, disse baixinho:

-- Quem sabe?...

As ambições!... Se apenas cuidára, aquelles dias, de seus amores!

Lourença, vendo-o distrahido, zangou-se.

-- Vamos, vamos, despi-vos, que até metteis nojo! Vou buscar- vos agua para lavardes as mãos, os braços... Até no rosto o sangue vos sujou! Eram muitos?... Valha-nos Deus, em que tempos vivemos! Chego a ter saudades da Duqueza de Mantua e do Miguel de Vasconcellos. Saía a gente á rua ás suas devoções, voltava para casa noite fechada e sem receios. Agora são bandos armados a cada esquina. Se até dizem que El-rei... Padre, Filho, Espirito Santo, que tempos!

Ia apanhando o fato, enrolando-o, falando sempre.

-- Se as cutiladas, que se dão por essas ruas caíssem nas cabeças dos castelhanos, já d'esses malditos nao havia para nos virem desasocegar. Deus nos acuda, gento assim nem sequer tem religião! Vou aquecer uma panella d'agua e já vol-a trago para vos lavardes. Nào ceastes lá por fóra? E' que podia fazer-vos mal depois da ceia. Já venho. Mettei-vos na cama e componde-vos para quando eu voltar.

Fez do fato uma trouxa e saiu.

Manuel Furtado despiu a roupa branca e metteu-se na cama, cauteloso, não fosse com o sangue d'aquelles patifes ennodoar os lençoes. E de braços nus para o ar, pondo-se a meditar no caso d'aquella noite, disse comsigo:

-- Que me estará Deus a cozer direito com estas linhas tortas?

Passou-lhe pelos labios como um sorriso, que logo se desvaneceu. Estorceu-se-lhe a bocca n'um geito de raiva, nos olhos scintillou-lhe uma chamma d'odio.

-- Que me levára ali? pensou. Não tinha um proposito firme é certo; mas uma tentação de vingança me arrastava por esses bêcos mal afamados, desejando encontrar El-rei com sua pandilha. Para quê... nem eu sei. Sei que lhe andava arriscada a vida.

Buscou recordar em que estava pensando ao escutar os gritos de soccorro e enxergar na escuridão, contra dois vultos de cavalleiros, o assalto dos bebados. Pensaria em seu odio com certeza; mas o asco sentido contra cobardia tamanha, que via praticada, nem lhe deu tempo de cuidar a quem seria que tão prestes voava a soccorrer.

-- Quem tivera adivinhado!... Aquella creança!...

Ia já levando os punhos á bocca para mordel-os n'um desespero, quando, ao passar com as mãos pela faxa de luar, que se lhe estirava na cama, reparou no sangue que lh'as sujava. Engulhado, tornou a levantar os braços para o ar.

Era o que mais lhe offendia a soberba, ser traído por amor d'uma creança.

Mas o que esta lhe dissera! Não havia meio de achar accordo entre aquellas palavras humildes e maguadas e o muito que se contava da desvergonha de El-rei. Ainda com odio lhe respondêra, mas que lastima o pungira!

Quem tivera adivinhado!... repetiu em voz alta.

E logo pensou:

-- Andaria como andei. Eram apenas dois homens e muitos patifes a atacal-os.

Occorreu-lhe uma ideia que o fez sorrir.

-- Se não fôra o cambalearem com o muito vinho, não me saíria da aventura sem desaire. O que elles fugiam!

Houve um instante em que se lhe sumiram no esquecimento raivas, ciumes, tenções vingativas.

-- Grande occasião perdi!... Doido fui eu, que ha tantos, tantos mezes, meus sonhos de ventura, os illuminava a sua imagem!... Como isto custa a desarreigar do coração!... Vergonha, que vergonha! mas a verdade é esta: ainda joje não sinto coisa que mais queira!... Porquê!... Mas porquê?... A' janella d'aquelle quarto, ali fóra, quantas, quantas horas passei, vivendo da esperança de vêr um momento seu rosto, a sombra que fôsse desenhada em rapida passagem na cassa da cortina. Ali, uma tarde, me encontrou o primeiro olhar dos seus olhos negros, ali me endoideceu um primeiro sorriso de seus labios. Satisfeita uma ambição, outra logo no peito me surgia. Ouvi sua voz tremula de amor a cantar versos que lhe eu fizera. Tão maus eram elles, tão lindos me pareciam!... E puz-me a sonhar com um beijo!... Que mais havia eu de phantasiar? Porque havia o meu desejo de ir mais longe?... Doido! doido!... Sonhei leval-a á egreja! Que vergonha, faz o meu desespero d'agora á minha phantasia de então!

Os punhos no ar vibraram-lhe nervosos. Remexeu-se na cama, convulsivamente.

-- E' uma vergonha! disse. Uma vergonha!

E, como falasse mais alto, Lourença respondeu-lhe da cosinha.

-- Lá vai! Lá vai!

Manuel Furtado continuou falando comsigo, fazendo a si mesmo suas confidencias.

-- Vêl-a! Queria vêl-a, dizer-lhe versos que lhe fiz de noite durante as horas longas do cêrco, enganar-me a mim proprio, cuidar um instante que outra vez voltára o passado, uma só hora vêr seus labios a moverem-se á imagem dos meus, ouvir-lhe a voz, écho da minha, esquecer meus cuidados, morrer quando acordasse!

E por isso a procurava, para mais fundo enterrar as unhas na chaga e alargal-a mortalmente.

-- Odeio-te! Odeio-te ainda mais que a teu amante desprezivel, mais que a teus amantes todos, todos do mesmo lôdo, mais que ao oiro que te deram, que tudo é lôdo!

Mas queria vêl-a e por isso rondava, havia tantas noites, por aquellas ruas proximas d'onde sabia que morava. Se a visse, que lhe diria? a que extremos o haviam de impellir o coração maguado e a exaltação de sua colera? Tantas noites havia que, de pistola no cinturão, mão no punho da espada, percorria travessas escuras, beccos immundos, á espera de achar a casa de Maria da Boa Hora, á espera de El-rei para vingar-se!

Caíu em si. Outra vez recapitulou todos os lances da tragicomedia d'aquella noite e admirou-se de sentir um sorriso a afagar-lhe os labios. Entre as recordações das complicadas e inesperadas aventuras, poz-se-lhe o coração a cantar não sabia o quê, mas devia de ser uma canção de esperança.

-- Será? disse Manuel Furtado a interrogar-se a si mesmo. Mas com que linhas tortas quer Deus coser a minha ventura?

Franziu o sobr'olho, meditou um instante.

Devia de ser isso. Era força que visse em que lameiro se atascára amando aquella mulher, para com maior animo a expulsar do coração; era força que a contemplasse em toda sua miseria, na infima desgraça, para que seu espirito sacudisse as azas e pudesse erguer-se a regiões mais puras, áquellas em que d'antes voava, abraçado á imagem de Maria da Boa Hora!

Desesperou-se contra a cadeia insidiosa de seus pensamentos, que outra vez o trouxera ao primeiro de que fugira.

-- Mas para que me deixou Deus amar assim e tantas raizes a beberem-me o sangue do coração que as nao posso arancar sem matal-o?

Dobrou-se todo sobre o lençol a que limpou uma lagrima.

Considerou como lhe eram fataes seus amores e para que mau caminho o levavam, quando outro se lhe antolhava formoso.

Era mais uma vez a ambição procurando romper por entre o tumultuar confuso das paixões que o estorciam n'aquella cama, ora a provocarem-lhe um riso amargo, ora lagrimas.

Acalmou-se por fim, procurou no colchão uma posição mais commoda, começou a argumentar comsigo mesmo, e assim continuava de braços no ar, philosophando, quando Lourença, a cambalear, a gemer com o esforço, de pernas largas, toda deitada para diante, lhe trouxe a panella d'agua quente e a vasou no grande alguídar.

-- Vamos! Toca a lavar e logo depois a dôrmir, que são horas, disse, afastando com os braços a grande corôa de vapor que a circumdava. Lave-se V. Mercê, que eu vou pôr mais agua ao lume para as malditas nodoas.

Riu-se ao vêr Manuel Furtado d'olhar muito lugubre e de braços espetados.

-- Esperai, disse.

Saíu, e logo voltou com a candeia.

-- Deixai vêr esse rosto e se n'elle adivinho que más ideias o amarguram. Chorastes? perguntou commovida. Mas que mau sestro é esse dos vinte annos, de pelas primeiras saias que se encontram... Que tem V. Mercê feito estes oito dias?...

-- Caminhado n'um inferno! respondeu Manuel Furtado soturnamente.

-- Não vos fazem proveito os ares da cidade, bem vejo. Olhai que braços para cabos de faca! Maior damno vos tem feito essa mulher n'uma semana que os castelhanos no cêrco d'Elvas. Vinheis gordo, anafado...

-- Tenho saudades d'elles, acreditas?

-- Acredito. Os castelhanos sao christãos; quando morrem, reza-lhes a gente por alma. Mas quizesse o Santo Officio tomar conta a serio de quanta bruxaria por ahi vai, eu sei d'uns olhos pretos, que já deviam de estar no inferno.

-- Tao lindos, não são, Lourença? Duas estrellas!

-- Nunca as vi côr de carvão. Para que pensais n'essas coisas que vos tiram o somno ? Vamos, vamos, lavai- vos...

Já ia a retirar-se, quando esclamou :

-- Ih! que me esquecia! Foi de vêr-vos em tal estado.

E com ar muito oonfidencial e corta solemnidade que não excluía o contentamento vaidoso:

-- Esteve ainda agora ahi um escudeiro de boa casa, rapaz perfeito, que por vós perguntou. Juntou-se ahi gente a admiral-o; em cada janella appareceu uma cabeça; não houve adufa que não se erguesse. E' que o mocetão dava nas vistas. Disse-lhe que V. Mercê tinha saído, que só de noite voltaria. Então entrcgou-me este papel, metteu esporas ao cavallo e abalou retorcendo o bigode.

E, tirando do seio uma carta, collocou-a sobre a banca ao pé da candeia.

Já Manuel Furtado estendia a mão, quando Lourença o advertiu:

-- Cautella, não a sujeis!

O alferes observou a marca do sinete no lacre preto. Reconheceu os besantes dos Almeidas entre uma dobre cruz e uma aguia por timbre.

-- De D. João d' Almeida! disse.

Como se esquecêra do reposteiro-mór e de D. Anna de Portugal? Em que má vida tinha andado, que nunca mais pela mente lhe passára a formosa e enlutada noiva de André de Albuquerque? E as promessas que lhe ella fizera e o valimento de seu pai na côrte, como assim os despresára?

-- Depressa, Lourença, ide-vos... Porque não me destes esta carta ha mais tempo?

-- Ora ainda bem que outro rosto me amostrais! disse a velha pachorrentamente. Deus vos mande as boas novas que, parece, desejais. Boa noite, sr. Manuel Furtado, Nossa Senhora vos dê um somno bom. A moira cá vai tratar do fato.

E ainda não chegára á cosinha, já ouvia o alferes resfolegando, apressado, atirando agua ás mãos juntas para cima do corpo, esfregando-se, n'uma ancia de se vêr limpo, para abrir a carta, ler o que lhe mandava aquelle em quem fundava melhores esperanças de futuro.

Duas linhas apenas: o pedido para ir a seu palacio, no dia seguinte, ás nove da manhã.

Era outra a letra do sobrescripto mais fina, mais firme, sem as cetras complicadas que adôrnavam a curta missiva.

O papel tinha um perfume bom que logo Manuel Furtado reconheceu, e que lhe acordou lembranças. Como fôra ingrato! Como pudera, tantos dias, esquecer o pedido que lhe haviam feito com tantas lagrimas?

D. João d' Almeida encarregára decerto a filha de escrever o sobrescripto... Fôra ella quem instara para que o chamassem... Desgraçada noiva! Queria falar de seus amores, queria desabafar... E elle que fizera entretanto? Viu a imagem formosissima de D. Anna de Portugal com uma leve sombra de repreensão em seus olhos chorosos, e sentiu como um remorso.

Respirou o aroma do papel, ia outra vez relel-o, quixiido, na iiiesuia leira do sobrcscripto, viu, entre a complicada assignatura de D. João, duas palavras muito ao de leve escriptas, como a receio: -- «Não falte».

Por um impulso, que nem Manuel Furtado saberia explicar, levou mansamente a carta aos labios e beijou-a sobre aquellas duas palavras.

Deitou-se. Batia-lhe muito manso o coração; sentia na alma uma grande tranquillidade. Tudo quanto se passara n'aquella noite ennevoára-se pouco a pouco, como se fôra um pesadello, sonhado havia muito. Vagueava-lhe o pensamento deliciosamente n'um entre-sonho, por entre nevoeiros côr de rosa de fórmas mal definidas. Sentia nos membros como um entorpecimento dulcissimo e a mesma sensação tinha na alma. Era um fugir da treva abafadiça, um adejar n'uma atmosfera tepida, perfumada por aquelle mesmo aroma que as lembranças lhe acordára.

Cantaram-lhe na beira do telhado os pardaes matutinos, acordou a rua, ouviram-se os primeiros pregões, um raio de sol, desfazendo a ultima nuvem, entrou-lhe pelo quarto alegremente e só então Manuel Furtado fechou os olhos e adôrmeceu com um sorriso de encanto a erguer-lhe os cantos da bocca.

Davam oito horas na egreja do Salvadôr quando acordou em sobresalto.

Contou as badaladas, assustadissimo.

-- Oito!

Mas se acaso se enganára? Se não tivesse ouvido a primeira?

-- Lourença!... Lourença!...

A velha entrou toda assustada.

-- A minha roupa! Depressa a minha roupa!

-- Sai hoje tão cedo! exclamou ella espantada, atarantadissima. Valha-me Deus! Mas que foi?

-- Uma carta de D. João d' Almeida. A's nove devo estar em seu palacio.

-- A's nove!... No pala...

Lourença mal podia articular as palavras. Uma pedra com toda a força que lhe acertasse no peito não a suffocaria assim.

-- Que tens? Vamos, depressa... Depois te contarei... Deram oito, não deram?

-- Mas nem ámanhã estará vosso fato capaz de

vestir-se. Com a agua quente e a esfregadela, os buracos abriram todos. Nos calções, cá atraz, são assim!.. Cabem-lhe os dois punhos. A capa parece um esfregão. O gibão, desde o sovaco até a cinta, está a rir-se de vossa miséria... Assim haveis de ir a casa de D. João d'Almeida ! E a camisa, as botas, o chapeu... Cavalleiro mais do que vós mal trajado... só se fôr algum comico do pateo das comedias.

Manuel Furtado escutava de bocca aberta as lamentações de Lourença sobre a miseria de sua roupa. Não tinha pensado no contratempo, que o empallidecia agora e lhe fazia tremer o queixo. Chegado do cerco e da batalha, depois de muitas leguas de viagem, cutiladas do inimigo, a poeira do caminho, a pressa de trazer uma boa nova, explicavam o desalinho em que se apresentara na côrte... O Duque de Cadaval acompanhara-o immediatamente ao paço, D. João d'Almeida e D. Anna do Portugal aó tinham olhos para chorar... Mas agora? Levou as mãos aos cabellos, torceu-os, rogando pragas á desventura.

Pegou na carta, releu as duas palavras que n'ella brilhavam como luz de esperança, aspirou-lhe outra vez o perfume.

-- Já, já, Lourença! Não percas um minuto! Depressa!

E, como fizesse um gesto para saltar da cama, ella, toda pudibunda, fugiu espavorida.

-- Que pensarão de mim? dizia comsigo Manuel Furtado, lavando-se, barbeando-se ao espelho, retorcendo o bigode, penteando os longos cabellos que tinha formosissimos. Um comico do pateo das comedias, como diz a Lourença... Logo á entrada me ha de o porteiro olhar com modos desdenhosos... O escudeiro brioso ha de fazer seus reparos antes que me annuncie... D. João d'Almeida, D. Violante Henriques, seus filhos, tão cheios de galas em seu trajar, hão-de sorrir-se ao verem-me... que importa? «Não falte!» diz-me a apaixonada D. Anna. Ella que lhe importa que eu seja um farroupilha?

E então reflectiu que, se tanto a paixão da pobre senhora o commovia, é que apaixonado andava elle tambem e corações feridos mais facilmente se percebem.

-- Andarei? perguntou a si mesmo, só então reparando que nem um pensamento, depois que despertara, houvera para Maria da Boa Hora.

Deram oito e meia.

-- Lourença! Lourença!

A velha entrou e collocou sobre a cama o molho de trapos, ainda humidos da lavagem.

-- Eu não quero vêr, eu não quero pensar... N'esse estado, em casa do sr. D. João d'Almeida!...

E saíu logo, com muitos suspiros desconsolados.

Mas, quando á janella, seguia com olhos desvanecidos Manuel Furtado, que se dirigia a casa do reposteiro-mór, tão altivamente o alferes se embrulhara na capa, com tanto garbo lh'a soerguia a ponta da espada, a aba do chapéu tão militarmente se levantava sobre a testa, descobrindo os anneis do cabello, tão alto á brisa de manhã voava a pluma velha, partida, muito careca, mas arrogante ainda, que Lourença, com um sorriso enlevado, disse para uma vislnha:

-- Não ha cavalleiro mais gentil em toda Hespanha! Olhai!

Decerto haveriam recebido aviso os criados de D. João d'Almeida. Perfilou-se o porteiro na passagem do alferes, e o escudeiro, muito attencioso, encaminhou-o pela escada, em que altos azulejos commemoravam factos historicos da familia, atravessou o grande salão de entrada com velhos quadros suspensos da parede, correu o pesado reposteiro.

-- Já vos esperava, disse D. João.

Manuel Furtado curvára-se á entrada. Reparou nas botas enlameadas.

-- Antes assim, pensou. Vê-se-lhes menos o máo estado.

D. João fez-lhe um signal; o alferes caminhou uns passos. O reposteiro-mór estava de pé, com as mãos encostadas a um pesado bufete de carvalho, atulhado de papeis, alguns dos quaes acabava de ler, quando Manuel Furtado assomou á porta. Ensombrava-lhe o rosto um véo de melancolia, que apagava a luz dos olhos e repuxava para baixo os cantos da bocca.

-- Não vos temos visto, disse com um tom de meiga repreensão. Pois houve n'esta casa quem tivesse saudades vossas.

O alferes córou levemente. Murmurou, desculpando-se, umas palavras confusas.

-- Sois muito novo, continuou D. João d'Almeida; certo não dizem com vossa jovial phantasia dos vinte annos o luto e a tristeza d'esta minha casa, desde a nova fatal que nos trouxestes.

-- Desculpe-me V. Ex.ª respondeu Manuel Furtado; mas tão só á minha natural timidez attribua o não cumprimento da minha obrigação.

-- A' vossa timidez! disse D. João sorrindo. Desconhecem-vos tal defeito os vossos companheiros d'armas. A rogos de minha filha, que vos está muito grata, ínformei-me a vosso respeito. Breve me chegou resposta, que não minorou meu desejo de prestar-vos auxilio em vossa carreira. Hontem, no paço, falei com S. Majestade a Rainha e julgo que breve vos darei algum motivo de satisfação. Vêdes que não sou, como vós, um esquecido.

Estendeu-lhe a mão. Manuel Furtado curvara-se, como a fazer respeitosa menção de beijal-a, quando corrido um reposteiro ao fundo, entraram D. Violante Henriques e sua filha, D. Anna de Portugal.

Percebeu o alferes a approximação da noiva de André de Albuquerque, ainda antes que a visse, que lhe sentisse os passos ligeiros sobre o tapete da Persia. E' que pela sala espalhou-se um finissimo aroma, combinado ao das violas que floresciam no eirado e pareceu n'esse instante augmentar de intensidade. Trazia D. Anna sobraçado um grande ramo d'essas flores. Mas com ellas se misturava deliciosamente o perfume do ambar, e outro ainda, mais etereo, indefinido.

-- Deve ser o de sua mocidade e de seu cabellos loiros, pensou Manuel Furtado, sentindo uma perturbação de embriaguez em todos seus sentidos.

Outra vez se curvou cerimonioso.

Foi D. Violante quem primeiro se lhe dirigiu.

-- Diz-se hoje, em nossa capella, missa por alma de André de Albuquerque. Desejavamos que a ella assistisse quem recolheu o ultimo suspiro do valente general, que eu já tratava como a filho.

-- Muito grato era á sua memoria d'elle, minha senhora, disse Manuel Furtado; maior gratidão lhe devo agora. São V. Ex.as tão bondosas para mim, humilde alferes, quasi sem nome...

-- Tambem me informei a respeito do vosso pae, disse D. João. De boa nobreza de provincia era elle, e grandes serviços prestou na India, onde muito lhe deveu a causa do sr. D. João IV.

-- Minha mãe soffreu tanta miseria, que julguei que em Portugal todos ignoravam os serviços de meu pae.

Tão sentimental inflexão deu á phrase, que as duas senhoras, olhando uma para outra commovidas, murmuraram umas palavras, indistinctas mas cheias de meiguice, que a Manuel Furtado pareceram suave caricia em seus ouvidos.

-- Sua mãe era uma santa, disse D. João d'Almeida... E ainda minha prima em sexto ou setimo grau. Não tive tempo para averiguar ao certo o parentesco, que é pela casa Vimioso.

-- Protege-te a fortuna, Manuel! pensou Manuel Furtado.

E alto accrescentou:

-- Minha mãe assim m'o dizia ás vezes.

Sabia lá se dizia! Mas era amabilidade affirmal-o.

-- Minha vida de aventureiro não me tem deixado procurar meus parentes, como era meu dever e meu desejo.

D. João d' Almeida franzira ligeiramente o sobr'olho. O alferes, em cata de qualquer manifestação de physionomia, buscou que palavra dissera e lhe reprovavam. Emendou:

-- Vida de soldado em campanha! Que aprendemos mais que a sciencia d'uma sortida contra o inimigo?

-- Em que sempre, meu primo, a ventura vos protegeu, disse D. Violante.

-- Assim foi! confirmou com ar modesto Manuel Furtado. Foi a ventura que sempre me protegeu... até quando parecia fugir de mim. Quanto devi e estou devendo ao sr. André de Albuquerque!

-- Mais um luto n'esta casa! disse o reposteiro-mór, suspirando. Tremo sempre, quando um riso parece querer alegrar o rosto de algum dos meus. Raras vezes vi um intimo contentamento accender uma centelha nos olhos de minha mãe. Tinha razão a filha de D. Magdalena de Vilhena e do infeliz D. João de Portugal, cujo nome me deram no baptismo. Assistiu minha mãe, já mulherzinha, á grande desgraça; viu D. Magdalena de Vilhena recolhida n'um convento, Manuel de Sousa Coutinho, seu segundo marido, mudando de nome, illustrando o de Fr. Luiz de Sousa. Dizia-se que meu avô, D. João de Portugal, era vivo, fugido dos aduares de Africa, captivo na Terra Santa. Conheceis decerto a historia tragica de minha avó e do padrasto de minha mãe.

Manuel Furtado não a conhecia; mas curvou-se com ar compungido e affirmativo.

-- De minha mãe herdei a melancolia, a crença em agoiros, o susto em que vivo de ignota desgraça a ameaçar-me sempre. Todos somos assim n'esta casa, propensos á tristeza.

Com a mão no peito e modos recolhidos de quem está profundamente meditando na inconstancia da sorte n'este mundo, Manuel Furtado ouvia, meneando philosophicamente a cabeça, quando seus olhos se encontraram com os de D. Anua de Portugal. Embora o luto que vestia e o signal que das lagrimas conservavam, n'uma orla vermelha, seus olhos de azul intenso como o céu em abril, embóra a maceração de suas faces pallidas, que lhe azulava levemente as palpebras, havia tanta mocidade no seu olhar, tanto sangue a affluir-lhe aos labios humidos, um nadinha grossos, tanta luz em sua fronte doirada pelos reflexos dos cabellos loiros, que o alferes poz certa duvida ás lugubres affirmações de seu primo.

Uma gargalhada estrondosa, que estoirou no salão de entrada, veio cortar o queixume merencorio de D. João.

-- Doze castelhanos que matou? Ouvistes mal. Deve ter dito cento e doze!

O reposteiro affastou-se e, muito risonho, d'olho a luzir de alegria, D. Pedro d'Almeida assomou á porta.

-- Perdão ! disse. Não vos sabia n'esta sala.

Dirigiu-se para D. Violante Henriques e beijou-lhe a mão. Beijou a mão de D. João d'Almeida. Enviou a D. Anna um sorriso. Olhou com certo ar curioso para o alferes.

-- Nosso primo, Miguel Furtado, disse D. João d'Almeida.

-- Manuel, emendou D. Anna timidamente.

E nunca a Manuel Furtado lhe pareceu seu nome tão lindo, assim pronunciado baixinho, isolado de qualquer cerimonia ou appellido.

-- D. Pedro, meu filho mais velho.

Era um rapaz de vinte e nove annos, alto, forte, galhardo, e, embora de luto, usando trajo magnifico, mas sem algum artificio.

Outra vez o alferes se sentiu vexado e recordou o dito de Lourença: um comico do pateo das comedias.

Mas já D. Pedro d'Almeida lhe estendia a mão com franqueza de parente ou como se houveram sido companheiros d'armas.

-- Desgraça minha considero o só agora encontrar-vos. Sei que aperto a mão d'um soldado valente.

Manuel Furtado commoveu-se com aquelle rompante. Havia uma franqueza sympathica nos olhos negros de D. Pedro. O alferes, com um gesto cerimonioso, apertou a mão que se lhe estendia.

-- Desculpai-me, continuou D. Pedro, dirigindo-se a D. João e D. Violante, o tom de voz em que falava.

Olhou para a irmã, muito carinhoso.

-- Desculpa, Anninhas. E' cedo ainda para rir n'esta casa. Mas a culpa não foi minha.

E, muito alegre, mal sustendo o riso, apesar da inconveniencia:

-- Agora mesmo recebi noticia de que chegou d'Elvas meu futuro cunhado, o Conde da Torre. Não tarda ahi, sabendo da missa que vai ser dita por alma de André de Albuquerque.

Pronunciou estas palavras em tom mais baixo, mais compungido.

-- E, com a boa nova de sua chegada, outra me enviou por seu escudeiro. Diz que matou doze castelhanos!... Achei pouco.

D. João d'Almeida passou a mão pelo bigode; D. Violante virou um pouco o rosto a disfarçar; a alegria d'um sorriso passou muito ao de leve pelos olhos de D. Anna. Todos conheciam as quixotadas do Conde.

D. Pedro voltou-se para o alferes.

-- Estaveis lá; deveis de conhecer a façanha.

Manuel Furtado sorriu-se levemente.

-- Vi o sr. Conde andar com a valentia que ninguem lhe contesta; mas a queda que deu do cavallo que montava...

-- Obrigou-a a recolher-se ás muralhas e a pôr um ponto na mortandade!

-- E tu, meu Pedro, com o pretexto da estada do Conde em Lisboa, frequentarás um pouco mais a sua casa, disse D. Violante.

E, voltando-se para Manuel Furtado, explicou:

-- O Pedro está para casar.

Mas logo uma nova sombra caíu em seu rosto.

-- Grande mal é a guerra ! Por uma alegria, quanta amarga tristeza! Tambem hontem chegou a Lisboa a Condessa de Castel Melhor, coitada!

-- E o Luiz? perguntou D. Pedro.

-- Veio tambem, ainda queixoso do ferimento que dos gallegos recebeu e que tão mal andou curando, continuando no exercito de Entre Douro e Minho.

-- Pobre Conde ! disse D. João. Eramos pouco mais ou menos da mesma edade, tinhamos o mesmo nome, brincámos muita vez juntos. Tão severo para comsigo, tão valente que não havia armas que lhe puzessem respeito, foi sempre generoso para os ou- tros e era seu perdão tão fácil, que até parecia fraqueza. Soldado para medir-se com os heroes, muito errou como general. Victima de intrigas na côrte, as quaes não soube desfazer, e sem que de Lisboa lhe acudissem com tropas que esmolava, deu-lhe a melancolia que o levou á morte em breves dias.

-- Foi horrivel a viagem da Condessa, viuva de tão pouco tempo, cheia de cuidados no filho...

Interrompeu-a uma voz trovejando no alto da escada com o escudeiro, que muito humildemente ciciava umas desculpas. Correram o reposteiro. Annunciaram:

-- O sr. Conde da Torre!

O Conde entrou como um furacão, fazendo tinir as esporas, batendo com a espada pelos moveis, erguendo até aos olhos as guias do bigode, muito erriçadas.

-- E' a primeira vez... vinha dizendo.

Mas reparou em D. Violante e logo se curvou com toda a gentileza.

-- Oh! prima!... Perdão!

-- Dou-vos o parabem de vos vêr são e salvo da refrega, que foi, segundo contam, das mais arduas em que vos mettestes, disse ella, correspondendo ao cumprimento e dando-lhe a mão a beijar.

-- Hum! murmurou o Conde da Torre desdenhoso. Os perros castelhanos resistiram pouco.

-- Assomado, vinhas, mano, disse-lhe D. Pedro, que, desde que era noivo de D. Margarida de Noronha, assim tratava o Conde, irmão d'ella.

-- Assomado! Rubro de cólera me haverieis visto! O teu escudeiro não me conhecia, perguntou-me quem eu era, a mim, ao Conde da Torre!

E os olhos esbogalharam-se-lhe com a ira. Fez um gesto de ameaça, que logo emendou.

-- Desculpe V. Ex.ª, minha prima.

-- O rapaz é novo em Lisboa; veio, ha dois dias, de nossa casa de Alcobaça.

-- E' que ando suspeitoso... Ah! mas a mim ninguem me faz o ninho atraz da orelha! Até já por ahi puzeram pasquins a meu respeito; hão de querer intrigar-me na côrte, negar meus feitos... Mas tenho boas testemunhas: o exercito de Portugal, o de Castella e Deus!

E com um gesto largo dos braços apontou para toda a terra e para o céu.

Sorriam todos menos Manuel Furtado, que ria para dentro.

-- N'esse caso... disse D. Pedro, com um gesto ironico de humilde convencimento.

-- Perguntem a D. Sancho Manuel, perguntem ao Condo de Cantanhede. Infelizmente André de Albuquerque expirou nos meus braços...

E só então se lembrou do motivo que o trouxera. Correu para D. Anna de Portugal.

-- Prima!... Senhora! Que perda para o reino e para todos nós!

Curvou um instante a cabeça com ar de recolhimento.

-- Meu irmão d'armas! continuou. Ah! se o visseis!... Eu posso falar, porque combati ao lado d'elle.

-- Devieis de ter visto no campo nosso primo, Manuel Furtado, disse D. Pedro. Estava tambem ao lado de André de Albuquerque.

O Conde da Torre fitou n'elle o olhar, franzindo o sobr'olho, como a querer recordar-se. Poz um dedo na bocca, e de repente, assentando-lhe a mão no hombro alegremente:

-- Aposto que é o alferes a quem salvei a vida!

Manuel Furtado curvou-se, não querendo mentir deante de tanta gente, nem se atrevendo a negar um facto, que, acreditado pela imaginação do Conde, lhe podia, n'um porvir proximo, ser de vantagem.

-- Lembra-me que salvei a vida a um ou dois alferes.

Manuel Furtado pensou:

-- Salvou a tua o Pero Rolão.

Mas já o Conde não olhava para elle, encantado de ter ouvintes a quem dizer suas façanhas.

-- Houve um momento em que me julguei perdido e a todo o exercito. Os castelhanos rodeavam-me. Apontavam contra mim a artilharia do forte da Graça. Corro para a frente o o inimigo recua; mas, entre o matto, piorno muito alto que m'os escondia, uns cincoenta castelhanos caminham, dispostos a atacar-me pela rectaguarda. Olho para traz e vejo uns dois ou tres alferes valentissimos a combaterem com denodo épico! Porque a verdade é que eram valentissimos, disse, abrindo um parentesis e dirigindo-se a Manuel Furtado que se inclinou profundamente. Arripío a carreira, volto o cavallo, mas uma granada roça-me pela cabeça e vai rebentar a cincoenta passos de distancia.

E mostrava a brecha ainda mal cicatrisada, que abrira na queda do cavallo. Queria que as senhoras lhe tocassem com os dedos, para se convencerem.

-- Denodados eram os alferes, mas bisonhos, sem aquella prudencia militar que só nos dá a pratica dos combates.

Manuel Furtado tornou a inclinar-se.

-- O cavallo vai-se abaixo com o susto, eu fico de pé, e, para a direita, para a esquerda, estocada n'um, cutilada n'outro, faço um claro em volta de minha espada e varro do campo o inimigo. Palavra d'honra, lembrei-me do Condestavel em Aljubarrota. Os alferes apanham-me o cavallo e todos os quatro me acclamam. Deviam-me a vida.

Riram-se todos.

-- Quem te não fez castelhano!... disse D. João serenamente.

Mas o sino repicou.

-- Chegou o capellão de S. Majestade, disse o reposteiro-mór. Quiz dar-nos esta honra. Tua mulher, minha senhora? perguntou ao Conde da Torre.

-- Foi para a tribuna com minha irmã.

D. Pedro fez um movimento alegre.

-- Vamos cumprimental-as, disse-lhe o pae, pondo-lhe a mão no hombro, como a socegal-o.

E, baixinho, saindo:

-- Esconde um pouco o teu contentamento. Tenho medo de que elle dôa á tua irmã.

Encontraram-se á porta com Fr. Gregorio, de sacola ao hombro, muito humilde, muito cumprimenteiro, com as mãos em cruz sobre o peito, curvando-se muito, raspando o chão com as sandalias.

-- Entrae! entrae! disse-lhe D. Violante com alegria carinhosa.

Mas D. Pedro dissera-lhe um segredo e o frade estorceu-se, todo horrorisado, com os olhos repreensivos cheios de malicia.

-- Credo!

-- Que foi? perguntou D. Violante.

-- E' o snr. D. Pedro a dizer que eu gasto mal comigo as santas esmolas que me dão para o convento. Sempre me inventa cada calumnia!...

Os tres fidalgos tinham, a sorrir-se, parado á porta.

O frade atirou os braços para a frente, virando o rosto para o lado como quem repelle uma imagem ascorosa.

-- Nem conheço a mulher de quem falla!

D. Pedro, muito atrapalhado com a indiscrição do frade, abalou suffocado em riso.

O Conde da Torre e D. João demoraram-se um instante á porta, em ceremonias. O Conde saíu finalmente á frente. Olhou para o escudeiro.

-- Patife! murmurou.

Seguiram juntos para a tribuna, onde já se achava D. Pedro.

D. Violante fôra ter com Fr. Gregorio e fallava-lhe baixinho. O frade respondia muito risonho, com repetidos gestos affirmativos.

Era uma devoção que D. Violante tinha com elle, desde que lhe fallára de S. Tude, advogado contra a tosse. No convento, durante a missa, ardia sempre uma tocha por conta d'ella, que logo melhorára do catarral, com grande espanto dos physicos.

D. Anna approximou-se de Manuel Furtado e ligeiramente córada, disse-lhe:

-- Perdoai-me ter-vos escripto aquellas palavras. Lêstes?

Manuel Furtado, com certo enleio, respondeu:

-- Li, e logo adivinhei que eram vossas.

D. Anna sorriu-se.

-- Fiz mal em temer que não fosse para vós bastante o pedido de meu pae. Perdoai-me. Mas queria tanto ver-vos! Quantas palavras me dissestes, de todas me recordo e são-me consolação melhor no meu luto. Que dias tenho passado a rever o quadro que com tintas de tanta verdade me descrevestes! Que manhã formosa! Que nuvem tão de repente carregada de sombra!... Não se me tira da ideia a imagem de André de Albuquerque, o soldado mais gentil de todo o exercito de Portugal, sorrindo na batalha, pensando em mim entre gritos de victoria, como eu aqui, entre meus sustos e negros agoiros, só n'elle é que pensava! Haveis de contar-me outra vez como foi que, ferido, vos caiu nos braços, e as palavras que vos disse, e repetir-m'as muitas vezes, muitas, sempre!... Não é só na memoria que as tenho gravadas, é no coração indelevelmente. Conheceis desgraça maior do que esta minha?... Aos vinte annos viver tão só do passado! Em tão pouca edade devia de sempre haver uma esperança...

Manuel Furtado ia a responder. Ella calou-o com um gesto. Foi melhor assim; nada lhe acudira aos labios fóra das expressões de vulgar consolação que D. Anna de Portugal farta seria de escutar.

-- Vinde procurar meu pae algumas vezes. No exercito, ao lado de meu irmão, ha de collocar-vos. Tereis juntos as vossas glorias, que me vireis contar. Ver-vos-hei muitas vezes e o que já me disséstes me haveis de mil vezes repetir.

-- Para que eu pudesse, minha senhora, servil-a, queria passar minha vida a seus pés.

D. Anna baixou serenamente a cabeça, como aagradecer a phrase, que Manuel Furtado dissera com mais calor do que o exigia uma simples delicadeza.

-- Quando da primeira vez que vos vi, apezar do cançasso pela violenta viagem que havieis feito e da nova má com que n'esta casa entraveis, nao tinha vosso rosto as rugas em que hoje n'elle hei reparado. Padecestes algum desgosto?

-- Senhora, não. Vel-a soffrer tem sido minha maior pena.

-- Junto de vós soffro menos.

Sorriu-se tristemente.

-- Tinha sonhado tanto!... Como todos sonhamos aos vinte annos, não é verdade?

-- Sim, sonhamos muito, disse Manuel Furtado.

D. Anna fitou n'elle os olhos claros, profundos, em que, n'aquelle instante, á muita ingenuidade se unia uma alegriasinha maliciosa.

-- Tendes algum amor?

Manuel Furtado não respondeu logo, mas carregou ligeiramente o sobr'olho como se pela mente lhe passasse uma lembrança angustiosa.

-- Infeliz? perguntou ella.

O alferes, ainda sem responder, baixou melancholicamente a cabeça; mas no tom da pergunta havia tamanho e tão sincero espanto, que sentiu uma vaidadesinha trazer-lhe aos labios um sorriso. Para disfarçal-o, passou a mão pelo bigode.

-- Mais um motivo; procurai-me a miude. Desabafaremos. Eu vos direi minhas saudades reaes, vós me direis vosso tormento. Eu ficarei melhor, vós saireis curado.

-- Não vol-o posso contar, senhora.

-- Porquê ?

Tanta e tão boa fé havia na pergunta, que o alferes sentiu-se envergonhado de, em seu dialogo com a enlutada noiva, referir-se, ainda que só por pensamentos, á traição que soffrêra. Mas sentia ao menos tempo -- nem sabia definil-o -- uma commoção de prazer, que a alma lhe dilatava, um desejo de contar suas maguas e ouvir palavras carinhosas de consolo. Passou-lhe rapida pelo espirito a lembrança da cantilena chorosa, de sobre posse, em que se punha, pequenino, nos braços da mãe, para que ella o apertasse mais contra o peito, o beijasse muito.

Por instincto hypocrita, seu rosto, assumiu uma expressão de victima, deu signaes d'uma dôr que, n'aquelle instante, sua alma não sentia, interrogasse-a elle francamente. Outra vez se recordou da phrase da Lourença, mas por outro motivo agora.

Já, da primeira vez que estivera n'aquella casa, compuzera um bocadinho de romance, muito pouco, verdade era, o que julgára necessario, tão sómente. Agora ali estava compondo o resto, querendo transmittir illusões que elle proprio já não tinha.

Tentava-o ser havido por martyr da desventura. Pudesse-o elle, só para ouvir palavras meigas que lhe afagariam o coração e a vaidade, chamaria aos olhos uma lagrima, como os comicos do pateo.

-- Se maguas vos pungem, porque não me haveis de contal-as? perguntou ella. Serieis ingrato comigo, que todo vos abri meu coração. Morreu-vos a noiva?

Manuel Furtado disse que não com um gesto solemne da cabeça.

-- Então?... Nosso mal julgamol-o sempre maior que o dos outros. Quererieis talvez comparar...

-- Antes houvesse morrido! disse elle tragicamente, com um suspiro abafado.

-- Que dizeis!?

-- Ou tivesse eu morrido em logar do sr. André de Albuquerque. Seriamos todos mais felizes.

D. Violante despedia o frade, que, continuava com seus rapapés e modos muito humildes e lisonjeiros.

-- O nosso grande santo ha-de curar-vos de todo.

Olhou para D. Anna do Portugal e Manuel Furtado e poz as mãos extatico, como encantado com o lindo grupo.

Envolveu-os na mesma saudação.

-- Deus os abençoe!

D. Violante encaminhou-se para a filha.

-- Procurai pretexto e vinde breve. Contai-me tudo. Saberei pagar-vos o muito que vos devo, disse D. Anna falando á pressa, baixinho, em tom confidencial.

-- Anninhas, vamos, disse D. Violante.

Chamou o escudeiro.

-- Acompanhai o sr. Manuel Furtado á capella-mór.

O alferes curvou-se junto da porta, deixando passar as senhoras. Roçaram-lhe pelas mãos as violas roxas que D. Anna levava no regaço e o mesmo perfume que lhe déra a adivinhar a entrada da noiva de André de Albuquerque, envolveu-o todo outra vez.

Passou a mão pelos olhos, levemente entontecido.

-- Por aquí, disse o escudeiro.

Desceu uma escada interior. Levou-o á sacristia, onde o padre se estava paramentando.

Já lá encontrou, juntamente com a familia da casa e o Conde da Torre, outros fidalgos, que falavam em voz baixa formando grupos.

-- Meus senhores! disse D. João d' Almeida, com um gesto convidando-os a entrar.

O alferes, acanhado, deixou-os passar; ajoelhou depois junto á porta, arrimando os pés á parede, não mostrasse os buracos das botas.

Mas estremeceu de encanto.

D. Anna, com um gesto lindo, de pé junto do altar, dispunha em riquissimos vasos da India as flores que trouxera. Descia-lhe um raio de sol sobre os cabellos loiros e toda a sua cabeça cercava-a um nimbo d'oiro, como a santa. Que bem ficava o luto á sua formosura! Chorava... Como de boa vontade elle se trocára pelo morto!... Fechou os olhos.

-- Introibo ad altare Dei, disse o padre.

Houve um borborinho na assistencia, um bater de espadas, um ranger de botas dos homens que ajoelhavam, um ruge-ruge de sêdas no coro.

Manuel Furtado acordou de sua abstracção, benzeu-se, resou a confissão com o acolytho. Mas estava distraído.

Dava-lhe paz respirar o ar d'aquella casa. Quantos annos havia, que em sua vida aventurosa de soldado, não se achava assim no conchego d'uma familia! Sentia-se impressionado pela distincção grave e serena de D. João d' Almeida, pelos modos affaveis e simples de D. Violante, formosa ainda com seus cabellos já grisalhos e seu lindo olhar que se enternecera quando lhe elle fallára de sua mãe. Era D. Pedro uma alma aberta; entrára na sala com a alegria d'um raio de sol... Com que sorriso dissera adeus á irmã! Mas esta, mais que todos influira n'aquella nova disposição em que sentia seu espirito; era causa principal de moções ainda indistinctas que lhe vinham apontando na consciencia, de desejo indeciso firmar-se em novas aspirações. Sim, havia de procurar pretexto para voltar em breve. Como ella se interessara pela historia de seus amores, como lhe sorrira com seu sorriso triste, acariciando-o com seu olhar e tantas palavres boas, como de irmã!

Na egreja, ainda que muito mais vasta, adejava o mesmo perfume, a que a cera queimada e um resto de incenso, que se lhe misturavam dava um tom de religiosidade.

Nunca mais sentiria um perfume assim, que não lhe recordasse aquella hora. Seria o teimoso evocador dos momentos que íam passando e de que já Manuel Furtado começava a sentir saudades.

Terminára a Epistola; o sacristão mudou o missal, puzeram-se todos de pé, persignaram-se.

Manuel Furtado relanceou os olhos pela assistencia. Estavam ali reunidos os principaes fidalgos da côrte, muitos dos quaes conhecia de vista, tudo gente de alto valor, uns junto da Rainha, outros no exercito. E pensou:

-- Porque despresar a Fortuna, se assim me quer ajudar?

O Conde da Torre limpava a garganta d'um pigarro teimoso que apanhára em Elvas com um resfriamento depois da batalha.

O padre terminára o Evangelho, voltára-se para os fieis: Dominus vobiscum! e Manuel Furtado ouviu o Conde dizer baixinho:

-- Escapámos do sermão.

Ah! se pudesse fazer o elogio fúnebre de André de Albuquerque, nem o padre Antonio Vieira com mais rhetorica saberia dizer o que elle podia! Não fallaria do general, nem diria de suas façanhas, nem contaria sua morte gloriosa pela patria; deixaria em paz Castella e os sessenta annos em que Portugal foi escravo e os gritos da revolução e as luctas pela independencia. Diria d'elle tão somente o premio que lhe déra Deus na vida e que, ainda depois que o levara, no mundo deixava que lhe dessem. Uma oração de labios tão puros e formosos, como não havia Deus de ouvil-a?... Ser morto e ser assim amado! Com tanta gloria na terra, como não havia de ter a do céu?

Havia em Manuel Furtado como um raio de luz, que, descendo dentro em sua alma, lhe fôsse n'ella docemente illuminar o mais escuso recanto. Nova não era a sensação, mas era quasi esquecida. A's vezes, depois d'umas primeiras aventuras de creança, de que trazia para casa um leve remorso, sentira assim o que quer que fosse parecido, ouvindo sua mãe a disfarçar no tom d'uma pergunta indifferente a interrogação inquieta dos olhos. E então sabia-lhe bem encostar-se ao peito materno e odiava as loucuras que praticára.

Disse o padre o Orate-fratres, e todos outra vez ajoelharam.

Continuou invocando a imagem que, mais firme no desenho de seu contorno, mais de luz etherea formada, lhe pareceu querer ali mostrar-se. A exaltação d'aquellas noites haviam-lhe tanto excitado os nervos, que, distendidos agora, o tornavam mais accessivel á ternura. Fôra ella, a pobre mãe, quem primeiro o levára á egreja, lhe juntára as mãositas, lhe ensinára a primeira oração. N'um acumesinho de sensibilidade, murmurou devotamente com o acolytho:

-- Suscipiat Dominus sacrificium...

Era uma ancia de lavar a alma.

Como em pesadêlo, reviu os dias que passára, as noites pelas viellas, as madrugadas ferrando os dentes raivosos na roupa, ciumes roedores, odios de que se alliviava em roucas, impotentes exclamações, projectos de vingança com que os olhos se lhe turvavam do sangue. Teve asco de si mesmo, do amor torpe, da baixeza de sua paixão.

O padre offerecera a Deus a hostia e o calix, disséra a oração dominical, commungára. E Manuel Furtado curvara-se a bater no peito, resára o padre nosso, confessara-se indigno do Senhor. Accendia em si mesmo a devoção, crente que sua mãe no céo lhe valeria.

Mas outra vez ouviu o ruge-ruge das sedas. Defronte viu correr-se uma cortina e na pequenina janella do commungatorio appareceu devotamente curvada, d'olhos baixos, a cabeça formosa de D. Violante Henriques. O padre virou-se no altar com a hostia entre os dedos, quando o orgão começou tocando. Desceu, approximou-se da grade. Manuel Furtado não desfitava d'ella os olhos. D. Violante ergueu-se, outra ajoelhou em seu logar. O fundo era escuro, mal os rostos podiam ser reconhecidos mas elle adivinhou o de D. Anna, por uma claridade a mais que fulgiu e devia de ser a de seus cabellos loiros.

Tocava o orgão, e para onde voavam as notas religiosas parecia-lhe que ia toda a sua alma, tão leve a sentia. Era a contricção das horas negras a que a si mesmo, por sua vontade, se condemnára; era um proposito firme de ser outro, n'outra vida, que havia de levar sem odios nem resentimentos, lavando no perdão da injuria todas suas máculas; ser outro, sim, tão outro que, terminada a vida, merecesse que uma mulher purissima, que muito houvesse amado, viesse, entre lagrimas de saudade, receber a Deus por sua alma.

E então, fóra de todas as suas phantasias, das exaltações que em si mesmo bastas vezes creava edificando romances, sentiu nos olhos uma lagrima que a elles subira desde o fundo mais sensivel do coração.

Terminára a missa. D. João e D. Pedro de Almeida correram o circulo dos fidalgos agradecendo-lhes. Manuel Furtado apertou-lhes a mão e saíu pela porta principal, encaminhando-se devagarinho para casa.

la contente, contente comsigo e com a boa sorte.

-- E' tudo gente de valimento, que póde ajudar-me, pensava.

Quando, na rua estreita, lhe passavam á frente carroças, coches ou liteiras, erguia o chapéu galantemente.

O Conde da Torre correspondeu-lhe ao cumprimento rasgado com um adeus familiar. Manuel Furtado percebeu que elle déra quaesquer explicações a seu respeito, porque a noiva de D. Pedro de Almeida, muito curiosa, deitou a cabecinha de fóra, espreitando pela portinhola.

-- E' linda! pensou o alferes. Quem me déra a felicidade de D. Pedro!... Ter uma noiva...! Uma mulher, que um homem não se envergonhe de ter amado muito! Nunca vêr seu amor mudar-se no peor dos tormentos!

Ia mais ligeiro com o proposito que fizera. Era como se dentro em si, depois do inferno em que vivera tantos dias, nascesse uma aurora em que toda a treva começasse a fundir-se, pouco a pouco a desvanecer-se, como neblina d'um pantano aos raios do sol.

Esquecer Maria da Boa Hora que lhe custava? Que lhe merecia a desgraçada?... E perdoaria a El-rei.

Para que lhe dissera na vespera aquellas palavras amargas, nascidas tão só de seu orgulho offendido?

-- Porque, vejo-o agora, dizia convencido; o meu ciume não provinha do amor.

E, sorrindo desdenhoso, repetiu:

-- Amor!

Insultou-se a si mesmo.

-- Estupido! Tiveste na mão a fortuna e vaes agora estafar-te por mil rodeios a buscal-a!

Que horas doces passára e que bons impulsos sentira, recordando a mãe! Aquelle optimo desejar d'um amor, que fosse comparavel ao de Anninhas...

Sorriu-se pronunciando o nome com que D. Violante e D. João tratavam a filha. Assim tambem lhe chamaria André de Albuquerque em seu pensamento; quem sabe se alguma vez lh'o murmuraria aos ouvidos baixinho?

-- Anninhas!

Estava ao pé de casa e ainda ia pronunciando o nome, encantado com tanta musica, quando d'elle se approximou, amostrando n'um sorriso de lisonja duas enormes fileiras de dentes podres, um homem de meia edade, embrulhado n'uma capa cheia de remendos. Tirou o chapéu em que a pluma parecia uma espinha de peixe. Curvou-se todo. Umas farripas grisalhas com que procurava tapar a calva esvoaçaram ao vento.

-- E' V. Mercê o sr. Manuel Furtado?

O alferes media da cabeça aos pés o desconhecido, que sorria sempre, com estremecimentos nervosos de piolhoso.

-- Que me quereis?

O homem riu-se muito, com umas gargalhadas pequeninas, piscando o olho malicioso. Olhou em roda. Depois em tom muito confidencial:

-- Queria entregar-vos...

Tornou a olhar receoso, querendo que Manuel Furtado désse valor á sua discrição. Puxou-o para dentro da porta.

-- Aqui na escada, se permittis.

Entregou-lhe misteriosamente um pequenino embrulho, que trazia escondido no peito, dentro do gibão. Pôz um dedo nos labios.

-- E da parte de quem?...

Mas o homem riu-se muito, com os mesmos estremecimentos, encolhendo-se todo, e não respondeu. Assim saíu, assim desappareceu pela travessa acima, de quando em quando voltando-se, sorrindo, piscando o olho, com o mesmo gesto de misterio.

Manuel Furtado fechou a porta e, com certa curiosidade, subiu a escada, entrou no quarto e, de dentro d'uma caixa atada com uma fita azul, tirou uma pequenina miniatura.

Deu um grito de espanto. Seus olhos alegraram-se encantados e, caindo de joelhos, beijando o retrato, dizia como doido:

-- Maria da Boa Hora!... Maria da Boa Hora!...

CAPITULO VIII

A politica de Simão Peres

Ainda a madrugada não vinha nascendo, já no paço todos sabiam o desastre -- «mais um» como diziam muitos a rir -- que El-rei soffrêra. Toda Lisboa o veio a saber. Aos gritos dos feridos accudira finalmente a ronda; fallaram os soldados fazendo suas supposições, que logo andaram de bocca em bocca, como em boccas andava a fama d'El-rei. Não tomaram conta na lingua os mulatos que o acompanharam, nem tão silenciosos trouxeram a liteira até ás portas do jardim, que, por detraz de muita rotula ou adufa, olhos curiosos os não vissem passando na escuridão da noite.

Avisada a Rainha, mandára logo que viesse a seus aposentos o Conde de Odemira informal-a do estado do filho.

Já o Conde enviára a toda a pressa recado a Martim dos Reis, que logo ordenou se applicasse uma sangria ao real enfermo, explicando com muito latim que era o caso de nenhum cuidado, mas que seria muito grave se a pancada fôra mais violenta e em sitio de maior perigo.

Pallido, com o aspecto profundamente sombrio, El-rei sem dar palavra, estendera o braço. O Conde notou a presença do Braz e pelo rosto de D. Affonso passou um estremecimento, pelos olhos a vibração d'um receio. Gritou para o aleijado:

-- Aqui!... Quero-te aqui!

Parecia que sua miseria quizesse encontrar apoio em miseria maior.

O Conde de Odemira correu a socegar a Rainha. El-rei quasi não tinha febre, saíra da aventura mais uma vez com desaire, mas sem lesão maior na saude.

A Rainha chorava.

-- Mal andámos, Conde, mal andámos, deixando que o acclamassem rei de Portugal. Chego a descrer da misericordia de Deus, n'este mundo, para mim. Negro vejo o futuro, e a tanto negrume, nenhum remedio agora.

E, depois d'um silencio, perguntou:

-- O meu Pedro?

-- Attento sempre ás suas lições... El-rei o distráe por vezes... O exemplo do irmão mais velho...

-- Que faremos? Tanto rogo a Deus que me acuda... Valei-me vós. Bem sabeis que toda força perdi junto de meu filho. Seria precisa uma lição que viesse de muito mais alto.

Corou de vergonha. Tão orgulhosa no conselho de estado tanta vez se revelára, e para os mesmos que offendêra appellava agora. Doía-lhe o rebaixamento. Mas já com o aio dos principes acabára com fingimentos escusados. Quanta vez lhe ajudára elle a enxugar as lagrimas, fallando-lhe de esperanças, de desmandos de mocidade que haviam maculado outros principes em Portugal!

-- Talvez attenda El-rei ao que lhe expuzer o conselho. Logo que melhore da ferida, juntaremos os fidalgos, se assim o ordenar V. Magestade, e, na presença de todos, alguem lhe fallará.

-- E quem, de tão rasgado animo que não tema...

-- Minha senhora, confio no Duque de Cadaval.

-- Sabeis que perigo corre aquelle que disser a verdade e como se deixa El-rei, sem freio que o dome, levar da ira; sabeis que, um dia, ha de elle tomar conta do governo, e, talvez, mal levado por amigos que não sabe escolher, queira de seus melhores tirar vingança. Aconselhaes o Duque de Cadaval, talvez esquecido...

-- Tudo me lembra, senhora. Minha filha mais velha é viuva e sem filhos. Breve, trocará seu titulo de Condessa da Feira por outro de mais alta nobreza. Minha filha soffrerá os effeitos do procedimento de seu marido, sejam quaes forem. Quem do caminho do dever não se afasta, facil encontra a resignação. Exige-o o bem da nossa patria, senhora!

-- Raros são os homens da vossa tempera. Se muitos encontrára como vós, minhas duvidas seriam poucas, não me seria tormentosa a escolha da casa d'El-rei. Mellior companhia que lhe dermos conseguirá decerto o que não puderam supplicas e ameaças, nem quanto pelas religiões, a meu pedido, se tem rogado a Deus pela emenda de tantos desconcertos.

Suspirou.

-- E' todo meu cuidado agora.

O Conde bem o sabia. Quanta vez a Rainha o consultára, sem que elle se atrevesse a dar seu parecer definitivo!

De cabeça pendida sobre o peito, passava a mão pelos anneis de seus cabellos brancos.

Mais uma vez a Rainha falou do Marquez de Gouveia, de Garcia de Mello, do Conde do Prado, de Luiz de Mello e de D. João d'Almeida. Serviriam ás semanas, tendo para ajudal-os o Conde de Óbidos, general que fôra de artilharia no Estado do Brazil, governador das armas da provincia do Alemtejo e reino do Algarve e vice-rei da India, o Conde de Valle de Reis, presidente do senado da camara, o Conde de Aveiras, regedor da casa da supplicação e Francisco de Sousa Coutinho, que era do conselho de Estado.

A Rainha, ia commentando, uma a uma, as qualidades dos homens que lhe propunha, seus serviços ao reino, sua posição na côrte. Mas o Conde de Odemira continuava passando as mãos pelos cabellos, meneando, descontente, a cabeça, dando mostras de impaciencia.

-- Perdoe-me V. Magestade aos meus annos mais uma rabujice. Mas El-rei sr. D. Affonso VI, não atura dez dias essa velhada que lhe querem pôr ao lado. Perdoe-me V. Magestade...

Apesar de suas amarguras, a Rainha sorriu-se.

-- Outro dia, com maior socego resolveremos. Ide, Conde. Dai ordem a meu filho Pedro que venha comigo rezar a oração da manhã.

O Conde saiu recuando.

Decerto já não havia no paço quem do facto não tivesse conhecimento. Pelos cantos, o Conde encontrava fidalgos ou creados cochichando e, muitas vezes, estes com aquelles em desrespeitosa familiaridade. Quando o avistavam, calavam-se, disfarçando. Ouviu umas creadas n'um quarto rindo á socapa. Arrastando os pés, sacudindo os cabellos brancos, monologando, com gestos que o tornavam apontado entre risinhos de mofa, subiu aos quartos do Infante.

Simão Peres acordou tarde, só quando ouviu para os lados onde El-rei dormia um borborinho desusado. Vestiu-se á pressa, veio espreitar ao corredor, viu saír o physico com aspecto muito grave, e o Conde de Odemira cabisbaixo.

-- Isto não vai bem! disse comsigo.

Já, muita vez, ouvira murmurar de Antonio Conti. Precisava manter-se. A columna era boa, mas o italiano tanto podia abusar que seria causa de sua propria ruina.

Voltou para o quarto nos bicos dos pés.

-- Morra Samsão o quantos aqui estão! disse com um berro, para vêr se despertava Fr. Bernardo. O caso é não estar com os mais, quando fôr o desabamento. Tento comtigo, Simão; vê d'onde vem a trovoada.

Fr. Bernardo continuava roncando.

Ao entrarem no quarto, depois das peripecias da noite, tinham os dois esvasiado uma borracha. O frade, por menos cautela ou maior sêde, descuidára-se na conta.

Simão Peres olhou para elle cheio de despreso.

-- Acorda, padre! Olha que temos novidade no paço. Emquanto para ahi roncas como um javardo, armam-nos talvez a ratoeira. Vá, homem!

Sacudiu-o tres vezes. O frade, deitado de costas e de bocca aberta, nem se moveu.

-- Só o trabalho que tenho todas as manhãs!...

Abriu a janella. Um dia lindo. O sol, entrando no quarto, illuminou toda a sua miseria: no chão, em monte, o fato sujo, cheio de nodoas de gordura e vinho, as botas enlameadas; uma cadeira, sem assento, e, sobre uma commoda manca, um bocadinho de espelho e meio pente; no poial da janella, um alguidarinho e uma bilha sem aza; a um canto, a borracha de vinho deixando caír a ultima lagrima sobre uma camisa esfarrapada.

-- Acordas ou não, Fr. Bernardo de seiscentos diabos que te levem?

Encolheu os hombros e foi ter com Antonio Conti.

-- Saibamos o que ha de politica. Todos a têm, e eu cá tenho a minha. Olho alerta, em tempos tão calamitosos... para os outros!

Bateu á porta; mas sem esperar resposta, ergueu o fecho.

-- V. Ex.ª dá licença ?

Notára que o italiano se desvanecia com o tratamento e, meio ironico, meio lisongeiro, ía-lh'o dando de quando em vez.

Mas o sobrecenho de Antonio Conti pôl-o serio. Mostrou-se cheio de cuidado.

-- Que temos?

-- Mais que todos tiveste culpa, respondeu-lhe o valido, tu, que lembras-te a maldita ceia. Não saímos que não haja desaire para o nome d'El-rei e fatalmente para o reino e para nós todos... que temos nome a manter sem mácula. Comtigo quem se importa? Por isso inventas as emprezas arriscadas, de que sabes pôr-te a salvo. Mais uma vez ahi temos o paço alvorotado, alvorotada a cidade a estas horas. Mais um escandalo em nossa côrte vai levar a alegria á de Castella. A mim me hão de tomar contas.

-- O vosso cargo!... disse Simão Peres com tanta hypocrisia, que Antonio Conti olhou para elle, duvidoso da sinceridade com que fallara.

-- Outra vez o Conde de Odemira vai ter justas razões para queixar-se, e não lhe vou dizer que, não fôra eu, cataria agora o reino de lucto.

Simão Peres ouvia boquiaberto. O salvador d'El- rei... Então o outro a quem D. Affonso entregára a espada partida na refrega?

Mas conteve-se. Com um olhar hypocrita espreitava a occasião favoravel de levar o dialogo para onde queria.

Antonio Conti continuou:

-- Muito devo a El-rei e, grato, lhe beijo as mãos. Antes offerecer minha cabeça ao cutello do algoz do que abandonar o sr. D. Affonso, quando tanto precisa d'um braço amigo. Mas poucos sabem quanto, por amor á sua causa, sem ambição alguma ou de desejo de paga, muito embóra decorosa, hei sacrificado: fama, socego e ainda não, só por milagre, a minha vida.

Assumiu um ar solemne,

-- Que mais querem?

-- Que mais hão de querer? disse Simão Peres. Mas quem trata de exigir nem sempre avalia quanto custa a pagar.

Fallava pomposamente, mas pensava no taberneiro.

-- Tu és testemunha...

-- Sou.

-- Tens visto...

-- Se ainda hontem...

-- Como denodado me atirei...

-- Como cobarde fugistes...

-- Simão! disse Conti vermelho de colera.

-- ...da mulher que vos ama.

Antonio Conti arregalou os olhos.

-- Fallou-te em mim?

-- Pois em que havia de falar-me? E se me havieis d'ella fallado? E eu, que sim. E porque vos demoraveis tanto? E eu, que não sabia. E que El-rei não era homem para ella. E eu, que não. E quereis o cavalleiro mais perfeito de Portugal. E eu, que sim. E assim estivemos, até que vossos gritos de soccorro nos puzeram ponto na palestra.

-- Vê que vida a minha, tão cheia de trabalhos e cuidados, que até da Falcôa me esquecia!

-- Quereis que de vossa parte lhe entregue algum recado?

-- Para quê?

-- Para aguentar o fogo.

-- Que lhe dirás?

-- Levo-lhe novas de El-rei e de caminho... Occorreu-lhe de subito uma idéa.

-- Porque nao lhe escreveis?

-- Não sei fazer versos, respondeu a rir,

-- Tentai sempre.

-- Tenho poucas letras.

E continuava a rir.

-- Escrevei tão sómente: «Falcôa, mando-te um beijo pelo Simão Peres.» Pondo-lhe o vosso nome por baixo e tereis dádo á desgraçada a melhor hora de sua vida.

Em meio das complicadas atribulações d'aquella manhã, Antonio Conti, experimentou novamente a tentação, que na vespera tanto lhe aformoscára os dotes da Falcôa. Reviu na phantasia a amante d'El-rei e pareceram-lhe irresistiveis seus olhos negros, as ondas de seus cabellos, as modulações de sua voz cantante.

-- Vai buscar o teu chapéu e a espada, disse, approximando-se da secretária. Volta d'aqui a um quarto d'hora; entrego-te a carta.

Simão Peres ainda o viu, quando se voltou para fechar a porta, sentado em frente da folha de papel branco, meditando, d'olhos no tecto, sorriso nos labios, afagando suavemente a cabello nas fontes.

-- Subiu ao quarto. Fr. Bernardo ressonava.

-- Eh! homem! Eh! gritou-lhe. Com mil diabos, és mouco ou morto?

O frade abriu um olho, depois o outro, depois a bocca; estirou os braços.

-- Desperta, bruto!

O outro sentou-se na cama e, por costume antigo, benzeu-se.

-- Sabes da tragedia?... El-rei está a expirar, já recebeu os sacramentos.

-- An? disse o frade.

-- Manda chamar-te; quer dizer-te o ultimo adeus. Anda corre; talvez apanhes duas missas em testamento.

E, pegando no chapéu e na espada, emquanto Fr. Bernardo, desatinado, deitava para fóra da roupa as canellas muito magras, enfiou, outra vez correndo, pela escada.

Conti, com ar satisfeito, lacrava o sobrescripto. Poz-lhe o sinete das armas reaes.

-- Escrevi duas linhas apenas, disse em tom indifferente. O mais tu lh'o dirás e muito melhor.

Simão Peres desabotoou o gibão.

-- Olhai, disse, do bolso interior tirando outra carta. Era d'El-rei para a Calcanhares, quando ha oito dias a viu na freguezia de Santa Engracia. Depressa lhe passou, n'uma hora em que esteve junto da Falcôa. Logo me deu contra-ordem. Não ha ninguem mais cata vento! Por fóra são iguaes: o mesmo lacre, o mesmo sinete. Usais os sinetes de El-rei em vossas cartas... Breve será em tudo mais.

Antonio Conti esboçou um gesto de agradecimento.

Simão Peres voou até casa da Falcôa.

-- Seja Deus Cupido comvosco! disse penetrando n'uma sala ricamente mobilada, para onde a tia velha o conduziu.

Estacou dando um grito, maravilhado.

A Falcôa scintillava como um astro na plena luz das duas janellas rasgadas, de que haviam corrido as tapeçarias. O vestido de seda branca, bordado a oiro, deixava-lhe nús os hombros, os braços e parte do seio. Os cabellos, negros como a aza d'um corvo, compunham-lhe na cabeça um diadema precioso e caíam-lhe depois em ondas revoltas pelos lados das faces, pelos hombros, pelas costas.

Ao ver o espanto do Simão Peres, soltou uma gargalhada tão argentina, que, por contagio, uns passaritos de Africa em gaiolas doiradas, suspensas das janellas, replicaram logo com trinados doidos. Um papagaio, de voz estridente, poz-se a recitar: Papagaio real, para Portugal...

-- Eh ! passarada!... disse a Falcôa batendo as palmas, rindo cada vez com maior gosto.

Mas ainda foi peor. Saltou-lhe do cólo um gato e uma galguinha pequena começou correndo atraz d'elle aos pulos pela sala.

-- Aqui, Marota, aqui! berrava a Falcôa á cadellita, que lhe atirára ao chão uma jarra da India.

Pegou n'um lequesinho de marfim, bateu-lhe com elle tres pancadas no lombo, partiu o leque.

-- Ai, ai, ai! dizia.

Depois fez beicinho.

-- O ultimo presente de El-rei!

E, com indifferença, atirou para cima da meza os pedaços de marfim.

-- Que inferno todas as manhãs faz esta bicharia!

Tornou a sentar-se.

-- Que novas trazes, Simão? Parece-me que ainda estou assim alegre do muito que hontem ri ao saber... Mas os mulatos pouco me explicaram... Dize tu... Meu real, desacreditado amante como passou a noite? E' elle quem te envia para socegar meu cuidado?

De traz d'um biombo saíu uma voz mansinha, unctuosa, aflautada.

-- Dais hoje o nosso trabalho por terminado?

-- Mestre Pantaleão Gonçalves, saude! disse Simão Peres.

Era effectivamente o pintor de El-rei, que ali se abrigara contra a muita luz. De grossas lentes na ponta do nariz, terminava o retrato da dona da casa, ora por cima dos vidros olhando para o môdelo, ora com a tinta escolhida pontuando delicadamente a placasinha de marfim.

Simão Peres, de pernas largas, sobr'olho franzido, puxando o bigode, applaudia protectoramente o trabalho do pintor, com gestos pausados de cabeça e modos entendidos.

-- Falta apenas um ultimo toque nos labios, o franzido gracioso dos cantos. Mas sempre a rir, sempre a rir...

E tambem Pantaleão Gonçalves ria muito, piscando muito os olhos, sacudindo nervosamente os hombros. Calava a gargalhada de repente, fincava bem a luneta no nariz, molhava o pincel, experimentava a tinta, olhava por cima das lentes.

-- Se estais cançada...

-- De aturar-vos!

E a Falcôa sentou-se, procurou outra vez a posição.

-- Vamos, Simão, conta-me o que houve. Quantos eram elles?

-- Quando cheguei, eram muitos; mas tão rapido lhes caí em cima, que só ficaram uns tres ou quatro feridos a pedir misericordia, afóra os mortos que não contei.

Pantaleão Gonçalves deu um pulo na cadeira; a Falcôa desatou a rir.

O pintor pôz-se pacientemente á espera.

-- Não terminaremos hoje!

Mas a Falcôa não lhe dava attenção.

-- E D. Affonso como vai?

-- Elle e a brecha devem de ter passado mal a noite. O physico foi chamado logo de madrugada. Vi-o saír do quarto com o Conde de Odemira. Ambos levavam cara de caso.

-- Um por motivo da brecha, outro por motivo do amo.

Pantaleão desatou a rir. Era uma paixão o que a Falcôa lhe inspirava. Revelava-se no encanto de seus olhos pequeninos admirando-lhe as perfeições, no enlevo com que a escutava, na ancia que mostrava de applaudir o menor dito alegre de seus labios. Desde que lhe fora encommendado o retrato, parecia-lhe que passava suas horas n'um paraizo de existencia impossivel na terra. Vivia em admiração perenne ante um ser superior que o deslumbrava, o entontecia, o atirava com uma simples palavra, um olhar distraído, um sorriso de mofa, para regiões inaccessiveis á phantasia humana. A amante d'El-rei nem o imperador do mundo lhe parecia digno de possuil-a. Mulher intangivel, tão pequenino se via junto d'ella, mas tão cheio de luz, tão mergulhado em doce calor, que, ás vezes, pensava se, acabado aquelle retrato, fechada aquella porta, não morreria de saudades. Moribundo, ancioso de mais um bocadinho de vida, viria ali bater uma argolada, gemer uma cantilena do mendigo, com fome d'um olhar ainda que fôsse impaciente, d'uma palavra ainda que fôsse de repulsa.

Mas a Falcôa ouvira falar no desconhecido que tão milagrosamente surgira em bêcos de Alfama, como heroe dos velhos romances de cavallaria entre luctas de gigantes. Podiam outros contar-lhe a historia, e Simão Peres, contrariado, vendo embora em mau caminho seus projectos, não se atrevia a mentir muito.

-- Quem seria?

-- Vão Ião lá saber! Homens quasi da nossa tempera ha muitos agora.

-- Mas nem um indicio...

-- A noite era escura como breu, elle embuçado...

-- Revelou muito orgulho na resposta a El-rei.

-- Mas acceitou-lhe os copos da espada de muito boa prata e algum oiro. Assim como uma noite appareceu, ha de apparecer um dia.

-- Queria conhecel-o.

-- Deve de ser algum official. Temos mandado muita boa gente para o exercito e alguma já tomei sob a minha protecção. Nas linhas d'Elvas...

O apaixonado pintor, de pincel no ar, esperava o momento propicio em que havia de dar o ultimo toque no retrato. Quasi nada faltava, um só traço artistico, para pôr a bôcca de accordo com a alegria do olhar.

E com vaidade revia-se na sua obra, procurando esquecer, com a ambição da gloria, a tristeza dos dias que havia de arrastar, longe d'aquella casa.

Aquella casa! Pobre sinlia e decrepita por fóra, quem podia sonhar, ao vêl-a entre as visinhas, as maravilhas que encerrava? O contraste, logo da primeira vez que Pantaleão Gonçalves ali entrára, o ajudára a endoidecer. Muito lido em romances, julgára-se transportado por alguma sabia poderosa á mansão d'uma imperatriz do Oriente. A gallinha córada, que lhe davam de almoçar, era um manjar de deuses. Adeus, gallinha, para sempre ! O conchego do lume, que ardia na lareira, em mais frio e ventoso lhe transformaria o sotão, em que, d'aquella hora ávante, viveria na soledade.

Rolou-lhe uma lagrima pelas faces, caíu-lhe na mão; elle limpou o pincel, molhou-o na lagrima e poz-se á espera.

Simão Peres continuava descrevendo as acções maravilhosas dos portuguezes em Elvas. Com gestos precipitados e voz de trovão, dizia os assaltos da cavallaria e o troar dos canhões.

-- O Conde de Cantanhade seguiu o meu parecer. Os campos de batalha são grande escola para valentes. El-rei protege-os e concedo-lhe por isso meu voto de louvor.

-- E tu, porque não vais ao Alemtejo? perguntou a Falcôa.

O pintor continuava esperando, de cabeça baixa, olho em alvo.

-- Porque m'o não deixam os negocios politicos, respondeu Simão Peres.

Sentara-se n'uma ampla poltrona, traçára a perna, fallava de papo.

-- Cuidais talvez que é pequeno o meu trabalho de fiel de balança entre os partidos oppostos? Antonio Conti... Sabeis o alto valor d'este mancebo... Coitado, só comigo é que desabafa e os segredos de Estado todos me conta!

A Falcôa fez uma caretinha de enjoo.

-- Não gosto do olhar d'esse homem. E' sombrio, incerto, esconde-o, como se temesse...

-- Que lesseis n'elle...

-- Sim.

Simão Peres approximou a cadeira; ia já encetar o discurso preparado, mas a Falcôa desviou a conversação.

O pintor continuava esperando.

-- Dizes tu que o desconhecido deve ser algum official do exercito. Já muitos chegaram d'Elvas?

-- Poucos por emquanto, além do valente que veio com a nova da victoria e juntamente a da morte de André de Albuquerque.

-- Aguada assim trouxe sua alegria.

-- Um rapaz muito novo, que por lá obrou maravilhas. Já o recommendei a El-rei. Um tal Manuel Furtado.

-- Manuel Furtado! exclamou ella.

-- Agora! gritou Pantaleão Gonçalves.

E' que era tão linda a expressão da Falcôa, que a ultima pincelada fez do retrato uma maravilha.

Que extasis respirava aquella bocca! Não, não havia accôrdo entre a expressão dos labios e a viveza dos olhos. Diziam estes uma alegria maliciosa, aquelles uma alma enlevada. Mas deixal-o, melhor ficara, melhor dizia o retrato quem era a mulher toda contrastes, um diabo no mundo e para o pintor um anjo que endoidecia o desgraçado.

-- Conheceis o alferes? perguntou Simão.

-- Era visinho meu... Conheci-o de vista, respondeu a Falcôa.

E poz-se em pé.

-- Acabastes? perguntou a Pantaleão Gonçalves.

Acabára.

-- Dai-me, senhora, a moldura, disse. E' presente digno de ser offerecido a um rei.

Tremia-lhe a voz, tinha os olhos cheios de lagrimas.

Não deu por isso a Falcôa, nervosa, passeando pelo quarto.

Acabára! Agora a solidão, o frio do sótão, ás vezes a fome!

Simão Peres ergueu-se tambem.

-- Que dizieis, ha pouco, de Antonio Conti e do seu olhar? Não são apenas segredos de Estado que me elle confia.

-- E que me importa? respondeu ella, impaciente.

-- Diz-me tambem os de seu coração. O olhar medroso, que lhe haveis notado...

Mas reparou que a mulher estava distraída, não o ouvia e passeava inquieta. A expressão de contentamento que lhe via no rosto tinha o que quer que fosse de muito intimo, fóra da alegria bulhenta, para todos contagiosa, de quando pegava na viola e cantava a El-rei. Enganou-se Simão Peres em sua sciencia de lêr nos rostos.

Tinha que levar uma resposta a Antonio Conti. Seguiu-a até o vão d'uma janella, não desistindo de seu empenho de prestar serviço ao valído.

Ella encostára a cabeça aos vidros e, sorrindo, movia os labios fallando comsigo.

Ali a atacou.

-- Sabeis o que hoje, tão cedo, me trouxe a vossa casa?

A Falcôa olhou para elle de sobr'olho franzido. Mas Simão Peres já tinha visto egual expressão de rosto em muitas outras.

-- Assim principiam, pensou.

Quiz leval-a pela ambição.

-- Sois a amante d'El-rei. E' uma posição real. Mas outra melhor, de muito melhores vantagens, se vos offerece agora.

O olhar d'ella tomou um aspecto sobranceiro.

-- Conforme o costume, continuou elle comsigo.

E alto :

-- Cuidaveis que vinha dizer-vos do meu amor, que me deitarei de cabeça ao Tejo, se não me ouvirdes? A paixão de que venho fallar-vos é de quem muito mais vale que este vosso creado, de quem mais pode que vosso real amo.

A expressão da Falcôa transformára-se; todo o orgulho se desvanecera e havia quasi dôr em seu olhar. Decerto mal attendia ao que Simão Peres lhe sussurrava baixinho, tentadoramente.

O homem teve uma duvida sobro o caminho em que se mettêra; julgou dever consolal-a. Murmurou-lhe ao ouvido, cheio de compaixão:

-- El-rei não é homem para vós.

A Falcôa, calada, continuava olhando para a rua distraidamente. Corriam-lhe o corpo estremecimentos nervosos.

Simão continuou, muito chegado a ella. Seu bafo, quando fallava, fazia-lhe esvoaçar os cabellos do pescoço.

-- Se o visseis, terieis dó. Está como doido. Hontem foi elle quem para vossa casa encaminhou El-rei. Queria vêr-vos. E se duvidais do que vos digo...

Tirou do seio uma carta.

-- Mas quem? perguntou ella finalmente, já da teima de Simão Peres aborrecida.

-- O que hoje é no paço mais que todos e ámanhã ha-de ser ministro todo poderoso. Lêde, se quizerdes ou se de mim duvidais. E' de Antonio Conti de Vintimiglia.

-- Ah! não! não! disse ella com ar muito indifferente.

E offegante, impaciente, deixou a janella, voltou para a sala.

-- Se vos eu juro... dizia Simão Peres algum tanto corrido, mas ainda aferrado á mesma idéa.

-- Nunca! Seria uma traição.

Mas dava suas razões sem convicção alguma, nada abalada pela novidade da paixão que inspirara.

Simão Peres scismava:

-- Que terá ella? Anda-me fóra dos eixos!

A Falcôa, a passear pela sala, deu com os olhos no pintor.

-- Prompto? Acabastes?

Pantaleão Gonçalves encaixilhava o pequenino retrato n'uma moldura d'oiro, cravejada de brilhantes.

-- Olhai como fica!

E, todo, outra vez, se desvanecia na propria obra.

Ah! se pudesse ser escravo d'aquella mulher, prestar-lhe um tal serviço que ella o deixasse ali viver, a beijar o chão onde houvesse posto os lindos pés! Que mais queria?

Simão Peres, outra vez com ares de entendido, contemplava a miniatura e manifestava sua admiração com pequeninas phrases.

-- Preciosa joia!... O vestido está tal qual!... E aquelle pontinho branco na ponta do nariz?... Bravo, snr. Pantaleão!... E' um mestre!

Mas reparou que a Falcôa estremecia de impaciencia.

-- Andei mal, disse de orelha murcha.

Estremecia de impaciencia, era verdade, mas sorria como a uma ídéa tentadora.

-- Lêde, ao menos, esta carta, disse elle, tentando um ultimo esforço. Que lhe hei de responder?

Mas a mulher voltou-se raivosa.

-- Dize-lhe que a deitei no lume. Olha, vai tu mesmo deital-a.

Simão Peres encolheu os hombros, vencido. Encaminhou-se para a lareira. Mas veio-lhe, subito, uma idéa: aquella carta poderia servir-lhe um dia! Como ia de costas voltadas, trocou-a pela de El-rei á Calcanhares.

-- Obedeço, disse.

Mas, como arrependido, voltou com ar muito humilde para junto da Falcôa.

-- Não posso; eu vi-o chorando!... Desgraçado mancebo, que desgosto!

-- Dá-m'a pois. Serei eu que... Pegou na carta, deitou-a no lume.

Simão Peres, com ar lastimoso, sorria para dentro. Não perdêra tudo.

-- E agora vai-te, vai-te! disse furiosa. Estragaste o meu bom humor!

O rufião mettia dó, de beiços muito estendidos, de olhinho choroso.

-- Não me perdoareis nunca! Nunca mais me recebereis?

-- Sim, sim, que remedio tenho eu! Estavas no teu officio! Mas vai-te, vai-te!

Empurrou-o.

Simão Peres saiu. A' porta encontrou a tia.

-- Estupido! O caminho era este! pensou.

E muito baixinho:

-- Sabeis a novidade? Antonio Conti adora a Falcôa. Temos de conversar.

Os olhos da velha scintillaram. Simão Peres poz o dedo nos labios. Saiu.

A Falcôa, á porta, apurava o ouvido; sentiu-o descer a escada, fechar a porta da rua. Então, em bicos de pés, sorrindo, com ar de muito mysterio e uma maliciasinha encantadora nos olhos, correndo, veio ter com Pantaleão Gonçalves.

-- Ouve. E's meu amigo? Disseram-me teus olhos muita vez que sim.

O pintor sentiu vergarem-se-lhe as pernas. Era a primeira vez que ella o tratava por tu.

-- Quero que me faças um favor e nunca mais me esquecerei de ti. Sabes onde eu morava no Salvador. Vais á casa que lhe fica fronteira, perguntas por Manoel Furtado. Esperas por elle se houver saído. Leva este retrato e entrega-lh'o.

Fechava n'uma caixa a miniatura, atava-a com uma fita de seda.

Pantaleão Gonçalves ria, chorava, queria agradecer, não sabia como.

-- Voltarás, dar-me-has conta do recado, principiarás outro retrato.

-- Melhor... com mais tempo... balbuciou elle.

-- Vai... vai...

-- Sim... sim...

Procurava o chapéu, a capa; não atinava com o direito d'ella; tremia todo.

Outro retrato! Mais duas semanas pelo menos!...

-- Sim... sim... repetia.

A Falcôa acompanhou-o até á porta. Ahi pegou-lhe nas mãos com meiguice e approximando seus cabellos negros, perfumados, dos bigodes grisalhos do pintor apatetado, que mal se atrevia a respirar, disse-lhe:

-- Com mil diabos, dá-me um beijo!

E soltou tão contente uma gargalhada, que outra vez os passaros se puzeram cantando e o papagaio em sua lenga-lenga: «Papagaio real, para Portugal»... Um inferno!

Elle beijou-lhe os cabellos e desceu a escada como doido.

A Falcôa apanhou os bocados do leque e sentou-se á janella, scismando.

A tia entrou, pôz-se a passear, examinando-a, cantarolando, de cá para lá,

E ella, sorrindo, enlevada em seu pensamento, quasi sem dar por isso, maquinalmente, ia partindo o marfim rendilhado das varetas em boccadinhos, em boccadinhos...

CAPÍTULO IX

A defeza de Monção

-- Triste coisa a guerra! disse D. Pedro de Almeida, como querendo resumir n'uma só phrase as conclusões do que lhe dissera o Conde de Castel-Melhor. Quem não veste de luto em Lisboa? Quem não traz de luto o coração?

Calára-se o Conde. No vão da janella, sentado, de perna traçada, sobrolho franzido, já com linhas visiveis ameaçando rugas em seu rosto de vinte e quatro annos, demais desabafára em frente do amigo que viera visital-o.

Quando El-rei D. João IV estava expirando, chamára para junto de seu leito os Condes de Castel-Melhor, de Vimioso, de S. João, de S. Lourenço e Ruy Fernandes de Almada, que haviam sido presos por motivo da pendencia no jogo da péla em que fôra morto o Conde de Vimioso, D. Luiz de Portugal. Então lhes rogou que perdoassem uns a outros aggravos que tivessem, que assim era preciso para que, unidos todos seus vassallos, lhe defendessem os filhos e lhes conservassem a corôa. Primeiro exprimiu o Conde de Vimioso seu perdão aos que o irmão lhe haviam morto, e então juraram todos, perante El-rei, que lhes segurou nas mãos, e perante a Rainha, que não mais haviam de lembrar suas paixões passadas. -- «Pacem relinquo vobis, pacem meam do vobis» disse o Duque de Bragança. E horas depois expirava.

Novos pretextos, mais tarde, vieram outra vez, recordar paixões, que um juramento não conseguira abafar. Outra vez surgiram rivalidades, outra vez a côrte se dividiu em partidos.

Mas era D. Pedro d'Almeida muito novo ainda, para que o roesse a ambição. Nem o rouxinol, que na alma lhe cantava, deixaria alguma vez ouvir-se, que não fosse com elle em delicioso unisono. Cerimonioso, escutara o Conde de Castel-Melhor, annotando as considerações do amigo com alguma phrase vulgar e polida.

Mais velho que Luiz de Vasconcellos uns quatro ou cinco annos, apesar das dissidencias de familia, desde muito novo se lhe afeiçoara e, logo depois da morte de D. João IV, fizera tenção de procurar sua convivencia. Seduzira-o o espirito do Conde amadurecido em muitas amarguras. Agora mesmo observára como soubera suster qualquer demasia de lingua que podesse offender o amigo ou algum dos seus. Calára-se por fim e fitara, pensativo, os olhos na encosta fronteira, cujos altos o sol a despedir-se doirava com luz intensa. Com o ultimo adeus do dia scintillavam os vidros das egrejas. Um por um, se foram apagando; um só ainda reluzia.

D. Pedro, outra vez, interrompeu o silencio.

-- Homens temos capazes de pegar em armas, muitos. Falta quem na côrte saiba dirigir...

Calou-se, como receando formular uma accusação.

Os olhos do Conde não se desfitavam do ponto incandescente a esmorecer. Deixou-o de todo apagar-se e disse pausadamente para D. Pedro:

-- Termina teu pensamento, tu que és novo, que deves por vezes ter sentido o sangue nas veias a referver-te. A culpa é do paço, é dos ambiciosos esquecidos da gloria do reino pela vangloria de uns cargos com que não podem.

O Conde tinha os olhos humidos de lagrimas. Seria de tanto haver olhado para a luz ou porque a luz ao morrer lhe trouxesse algum pensamento mais triste?

-- Se viras meu pae expirando! Que funda melancolia o matou! Com que palavras amargas, que para sempre guardarei no coração que dilaceraram, se despediu de nós! E ainda lhe fez Deus mercê em o levar tão cedo, que o deixou ir com uma esperança. Deixaria!... Ah! Pedro, quando recebi a nova -- ainda que a esperava -- de se haver rendido Salvaterra, foi como se outra vez estivesse assistindo á cruciante agonia de meu pae e lhe ouvisse os lamentos. Elle a conquistáa em terras de Galliza, dezeseis annos fôa em nossas mãos, por Salvaterra ainda pôde meu pae metter em Monção um ultimo reforço. Tudo se perdeu!

-- Nem tudo, observou D. Pedro. Como Francisco I, rei de França, podemos dizer..

-- Salvou-se a honra. E' certo. Mas não abusemos da palavra para desculpar..

Não soube D. Pedro que phrase o Conde sustivera, comprimindo os labios.

-- Loucuras! disse. Salvou-se a honra militar do tenente mestre de campo general Lourenço de Amorim, um portuguez ás direitas. Mas a do reino, aquella que deveria ser nosso maior cuidado... Olha, Pedro, que não sei se ainda ha na côrte quoiri de tal cuide. Perdemos Salvaterra em Galliza, porque deixámos perder Monção em Portugal. Occupam os licspanlioes as nossas praças do Minho e um soldado não temos glorioso em terras de Castella. Pois que mais era preciso para todos, homens, mulheres, crianças, acudirem á defensão do reino, que tantos gritos, só de moucos não ouvidos, e que andam pelo reino inteiro soltando os mortos de Monção a pedir justiça, a exigir vingança!

Erguêra o tom da voz, que vibrava indignada.

-- As tropas, que não puderam enviar a meu pae, porque faltaram ao novo governador, Visconde de Villa Nova da Cerveira? Morreu o meu santo velho, ferido no mais santo de seu coração, porque viu baldados seus esforços, porque não pôde, só com seu denodo e amor á causa que defendia, acudir a tanta desgraça, na lucta que aos proprios inimigos poz assombro. Sonhou Joanne Mendes conquistar Badajoz e intrigou no paço para que lhe fossem enviados os reforços que eram pedidos para a campanha do Minho; entraram na provincia as tropas castelhanas e a praça d'Elvas cercada exigiu um exercito que lhe fosse em soccorro. Mas, desbaratado

D. Luiz Mendes de Haro, porque licenciaram as tropas do Alemtejo?

Os olhos inflammaram-se-lhe. De pé, junto da janella, de costas viradas para a luz, fallava, parecia, mais comsigo mesmo que a D. Pedro d'Almelda, que no rosto todo na sombra lhe via os olhos brilhando.

-- O cerco de Monção!... Não se calavam as cinco baterias inimigas, a cada hora reduzindo a guarnição, dizimando os habitantes. Ah! gente ousada! Lactavam as mulheres vencendo em valor os melhores soldados! Quando foi do assalto de um de fevereiro, dos mais terriveis que contra a nobre villa commandou o Marquez de Vianna, as mulheres, que um anjo de Deus enfurecia -- Deus me perdoe -- arrojavam sobre os gallegos as pedras das muralhas, azeite a ferver, barrotes em chammas. Foi doido o terror dos inimigos, e ainda não foi d'essa vez que puderam entrar na villa de muros aluidos, sem munições, sem mantimentos. Do hospital saíram os moribundos e vieram dar seu peito ás balas. A fome ainda mais gente matava que as baterias castelhanas... E sós, sós sem um soccorro! Não foram homens os que da praça saíram com todas as honras militares, foram espectros!

Calou-se um instante. Passou-lhe pelo corpo um estremecimento. Cerrou os punhos.

-- E aqui tens em que deram as duvidas dos conselheiros da Rainha, depois que se deixaram levar por Joanne Mendes com sua louca empreza da conquista de Badajoz. A feliz victoria das linhas d'Elvas é uma esperança. Temos soldados, não ha duvida; mas falta em Portugal... um homem!

Vinha escurecendo. Já D. Pedro pegára no chapéu para despedir-se. Promettêra á noiva não faltar essa noite em sua casa e já por vezes, emquanto o Conde de Castel Melhor fallava, elle se distraíra, pensando em D. Margarida de Noronha, que não lhe fallaria de guerra nem de politica. Procurava pretexto para despedir-se, mas não o achava.

O Conde continuou:

-- Creio que não são boas as novas que de França tem enviado o nosso embaixador. Conde de Soure. Estará para breve a assignatura do tratado de paz entre aquelle reino e Castella. Diz-se até que El-rei Luiz XIV desposará a filha de El-rei Catholico. Então todas as forças, disseminadas agora por toda a Hespanha, hão de marchar sobre a fronteira portugueza.

-- Confiemos em Deus! disse D. Pedro, não achando melhor remate e estendendo a mão ao amigo.

Mas o Conde continuou:

-- Um tratado... honroso talvez -- Deus o sabe! -- eis o que obteremos em vez da paz gloriosa, que devia de ser o sonho de nós todos.

Reparou então no gesto de D. Pedro.

-- Perdôa, disse-lhe. Puz-me a fallar, deixei-me ir atraz de meus pensamentos, talvez com elles te aborreci. E' séstro meu assim conversar comigo; fallei alto na tua presença, porque és dos bons. Perdôa. Perdeste comigo mais de uma hora, que melhor haverias passado á ilharga de tua noiva.

D. Pedro sorriu-se; principiou um gesto que deixou duvidoso: fôra uma hora muito agradavel, ainda que melhor fôra talvez...

-- E's feliz, não és? perguntou Luiz de Vasconcellos.

Era outra agora a modulação de sua voz.

-- Sou, respondeu D. Pedro.

-- Virias para fallar-me d'ella, dizer todos seus encantos, toda tua alegria, que tambem esta, dizem, precisa ser desabafada. E afinal tão cruel fui comtigo, tanto em mim só pensei, meu querido Pedro!

Pegou-lhe nas mãos, fitou seus olhos carinhosamente nos olhos d'elle.

-- Quem te ouvisse fallar ha pouco, disse-lhe D. Pedro, quem escutasse tuas queixas, quem te não visse mais moço, muito mais moço do que eu, julgar-te-hia um velho, que já perdeu na vida toda a esperança d'um novo astro a surgir.

Sentiu em suas mãos estremecerem as mãos do Conde.

-- Algum verias tu no céo que ainda não confessaste?

-- Se vi!...

Mas sacudiu a cabeça, deu uns passos pelo vasto salão já tudo cheio de trevas.

Os retratos de familia, por todos os lados, entre as portas e janellas, suspensos nas altas paredes, já mal, indistinctamente, surgiam do fundo escuro dos quadros; apenas n'um ou n'outro, os reflexos no aço d'uma couraça, as barbas muito brancas d'um frade, a calva lustrosa d'um guerreiro, umas perolas n'um diadema de senhora.

Mas logo o Conde, depois de sua exclamação instirictiva, voltára ao primeiro tom soturno em que estivera fallando.

-- Um alto dever tenho a cumprir. Elle absorve toda preoccupaçao de meu espirito, elle ordena que socegue todos os impulsos de meu coração.

-- Todos nós temos na vida algum dever a cumprir.

E, outra vez, D. Pedro d'Almeida estendeu a a mão para despedir-se.

-- Fiz a mim mesmo um juramento, disse o Conde com solemnidade. Deus me ouviu e só Elle! Minha mãe era n'esse momento enlouquecida pela dôr, que tambem prostra gigantes; os ouvidos de meu pae a morte lh'os cerrára para sempre. Só Deus me ouviu o que jurei e me dará forças para cumpril-o. Elle guiará meus passos.

Era tão solemne o tom em que fallava, que D. Pedro commoveu-se. Poz-lhe a mão direita sobre o hombro. Aquelle rapaz tanto mais novo do que elle infundia-lhe respeito. Pareceu-lhe, n'aquelle momento, que o inspirava qualquer espirito que de espheras superiores houvesse sobre elle baixado, silenciosamente, pela treva.

-- Se me quizeres, Luiz, estarei á tua ilharga. O Conde olhou para elle a sorrir-se; trouxe-o para o vão da janella, onde ainda havia um boccadinho de claridade.

-- Nada jures. Só Deus sabe o que tem de ser, o que eu teria de exigir da tua fidelidade, se houvesses jurado estar comigo. Se me Deus fizer o que lhe peço, has de vêr muitos contra mim, que me hão de arrastar pelo lôdo; amigos d'hoje e meus parentes verás com os meus inimigos conspirando. Que importa? Não é para um boccadinho de gloria entre os homens que olvidarei tudo a que mais se quer no mundo. Tudo sacrificarei, até a mesma honra de que fallavas ha pouco, nome vão que os homens a tanto obriga.

D. Pedro estremeceu. Não era uma creança que lhe fallava?

-- Sabes o que soffreu meu pae por amor á sua terra, seu romance de Carthagena, como com Pedro Jacques de Magalhães planeou apoderar-se dos galeões carregados de prata e trazel-os ao sr. D. João IV para as despezas da guerra, como foi traído por Antonio de Azevedo, posto a tormentos, condemnado á morte e como conseguiu fugir. Quanto padeceu então não pôde abater-lhe o animo. Sabes como, sem descanço, continuou servindo a patria, ora governando o Brazil, ora na fronteira expondo a cada hora o peito ás balas do inimigo. Bem Ih'o pagaram!

Sentara-se outra vez na grande poltrona junto á janella. D. Pedro d'Almeida não se atrevia a interrompel-o.

-- Quando estava no quartel da Silva, em opposição ao novo forte de S. Luiz Gonzaga, fabricado pelos castelhanos, ainda uma esperança o animava: a conquista de Tuy, que nos franquearia a entrada de tantos logares abertos. Assim o escreveu á Rainha; oppoz-se a seu intento a ambição de Joanne Mendes. Quiz, ao menos, ganhar com alguns fortes, sitios mais arriscados, mas até para tão pouco lhe faltaram com gente e dinheiro. Em agosto o Marquez de Vianna com seu formidavel exercito atravessou o rio Minho. Eram continues os rebates, constantes as escaramuças. Fui ferido por uma bala. Mas que importava? Quinze dias depois, horas antes de lançarmos fogo ao quartel, ajudei outra vez a provar ao Marquez de Vianna e a D. Balthazar Pantoja que ainda póde ás vezes o valor de poucos supprir a falta de numero. A traiçoeira fuga do ajudante de cavallaria André Arenas obrigo u-nos, alta noite, a mais precipitada retirada. Não se atreveram os gallegos a perseguir-nos, embora só cinzas encontrassem no quartel que deixámos. Na serra de Coura se nos juntou Fernão de Sousa Coutinho com seiscentos infantes, terço que no Porto levantára para o Alemtejo, e que, a rogos de meu pae, contra as ordens da Rainha, que depois approvou o proceder do mestre de campo, nos veio em soccorro nosso. Mas eram nada para o muito de que a provincia carecia. Rendeu-se Lapella, onde o governador, pouco sabedor de guerras e por demais misericordioso, recolhêra todas as mulheres e creanças fugidas ás tropas inimigas. Mandara minha mãe entrar no Valle do Rosal cento e cincoenta homens do terço de Rodrigo Pereira; atravessaram o Minho; mas foram sentidos e desbaratados. Os gallegos puzeram finalmente cêrco a Monção. Deus não era comnosco, mas ainda nos quiz dar uma esperança com a chegada ao quartel de Coura de oitocentos homens commandados pelo Conde de Miranda, governador do Porto. Acompanhamos eu e meu irmão a Fernão de Sousa Coutinho a examinar o sitio por onde o soccorro havia de introduzir-se na praça, alentando -- fraco alento! -- os sitiados. Foi ainda para meu pae como um debil raio de luz... Pobre velho! Como o viamos caído, macilento, de olhar tão desconsolado!... E sempre a cuidar da lucta, mas como se um remorso soffresse por cada soldado que via caír! O soccorro introduziu-se por Salvaterra... e ainda foi uma victoria... Continuou o cêrco, que devia durar tantos mezes, e ninguem mais na côrte parece ter cuidado de tantos valentes que não tinham defeza contra as balas do inimigo, de tanto bom portuguez que morria de fome. Só meu pae chorava, porque não podia soccorrel-os. Ah! não ter havido um soldado castelhano que lhe apontasse ao peito seu mosquete! Não o teria eu visto expirar de funda melancolia, na mais horrivel das dôres e ainda com o perdão nos labios!

Calou-se um instante. Um soluço sacudiu-lhe o corpo. Mas logo se dominou.

-- Já vês; tenho de vingar a morte de meu pae!

N'esse instante, correu-se o reposteiro e no limiar da porta appareceram dois criados com seus tocheiros nas mãos.

Entrou a Condessa, que ouviu as ultimas palavras de Luiz de Vasconcellos.

-- E' tua missão na vida, meu filho.

Reparou na presença de D. Pedro de Almeida, que se curvára silenciosamente. Estendeu-lhe a mão, que lhe elle beijou, e dirigiu-lhe urnas perguntas cerimoniosas a que respondeu agradecendo.

E entretanto, pensando no que lhe disséra o Conde, ia fallando comsigo:

-- Se quizeres, Luiz, vencer teus inimigos, se de teu pae herdaste o valor, com elle te contenta e mais de teu pae não queiras, que com ser tão brando em castigar, a si mesmo se perdeu.

Olhou para a filha de Ruy Gonçalves da Camara e continuou seu pensamento.

-- Procura exemplo em tua mãe, cria, se puderes, cabellos no coração, ou põem-te um pé no pescoço os inimigos.

O Conde de Castel Melhor beijára a mão de sua mãe a quem dizia:

-- O Pedro teve que me aturar. Tinha pressa de ir apresentar seus respeitos a sua noiva e demorei-o. E' um bom amigo, minha mãe, que nem se queixou. Mas fui mau. Porque havia eu de contar minhas tristezas a quem chegou a nossa casa com o coração a estoirar de alegria?

Estendeu-lhe a mão.

-- Apresenta os meus respeitos a tua noiva, minha senhora, e perdôa ao teu amigo.

D. Pedro curvou-se e saíu.

O Conde ficára pensativo.

-- Como invejo a ventura d'este homem! Tudo na vida lhe corre illuminado pelo sol da primavera!... E eu tenho vinte e quatro annos, devia tambem a luz da manhã alvorocer-me no coração... e um só pensamento me absorve!... Alcançar o que meu pae não soube, vingar sua memoria, erguer o reino da miseria, custe-me o que haja de custar-me, a vida, se tanto fôr preciso, e mais que a vida!

A Condessa escutava-o. Em seu rosto severo e frio passou, rapida como um relampago, uma tenue expressão de alegria.

-- Tens vinte e quatro annos, disseste. Pois se és na primavera da vida, respira, filho, em toda a luz que te vem cercar. Deixa teu coração á vontade alargar-se em teu peito.

-- Bate só na anciedade unica...

-- Filho, não dizes a verdade a tua mãe, disse a Condessa meio queixosa, meio reprehensiva.

O tom da voz era severo, mas não condizia com elle a meiguice do olhar, rara expressão nos olhos da Condessa.

-- Ainda não ha muito, n'esta mesma sala, eu vi teu rosto animar-se, offuscar-se o teu olhar, tremer-te a voz na garganta.

O Conde olhou pasmado para a mãe. Pois seria verdade que descobrira um segredo tão da sua alma e que a todos occultava?

-- Olhos de mãe vêem longe, longe, muito mais longe do que julgas.

Que haviam visto os olhos de sua mãe? Que ternura agora lia n'elles!

-- A Condessa de Castro Dairo é viuva; hoje, aqui, esteve comigo e...

-- E?... perguntou elle anciosamente.

Saíu-lhe tão espontanea a interrupção, que a Condessa não pôde deixar de sorrir-se.

-- E se eu o não tivera adivinhado, agora m'o confessaras. Encommendei a Deus muito este negocio e fundo em sua resolução minhas melhores esperanças. Escuta, Luiz, sentemo-nos.

E emquanto ella lhe fallava do logar que occuparia no paço como reposteiro-mór e que fôra de Bernardim de Tavora, de quem a viuva do Conde de Castro Dairo era filha e herdeira, emquanto lhe ía apontando o caminho que se lhe abria facil a todas suas ambições, fallando-lhe de riqueza e honras, o Conde sorria enlevado, como se outra visão, ainda mais bella que as lindas telas que sua mãe ía ante seus olhos desenrolando, o encantasse n'aquella hora.

Cantava n'elle a primavera finalmente e a sorrir e a ver desfazer-se uma ultima duvida, dizia comsigo baixinho.

-- Guiomar!... Gaiomar!

CAPITULO X

Duas cartas

De Pero Rolão a Manuel Furtado

Meu amigo.

Uma duvida só tenho e é para onde te escreva, se para teu humilde recanto em frente á egreja do Salvador, se para o céo para que estavas de abalada, quando da ultima carta que me escreveste, ha quantos mezes! Ora para este ultimo, tão longinquo ponto para os meus côtos depennados, não sei eu sobrescriptar; lá irá pois a minha carta parar ao Largo do Salvador, e Santo Antonio a guie.

Releio muita vez as mysteriosas linhas que me enviaste e a adivinha põe-me os miolos a arder. Consulto o padre Ventura, mas sempre o encontro em questões de amor muito menos sabido do que eu. Olhamos um boccado um para o outro, estendemos o beiço de baixo, abanamos a cabeça, e lá nos pomos a jogar para distraír.

Apesar do nome que deram ao padre na pia do baptismo, a Fortuna, que não é christã, tem-se felizmente afastado do homem. Hontem perdeu um pinto que lhe eu ganhei contra um valete. E é a melhor nova que te posso enviar d'esta vida ociosa de guerra que não chega, e que temos vivido entre as muralhas d' Elvas.

O Conde de Athouguia ralha a toda a hora, berra, barafusta, esbraceja e faz-se vermelho que até nos parece ás vezes que vai arrebentar e que ficamos sem governador das armas na provincia rio Alemtejo. Filho da nobre mulher que o armou cavalleiro na manhã do dia um de dezembro, desde então nunca mais viu senão a espada. Por um nada deita-lhe a mão aos copos, por dois puxa-a fóra, por tres atira-a á cabeça de quem entrar no salão do palacio a dar-lhe muito respeitosamente os bons dias. O padre, só de ouvir-lhe a voz, arrefece. Domingo, estando no altar, deu com o Conde na egreja, e nunca mais disse Dominus vobiscum que não fosse a tremer como varas verdes.

Lembra-se de quando D. Sancho Manuel nos apanhou jogando e diz que, se fôsse em tempos do Conde, eramos com certeza enforcados.

Duas vezes aqui passou o Marquez de Chouppes, embaixador francez, quebrando a monotonia da nossa vida.

Da primeira recebeu aviso o Conde de Athouguia por uma carta do nosso embaixador em França, Conde de Soure, que lh'a enviou por um seu creado. N'um instante se adereçaram as casas do bispo e o Conde mandou logo um correio pela posta á Rainha dizendo-lhe que aguardava as suas ordens. O Marquez, ao terceiro dia, vendo que não o deixavam seguir viagem, pôz-se de burro que nem queria comer. Fôsse eu!... Foi preciso que lhe fallasse D. Luiz de Menezes, que maneja a lingua franceza como tu um cavallo ou eu as cartas. E elle lhe disse que sem ordens da Rainha o não deixavam saír e que, se tinha muita pressa, avisasse de Madrid. Convenceu-se, e mais todo seu estado, que só fidalgos francezes eram sete a acompanha l-o. Mas logo as ordens chegaram, O Conde de Athouguia, e nós todos com elle, fizemos-lhe cortejo até á fonte dos Sapateiros; até Extremoz foram seis batalhões de cavallaria. Démos-lhe de comer á tripa forra, de beber o melhor das nossas queridas adegas, disparámos-lhe toda a artilharia e, ainda por cima, o acompanhámos nem que elle fôsse o proprio rei.

A' segunda vez, na volta já assim não correram as coisas. O Conde de Athouguia tinha uma cara de palmo e, se o homem entendesse portuguez, não gostaria de ouvir certos cumprimentos. Bem sabes que militares, quando fallam, dizem cada uma que é de arripiar os pellos á peruca d'um embaixador, O padre tambem metteu seu bedelho e disse cá de longe: -- «Diga lá que venham cá.» Mas depois arrependeu-se, com medo de alguma complicação.

Ora conta-se por aqui o seguinte: que o Marquez propuzera, para que Portugal fosse incluido no tratado de paz, ficasse reduzido ao que fôra até 1640, que não haveria castigos e que seriam seus vice-reis os successores da casa de Bragança; que o Conde de Odemira, com toda sua prudencia, ainda começara um estendal de boas razões, mas que logo O Conde de Cantanhede, que, como é sabido, gosta do outro como eu de azedas, exclamára com boa fanfarria soldadesca: -- «Se nobreza e povo soubessem o que contém essas proposições, nenhum de nós estaria seguro n'este logar»; que o francez, depois de olhar para elle e do recear ter de saír pela janella, se queixára de aquelles modos muito amargamente, mas que a Rainha certificára ao Marquez de Chouppes que nenhum receio lhe ficava das armas de Castella, por antigo costume, glorioso despojo do valor dos portuguezos.

Manda dizer-me o que ha de verdade a este respeito, que á para eu socegar o padre.

O Conde de Athouguia nao descança. Lá tem as suas razões. Sabe que, se não dá Castella signal de si por emquanto, é que não são de sobejo toda a attenção e cuidados aos aprestos, que tanto distraem o padre Ventura ao ler as «Horas» e ao jogar o monte. Outro tanto por aqui faz o Conde, e até dos olhos parece que lhe saem chispas, quando os volta para os lados de Badajoz.

Para nos entretermos, preparou-se e melhor se executou a acção, com que na ilha que conheces, formada pelo Xevora e Bótova, quando se unem e logo outra vez se separam, encurralámos os castelhanos.

São mais innocentes na fronteira do que em suas artimanhas na côrte de França.

O famoso João Dias de Mattos, principal autor do cêrco de Olivença e outras gentilezas, e que se julgára mais seguro combatendo contra seus antigos companheiros d'armas, teve, por azar caír-nos nas mãos.

Enforcaram-o, mas quebrou-so a corda. E disse o padre:

-- Quem me déra tão boa sorte!

Tive pena do homem. N'outra corda o penduraram, e, por mais que elle estrebuxasse, não conseguiu partil-a.

O padre diz que foi agoiro a sua observação e que não torna a jogar. Em que hei de eu passar as minhas horas!

Desce do céo á terra e responde ao teu amigo

Pero Rolão.

De Manuel Furtado a Pero Rolão

Caro amigo.

Dizes-me na tua carta que desça do céu e te conte o que vai pela terra. Que te escreveria eu, que me suppuzeste entre os anjos? Não sei onde estou e talvez tenhas razão; mas, muita vez, creio que é no inferno, ainda que d'elle não quero saír.

Foi minha carta uma adivinha, que tu e o padre não sabeis decifrar. N'uma hora boa a comporia, desabafando contentamentos; meia hora depois haveria de escrever o contrario. Se longas fôrem estas linhas, todas as encherei de contradicções.

Não te deites a adivinhar, que nem eu sei o que em mim passa. Desfio sonhos, que ás vezes são pezadellos, rosario que não sei como se vai engrazando, sempre fóra da minha vontade. Esqueço o dia d'hontem, sacudo a cabeça para não pensar no dia de amanhã, queria ter o poder de segurar o momento em que estou.

Quando li a tua carta, senti uma saudade tamanha dos bons tempos do cêrco d' Elvas, que por um triz me não vieram lagrimas aos olhos. Uma voz carinhosa perguntou-me que más novas me aquelle papel trouxera, e eu não soube responder porque fôra que se a vista me turvara. A felicidade na vida é o desejo.

Já vês que nem todas são iguaes minhas horas; mas a peor d'ellas não a trocava, pela melhor da minha vida passada, porque até soffrer é bom.

D. Anna de Portugal acha que estou avelhentado. E' que tenho amargurado a ventura.

Em sua casa passo os instantes mais quietos da minha vida. Ali descanço, ali respiro outro ar, ali me volta o coração ao seu bater compassado.

D. Pedro d' Almeida, casado de ha dois dias, quando entra na sala em que estamos, parece que nos chegam pela janella, em revoada, todos os pardaes e pintasilgos do jardim. D. Margarida de Noronha, em sua lua de mel, mais formosa, mais cheia de luz, nos apparece a cada hora. Quando os vejo sinto uma alegria triste.

-- Não, respondeu El-rei seccamcnte, mas já sem o primeiro tom irado.

-- Boa! disse Simão Peres, logo que se apanhou cá fóra.

Subiu ao quarto. Fr. Bernardo acompanhou-o.

-- Um arrufo, dizia Simão Peres. E eu que tão discretamente encaminhara todo este negocio da Calcanhares! Uma joia preciosa, como outra não tem Lisboa! Que melhor queria para esquecer a que lhe deu volta ao miolo com suas cantigas á viola? O Antonio Conti é que tem razão: a Calcanhares para amante, o piolhoso para amigo, que mais quer elle?

Fr. Bernardo calava-se.

Tinham entrado no quarto. Simão Peres cingira a espada, embrulhára-se na capa, pegára no chapeu.

-- Pluma nova! disse Fr. Bernardo com um riso de mofa...

-- Um presente da Calcanhares. Vou visital-a. Quero tirar a limpo...

Parou em frente do bahú, que sempre tinha fechado á chave, e tocando-lhe com o pé:

-- O cofre das joias!

Era onde guardára a carta de Antonio Conti.

--Vens?

-- Saio, respondeu Fr. Bernardo.

Era quasi noite. Caminharam juntos até ao Rocio.

Fr. Bernardo arripiava o bigode e puxava pela pera. Se désse com o paradeiro da Falcôa, firmava seu valimento e derrubava por uma vez o de Simão Peres. Detestava aquelle homem, que lhe haviam dado para companheiro de quarto. Que distancia, entretanto, os separava! Porque se bebem dois copos de vinho na mesma taberna, não é razão para que seja egual o tratamento! O filho do moço de estribeira, educado com mulas e cavallos, que mais sabia de que jogar mal uma espada? Elle estudára humanidades, ainda não esquecêra de todo o latim, fôra insigne na logica e na theologia. Bem sabia que El-rei não dava o devido apreço a taes prendas; mas, até no proprio jogo das armas, o Simão não passava d'um bruto, melhor atirando a navalha do que manejando a espada.

Pararam.

-- Acompanhas-me? perguntou Simão.

-- Meu caminho é outro, respondeu o frade.

-- Boa noite, n'esse caso.

-- Boa noite.

Simão Peres voltou para o lado do hospital de Todos os Santos; Fr. Bernardo continuou a direito.

-- Se a Fortuna me ajudasse... pensou.

Tinham-lhe dito que para as bandas do palacio do Conde de Castel Melhor havia uma taberna nova com vinho famoso. Talvez lhe aclarasse as idéas.

Cheirou-lhe a sardinhas assadas.

Um homem á porta da taberna, de venta arregalada, mettia a mão de quando em quando na vasta algibeira e comia buchinhas de pão.

Fr. Bernardo, apesar da escuridão que vinha descendo, conheceu-o logo.

-- Olá mestre Pantaleão Gonçalves!

O homem deu um pulo, mas logo socegou. Riu-se.

-- Que se faz? Comem-se buchinhas de pão com cheiro!

Pantaleão Gonçalves torceu-se todo, muito risonho.

-- Estaes magro, homem!... Pois tão mal vos corre a vida?

-- Nao, não... Eu tinha onde ir... Mas não gosto de abusar.

-- Entrae comigo. Não fareis cara a meia duzia de sardinhas que cheiram nem que fossem d'ambar e de almiscar!

Lembrára-se de que o pintor fôra encarregado do retrato da Falcôa. Talvez obrigando-o a fallar, conseguisse descobrir um rasto.

-- Entrai, que diabo!

O taberneiro accudira, trigoso e amavel, aos dois murros que Fr. Bernardo atirou á meza, fazendo estremecer as canecas.

-- Vinho do melhor!

-- E sardinhas... e muito pão molle, gaguejou Pantaleão, com tantas rugas de alegria na cara, que nem elle, tão meticuloso, as soubera desenhar n'um anno.

-- Folguei de encontrar-vos, disse-Ihe Fr. Bernardo, entrando no assunto exabrupto, como, para casos graves, lh'o aconselhava a rethorica que estudára. El-rei, meu amo, sabereis que enlouqueceu.

O pintor abriu a bocca. O frade fechou-lh'a com dois dedos.

-- Ides saber porquê e foi-se o vosso espanto. El-rei teve razão.

O pintor esbogalhou os olhos.

-- Saudades, saudades da mulher, encantadora que retratastes!

-- Haviam-me dito, porém...

Mas não chegou a terminar a phrase; o taberneiro chegara com as sardinhas, e toda a bocca se lhe encheu de saliva. Remexeu-se no banco, carateando com tregoitos do maior enlevo. Sorriam-lhe os olhos, que já devoravam o prato.

-- Servi-vos, dissse-lhe Fr. Bernardo.

Não se fez rogado, nem usou de cerimonias.

-- Sei o que vos disseram: que uma nova amante, a Calcanhares... El-rei ama todas as mulheres e sobretudo aquella que não possue. Sabeis decerto que fui eu quem... Uma gotta de vinho.

Mas Pantaleão Gonçalves, muito cuidadoso, com dois dedos no pichei, quiz impedir maior quantidade.

-- Estou muito fraco, tenho receio...

-- Que diabo!... Esta caneca parece um dedal de criança!

Deixou encher.

-- Era Maria da Boa Hora digna d'um rei. Para que vos contarei minhas luctas n'essa campanha, de que saí victorioso?

Compoz uma expressão desdenhosa.

-- A Calcanhares foi o Simão Peres, um homem sem cultura intellectual... Para passatempo serve.

Mas a paixão funda, a que dá cabo d'uma alma, foi a outra que lh'a inspirou.

O pintor atacava a ultima sardinha.

-- Mais uma gota.

-- Não, não...

-- Por Deus!

-- Então á nossa!

E esvasiou o copo.

-- Está doido, digo-vos eu. Ora...

Approximou-se do pintor, e, muito confidencialmente:

-- Eu não acredito nas patranhas do Simão Peres. A tal mulher que se deitou a afogar no Tejo...

O pintor com um pedaço de pão limpava desesperadamente o azeite que ficara no fundo da travessa.

-- Olá, taberneiro! gritou Fr. Bernardo. Mais meia duzia de sardinhas!

-- Não... não... balbuciou outra vez Pantaleão Gonçalves, cerimonioso.

-- E mais vinho!

O frade approximou-se ainda um pouco; o outro afastou-se para a ponta do banco, procurando melhor commodo para devorar.

-- Vós alguma coisa deveis saber, disse Fr. Bernardo malicioso, ameaçando-o com o dedo.

Mas a cara do pintor assumiu um ar tão discreto, de tão mal fingida candura, que Fr. Bernardo disse comsigo:

-- Temos homem!

-- Fugiu... Matou-se... Se nem com a tia tornei a fallar!

-- Vós tambem, como nós todos, haverieis de ter soffrido profundo desgosto.

-- Grande, muito grande! Se até perdi o comer!

E atirou-se faminto á nova meia duzia ainda a chiar no azeite muito quente.

-- Mais uma gota.

Já não disse que não. Com a bocca muito cheia, gaguejava, para desviar o dialogo:

-- Se a sardinha fosse cara, todo o paço comia sardinhas. E ria, muito contente, com um rosto de completa felicidade.

-- E' um peixe muito saboroso. Folgo de ver-vos comer com tanto gosto. E' o que a gente leva cá d'este mundo, disse o frade philosophicamente: um bom prato, uma boa mulher.

O outro acenou muito que sim; mas tinha a bocca tão cheia, que mal podia fallar.

O frade encheu-lhe outra vez o copo.

Já o olho lhe luzia mais brilhante.

-- A' vossa!

Pantaleão Gonçalves enguliu a custo o grande bocado.

-- Pois cá vai. A' nossa!

Olhou cheio de ternura para o companheiro.

-- Mulheres!... E' o que nos perde... e é o que nos salva!

Fr. Bernardo fallava e via o pintor a piscar muito os olhos, todo seu rosto cheio de movimentos nervosos.

-- Se a amamos e ella nos ama...

-- E' o p... p... paraizo! exclamou Pantaleão Gonçalves, sacudindo a cabeça no esforço com que disse o P.

Deitou mão ao pichel.

-- Vêde não vos faça mal!

-- Qual mal! Eu quando bebo... bebo. Tu já não bebes?

-- Beberei para te acompanhar. Vinho! gritou.

O taberneiro veio correndo.

-- Quem amaste? perguntou o frade.

O pintor deu tres estalinhos com os dedos, e, com ar de muito mysterio, não respondeu. Olhava, com o olho todo revirado, para Fr. Bernardo, e sorria.

-- D'onde é o vinho?

-- Da Outra Banda.

Mais meio copo e o homem começaria a desabafar.

-- Amaste e foste amado, felisão!

-- Amei... mas não fui amado!

Com o gesto que fez, entornou a caneca, pôl-a outra vez de pé, assentando-a com força em cima da meza. Fr. Bernardo encheu-lh'a.

O taberneiro collocára-se em frente d'elles, com as mãos no cós dos calções, sorrindo-lhes, dando a entender que sabia com quem tratava.

-- E que tal?

-- Que tal? disse o bebado com um olho fechado, olhando só com o outro muito espantado para o taberneiro. Que tal... está claro! Eu cá sou pintor e sei da arte!

-- E não quereis uma azeitona?

-- Quero... está claro!

-- Pois tenho pena que não fosses amado como merecias, disse-lhe Fr. Bernardo batendo-lhe na perna.

-- Não fui, mas deixal-o!

Approximou-se. Puxava a pera a sorrir-se. Poz um dedo no nariz, e muito misteriosamente:

-- Um dia, dei-lhe um beijo!

-- Maganão!

Poz-se a rir, a rir...

-- Foi por um favor que lhe fiz. Ella gostava d'outro e eu levei-lhe um recado.

-- Tu tambem?

-- Tambem. E agora ás vezes vou lá, e ella sempre, ora a rir, ora a chorar... mais contente que d'antes, que estava sempre a rir! E elle tambem. E quando vou é uma festa, empurram-me e batem-me e chamam-me Pantaleãosinho e lá estamos os tres, e ás vezes os quatro, que a velhota apparece ás vezes, a rir... a rir...

Começou-lhe o beiço a tremer, poz-se a chorar.

-- Gosto muito d'ella, muito!... Deu-me um beijo!

Fr. Bernardo espicaçou-o.

-- Afinal que tem de maravilhosa a tua historia?... O teu anjo misterioso é uma mulher como as outras.

Pantaleão deu um pulo.

-- Como as outras! exclamou.

E o caroço que tinha na bocca foi parar á cara do frade, que já não bebia.

O caminho era esse: melindral-o na vaidade.

-- Como as outras, homem, como as outras! Uma mulher que encontraste ahi em qualquer viela, e, com tuas farroncas de artista, desenhaste-a a teu modo. Uma regateira de Alfama a quem pintaste umas azas. E' isto! Quando se gosta d'uma mulher... Sabes que mais? Tão tolo és tu como os outros.

-- Como os outros!... Eu sou artista!

Já não acertava com a mão no prato das azeitonas.

-- Tanto peor; tens mais phantasia. Sempre gostava de vêr a prenda. Aposto que é velha, suja e malcreada.

O pintor deu tres pulos ainda maiores. Encheu as bochechas d'ar, assoprou. Mas um resto de consciencia calou-lhe a bocca.

-- Se eu quizesse, com um só nome...

-- Conheço-a? perguntou Fr. Bernardo com tamanha anciedade, que Pantaleão estremeceu e, entre os fumos do vinho, percebeu o perigo.

-- Não conheces.

-- E que mulher ha linda em Lisboa de quem eu não tenha luzes? Mas deixal-o. Bebo ás tuas illusões, á mulher dos tens sonhos! E, se é, realmente, assim formosa como dizes, vá d'uma vez a tua caneca!

Pantaleão puzera-se de pé. Já mal se equilibrava nas pernas. Levou a caneca á bocca, entornou metade por cima do fato, caiu sobre o banco.

-- Quando bebo... bebo!

O frade ria muito.

-- E' o que levamos de cá.

-- O vinho e o beijo d'uma mulher!

-- Um beijo só... acho pouco. A não ser para principiar...

-- E' um amor puro. Foi nos cabellos.

-- Estou a vêr o teu bigode na carapinha d'uma mulata!

-- E' da côr d'um cisne illuminado pela aurora! Se a visses quando a eu retratei, resplandecente em suas joias! Até a mão me tremia... Tinha, ás vezes, vontade de me ajoelhar...

-- A Falcôa! pensou Fr. Bernardo.

E continuou, fallando alto:

-- E' o vinho que te faz dar á lingua e vêr o que não era. Que é d'esse retrato, que me convenceria? Mostra-m'o e acreditarei que ha divindades na terra, como nos tempos dos heroos de Homero e de Virgilio.

-- Se a visses agora, sem perolas nem brilhantes nem sedas que a cobriam!... Fez-se ainda mais formosa!... Quizera tirar-lhe o retrato com um cravo vermelho em seus cabellos negros!

-- Vive pobre, retirada...

-- Pobre, retirada, mas feliz em seu amor.

Começou a rir muito contente.

-- Fui eu que levei o recado, fui eu... fui eu...

E desatou a chorar com uma grande ternura, abraçado ao frade.

-- A's vezes, de noite, vou-me pôr em frente das suas janellas. Se tenho fome, passa-me...

-- Pois vai lá vêr se te passa a bebedeira! disse Fr. Bernardo erguendo-se.

Atirou para cima da meza uma moeda de prata.

-- Olá, taberneiro!

Pantaleão erguera-se tambem. Procurava equilibrar-se nas pernas, soprava rijo, suava; mas sorria.

O taberneiro acudira logo.

-- Obrigado fico a V. Mercê, sr. escudeiro, se por aqui nos quizer honrar com sua visita. Minha sobrinha logo vos conheceu e a V. Mercê, disse voltando-se para Pantaleão Gonçalves. Fala a estes senhores, Magdalena.

Approximou-se d'elles uma rapariga de desaseis annos, bonita, franzina, que estivera a frigir as sardinhas.

-- Minha irmã ajudava lá na cosinha do paço: a Gertrudes. V. Mercê havia de conhecel-a. Uma que morreu ha três annos. A pequenina brincava até muita vez com o sr. D. Affonso. E vai d'ahi, trouxe-a para minha casa... Cumprimenta estes senhores, Magdalena.

Muito acanhada, a rapariga torcia nas mãos o avental escuro e mordia o beiço.

O taberneiro acompanhara os hospedes até á porta, de barrete na mão, risonho, cumprimenteiro.

-- Gente do Paço! disso muito ufano.

A sobrinha não respondeu. Parecia menos encantada com a visita. Atirou para a frigideira tres sardinhas que se puzeram chiando, e murmurou.

-- Não gosto d'elles.

Pantaleão Gonçalves encostára-se á parede. Custava-lhe a arrancar.

-- Vá, homem!

Fr. Bernardo metteu-lhe o braço pelo sovaco, obrigou-o a dar os primeiros passos.

-- Com tres canecas te vais abaixo!

E pensava:

-- Vou deixar-te. Afferraste-te a um pensamento, irás rondar a casa da Falcôa. Enterrei-te, Simão Peres!

Chegaram ao Rocio.

-- Vê se vais para casa, direitinho, an?

O outro disse que sim com a cabeça.

-- Boa noite, Pantaleão.

-- B... n...

-- Vê se te aguentas nas pernas! Queres que te acompanhe?

Disse que não com a cabeça.

Deu uns vinte passos a direito e depois parou.

-- Máo ! resmungou comsigo o frade.

O bebado hesitava. Fez um esforço, caminhou até uma esquina, encostou-se. Rosnou:

-- A Falcôa... Uma regateira de Alfama!... Uma mulata!... O que eu devia era ter-lhe atirado a caneca áquella cara sem vergonha!... Um homem nunca deve embebedar-se com bebados!

-- Contanto que não dure muito o soliloquio... pensou, radiante, o unico ouvinte, que se escondêra na sombra.

O bebado fazia esforços para despegar-se da parede.

-- Onde é que elle as viu melhores, se até foi buscal-a a casa da familia para a levar ao amo?

Passou um homem embuçado, com modos de quem anda em aventuras. Disse-lhe o Pantaleão:

-- Estou bebado!

O homem continuou seu caminho.

-- Está bebado, concluiu.

Conseguira desencostar-se.

Seguia agora caminho da Sé, aos bordos pelas ruas estreitas.

E o frade sempre na esteira d' elle.

-- Que maravilhoso achado! ia pensando. Bafejou-me hoje a sorte. Estou no rasto da melhor caça a que podia fazer meu tiro.

Mas Pantaleão Gonçalves parecia não ter pressa. De quando em quando, parava, olhava para as estrellas e punha-se a cantar, muito desafinado, umas coisas tristes. Pareceu-lhe que o seguiam e parou, com fonfarria.

-- Quem vem lá?

Fr. Bernardo escondeu-se.

Já o outro recomeçara a cantar.

Subiam ao lado da Sé. Batia meia-noite.

-- Temos obra até lá para a madrugada! murmurou impaciente o rufião de El-rei. Mas que importa uma noite em claro, se achei pão para toda a vida?

Passaram pelo Limoeiro. Já o pintor caminhava mais aprumado, já silencioso. Virou depois. A rua estreita e tortuosa descia rapida.

-- Aguenta-te, Pantaleão! dizia-lhe baixinho, cá de longe, Fr. Bernardo, com desejo intimo de animal-o.

Era certo o que cuidára. O pintor morava para os lados do Castello; deveria ter voltado á esquerda Aonde iria pois senão a dar largas á paixão, sob as janellas da mulher amada? Era certa a victoria ! Só não sabia ao certo como d'ella havia de usar. Entregaria a El-rei a mulher que este adorava, de cujas saudades soffria o mais cruel dos tormentos. Sempre havia de mostrar que logica, oratoria e theologia davam um homem de mais prendas que os educados nas cocheiras do palacio.

O bebado parava a cada instante. Uma vez tropeçou n'uma pedra solta da calçada, aguentou-se, trocou as pernas, deu uma corrida para a frente, bateu com a testa no alizar d'uma porta. Ficou de pé.

-- Salvei-me! disse o outro.

Deu uma hora, hora e meia, deram duas. Nem Pantaleão Gonçalves, nem Fr. Bernardo se mexiam, o primeiro monologando phrases confusas, o outro á espera do triumpho.

-- Adormeceu... Estará sonhando...

Mas viu-o de repente abalar, firmando-se melhor nas pernas. Seria agora!

Parou no largo do Salvadôr, em frente a um recanto onde fôra a casa da Falcôa.

O frade fez um gesto de desespêro. Tão longe viera para quê? O amor puro de Pantaleão trouxera-o a contemplar a casa onde a Falcôa vivêra purissima.

-- Diabos levem o poeta!

Mas affirmou a vista e pareceu-lhe ver que o pintor virava costas á casa. Approximou-se um pouco mais, porque era a sombra muito densa. Não se enganára; para outras janellas viu-o erguendo os olhos apaixonados.

-- Dorme á vontade, que eu guardo a tua porta contra os teus inimigos! Se algum vier...

Fez menção de tirar a espada, desequillbrou-se, caiu de borco, ficou-se a resonar.

Fr. Bernardo foi subindo com seu vagar até o alto da Graça. Era o passaro na mão, não o deixaria fugir. A pomba ali tinha seu ninho, restava-lhe saber quem era o pombo rolador. Não daria pressa a que se desenrolassem os acontecimentos.

Sentia na cabeça uma pinga de vinho a mais, que lhe confundia as ideias. Sentou-se n'uma pedra, poz-se a contemplar a cidade, cujos altos começavam a alvorecer ligeiramente. A estrella da manhã brilhava, alta sobre o horizonte, muito branca, muito fria.

-- Serás tu a minha estrella?

lam-se as outras apagando; passavam uns livores pelo céu já a cintar-se do oiro da madrugada. Já uns ligeiros rumores subiam da cidade baixa, onde a vida mais cedo acordava. Tocaram no convento á primeira missa.

-- E se eu fallasse á tia?

Teve receios de que o traisse a gota de vinho.

-- Nao, não a metto no segredo; só informar-me... A pretexto de ir consolal-a...

Era ali perto. Sabia-a madrugadora.

Mas ainda era cedo. Temia agora qualquer imprudencia. Esperou que o sol nascesse, que os pregões atroassem as ruas, que os sinos acordassem para o officio divino os menos diligentes.

Era domingo. Lembrou-se do seu convento, de quando subia ao altar devotamente e lia as palavras do Evangelho e dizia o Credo e lavava as mãos entre os innocentes. Lembrou-se da sua primeira missa na Penha de França, do terror santo que d'elle se apoderara ao pronunciar sobre a hostia as palavras da consagração, da deliciosa commoção experimentada quando, ao voltar-se para lançar a benção aos fieis, viu entre elles ajoelhada a mãe velhiuha, que viera a pé desde a aldeia. Como lhe ella, finda a cerimonia, beijara a mão, e com que sentidas e profusas lagrimas Ih'a regara!

Aquelle sino, que tocava muito ao longe, lembrava-lhe o do convento, recordava-lhe com suas badaladas apressadas, vibrantes no ar muito frio da manhã, os corredores sombrios que elle atravessava áquella hora, o claustro onde a agua cantava n'uma fonte em meio dos craveiros, a egreja escura, a antiga devoção com que d'antes subia ao altar com o calix, abria o missal, punha as mãos sobre a toalha branca e se curvava reverente.

Bateu duas argoladas á porta da velha Lindosa e esperou.

Continuava o sino a tocar, e na cabeça baralhavam-se-lhe, com as esperanças vivas d'um bom negocio, memorias de seu passado, unicas que podia com doçura evocar.

Tornou a bater, com mais força.

Acudiam -lhe á lembrança certos pormenores: uma imagem da Virgem que havia na sacristia, a que tivera devoção particular, e cujo vestido beijava, rezando-lhe para que lhe valesse nas tentações; a ultima confissão feita com remorso vivo; confissões posteriores mentirosas; sua expulsão.

Bateu ainda lembrando-se da argolada convencionada para os creados d'El-rei. Afastou-se quanto lh'o permittia a acanhada largura da travessa e olhou para as janellas encostadas ao telhado, onde eram os quartos da velha.

-- Demonio!... Mudaria de casa?

Bateu ainda uma vez impaciente, e já desistia de seu intento, quando avistou a Lindosa, com a cabeça envolta n'um grande véo negro, a descer a rua vagarosamente.

-- Já vos fazia morta! disse-lhe.

-- Que ha de novo? interrogou ella com anciedade.

-- Isso vos devo perguntar.

-- Quando vos vi, julguei que as alminhas me haviam acudido. Mas que vos traz a procurar-me?

Fr. Bernardo disfarçava a impaciencia.

-- Tento, Bernardo!

E alto.

-- Uma noite má que passei, pensando no desgosto de S. Majestade e no vosso.

-- Entrai, entrai. Desabafarei comvosco.

Abriu a porta, subiu a escada, parou um instante no primeiro patamar.

-- Quasi não me atrevo a entrar n'esses quartos.

Quando, ha pouco, desci para ir á missa das almas e aqui passei, ainda era noite. Pois tive medo que me apparecesse algum phantasma. Credo!

E benzeu-se.

-- Não, morta não está ella; deixai lá Simão Peres desculpar-se com El-rei...

-- Nunca gostei d'esse homem, nunca! disse a Lindosa fazendo um gesto de repugnancia. Desculpai, se elle é vosso amigo.

-- Deveres do meu cargo obrigam-me, ás vezes, a acompanhal-o. Mas amigo...

A Lindosa sentia uma certa queda para Fr. Bernardo. Não se esquecia de que fôra elle quem primeiro lhe viera bater á porta, communicando-lhe a paixão de El-rei por Maria da Boa Hora, que S. Majestade avistara uma tarde no convento do Salvador. Elle conduzira todo o negocio com multo juizo e convencêra a moça do nenhum perigo d'aquellas relações. Tratava sempre a Lindosa por D. Maria e a delicadeza sensibilisava-a. Em Simão Peres sempre lhe repugnara o homem ordinario, cheirando a cavallariça. E desconfiava d'elle. No dia em que lhe fallou dos amores de Antonio Conti, n'esse mesmo Maria da Boa Hora lhe fugira de casa, sem uma carta de despedida, sem um indicio lhe deixar que lhe désse esperanças de encontral-a alguma vez.

-- Subamos ao meu quarto, disse pondo a mão no peito, com ar afflicto, como a querer socegar as pancadas do coração.

Parava em cada degrau, resmungando ora uma queixa, ora uma imprecação contra o homem a quem attribuía sua desgraça. Simão Peres intendêra-se talvez com Antonio Conti para pôrem a pobre velha fóra da lauta mesa a que todos haviam comido á custa de Maria da Boa Hora.

E não se contentava com isso, o malvado! Agora, quando lhe trazia a mesada d'El-rei, pedia sempre a sua esportula. Ah! se tivesse a certeza!... Mas não se atrevia a queixar-se; podia errar, indispôr contra si o ministro poderoso. Ao proprio Fr. Bernardo nada dissera nem diria de suas suspeitas.

-- Sentai-vos, sr. Bernardo. Aqui tendes onde passo meus dias a rezar aos meus santinhos.

Estava no quarto um ar abafado. Uma lamparina, gasto o azeite, com um grande morrão, espalhava um cheiro suffocante. Por todas as paredes havia imagens de santos, misturadas com estampas de caracteres magicos.

A Lindosa tirou o véo. Sentou-se offegante n'uma cadeira.

-- Não quereis que abra um pouco a janella? perguntou o frade muito amavel.

-- Não, não, por causa do meu catarro. E podia alguem da visinhança ver-vos no meu quarto e que diria? Sentai-vos, por quem sois! S. Majestade como passa?

-- Mal, muito mal e muito mal rodeado.

A Lindosa deu um suspiro.

-- Ah! se todos fossem como vós! Quanto melhor não era para S. Majestade e para o reino!

-- E para vós, D. Maria.

A velha soergueu-se um nadinha na cadeira e assoou-se com estrondo, muito commovida.

-- Sabeis como eu a educava que nem uma princeza! Parece que já adivinhava o que havia de acontecer!... Castigou-me Nosso Senhor pela minha vaidade; porque, quando eu via El-rei em minha casa, em vez de agradecer aos anjos e santos que assim me haviam protegido, não, senhor; punha-me a julgar que toda a nossa fortuna era devida aos meus conselhos, á minha educação!

-- Muito! muito! interrompeu o frade.

-- Eu quasi não a deixava chegar á janella; porque sei muito bem, ao mais pequenino descuido, como o diabo as arma!

-- Sabemos, sabemos

-- Seus namorados teve, porém... Ai, o que me eu affligia! Nem pregava olho!... Obriguei-a a dormir comigo no meu quarto, fechava a janella a cadeado e mettia a chave da porta debaixo do meu colchão. O mesmo não fiz mais tarde e, ao rezar a confissão agora, é sempre com o pensamento na chave que digo: minha culpa, minha culpa, minha muito grande culpa!

-- D, Maria, precisais de criar animo.

-- Todas as noites deito cartas e o Conde de espadas...

-- El-rei?

-- Estaes tonto, sr. Bernardo? Esse é sempre o rei d'oiros!

-- Desculpai. E quem julgais então que seja o conde de espadas?

-- Resei hontem uma estação ás almas para; que em sonhos m'o dissessem.

-- E disseram-vos?

-- Levei toda a noite a sonhar com tres pescadinhas marmotas que estavam no fundo d'um poço a dizer-me: «Anda cá, Lindosa! anda cá, Lindosa!» Hei-de logo consultar a minha visinha Marianna Perrexil, que sabe da arte dos sonhos. O poço quer dizer segredo e todo o meu receio é que pescadinhas queiram dizer desgraça. E' o que tenho para meu almoço, se é servido...

Fr. Bernardo suffocava n'aquelle quarto. Precisava quanto antes vêr-se d'ali para fóra.

-- E quem será então esse cavalleiro, que sempre vos apparece? Creio mais nas cartas do que em sonhos. Quem vinha por vossa casa?

-- Ninguem, afóra El-rei e seus amigos...

-- Mais ninguem?

-- Pantaleão Gonçalves. Não creio que...

-- Nunca fiando, D. Maria, nunca fiando. Pantaleão Gonçalves é um grande artista e a não ser que algum dos antigos namorados...

-- Se Maria da Boa Hora não punha nariz á janella!...

-- Foi o pintor não ha que duvidar!

A Lindosa fez um gesto de impaciencia.

-- Velho, pobre e porco! Nem eu... Que, graças a Deus, homens é bicho que não conheço! Mas assim... nem eu o queria!

-- Não suspeitais então de nenhum...

A velha mordeu os beiços.

-- D'alguem desconfia, pensou o frade.

-- Perdi o meu comer, perdi o meu resar!... Hei-de perder a minha saude e talvez a minha alma!...

-- Não sois franca comigo, D. Maria. Alguma coisa sabeis.

-- Juro-vos que...

--Guardai vosso segredo. Como amigo vosso dos melhores, entrei sempre n'esta casa. Dos melhores!

Fr. Bernardo batia no peito.

-- Perdi vossa confiança, retiro-me.

Pegou no chapéu. A Lindosa segurou-o pela manga do gibão.

-- Se vos eu digo...

Ia quasi a confessar suas suspeitas e já para contar o que Simão Peres lhe dissera da paixão de Antonio Conti. Mas voltou-lhe o receio. Se não fosse assim? Se, armada a intriga, viesse a perder a mesada?

-- Algum antigo namorado, disse.

-- Por qual sentiu ella maior amor?

-- Por um visinho nosso, que morava mesmo em frente de nossa casa.

O frade arrebitou a orelha.

-- Um que foi para a guerra e de quem mais não houve noticias.

-- Um soldado?

-- Um fidalgo; mas tão pobre que era uma desgraça! Ai, andou doidinha, doidinha! Deus, Nosso Senhor, desconte em meus peccados o muito que me apoquentei!

-- Ha quantos annos foi isso?

-- Sei lá! Com tantas ralações até perdi a conta do tempo! Eram duas creanças! Elle cantava... ella respondia... Foi quando se me escangalhou o estomago. Mas nem uma carta Manuel Furtado lhe escreveu.

O frade deu um pulo na cadeira. Manuel Furtado! Facil lhe era saber onde morava e se a casa era a mesma...

Levantou-se.

-- Os olhos vigilantes d'uma tia amorosa! Só quando me deu para descançar, pôde Maria da Boa Hora illudir-me!

-- Vou-me, D. Maria. Emquanto a mim...

-- Ainda pensais em Pantaleão Gonçalves?

-- Seria vergonhoso crime assim traír El-rei; mas os homens tão mudados andam do que foram...

-- Ai, sr. Bernardo, não tarda o castigo de Deus! Elle que lê na minha consciencia e sabe o que fui para minha sobrinha, não me confunda entre os mais peccadores.

-- Adeus, D. Maria. Saiba-me sempre das pescadinhas marmotas; talvez por ahi descubramos algum caminho.

-- Talvez, talvez. Nosso Senhor o acompanhe, sr. Bernardo.

E o frade saíu radiante.

CAPÍTULO XII

Na sala do conselho

Terminara o conselho, a que El-rei assistira distraído. Não havia melhoral-o d'aquella saudade que o pungia. Mal o curavam por instantes aventuras falladas de que saía com peor famas e seus novos amores com a Calcanhares, cujo luxo escandalisava a côrte.

Desejava a Regente que elle escutasse os conselheiros, querendo que, pouco a pouco, o interessassem os negocios do Estado. Mas, sempre, ao menor ensejo, abalava, e lá ía correr as ruas com a patrulha baixa, como chamava a seus companheiros.

Nem a vehemente censura do Marquez de Cascaes á proposta enviada a D. João d'Austria attraíu um momento a attenção d'El-rei. Seus olhos tristes, fitos no tecto, indicavam a distracção de seu espirito.

A Rainha, attonita, ouvia o velho Marquez, caía em si finalmente, avaliava a vergonha por que passara.

Sob pretexto de bolantim, haviam mandado da parte de El-rei, como embaixador, ao principe castelhano, o padre da Companhia de Jesus, Antonio Caldeira, reconhecido como dos mais capazes para, com acerto e manha, levar a bom fim negocio de tanta importancia.

Chegado á presença do capitão-general, havia-lhe dito, quando a sós com elle:

-- O meu rei me envia a V. Alteza de sua parte a manifestar-lhe o muito que estimará queira V. Alteza estreitar-se com elle em amisade, segurando-o com o vinculo do casamento que offerece a V. Alteza da Infanta D. Catarina, sua irmã, joia tão preciosa como sua formosura e prendas o publicam, trazendo comsigo o ducado de Bragança e vinte mil homens pagos á custa de Portugal, para...

Colerico, D. João d'Austria atalhára o discurso do padre.

-- Para que mo haviam de servir os vinte mil homens? Como me manda o duque de Bragança similhantos embaixadas? Vale-vos, padre, o sagrado de religioso, que o de embaixador nâo havia valer-vos!

Cabisbaixo, voltou a Elvas o jesuita, fez sua jornada até Lisboa, deu no paço conta de seu recado.

O Marquez de Cascaes, que se valia de o terem por doido para dizer alto e claro o que pensava, fizera no conselho seus commentarios á embaixada.

-- Se El-rei de Hespanha conquistasse este reino, que maior mal podia succeder a V. Majestade ou que mais podia perder do que as conveniencias que se propunham ao Principe? Quero que D. João d'Austria acceitasse os partidos offerecidos e com elles fosse traidor a seu pai e com os vinte mil homens e exercito que governasse, quizesse fazer-se rei de Hespanha e o conseguisse; ora não está claro que, alcançando toda esta fortuna, e vendo-se rei de Hespanha o havia de querer ser tambem de Portugal, a quem então não valeriam boas obras nem parentesco para que V. Majestade deixasse de padecer desgosto, a que similhantes acções dão occasião? Tão pouco era difficultoso, antes mui facil, que o Principe acceitasse todos estes partidos para fazer serviço a El-rei de Hespanha, em lhe dar um reino sem mais custo que o mesmo offerecimento que lhe faziam. Assim grangeava merecimentos com seu pae, quando, d'outra sorte, faltava á lealdade e se fazia infame na opinião das gentes.

Ainda mais dissera commentando o proceder do principe castelhano, exaltando-o.

-- Muitas obrigações lhe devemos por dois principios, um por não querer ser traidor a seu pae, outro por nos não querer enganar.

E terminára:

-- Deixemos de procurar conveniencias com filigranas. Punhamos todo o cuidado da defeza de Portugal nas armas e no valor dos portuguezes!

Agora, só com o Duque do Cadaval, D. Rodrigo de Menezes e o Conde da Torre, continuava demonstrando sua colera.

-- Andou D. João d'Austria como glorioso principe. A mim cáem-me as faces de vergonha! Que juiz o faria elle do rei que lhe propunha ser traidor e dos fidalgos portuguezes que a tal o aconselharam?

Os outros, d'olhos no chão, eram agora conscientes do erro de seu conselho.

-- E anda em Londres o Conde da Ponte tratando do casamento da infanta portugueza, com todo seu dote offerecida com a lamuria d'um pobre a uma porta! Lá um embaixador mendigo, aqui, um rufião ministro! Desgraçada princeza muito digna de melhor sorte e desgraçado Portugal!

-- Por Deus!... disse D. Rodrigo com um gesto prudente, vendo que o Marquez ia elevando o tom de voz.

-- Vá quem para isso tiver menos vergonha curvar-se ante o italiano Antonio Conti de não sei que mais. Que me oiça, me desterre ou me enforque; sou muito velho, que me importam um ou dois annos a menos na minha vida?... Por menos vergonhas passaria.

D. Rodrigo interrompeu-o. Convinha-lhe a ira do Marquez, embora temesse seus desmandos. Em voz baixa, receosa, enumerou as mercês feitas por D. Affonso ao valído.

-- Conseguiu Antonio Conti o fôro de fidalgo e o habito de Christo, uma quinta em Oeiras, a capella de S. Luiz de Pinhel, a commenda de S, Salvador de Unhão, o rendimento da barca de Escaroupim; de moço do guarda-roupa passou a moço das chaves; tem quarto em palacio, cora serventia interior para a camara real. A João Conti, mercê de andar em trajos de estudante e affirmar ter ordens sacras, deu-lhe o arcediago de Sobradéllo, na collegiada de Guimarães.

-- E como El-rei tudo lhes defere, acrescentou o Duque de Cadaval, não lhes faltam cortezãos com suas lisonjas.

-- Com mil demonios! exclamou o Marquez. Se não me deixam fallar, rebento, ou vou rogar minhas pragas para o meio do Terreiro.

Passeava pela sala, tremulo de ira, sacudindo a cabeça toda branca.

-- Vergonha é de nós todos o que se passa n'esta côrte! Para tal não valia a pena termos deposto o rei estrangeiro!

-- Marquez! disse-lhe o Duque de Cadaval por sua vez impondo-lhe silencio.

Mas, quando o Marquez se irritava, precisava desafogar seu mau genio. De mais o contivera na presença de D. Luiza de Gusmão.

-- Olhai que rei nos preparam! Os cavallos atiram-o ao chão, os touros marram-lhe, os homens batem-lhe. E' tão vaidoso como desastrado. A amante, a Calcanhares, é de toda a gente menos d'elle!

Ora...

Calou a praga; substituiu-a por um gesto, que deixou em meio. Poz o chapéu, tornou a tiral-o.

-- Adeus, primos!

Estendeu-lhes a mão.

-- Chamam-me doido; deixal-o: melhor, assim digo a verdade.

Saiu a resmungar.

O Conde da Torre passeava d'um para outro lado, soprando como um touro engaiolado.

-- Ah! não fôra elle um velho, quando nos disse que a vergonha era para nós todos...

Mas notou que D. Rodrigo de Menezes e o Duque de Cadaval olhavam um para o outro, sorrindo, como fazendo um pequenino signal de intelligencia.

-- De grande auxilio nos póde ser um dia o Marquez de Cascaes, disse D. Rodrigo.

-- Decerto, affirmou o Duque. Nem todas suas acções parecem ter fundamento; são na apparencia loucuras, mas...

-- Mas bem observadas, são dictadas Bompre pela honra e até, muita vez, pela prudencia.

-- Entretanto ao peor dos males não se referiu agora o Marquez, e é que a Rainha está cançada, por mais de uma vez fallou em deixar o governo, e o Infante...

-- E' novo... por emquanto, disse D. Rodrigo, sublinhando o adverbio.

O Conde da Torre, pasmado, esbogalhava muito os olhos.

-- Medicos o cirurgiões são de parecer que toda a parte direita do corpo de El-rei tão lesa ficou da febre maligna, que o accommetteu aos tres annos, que d'ahi provém sua falta de juizo e a incapacidade em dar a este reino successores.

-- Mas, n'esse caso, disse marcialmente o Conde da Torre, se outro...

O Duque e D. Rodrigo continuavam conversando, fingindo não dar attençâo ás interrupções do Conde, quasi nem para elle deitando um olhar.

-- A Rainha pensa em mandar preparar para habitação do Infante o palacio da Côrte Real, continuou D. Rodrigo, e, mau grado a opposição de El-rei mal aconselhado, está decidida a nomear gentis-homens de sua camara os fidalgos mais respeitaveis, taes como o Conde de Soure, o de S. Lourenço...

-- Ouvi fallar em vosso nome, disse o Duque.

D. Rodrigo curvou-se modestamente.

-- Póde o bem da patria exigir de nós um sacrificio, algum dia...

-- Pódem contar comnosco.

E D. Rodrigo respondendo ao Duque observava o Conde da Torre.

-- E comigo! disse este erguendo alto a cabeça, batendo no peito com o punho fechado, fazendo tinir a espada e as esporas.

-- Falei com meu irmão respeito á resolução que julgámos dever tomar.

O Conde da Torre era todo ouvidos.

-- Mal soube que era identico ao nosso o parecer do Marquez de Gouveia, do Conde de Soure, do Conde de S. Lourenço, do secretario Pedro Vieira da Silva e do padre Antonio Vieira, que muito respeita, logo me declarou sua adhesão.

-- Tendes minha pessoa e minha espada! exclamou o Conde, ainda não sabendo a que se referia o dialogo mysterioso dos outros dois conselheiros. Com ella ireis longe e vencereis!

-- Ainda que seja contra o valído que tenhais de mostrar a força de vosso temido braço? perguntou o Duque.

-- Comvosco, e seja contra quem fôr!

Disse-o com solemnidade. D. Rodrigo e o Duque sorriam levemente.

-- E mais tarde é possível...

-- Ah! não desejo recompensas... Um posto mais alto no exercito, que me é devido...

-- Decerto. Justiça vos será feita. Fallaremos com o sr. Infante, herdeiro da corôa de Portugal.

CAPITULO XIII

A Rainha d'Inglaterra

Abraçada á filha, que, a bordo da nau capitania da esquadra ingleza, ía partir para Portsmouth, a Rainha D. Luiza de Gusmão atravessava a sala dos Tudescos.

Deu-lhe seu ultimo beijo no alto da escada, e, amparada aos irmãos, D. Catarina abandonou o paço, para onde creancinha entrára, todos incertos de seu futuro, e d'onde saía agora Rainha de Inglaterra.

Voltou-se ainda uma vez para sua mãe e curvou-se, com os olhos rasos de lagrimas. A Rainha de Portugal, firme, erecta, solemne em seus trajes de viuva, lançou-lhe a benção.

O coche esperava-a. A' direita de El-rei, com o Infante D. Pedro na cadeira da frente, pela Rua Nova encaminhou-se para a Sé, onde deviam de cantar-se o Te-Deum e a missa.

D. Francisco de Mello e Torres, feito Conde da Ponte, elevado depois a Marquez de Sande, com a Condessa de Penalva e o Conde e a Condessa de Pontevel, um capellão catholico e uma comitiva de mais de trinta portuguezes haviam de acompanhar a Londres a nova rainha, esposa de Carlos II. Fôra D. Francisco de Mello, o embaixador que negociara o casamento, ajudado pelo voto de Luiz XIV, o qual, ainda que desposado com uma princeza hespanhola, parecia nâo querer seguir a politica de Mazarino.

Caro havia custado a Portugal a nova alliança, e tanto que a Rainha não se atrevêra a reunir cortes para lhes propôr o dote da Infanta. Com o Conde da Ponte, muito em segredo, tratára da melhor forma de entregar Tanger e Bombaim e de ajuntar o dinheiro preciso para satisfação dos dois milhões a que se haviam compromettido.

Mas sentia-se D. Luiza de Gusmão orgulhosa de saber que sua filha havia de sentar-se no throno de Inglaterra. Confiava nas promettidas capitulações para defeza das costas de Portugal, com que não poderia Castella intentar sua conquista pelo mar. Mudariam de parecer os hollandezes, animados pelo tratado de paz entre francezes e castelhanos, a causar-nos maior damno na India ou a vingar os que haviam soffrido no Brazil. A alliança com a Inglaterra, poderosa no mar, imporia respeito aos inimigos de Portugal.

Havia mais d'um mez que ao Tejo chegára a esquadra commandada pelo Conde de Sandwich, e, na côrte em continuados festejos, a entrada de D. João d'Austria em Portugal, onde tomára e fortificára Arronches, não produzira, tão preoccupada andava na execução do tratado de casamento, a impressão que sempre acompanha as más novas.

Era curto o trajecto desde o. paço da Ribeira até á Sé. Na Rua Nova, mal contido pelas alas dos soldados de infanteria, accumulava-so o povo cheio de curiosidade.

E fallava, e queixava-se.

Sentia vivamente a entrega de Bombaim na India e a de Tanger na costa d'Africa com suas duzentas peças de bronze e quantidade de munições. Os herejes, apesar dos capitulos referentes á religião catholica dos moradores, pouco a pouco iriam depravando aquellas almas, e tanto era de recear alguma tentativa de rebellião, que para a India fôra nomeado um novo vice-rei, Antonio de Mello e Castro, e em Tanger, o pouco para submetter-se D. Fernando de Menezes fôra substituido por D. Antonio de Almeida.

Simão Peres e Fr. Bernardo passeavam por entre o povo e ouviam-o murmurar.

-- Dois milhões de cruzados! dizia um mercador. Lá nos vão cahir nos lombos maiores impostos!

-- Dizem que a Rainha empenhou as joias, expunha outro com cara de judeu e com o ar triste de quem não entrou n'um bom negocio.

-- Dois milhões que tão necessarios nos eram para a guerra! exclamou com máo modo um velho soldado. Hão de fazer-nos falta para nos oppormos a esse demonio costumado a vencer, que se chama D. João d'Austria.

-- Dois milhões dizeis vós! tornou o primeiro que fallára. Com tanta grandeza tratou El-rei D. Affonso sua irmã, a nova rainha, que só a recamara que leva diz-se que ainda mais dois milhões ha de valer.

Umas mulheres benzeram-se espantadas. O homem continuou, contente por ter ouvintes:

-- E se por aqui nos ficassemos!... Mas que me dizem de em todos os portos de Portugal, não pagarem os inglezes das mercadorias que venderem mais do que metade dos direitos?

Os dois maigos d'El-rei, orgulhosos, de cabeça alto-erguida, com suas plumas esvoaçando ao vento fresco da manha de abril, continuavam seu caminho, olhos fitos nas janellas, admirando as mulheres bonitas com ar entendido.

-- Viste hoje Antonio Conti? perguntou Fr. Bernardo a Simão Peres.

-- De longe. Deve estar nos claustros da Sé. Bom sabes que o Conde inglez não entra no templo e ha de ter quem o acompanhe durante a cerimonia.

-- Sabes que o italiano anda agora mais orgulhoso?

-- A quem o dizes! Torce-me a venta ha muito, mas tome cuidado comigo, senão...

Fr. Bernardo olhou para elle, cuidando o dito uma farronca; mas viu-o tão serio e com tanto odio no olhar, que mais uma vez se convenceu de que Simão Peres era senhor d'algum segredo.

-- Cada um jogará com as cartas que tem, disse comsigo.

-- A culpa foi do muito que o metteram n'este negocio do casamento...

E era verdade. Tão alto subira o valimento do Antonio Conti, com tanta arte o manha soubera impôr-se, que um pasao não fôra dado sem seu consentimento, muita vez obrigando a Rainha, secretario e conselheiros a que lh'o fossem implorar. Não temia encher medidas da paciencia.

Como ministro, pessoa de superior respeito, fôra recebido a bordo da nau capitania e vira ante elle curvar-se cerimonioso o embaixador, general da armada, Duarte de Montaigu, dos conselhos secretos, Conde de Sandwich, Barão de Montaigu e de S. Neote, vice-almirante d'Inglaterra, mestre da grande guarda-roupa, cavalleiro da Ordem da Jarreteira.

Tambem muitos no paço ante elle se curvavam; não adivinhava, porém, o valído quanto odio nos corações fermentava d'esses a quem ouvia palavras humildes.

Mas Simão Peres e Fr. Bernardo, os da patralha baixa, andavam sempre álerta, que ouviam dos moços da estribeira o que estes ouviam dos amigos. E não era tanta a prudencia dos fidalgos em calarem-se na presença dos creados, nem tanta d'estes a discrição, que não corressem pelas cavallariças do paço atoardas de possiveis mudanças em que todos se dispunham a lucrar.

Quanto mais da Sé se approximavam, mais compacta era a multidão, maior o borborinho, mais estridentes os gritos dos vendedores. Custava-lhes a romper; mas Simão Peres queria collocar-se em frente da janella d'onde sabia que a Calcanhares veria desfilar o cortejo, ao fim da Rua Nova.

Corriam as ruas variadissimas danças e mal, com o barulho dos instrumentos, tambores e charamelas, Simão Peres se fazia escutar de Fr. Bernardo, contando-lhe como a Calcanhares devia de estar linda em seus trajos novos e que impressão esperava havia de produzir em El-rei.

Não eram os dois tão desconhecidos em Lisboa, que não fossem por muitos apontados em sua passagem. Uma ou outra vez lhes chegaram aos ouvidos palavras pouco de lisongear vaidades; mas continuavam seu caminho, indifferentes, superiores á murmuração dos invejosos.

Chegaram proximo d'um arco festivo, dos muitos que haviam sido no trajecto mandados levantar pelo contador mór e pelos provedores da alfandega e dos armazens.

-- Olá!... Manuel Furtado e o meu amigo Pantaleão! disse comsigo Fr. Bernardo, avistando-os entre a multidão bulhenta, anciosa pelo espectaculo promettido.

-- A Calcanhares!... Olha que maravilha! exclamou Simão Peres ao mesmo tempo, apontando para a janella mais vistosamente adereçada de toda a rua.

N'esse mesmo instante, começaram salvando as fortalezas e todos os navios surtos no Tejo, com as quatorze naus e as cinco sumacas da esquadra de Inglaterra. Logo se puzeram repicando alegremente todos os sinos dos conventos o parochias. Era a Rainha que saíra dos paços de seus pães. Toda a multidão ondulou, virando os olhos para o extremo da rua, d'onde desembocaria o cortejo em suas luzidissimas galas.

Era realmente deslumbrante a Calcanhares, o Simão Peres tinha razão para orgulhar-se de a haver descoberto e feito d'ella entrega a El-rei. O frade sentiu feril-o o espinho do ciume. Não havia duvida; o maroto levára-lho as lampas. Entre colxas riquissimas de seda e oiro, apanhadas por grinaldas de rosas, era qual apparição sobrehumana, lembrando uma fada de phantastica belleza, como as pomposamente descriptas nos romances de cavallaria. O sol da manhã de primavera fazia scintillar com fogos de vivas côres os diamantes espalhados em seus cabellos loiros, e a multidão cá em baixo não desfitava os olhos do quadro que a deslumbrava.

-- Aqui me fico, disse Simão Peres.

E como por acaso a amante d'El-rei baixasse desdenhosa os olhos para a rua, Simão cumprimentou-a com todo o garbo d'um cavalleiro. Os olhos d'ella brilharam mais vivos; sorriu-se.

-- Parece que ainda deu mais luz á manhã, disse Pantaleão embasbacado.

Fr. Bernado ouviu-o, e pensou:

-- Estará tambem Manuel Furtado na contemplação d'um idolo novo?... Não lhe bastará uma?... Quererá elle gosar de toda a remonta d'El-rei?

Uma ou duas filas de cabeças separavam-o do alferes e do pintor. Tentou approximar-se, olhando altivo para quem murmurava do seu dar aos cotovelos bicudos.

Mas a belleza de Calcanhares offendia-o. Se aquella mulher devéras se apoderasse do coração d'El-rei, perderia a partida.

-- Olha!... olha!... dizia Simão Peres. Quem lhe comparas?

O frade ria amarello e não respondia. Com indifferença fingida corria a vista por outras janellas e deu com D. Violante e a filha, aquella ainda gentil com seus vestidos de gala e seus cabellos quasi brancos, esta do luto ainda, como viuva.

O pintor olhava para a amante de El-rei.

-- Se me elle encommendasse o retrato...

Simão Peres, avistanado-o, ía para bater-lhe no hombro. O frade susteve-lhe o gesto.

-- Deixa-me ouvir o que diz, que me entretem.

-- A cara do sr. D. Affonso é que eu quero observar.

Já o cortejo, composto de grande parte da nobreza, ostentosa em seus cavallos ajaezados e dos coches que conduziam os da casa de El-rei, o embaixador e fidalgos inglezes e a nova Rainha com seus irmãos seguidos pelos capitães da guarda, entre as musicas e charamelas das danças, vinha caminhando rua acima.

Olhavam todos com avida curiosidade. Só Fr. Bernardo, distraído do que aos mais ali os attraía, observava com seu olhar a subtil physinomia de Manuel Furtado, de ouvido attento a qualquer palavra que soltasse.

Viu que seus olhos se dirigiam para a janella onde eram as senhoras da família de D. João d' Almeida, sem mais attenção prestar ao pintor extatico, que lhe fallava da Calcanhares e lhe batia no cotovelo.

D. Anna de Portugal, de quando em quando, baixava a vista para a rua como indifferente, espalhava-a indecisa sobre a multidão, parava-a um instante no alferes. E Fr. Bernardo notou que então o seu olhar revelava na expressão uma ternura maior em sua tranquillidade. Um segundo se encontravam os olhares e logo os dois disfarçavam.

-- Hum!... resmungou o frade. Aqui temos outro assumpto em que meditar.

Vinham chegando ao arco triumphal os primeiros cavalleiros. Ia o povo citando os que melhor conhecia, desbarretando-se. Os que ficavam mais atraz punham-se nos bicos dos pés, carregavam sobre as filas deanteiras, onde de pernas largas, mãos nas cinturas, com as grandes espadas erguendo as capas, figuravam os amigos d'El-rei.

-- Quem é aquelle, que não conheço? perguntou Pantaleão a Manuel Furtado.

-- E' o novo reposteiro-mór, camarista d'El-rei, o Conde de Castel Melhor, que desde o seu casamento com a filha de Bernardim de Tavora substituiu no paço a D. João d'Almeida.

E, emquanto o cortejo desfilava, os olhos de Manuel Furtado buscavam a cada instante a janella, d'onde os olhos de D. Anna do Portugal a cada instante buscavam os de Manuel Furtado.

-- Boa vai ella! dizia o frade. Uma boa arma já tenho para espicaçar a Falcôa. O diabo é aquella.

E olhava para a Calcanhares.

Vinha caminhando o coche real. A rainha sorria ao povo e enxugava os olhos vermelhos de muitas lagrimas de saudade. El-rei a seu lado, triste com o olhar muito parado, a bocca descaída, parecia alheado de quanto se passava, abysmado em algum pensamento doloroso. Pareceu acordar de repente, olhou para a janella onde a Calcanhares irradiava sua belleza; ella fez-lhe uma profunda reverencia e elle sorriu-se, chegando a esboçar um gesto de amigavel adeus. Simão Peres vira tudo; encheu-se de soberba. Na cadeira da frente, serio, compondo no rosto uma expressão de gravidade, o Infante olhava sobranceiro para o povo desbarretado.. Viu o gesto d'El-rei, olhou de soslaio para a janella e logo desviou seus olhos. A Rainha enxugou mais uma lagrima ao lenço bordado, levou-o á bocca, afogou um soluço.

-- Coitadinha! disse uma mulher do povo. Não era filha minha que casava assim com um hereje!

Acabaram de passar os capitães da guarda. Não houve conter a multidão que partiu correndo para o Terreiro do Paço, onde hora e meia depois se effectuaria o embarque. Simão Peres e Frei Bernardo foram levados na onda!

A Rainha D. Luiza de Gusmão era só no seu quarto áquella hora. Nem á sua dama valída, D. Antonia da Silva, permittira que a acompanhasse. Ouvira as salvas da artilharia e o repicar festivo dos sinos, e n'um diluvio de lagrimas pagava a seus instintos de maternidade, só finalmente, o tributo que a Rainha lhe não consentira. Fallava seu coração, mas não se calava seu orgulho. Olhava para o Tejo e via fluctuar altiva, no alto dos mastros, em todos os navios da formidavel esquadra, a bandeira de Inglaterra.

A viuva do duque de Bragança, Rainha de Portugal, era sogra d'um dos mais poderosos monarcas do mundo! Até onde subira! Mas picou-a no coração uma dôr profunda; era talvez das humilhações a que tinha descido. Sentia uma raiva a roel-a. Pois não poderia uma vez dar largas á sua soberba sem aquella sombra que a atormentava sempre! Antonio Conti!... Caro lhe havia de pagar tel-a obrigado tanta vez a mandar como mendiga bater á sua porta, d'elle, do valído, do filho do mercador italiano.

As musicas festivas das danças continuavam percorrendo as ruas e o som apagado dos instrumentos chegava até aos quartos da Rainha, junto com o murmurio confuso de milhares de vozes.

E continuava sonhando glorias, revendo miserias, considerando quanta vez sangrara seu coração, e ella humilhara sua vaidade e padecêra angustias para collocar firme na cabeça do filho a corôa gloriosa dos reis de Portugal.

-- Ah! se fosse o meu Pedro!... exclamou alto.

Mas estremeceu, ouvindo a propria voz pronunciar palavras de tanta crueldade.

Quem lhe dera retirar-se aonde terminar seus dias, longe d'aquelle paço em que o desasocego a acompanhara sempre, habitando a seu lado, com ella sentando-se á mesa, entrando com lugubre cortejo de pesadelos em sua camara de viuva, interrompendo-a em suas orações.

A's lagrimas de saudade já outras mais ardentes, que como brasas lhe requeimavam corrosivas as faces, tinham vindo juntar-se, roubando-lhes a doçura.

-- Para quê?... para quê? exclamou.

Recordara-se talvez de seu conselho ao marido hesitante, quando em Villa Viçosa lhe haviam offerecido a corôa de Portugal.

Salvaram outra vez os navios, e ella approximou-se da janella.

Sobre as aguas serenas deslisava o bergantim real a caminho da nau ingleza. Rodeavam-o falúas e gondolas, em que ia a comitiva da nova rainha, os fidalgos portuguezes que a acompanhavam para um ultimo adeus, os tribunaes. Seguiam-o um numero de barcas com as musicas e danças, unindo seu estrondo alegre ao da artilharia e ao dos sinos, que todos, outra vez, repicavam, annunciando um dia de festa á cidade.

Era a manhã muito clara, sem uma aragem que puzesse uma felpa branca no espelho azul do Tejo. O fumo da polvora espalhou-se sobre o rio e o bergantim entrou no denso nevoeiro.

A Rainha, fazendo então um signal de adeus á filha que não mais veria, caíu a soluçar nos braços de D. Antonia da Silva, que, anciosa, contra as ordens recebidas, entrara no salão devagarinho.

Simão Peres e Fr. Bernardo, ambos no caes, tinham pressa de se vêr livres um do outro e já pouco os entretinha o espectaculo. O murmurar do povo era sempre o mesmo, e só diverso o estilo de suas observações, conforme a classe a que pertenciam os commentadores.

O frade tinha por certo que a melhor arma de combate era o pichei de vinho offerecido. Nas tabernas visinhas ao palacio de D. João d'Almeida encontraria alguns creados a quem seria facil desentaramelar a lingua. Quem está bem não se muda, e o processo dera-lhe resultado com o discreto Pantaleão Gonçalves; assentára portanto seguir caminho identico para saber quanto se passava entre D. Anna de Portugal e o valente alferes.

Logo que pôde, despediu-se do companheiro e voltou caminho da Sé.

Simão Peres respirou aliviado. Era uma tentação aquella ideia que lhe viera quasi de subito olhando para a formosura da Calcanhares. Fôra infeliz na primeira tentativa; motivo não era de esmorecer. Pois fica deshonrado um general que perde uma batalha? A Falcôa sumira-se horas depois que lhe elle fizera a offerta do amor de Antonio Conti; por que não havia de repetir a experiencia com a Calcanhares tão facil de convencer? Sem duvida o valído já notára a formosura da nova amante d'El-rei; era pôr as coisas outra vez no mesmo caminho, com melhores probabilidades agora para uma victoria final.

Na febre do scismar torcia a pera. Pareceu-lhe que as salvas da artilharia no Tejo lhe prediziam seu triumpho. E' que bem precisava d'uma desforra, El-rei maltratava-o; o valído só para elle olhava por cima do hombro. Maldita Falcôa! Para que houvera o frade de invental-a? Pois era lá mulher a cotejar com a mais formosa do mundo, que, não havia duas horas, embasbacára com seus deslumbramentos a cidade inteira?

O ponto era encontrar Antonio Conti em hora propicia, quando os humores o dispuzessem para a aventura, na tarde d'um dia bom, que tudo lhe houvesse corrido sem uma sombra em seu espirito de italiano cheio de agoiros.

-- Hoje!... E porque não? exclamou quasi em voz alta Simão Peres.

E, convicto da boa sorte em sua nova empreza, começou de peito alto e cotovelos largos, rompendo por entre as filas do povo.

Antonio Conti devia de estar no paço com certeza áquella hora, sósinho em seu quarto. Glorias não lhe haviam faltado para bem lhe disporem o espirito. Dizer-lhe que uma linda mulher o amava loucamente que mais poderia senão acariciar-lhe a vaidade?

Com a Calcanhares seria facil desatar a trama que urdisse para persuadir o valído. Contava com seu apoio emquanto fosse para bem commum.

-- Esperta é ella, benza-a Deus! E do meu partido sempre.

Entrou no paço silencioso, como deshabitado. Não chegava aos quartos de Antonio Conti o soluçar da Rainha. Simão Peres approximou-se da porta. Ouviu o valído a falar com o irmão.

-- Saibamos primeiro como aquelles humores estão dispostos, disse comsigo.

Applicou o ouvido á fechadura, mas o reposteiro corrido pela parte de dentro abafava por vezes as vozes.

-- A má sorte foi trunpho que me cortou a outra bisca. Jogaremos esta com maior prudencia.

Ha muito que entrára no caminho de escutar ás portas.

-- Foi para ti um triunpho, dizia João Conti.

-- Decerto.

A voz do outro era mais fraca. O tom pausado, solemne, ás vezes, em que fallava, tornava entretanto perceptil aos ouvidos de Simão Peres uma ou outra palavra por onde, suppunha, poderia recompôr o dialogo.

-- O embaixador recebeu-me como a ministro a bordo de sua nau. Mas...

Baixou a voz. Simão encostou a orelha á fechadura, mas só deu pelo tom rancoroso com que o italiano fallava.

-- Já sei, disse comsigo, quaes são tuas queixas.

E adivinhava.

-- Mas hoje que pensaria?

Antonio Conti fallava por entre os dentes, que rangiam cortando-lhe as phrases.

-- Toda a nobreza, toda a côrte acompanhou a bordo a nova Rainha. Porque faltou quem elle em sua nau recebeu como dos primeiros do reino? Acredita, irmão; não é de joelhos a meus pés que eu quero vel-a, mas longe do paço, desterrada, chorando lagrimas de sangue, a mulher a quem devi meu vilipendio d'agora.

Alteou a voz.

-- Ha de chegar breve o dia em que, só, n'este palacio, hei de governar, senhor absoluto.

-- Bravo, exclamou Simão.

Ouviu a voz de João Conti, que, depois dos beneficios ecclesiasticos conquistados, ironicamente a fingia mansa e untuosa.

-- Mas, quando limpares o paço de teus antigos companheiros, lembre-te que hoje appellei para teus sentimentos fraternaes.

-- Tens com que viver, que mais queres?

-- Tenho o pão, que m'o conquistaste. Mal, porém, chega para mim e uma amante, que eu queria escolher entre as babujadas pelo amor de sua majestade.

-- Feliz monarca de tão leaes e respeitosos vassallos! rosnou Simão Peres em convulsões de riso abafado.

Mas Antonio Conti franzira o sobr'olho. O rufião cá fóra approvava com gestos solemnes de cabeça as phrases que lhe ouvia.

-- Até parece desconfiar de que o escuta alguem! Para quem dispende elle assim toda sua oratoria?

-- Hão de findar um dia teus gracejos. De tão baixa extracção como a nossa era o Cardeal Mazarino e teve em suas mãos quasi o inteiro mundo; italiano sou como elle e ambicioso; achas muito que venha a governar Portugal? Saberei dar força a El-rei e como hei de erguer a nação do abismo em que resvala. Inimigos tenho e muitos; saberei d'elles desfazer-me pondo por fim este reino no caminho do dever, da honra e, Deus me ajude, da gloria!

-- A que vem tanto palavrorio ? Porque te fallei das amantes de nosso augusto amo? Olha que já suppuz houvesses feito voto de castidade. Pois nenhuma ainda te arrebatou teus sentidos? Nunca junto da Calcanhares te ficaste meio tonto? Que mulher!... Olhos, cabellos, riso...

-- Olhos, cabellos, riso!... respondeu, como fallando comsigo Antonio Conti.

-- Protege-me a Fortuna! exclamou Simão Peres, mal contendo um grito. Agora me desforro! Alcaiote de El-rei já não era mau, mas alcaiote d'um ministro é um triumpho!

Mas já o valído de D. Affonso fallava tão baixo, que apenas uma ou outra palavra penetrava atravez da densa tapeçaria.

Sentado, d' olhos em alvo, fallava como em extasis.

-- Amei, sim, amei, e muito, uma mulher! Porquê, nâo saberia dizel-o. Infiltrou-se-me na minha alma a tentação subtil; era no principio um desejo como tantos que nos esvoaçam pela phantasia, uma imagem a que sorria, vaidoso, porque me seria pouco ardua a conquista. Cresceu-me o desejo em horas das mais fatidicas da minha vida, e, ao primeiro sopro da contrariedade, senti que todo o meu ser em mim se revoltava. Eram umas horas de espera para que eu mal podia socegar minha anciedade... Nunca mais a pude ver... nunca mais!

-- Mas de quem falas? perguntou João Conti.

-- E hoje, quanta sorte me proteja em meu caminho para a gloria, para o poder, põe-lhe sombra esta idéa: -- «Ella não sabe de mim! Não é sua a minha alegria!»

Ergueu a voz. Simão Peres estremeceu, ouvindo-o.

-- Quizera ser mais poderoso que todos os monarchas da terra, para a seus pés depôr sceptro, diadema e toda a minha gloria!

-- Vais bem, Simãosinho! dizia elle jubiloso. E tu, deixa lá gloria, sceptro e diadema, que ella é boa dona, com muito menos se contenta.

Apurou o ouvido.

-- Mau sestro o fallar tão baixo!

-- Maldito quem na minh'alma verteu o veneno e não soube encontrar-lhe a triaga!

-- Pello do mesmo cão! observou João Conti ajuizadamente.

Ferido, não dormi aquella noite. A febre emmaranhou meus sonhos. N'elles a via sempre, formosa como nunca a vira na realidade! Que dôr não senti quando, no dia seguinte, me vieram contar sua fuga, desapparição, morte... Ah! quanto oiro Castel para desvendar o mysterlo!... Baldado esforço!

Fallava rancorosamente, como se uma raiva interior contra a má fortuna ou contra alguem lhe aguçasse cada palavra, ainda que fosse de amor.

-- Hoje devia de ser para mim um dia de marcar com pedra branca. Primeiro me desfizessem o negrume da minh'alma. Se meu coração dormia, porque vieram despertar-m'o?

Fez a pergunta com dôr.

-- Coitado! disse Simão Peres.

-- Olha, João, continuou Antonio Conti com rancôr e falando por entre os dentes cerrados, creio em agoiros, como tu, como todos os nossos. N'aquella hora começou minha má sorte, porque não suppões o que é sentir a garganta abrazada pela mais dolorosa das sêdes, e seccar-se-nos para todo o sempre a fonte do paraiso que nos haviam apontado. Creio em agoiros, creio que um homem me quiz mal, que anda por artes diabolicas talvez preparando a minha queda. Mas agora valho dois homens, porque estou prevenido. E' n'estes dias, quando a mais um degrau a Fortuna me vai subindo, que mais receio as artes que o demonio tenha para do throno despenhar-me. D'uma mulher se quiz servir para turvar-me, talvez d'outra...

-- E amas ainda muito essa mulher?

-- Se a amo, perguntas? Mil vezes mais do que nunca a amou El 'rei! exclamou Antonio Conti n'um grito em que procurava desafogar sua paixão.

-- Agora ou nunca! disse Simão Peres,

Abriu a porta, affastou o reposteiro, mostrou a cabeça muito sorridente.

-- Dais licença?

-- A que vens? perguntou-lhe o valído sentindo-se por agoiros esfriar.

João Conti fazia com as mãos signaes que livram do mau olhado. Pelo tom da pergunta percebera que era Simão Peres o homem a quem o irmão se referira.

-- Responde!

-- Ha tanto que não via V. Ex.ª!... Desculpe-me a ousadia... Mas vinha dar-lbe meu parabem em dia tão solemne, de tanta gloria para V. Exª...

Já dizia o titulo sem sombras de ironia na voz. E sorria, muito lisongeiro.

-- E, como V. Ex.ª não pôde assistir ao côrtejo, queria dizer-lhe como ia bello, como o povo o applaudia, e muitas phrases que ouvi, todas de muita honra para V. Ex.ª

Antonio Conti calava-se. O outro continuou:

-- Que lindas damas ás janellas! Que mulheres formosas tem Lisboa! Todas muito curiosas, a espreitarem para dentro dos coches... Quem ellas procuravam sei eu, que lá devia de ir, pelo seu alto cargo, pelo brilho do seu nascimento. Ah! se a Rainha D. Luiza tivesse a seu lado...

-- Respeita a mãe de S. Magestade! observou-lhe Antonio Conti.

Simão Peres espalmou a mão no peito e encolheu-se todo humilde.

-- Perdôe-me V. Ex.ª Bem sei que a nossa bocca nao deve queixar-se de toda a injustiça que nos salta aos olhos.

Olhou por baixo para o valído e cuidou vêr-lhe no rosto urna expressão de vaidade satisfeita.

-- Que lindas damas! repetiu. Se V. Ex.ª visse a Calcanhares! Resplandecia mais que todas as joias que a adornavam! Era o povo todo por baixo da janella: -- «E' uma princeza de conto de fadas!... Mas quem no mundo merece o amor de tamanha perfeição?... Não ha quem seja digno de lhe desatar as fitas dos sapatos!» A Calcanhares não olhava para dentro dos coches; bem sabia que não lhe era dado avistar aquelle por quem seu coração batia; mas tinha um ar tão triste, coitadinha, tão triste...

O italiano fez um gesto.

-- Fallo verdade a V. Ex.ª, disse Simão Peres.

E com ar malicioso accrescentou:

-- Ora!... V. Ex.ª bem sabe.

Antonio Conti recuára. Viu o irmão atirando os braços ao ar, muito erguidos o index e o minimo de cada mão, encolhidos os outros dedos.

-- Queres tu dizer que a Calcanhares...

-- Pois quem duvida?... respondeu Simão Peres encolhendo os hombros. Quanta vez m'o tem contado! Desde que, pela primeira vez, viu V. Ex.ª... Eu não costumo dar parte do muito que sei, e foi cuidando... Faz-se V. Ex.ª de novas...

-- Hoje então m'o vieste revelar!

Simão Peres pasmava de ver como se ia transformando o rosto do italiano. Seria que o maravilhava a nova, que devia enchel-o de contentamento!

-- E' hoje dia muito grande para V. Ex.ª, para seus servos e para todo o reino.

-- Queres dizer que mais alto hoje me suppoes...

-- No mais alto degrau do throno!

E, baixinho, para si, acrescentou, reparando que os olhos de Conti lhe estoiravam:

-- Está doido!

-- O amor d'essa mulher...

-- Amor, senhor, não é, mas loucura!

-- Hoje! hoje m'o vens dizer?

-- Hoje! affirmou Simão Peres, radiante pela boa idea e o bom caminho em que se julgava ir andando.

Então Antonio Conti ergueu a mão contra o alcaiote e assentou-lha na cara.

Simão Peres caíu, de bocca aberta.

El-rei e o Infante já haviam voltado ao paço.

A artilharia disparára sua ultima salva passando em frente á torre de Belem, e a Rainha D. Luiza continuava soluçando nos braços de sua dama valída.

Estremeceu ouvindo no corredor os passos dos dois filhos. Enxugou as lagrimas.

-- Coragem! disse. Minha missão de rainha não findou por emquanto.

Cá em baixo, Antonio Conti sentia-se agoirado, tremia-lhe o queixo.

CAPITULO XIV

Conspiradores

Simão Peres saiu do paço, a correr á doida pelo Terreiro e a vomitar quantas pragas aprendera em tantos annos de cavallariça.

Dirigiu-se primeiro, para os lados de S. Francisco, voltou, passou pela Porta do Oiro, achou-se outra vez no Terreiro e dava corridas e estacava de repente. Ouviu chufas d'uns populares: -- «Olha o maluco!... Está com a mosca!... Parece um cão a quem ataram uma panella ao rabo!»

Não ligava duas idéas. Era um atordoamento dentro da cabeça, um zunir de tempestade nos ouvidos, mil estrellinhas a dançarem-lhe diante dos olhos, na cara um ardor que o enraivecia... Saía-lhe a respiração em abafados rugidos. Em si mesmo um só impulso sentia, uma anciedade febril de morder como cão damnado. Via tudo côr de sangue. Saiu do Terreiro, onde o irritava o rumor alegre da gente sentada em volta das merendas, em grande algazarra, que já o vinho lhe começava trepando ás cabeças. Uns gaiatos correram em volta d'elle, toureando-o. Com o passo incerto dirigiu-se para os lados do antigo palacio do Marquez de Castel Rodrigo, chamado da Cõrte Real, que se estava adereçando para morada do Infante D. Pedro.

Sentou-se alli n'uma pedra, roendo os punhos. Quizera ter ferrão como as abelhas e morrer enterrando-o no coração de Antonio Conti. Parecia-lhe que afogava, deitou mãos á camisa e rasgou-a no pescoço.

Passava gente que vinha dos lados de Santos e que ia commentando os gestos do escudeiro: -- «Alguem se lhe foi na armada... Saudades da Infanta... Vinho...»

Vingar-se... Ter ali a vingança prompta! Um dia seria possivel... Ah! não ser n'aquella mesma hora!

Chorou de raiva.

Mas de repente, os olhos pasmaram-se-lhe, fitos no palacio. O Infante! O que se dizia!... Se era certo que dentro do proprio paço se conspirava contra o valído e até contra o proprio rei!...

Riu-se a ranger os dentes.

Elle sabia d'uns podres de Antonio Conti; nas mãos tinha provas... Ah! vel-o n'uma corda a estrebuxar, roxo, d'olhos rebentados, lingua de fóra!

Para que era ter pressa? Accumularia veneno para morder a tempo e horas e vasal-o na ferida.

Socegou; meditava; mas ainda tremia. Eram agora milhões de pensamentos que se lhe emmaranhavam na cabeça, e não atinava com o caminho a seguir para erguer Antonio Conti até á altura da forca.

A Rainha rodeara o Infante da melhor gente do reino. Devia de haver alguma verdade no que se rosnava pelas cavallariças do palacio e já andava na cidade a correr de bocca em bocca. Só era surdo quem para a só lisonja tinha ouvidos. Se o Infante formasse partido, offereceria seus serviços á gente de D. Pedro. Que lhe importava El-rei?

-- Meu amo é quem me paga!

Mas se houvesse engano? Precisava aconselhar-se. Um bom amigo, discreto, se o tivesse... Acudiu-lhe de subito á lembrança a Calcanhares. Pois quem melhor...? Não se deve escolher partido senão depois da victoria. Ir desde já armar a traição seria imprudente. Na vida tinha visto falharem tantos projectos... A Calcanhares resolveria.

Foi subindo para os lados de S. Francisco, por detraz de cujo convento ella morava havia pouco, n'umas casas que lhe mandára adereçar El-rei.

Ia o sol descendo e a tarde esfriando. Simão Peres embrulhou-se na capa, puxou o chapeu para sobre a orelha direita, remediou como pôde o rasgão da camisa e repuxou outra vez para cima as guias do farto bigode. Creara uma alma nova com sua decisão. Voltara-lhe a antiga coragem. A certeza de que havia de vingar-se serenara-lhe o bater do coração.

De bochecha inchada e ar garboso, ia subindo. Chegou á porta da amante real e sentiu soberba em ver mais uma vez o luxo de que ella ostentosamente se rodeava. Tinha suas entradas francas; atirou desdenhoso um signal de adeus ao escudeiro e, sem mais aviso, subiu a escada.

Que differença entre aquelle apparato e a miserrima choupana da Falcôa! Até parecia que El-rei então se envergonhava de que lhe soubessem d'uma amante! O luxo de que a cercara escondêra-o de toda a gente, disfarçara-o com a mais vil miseria exterior. Agora, pelo contrario, obrigava os olhos de todos a maravilharem-se com os explendores em que trazia a Calcanhares. Assim era seu dever, que diabo. Pois mulher havia no mundo, ou rei possuia amante, que valesse quem Simão Peres havia atirado aos braços do sr. rei de Portugal, D. Affonso VI?

Entrou na sala, em que a mobilia nova, os doirados, os brocados, os espelhos, tudo reluzia e mais que tudo a propria Calcanhares. Déra-lhe o sol um bocadinho de dôr de cabeça, e, sem se despir, estirára-se no canapé baixo, forrado de seda.

Uma creada despenteara-a, continuando a passar-lhe o pente pelos longos cabellos loiros. A Calcanhares doôrmitava. Ao sentir os passos de Simão Peres descerrou os olhos, firmou-se no cotovêlo, soergueu-se um pouco.

-- Que tens tu? disse logo.

Com a vista um bocadinho curta, piscava os olhos, o que lhe dava graça.

-- Doi-te algum dente?

-- Vê-se? perguntou Simão Peres.

A Calcanhares deu uma gargalhada.

-- Bateram-te?... Mas que feia cara!... Vai ver- te ao espelho.

-- Bateram-me! disse elle furioso.

A Calcanhares sentára-se.

-- E tu logo... um... dois...

Fez um gesto, como se esgrimisse.

-- Mataste o homem!

-- Hei-de matal-o.

-- Logo que entraste me cheirou a defuntos! E' o teu costume.

Simão Peres foi vêr-se ao espelho. Com dois dedos, muito cuidadosamente tocava na bochecha. A Calcanhares mandou retirar a creada.

-- Conta-me então como soffreste a vil affronta.

-- Por bem fazer...

-- Como morre um soldado na fronteira.

-- Por tua causa.

-- Então obrigada, Simão.

E deixou-se caír para traz a rir, a rir...

-- Mas que bochecha! que bochecha!

A recepção desnorteava Simão Peres. Entrára, calculando que toda a trama seria combinada pelos dois em voz baixa, misteriosamente, até á solemnidade d'um juramento final. Vinha em busca d'um conselho sobre como havia de acabar com a vida d'um homem, trazia o coração cheio de raiva, a alma a trasbordar de amargura, e era recebido ás gargalhadas! Indignou-se. Compoz uns modos de offendido

-- Vinha procurar-te como a boa amiga; creio que me enganei.

E fez menção de saír.

-- Que modos! Porque uma regateira a quem disseste uma fineza te marcou na cara os cinco dedos, olha a desgraça para que me ponha a chorar!

-- Se fosse uma regateira...

-- Se fosse uma regateira, dizes tu! E' que não sabes. Quando minha mãe me batia, ouviam-se-me os gritos em Xabregas e em Belem.

-- O caso é muito sério.

-- Entrando tu?...

-- Porque é comigo.

A Calcanhares franziu ironicamente o sobr'olho, que era um encanto, tão maravilhosamente desenhado, n'um arco de tanta correcção, que um poeta já lhe chamára arco de triumpho do sol.

-- Fala, Simão Peres.

-- Quando houveres deixado de brincar. A vida não é só comer á tripa fôrra, dormir até ao meio dia e folgar em pagodes.

-- Parece uma das maximas de Antonio Conti.

-- Esse foi.

-- O italiano?... E tu?

Simão Peres ficou pasmado da pergunta.

-- Eu levei!

A mulher já não ria; tremiam-lhe levemente as azas do nariz.

-- Começa agora por ti; ha-de ir subindo seu odio a todos os que rodeiam El-rei!

-- Amigos dedicados... disse Simão Peres.

Man arrependeu-se da mentira; a traição que desejava armar breve a tornaria muito clara.

-- Conta, disse ella, inclinada sobro os joelhos em que descançava os cotovelos, de braços estendidos, mãos postas, approximando o rosto do de Simão Peres.

Elle aproveitou logo a occasião.

-- Foi sem mais tir-te nem guar-te, porque lhe fallei de ti, como em tua ausencia fallo.

-- Que lhe disseste?

-- Que estavas linda á janella da rua Nova, que o povo te admirava, que todos elogiavam o bom gosto d'El-rei.

-- Quer-me esse homem muito mal.

-- Pois quer.

Foi-se pôr outra vez em frente do espelho, abriu a bocca, experimentou dente por dente se estavam abalados.

A Calcanhares erguêra-se ; passeava pelo quarto.

-- Como se valesse mais do que eu, ou mais fosse um mercador do pateo real do que uma regateira de Alfama! Minha mãe era uma mulher honrada, que chorou muita lagrima quando lhe eu fugi de casa. O sr. Antonio Conti de Vintimiglia só quer ao lado d'El-rei fidalgos da sua egualha! Quer vêr os pergaminhos da Calcanhares? Não valem menos que os seus!

-- Talvez me fizesse bem bochechar com altéa, concluiu Simão Peres depois do minucioso exame.

Mas a Calcanhares não lhe deu attenção. Tinha emfim com quem pudesse desafogar. Pelo proprio amante soubera quanto ao valído desagradava o escandalo de sua nova ligação. Queria fazer esquecer os processos por que o valimento conquistara e, senhor finalmente do reino, quando a Rainha deixasse o poder, sentar-se glorioso em sua cadeira de ministro. Rufiões e amantes, rixas nocturnas, gastos á larga, tudo seria depois levado á conta de excessos proprios da mocidade.

Entre exclamações aprendidas ao acaso com os poetas da côrte e nos bêcos da Mouraria, ia a Calcanhares desenrolando o estendal de suas queixas em variado estilo.

Simão Peres poz-lhe ponto, dizendo-lhe outra vez com modos solemnes:

-- Ouve, Calcanhares. Pódes muito; El-rei ama-te.

Ella encolheu os hombros.

-- A mim!... Estás doido!

-- Mas...

Pois a mulher, que, entre todas, elle, Simão, escolhêra, não era de enlouquecer a humanidade, quanto mais um homem só, e que homem?

-- Os homens conheço eu... até demais. Vangloria-se El-rei de sua facil conquista e quer escandalisar o reino com a riqueza de que me cérca.

Amar-me...

-- Sabes que El-rei é doente e...

-- Em seu coração não toquei, porque achei lá dentro outra imagem de mulher.

-- Leve-a o diabo! disse Simão Peres suspeitoso.

-- Tomara El-rei poder amar-me! Vejo-o, adivinho-o... Faz-me suas confidencias... mentirosas, bem sei, mas a si proprio mente, quando me quer mentir.

-- Outra mulher!... Mas quem?...

-- Uma que lhe morreu ou lhe fugiu... Dou-lhe tão pequena attenção...

-- A Falcôa!

Deu um murro em cima da mesa. Era sempre o mesmo azar a perseguil-o! Ah! se um dia a descobrisse... O peor era se o frade, mais intimo na casa, lhe deitasse primeiro a mão.

-- A Falcôa! repetiu.

Mas se El-rei ainda assim a estimava, a carta que possuia de Antonio Conti centuplicava de valor! Era cedo ainda; qualquer passo no caminho da vingança, dado o poder do valído, poderia ser arriscado. Reservaria o mostral-a para um golpe final.

-- Um segredo tenho de Antonio Conti... Se o teu poder com El-rei não fosse...

-- Ainda que elle me não ame, bastante vaidade lhe dá a posse da minha formosura, para que um beijo meu oponha a meus pés rendido. Fallas d'um segredo. Quantos possuo! E' sestro dos homens abrir a sua alma ás mulheres cujo amor desejam. Ainda os mais discretos fazem-me promessas que envolvem em misterios; só dizem meias palavras, mas tantas tantas me têm dito, que já formei phrases inteiras. Assim, pouco a pouco, me vou deixando conquistar!

E desatou outra vez a rir.

-- Sabes então...

-- Tudo o que está planeado contra Antonio Conti.

-- E...

-- E contra El-rei tambem.

-- Contra El-rei? Bem andei vindo ter comtigo! E' que me dizia o coração...

A Calcanhares pôz-se a sorrir, maliciosa.

-- Que, passo a passo, fosses...

-- Passando o pé...

-- Para o partido do Infante.

-- Justo!

-- Andarias como tolo.

Simão Peres escancarou a bocca.

-- Porquê? Se lhe tiram Antonio Conti, quem fica á ilharga de El-rei?

-- Alguem ficará.

-- Mas o Conde de Soure e o de S. Lourenço, o Duque de Cadaval, o padre Antonio Vieira...

A Calcanhares, sorria.

-- Não me contas?

-- Mas que sabes?... Dize.

-- Sei que dos novos fidalgos, que ha pouco entraram para a companhia de El-rei, um, ambicioso de gloria e de poder, só, contra todos os mais, sustentará D. Affonso em seu throno...

E com um gesto aprendido nas vielas, a desdizer com os trajes de rainha que a vestiam, a Calcanhares explicou os motivos de sua convicção.

-- Porque tem unhas.

-- D'onde o conheces?

-- De minha casa.

-- Quem é?

-- E' meu segredo.

-- Veio fazer-te sua côrte?

-- Não lhe sobra tempo para disparates.

-- E tens n'elle inteira confiança?

-- Inspirou-m'a quanto me disse.

-- Bem. Vejo que procuras governarte d'ora avante sem meu conselho. Mas eu... que hei de fazer? Voltar ao paço? Expôr-me a trespassar com minha espada a barriga de S. Ex.ª?

-- Tu... Ficarás em minha casa. Póde até ser que precise de teus serviços.

-- Mas se El-rei te perguntar por mim?

-- Respondo que não sei.

-- Sabes como é arrebatado; se te mandar que jures.

A Calcanhares poz-se a rir.

-- Já viste alguma vez que me importasse jurar falso?

-- E's um anjo!

Homisiado em casa de Calcanhares, que possuia a melhor cosinheira de Lisboa e uma riquissima adega, Simão Peres, não cabia em si.

-- Deixa-me beijar-te as mãos.

Poz-se a piscar os olhos para arranjar uma lagrimasinha de gratidão, que foi rebelde ao esforço.

-- Já merendaste?

-- Se nem jantei!

-- O' pobre diabo!

E correu á porta.

-- Luzia!. . Põe a mesa, que o Simão está morto de fome!

Voltou.

-- Porque não m'o disseste logo á entrada?

-- Vinha cheio de raiva...

-- Pois bem fizeste em cá vir. Ah! quer Antonio Conti instruir El-rei nos principios da boa moral, depois de o haver perdido! Queime-se o degrau em que poz seu pé para subir ! Receba-o o embaixador inglez com todas as honras e nós, aquelles que nos sacrificamos para que S. Ex.ª paire nas alturas, sejamos depois apontados ao exterminio por seu poderoso dedo!... Por ti começou... Deve meu nome figurar na lista. Ainda é cedo para me apanharem, e, porque sou mulher, melhor saberei vingar-me!

-- Está a mesa posta, disse a Luzia espreitando á porta.

Simão Peres estremeceu de jubilo.

-- Mas que bochecha!... que bochecha!

E a Calcanhares caíu outra vez no canapé, a rir ás gargalhadas.

CAPITULO XV

O valído

Recebera El-rei aviso de sua mãe para no sabbado, 16 de junho de 1662, se achar pela manhã ao despacho.

Para esse mesmo dia haviam sido convocados os ministros dos tribunaes, nobreza o principaes do povo, que representavam corpo de côrtes. A' medida que vinham entrando, recebiam aviso para subir aos quartos d'El-rei, onde aguardariam novas ordens.

Nas ante-camaras todos fallavam baixo, confusos, quasi todos ignorantes do que fôra combinado entre D. Luiza de Gusmão e seus mais affeiçoados conselheiros. Percebia-se-lhes no olhar a febre da curiosidade. Uns a outros faziam perguntas. Seria ainda o caso, tão discutido já, do formidavel dote concedido á Rainha de Inglatera? Seria alguma pro- posta a enviar a D. João d'Austria, depois de sua corrida heroica atravez do Alemtejo? Dizia-se que a Rainha estava cançada, que consultára os ministros sobre a conveniencia de entregar o poder nas mãos de D. Affonso... Que haveria? Aventavam alguns a idéa de que se tratava da prisão de Antonio Conti; mas parecia-lhes tal feito indecoroso no sagrado do paço. Porquê? perguntavam outros. Se elle com sua vida offendêra o sagrado?

Por entre os differentes grupos passeavam alguns fidalgos, que sorriam ouvindo taes commentarios e, senhores do segredo, iam atiçando os odios contra o conferente dos ministros estrangeiros, tão animado pelo favor real, que tinha em seu poder os mais importantes papeis da secretaria de Estado.

Viam muitos d'elles a vantagem que viria á sua fortuna na mudança de governo, se para ella concorressem com sua opinião e valor.

Ia dar-se o primeiro passo, conforme por D. Luiza fôra combinado com os principaes fidalgos da côrte, o secretario Pedro Vieira da Silva e o pregador d'El-rei, padre Antonio Vieira.

Passou apressado o Duque de Cadaval, levando comsigo uma guarda de archeiros. A ultima supposição tomou corpo. Era contra o valído com certeza que o paço inteiro se revoltava.

El-rei somnolentamente assistia ao despacho. Recolhêra tarde na vespera, depois d'uma ceia em casa da Calcanhares, onde bebêra um copo a mais. Fizera-lhe mal a sopa doirada, em que entretanto a Luzia era superior ás melhores doceiras dos conventos de Lisboa. Andava aborrecido. Antonio Conti só pensava em politica. João Conti queria que lhe tomassem a sério as ordens sacras, Simão Peres desapparecêra e Fr. Bernardo arranjava sempre agora uns ares tão misteriosos de quem possue um segredo abafadiço, que perdêra toda a graça e vivacidade.

Entretanto o Duque de Cadaval collocára soldados ás portas das escadas. Seguravam outros pontos o porteiro-mór e o corregedor do crime.

Aquelle, adiantando-se e encontrando Antonio Conti, perguntou-lhe pelo Duque; respondeu que não o havia visto e passou, desconfiado, a uma casa interior que tinha janellas gradeadas para o eirado, onde se fechou dando volta á chave.

Não tardou que chegasse o Duque de Cadaval, depois de haver tomado todas as precauções para que ao italiano, por todos os lados, se lhe impedisse a fuga.

Quiz com a chave mestra, que trazia, abrir a porta, mas encontrou por dentro, na fechadura, a chave de que Antonio Conti se servira. Intimou-o a que se entregasse, mas não ouviu resposta. Bateu com desespêro.

-- Abre, patife!

O valído, furioso como fera engaiolada, corria ás portas e todas achava fechadas e guardadas por fóra. Era o final!... Rugiu vendo-se caído na cilada, impotente contra uma traição para que, aliás, devia de estar prevenido. Era o terror tal, que os olhos lhe saíam das orbitas e lhe doíam as pancadas do coração. Approximou-se da janella, passou a cabeça pelas grades, talvez procurando avistar alguem que lhe acudisse, a quem gritasse por soccorro, talvez para uma louca tentativa de fuga impossivel.

A' porta, com os punhos d'uma espada, continuavam batendo.

Ouviu a voz do Duque de Cadaval ordenando que ao Arsenal fossem buscar dois machados. Estava perdido, se lhe não acudisse El-rei! A salvação estava na demora.

Viu o Duque a correr pelo eirado. Quiz das grades retirar a cabeça e não poude. Sentiu-se agarrado pelos cabellos, viu no ar scintillar o aço d'uma espada.

-- Senhor! não me mateis!... Que mal vos fiz, senhor? disse com voz sumida.

-- Abre a porta! ordenou o Duque.

-- Para quê?... Para quê?

-- Abre e saberás então o que te ordenam.

Antonio Conti afogava entre as grades; dobravam-se-lhe as pernas sem forças, o vergão de ferro ensanguentava-lhe o queixo, e não podia d'ali arrancar a cabeça.

-- Largae-me os cabellos! gritou.

-- Canalha!... Alcaiote!

-- Eu vos abro, se me segurardes a vida!

-- Contentamo-nos com teu desterro, se, já, me obedeces.

Empurrou-lhe a cabeça brutalmente, obrigando-a á força a passar entre os varões. Conti deu um grito de dôr sentindo rasgarem-se-lhe as orelhas.

O Duque voltára para junto da porta, esperando que elle cumprisse a promessa. Mas o desgraçado ainda teve uma esperança; ouviu vozes altercando; reconheceu a do Conde de Castel Melhor.

Era elle o gentil-homem de camara, que estava de semana.

-- Que fazeis, Duque?

-- O meu dever de fidalgo. Limpo este paço de quem o avilta.

-- Ousaes assim erguer a mão contra os creados d'El-rei!

-- Não é creado d'El-rei quem o infama.

-- Violaes o sagrado do palacio.

-- Antes o violaram os que d'elle fizeram coio de suas depravações.

Antonio Conti já mal as pernas o sustinham. Mas o Duque segurára-lhe a vida... Ah! se houvesse tempo de prevenir El-rei!

Ainda gritou:

-- Soccorro!... Soccorro!

-- El-rei está na casa do despacho e a porta é fechada, disse o Conde. Tem ordem o porteiro de a todos prohibir a entrada. Armastes bem a traição, Duque.

Cruzaram os olhares como espadas.

-- Traidores são os que defendem infamias praticadas contra a dignidade real.

-- De quanto no paço, sem ordem d'El-rei e contra El-rei commetterdes, elle vos tomará severas contas.

-- Eu lh'as prestarei de cabeça erguida.

Viu Antonio Conti pela janella do eirado que já traziam os machados. Ouviu os passos do Conde de Castel Melhor que se afastava apressado. Se elle teria tempo e occasião de avisar a D. Affonso?

-- Pela ultima vez, abre! disse de fóra o Duque. Os machados estão levantados contra a porta. Digo-te que quantas lascas fizerem, tantas feridas te abrirei no corpo.

Antonio Conti considerava-se perdido.

Fiado na palavra do Duque, abriu a porta. Na pallidez do rosto sobresaía a côr arroxeada das orelhas. Mal as pernas o sustinham.

Preso pelo corregedor, atravessou, cambaleante, o eirado. Na Ribeira das Naús atiraram-o para dentro d 'uma falúa.

A um canto, avistou o irmão que chorava e sem resistencia se deixara prender.

-- Larga! disse o corregedor.

Armaram a vela.

E Antonio Conti olhava para o paço d'onde o afastava cada sopro do vonto. Tão miserável ali chegára, e se tornára tão poderoso! Ali, tyranno, sonhara governar um dia. Cheio de pasmo, esfregava os olhos; raivoso, arrancava os cabellos.

Viu um homem levado em braços e pareceu-lhe reconhecer Fr. Bernardo.

-- Aquelle já leva a sua conta, disse um marinheiro. Quiz fugir, deitou-se do caes abaixo, partiu as duas pernas. Livrou-se d'um passeio até á Bahia.

O navio que os esperava já estava de ancoras a pique.

Entretanto o Duque de Cadaval chegava á sala do despacho para dar conta de seu recado, e logo o porteiro lhe abriu a porta. Immediatamente foi mandado aviso para que entrassem os fidalgos, tribunaes, senado da camara e casa dos vinte e quatro e, na presença de todos, Pedro Vieira da Silva leu o papel que tinha preparado.

El-rei, pasmado de tão grande ajuntamento, ouvia e não percebia.

O secretario lia pausadamente.

Feito á Rainha o devido elogio por seu culto aos preceitos de El-rei D. João IV, grande amor a seus filhos e desejo que sempre a animara de procurar todo bem para este reino, disse o fim para que, na falta de côrtes, convocára S. Majestade os conselhos e tribunaes. Queria dar-lhes conta dos remedios applicados ás queixas que lhes haviam sido muitas vezes dirigidas e pedir que outros lhe fossem apresentados para serviço de Deus e maior bem d'estes reinos. Censurou a El-rei por se applicar tão pouco á direcção dos negocios e abraçar exercicios violentos e perigosos. Pediu-lhe que mudasse os caminhos e melhor empregasse seu talento, valor e generosidade d'animo. Queixou-se de no paço, muito perto da real pessoa, haverem sido introduzidos sujeitos de inferior qualidade e pessimos costumes, conselhos e artes, auctores de constantes delictos, intentando discordias até no sagrado, com discursos contra o decoro da fé, do sangue, do amor, do respeito e da unica e legitima adoração, que só estava na real pessoa d'El-rei. Terminou recordando quanta vez os ministros representaram á Rainha atalhasse aquelle damno, tirando de junto da real pessoa d'El-rei inimigos que punham a côrte em maior perigo do que os castelhanos a fronteira. Conformára-se a Rainha com o commum sentir dos graves ministros e assim o fazia saber a todos os tribunaes.

Mas havia, amaciando as censuras, tantos elogios a suas qualidades, zelo, clemencia, amor da justiça, aborrecimento da lisonja, fallavam-lhe tão humilimamente prostrados deante de seu real acatamento, que El-rei, não entendendo o que d'elle desejavam, depois que todos lhe beijaram a mão, perguntou ao monteiro-mór se aquelle ajuntamento haviam sido côrtes.

Respondeu-lhe o monteiro-mór a verdade, que as principaes queixas eram contra Antonio Conti e sua pandilha e que a Rainha os mandára prender e desterrar.

Ficou-se como aturdido, piscando os olhos, sem perceber, sem poder acreditar o que lhe diziam. Começou-lhe o queixo a tremer. De repente, desembainhou a espada e desatou a correr pelos corredores, até ao quarto, bradando pelo valído.

Esperava-o o Conde de Castel Melhor.

-- Conde!... Conde! gritou-lhe El-rei, pallido, com grossas lagrimas a correrem-lhe pelas faces. Todos... todos!... Parece-me que me querem dar a sorte de Carlos I de Inglaterra!

-- Senhor! disse-lhe o Conde. Segure V. Majestade sua pessoa, pois não tém mais que esperar senão o que succedeu a Antonio Conti. Saia logo do palacio, e Deus tudo saberá remediar.

Mandou a toda a pressa sellar dois cavallos. Galoparam para Alcantara.

Ordenou o Conde a Henrique Henriques de Miranda que, com a gente que pudésse, para lá marchasse na mesma noite. E, quando El-rei adormeceu, eram o Conde com toda sua familia no paço de Alcantara e quatrocentos homens em armas vigiavam-lhe as portas.

CAPÍTULO XVI

Um homem

Recebêra El-rei em Alcantara a carta de sua mãe.

«Muito alto e poderoso principe.

A'manhã, ás dez horas do dia, terão recado os tribunaes para em sua presença vos entregar os sellos e com elles o governo d'estes vossos reinos na fórma que se costuma; e, porque n'esta materia não haverá duvida alguma, vos rogo nmito queiraes recolher-vos a vossa casa.»

A joven Condessa de Castel Melhor sentia opprimir-se-lhe o coração n'aquelles paços de Alcantara, onde entrara cheia de agoiros, vendo violentamente estorvado o delicioso deslisar de sua lua de mel. Mettiam-lhe pavor os olhos da sogra em que reluzia uma ambição satisfeita; parecia-lhe que n'elles até lia crueldade.

Entrára o Conde a dar-lhes parte da missiva que trouxera o Conde de Pombeiro e lhe fôra entregue pelo secretario Pedro Vieira da Silva.

A Condessa-mãe sorria e os olhos de Luiz de Vasconcellos ainda a interrogavam.

-- Deu-se um primeiro passo. Agora, com firmeza, deves traçar teu caminho.

-- Tenho a meu lado dois homens de excellente conselho, respondeu o Conde: o Conde de Athouguia e Sebastião Cesar.

A expressão da Condessa, em que leu duvidosamente uma contrariedade, fel-o calar o elogio que prompto ia tecer a seus companheiros.

-- E os traidores? Como cuida El-rei castigal-os?

-- Se alguns houver, o desterro pelo menos...

-- E um perdão mais tarde...

-- Decerto; se o bem do reino assim o exigir.

A viuva do Conde D. João fez um movimento de visivel impaciencia. Já se fallava em perdão! E ella sabia que a indulgencia do marido, a fraqueza que sempre revelára na applicação do castigo, quasi haviam annullado as vantagens de sua grande alma que d'elle fizeram tão bom soldado. Tremia pelo filho, quando n'elle reconhecia as qualidades do pae. Choráva o marido padecendo e morrendo pelas faltas dos outros, e, ao vêr Luiz de Vasconcellos quasi senhor do poder que para elle ambicionára, opprimia-se-lhe o coração, medindo a maior altura de que poderiam inimigos precipital-o. Olhava para o filho, e ao tempo que entrava com ella um desfallecimento, logo, outra vez cobrava animo; reconhecia-lhe no rosto suas proprias feições d'ella, o relancear rapido dos olhos para longe, a curva mais energica da linha do queixo.

Um escudeiro entrou e deu ao Conde um recado em voz baixa, que lhe produziu um pequenino movimento de espanto.

-- Que vou já.

A Condessa fez-lhe um signal demorando-o.

-- A'manhã, quando El-rei tomar conta dos sellos, repara em quantos te rodeiam; tantos serão teus inimigos.

-- Ninguem será por mim, minha mãe? perguntou o Conde sorrindo.

-- Deus! respondeu ella.

-- Com elle me contentarei.

Ia a saír, quando ouviu um suspiro reprimido. Voltou-se.

-- Guiomar!... disse com a maior ternura.

A mulher correu para elle, abraçou-o, encostou-lhe ao hombro a cabeça.

-- Porque choras? perguntou-lhe o Conde.

-- Porque me esqueces.

-- A ti!...

-- Deus sabe que horas vais ficar longe de mim, e nem te despedias!... E eu, ainda estás perto, e já tenho saudades tuas!

-- São estes primeiros dias assim, mais atormentados de maior febre; verás depois como vão quietas deslisar as nossas horas sem um rebate, nem por sonhos, que nos ponha um susto no coração. Tenho a confiança d'El-rei; saberei mantel-a. Menor a tua será, que tanto melhor me conheces!

-- Porque melhor te conheço, porque te amo muito mais... tenho medo!

O Conde pegou-lhe na cabeça com muito carinho, beijou-a longamente nos cabellos.

-- Tonta!

E saíu.

D. Guiomar de Tavora olhou para a Condessa velha e viu-a tão erecta, de sobr'olho carregado, com uma expressão de tanta dureza nos olhos negros, que toda se sentiu esfriar, e caiu n'uma cadeira.

-- Tenho medo!... tenho medo!

O escudeiro esperava o Conde no corredor.

-- Manda subir.

O Conde entrou para uma sala, onde, á espera do frade que o procurára, começou passeando, a meditar no que a mãe lhe disséra.

-- Traçar um caminho!... Mas qual?... Não é fácil escolhel-o... Ter o poder nas mãos, vingar a patria insultada, arrancar a bandeira castelhana de onde quer que fluctue em praças portuguezas, hasteal-a para além da fronteira... Era força insinuar-me no animo d'El-rei... Mas como?...

-- O frade! annunciou o escudeiro.

Curvou-se e saíu.

-- Fallae, disse o Conde ao recem-vindo, que esperava no limiar da porta, de braços cruzados sobre o peito. A maneira por que vos annunciastes diz-me que trazeis recado de certa senhora.

-- De posse d'umas palavras que me ella confiou e que deviam servir-me de chave para chegar até V. Ex.ª, é d'um negocio de V. Ex.ª que venho tratar e não d'ella.

-- Abusastes então...

-- E' verdade, senhor, mas perdoae-me. Mentiroso é tambem este meu trage, mas perseguido pelos inimigos de El-rei...

-- Sois portanto...

-- O pobre Simão Peres, que vem acolher-se á poderosa protecção de V. Ex.ª. Fui um dos mais procurados para companhia de Antonio Conti n'esta sua viagem á Bahia. Andava escondido ha tempos e valeu-me n'este apuro o meu anjo da guarda.

-- E atrevei-vos agora...

-- A implorar a protecção de V. Ex.ª? Atrevo-me, sim, meu senhor.

Ergueu n'um instincto de orgulho a cabeça, e accrescentou:

-- Saberei pagar-lh'a.

Curvou-se outra vez humildemente. Continuou:

-- V. Ex.ª póde vir a ter um inimigo poderoso.

-- Quem?

-- Antonio Conti.

O Conde olhou fito para Simão Peres. Era verdade. Era de todos o que mais temia, apesar das ordens que já dera para sua volta com a maior brevidade. Conquistára a confiança de El-rei, defendendo-lhe o valído e assim conseguira leval-o a exigir da mãe a entrega do poder; mas como depois afastal-o para sempre do trato d'aquelle villão que tão longe levára sua audacia e que tão alto erguêra suas ambições? Para ganhar a partida, teria no lanço que perder aquella melhor pedra de seu jogo.

Simão Peres, como se respondesse ao pensamento do reposteiro-mór, disse-lhe quasi ao ouvido:

-- Sei de muitos segredos do coração de El-rei, e posso a V. Ex.ª pôr em mãos a prova do que affirmo: a amisade d'El-rei por esse homem em odio lh'a mudarei, quando eu quizer.

-- Como? perguntou o Conde.

Saiu-lhe a pergunta tão espontaneamente anciosa, que antes de arrepender-se do tom em que a fizera, já Simão Peres explicava:

-- El-rei só uma mulher amou até agora. Não sei porquê. Tinha lá comparação com... Mas deixemos isso. Ora... posso dar a V. Ex.ª uma carta que o snr. Antonio Conti escreveu á Falcôa fallando-lhe de seu amor. Veja V. Ex.ª onde chegou a audacia sacrilega d'um aventureiro de má morte!...

Uma carta á amante de seu real amo!... Conservo-a ainda sellada com os sellos reaes.

-- E quanto queres?...

Simão Peres mostrou-se offendido.

-- Senhor!... Quero o bem do reino e o de V. Ex.ª, sr. Conde. El-rei sabe como fui sempre seu fiel servidor e quanta vez lhe fallei de V. Ex.ª Ainda hoje com a Calcanhares, ao almoço, eu repetia:

-- Em vez d'um traidor, até que felizmente temos á ilharga de S. Majestade um fidalgo portuguez!

E muito confidencial:

-- Livre-se V. Ex.ª de Fr. Bernardo. Acredite-me; não é de confiança.

O escudeiro entrou. Chamavam o Conde da parte de El-rei.

-- Vae-te, disse para Simão Peres. Escusas d'ora ávante de profanar esse habito. Nenhum mal receies. Outra vez te ouvirei com mais vagar.

Simão Peres quiz beijar-lhe a mão. O Conde retirou-a.

E, correndo ao chamamento d'El-rei, pensava:

-- Pois será este o caminho ? Deverei eu entender-me com rameiras e rufiões? Terá razão Henrique Henriques de Miranda e deverei eu deixar El-rei de Portugal no monturo em que se revolve?

Pôz a mão no fecho da porta.

-- Deus me ajude!

Entrou na sala onde El-rei o esperava.

No dia seguinte, vespera de S. João, ás dez horas da manhã, apeavam-se El-rei com o Infante ás portas dos Paços da Ribeira. Todos os tribunaes, titulos, fidalgos e principaes do povo achavam-se reunidos nas ante-camaras. A Rainha sentou El-rei á mão direita e o Infante á esquerda.

Diante de El-rei, sobre uma cadeira rasa collocou o Conde de Castel Melhor uma almofada de velludo carmezim e sobre ella pôz o secretario a bolsa contendo os sellos reaes.

E disse a Rainha:

-- Estes são os sellos com que os reinos de V. Majestade me entregaram o governo em virtude do testamento de El-rei, meu senhor, que Deus tem. Entrego-os a V. Majestade e o governo que com elles recebi. Prazerá a Deus que debaixo do amparo de V. Majestade tenham as felicidades que eu desejo.

Sem dizer palavra tomou El-rei os sellos e entregou-os ao Conde de Castel Melhor.

Lembrando-lhe o dito de sua mãe, relanceou este o olhar em volta. «Repare em quantos te rodeiam, tantos serão teus inimigos». Viu muitos rostos enfiados, leu colera em muitos olhos.

Um por um, fidalgos e gente dos tribunaes, approximaram-se do throno, curvaram o joelho, beijaram a mão aos principes. O Infante mordia o beiço de baixo; approximou da bocca olenço e retirou-o tinto de sangue.

-- Dous me ajude! tornou o Conde a dizer comsigo.

E em visão rapida reviu a nação portugueza em seu antigo brilho, das maiores entre as grandes do mundo. Olhou para El-rei e viu-o mal aguentando o corpo debil nas pernas que tremiam, reparou em seu olhar apagado, como sem pensamento, na bocca desenhando-lhe uma curva melancolica, nas faces descaídas. Que importava?

-- Has-de ter nome na historia, pensou.

Ergueu altivo a cabeça.

-- Affonso, o Victorioso!

SEGUNDA PARTE

PATRIA

CAPITULO I

Primeira victoria

D. Joao d'Austria tomára Evora, que facilmente se lhe rendêra. Um grosso de cavallaria hespanhola viera depois até Alcacer do Sal, arrasando quanta população não mandára suas justiças levar as chaves aos pés do bastardo de D. Filippe IV, jurando fidelidade e vassalagem a El-rei de Hespanha.

Correu em Lisboa a nova de que era todo o exercito castelhano que marchára desde Evora e já se achava a quinze leguas da capital, sem mais do que o Tejo de permeio.

Começou o povo a juntar-se no Terreiro do Paço, onde rugia furioso, fallando de traições, nomeando traidores.

O Conde de Castel Melhor, que viera habitar os quartos do palacio d'antes pertencentes ao principe D. Theodosio, affastando a cortina, contemplava as ondas do povo que um temporal agitava. Mal lhe distinguia as vozes, mas os uivos eram de dôr, e elle sentia nos olhos a humidade d'uma lagrima.

Poucos mezes havia que em suas mãos tomára a direcção dos negocios. Emquanto El-rei continuava na mesma dissolução de costumes, sempre em nocturnas aventuras com seus antigos companheiros, dirigidos agora por Henrique Henriques de Miranda, o escrivão da puridade, descurando ás vezes, por todo entregue á defeza do reino, a propria segurança, conseguira organisar o mais forte exercito, que havia de oppôr aos dezoito mil infantes e aos nove mil cavallos com que D. João d'Austria saíra de Badajoz.

Fôra nomeado governador das armas do Alemtejo D. Sancho Manuel, elevado por seus feitos a Conde de Villa Flôr. Era general da cavallaria Diniz de Mello e da artilharia D. Luiz de Menezes. O Conde de Schomberg, governador das armas estrangeiras exercia o officio de mestre de campo general.

Reuniu-se o exercito em Extremoz: onze mil infantes pagos e auxiliares divididos em vinte e um batalhões, sessenta e quatro esquadrões de cavallaria com tres mil cavallos, quinze peças de artilharia com todas as munições necessarias.

Sabia o povo de Lisboa que sacrificios do reino se haviam exigido para continuar a lucta; não lhe eram desconhecidas as intrigas do paço contra o mando supremo que assumira em breves dias o escrivão da puridade; confiava no Conde de Villa Flôr, sempre pela Fortuna protegido; e, quando, a toda a hora, esperava a nova almejada da victoria, o desastre d'Evora vinha arruinar-lhe toda a esperança de liberdade.

E, desconhecedor dos factos, só explicando a vergonha pela traição, o povo gritava sob as janellas do paço:

-- Abaixo!... abaixo os traidores!

-- A féra ainda tem coração, disse uma voz por detraz do Conde de Castel Melhor.

-- N'isso mesmo minha mãe, pensava, respondeu elle.

-- Olha como brame! Doeu-se com a affronta; ainda temos uma esperança.

Chegou á praça um bando de regateiras e mais cresceu o tumulto.

-- Mas que faz em Extremoz D. Sancho Manuel? perguntou a Condessa.

-- Tarde chegou a Evora-Monte, quando já Evora vergonhosamente se havia rendido, ao cabo de poucos dias de cêrco. Mas n'elle puz toda a minha confiança para uma breve desforra. Pensa devagar, mas intrépido nos perigos, nenhum obra com maior valor.

-- Morram os traidores! gritavam as regateiras cá fóra.

-- Morram! berrava o povo.

Crescia a onda; não puderam os guardas contel-a; irrompeu pelos paços dentro.

Desceu o Marquez de Marialva á escada contra a gente furiosa. Conheceram-o. Estacaram na subida.

-- Que é isto, filhos? Contra quem? perguntou.

-- Contra os traidores! responderam.

-- Pois se vós outros conheceis algum, eu serei vosso capitão, vamos matal-o.

-- Mataram a El-rei!... Queremos matal-os a todos ou poremos fogo ao palacio!

-- Pois eu subo, respondeu ainda o Marquez, e, se é verdade que mataram a El-rei, eu vos prometto que não fique nenhum vivo e o palacio será queimado!

O velho vencedor das linhas d'Elvas susteve por instantes o impeto do povo, que voltou para o Terreiro clamando:

-- Viva o Marquez de Marialva, nosso capitão!

A Condessa de Castel Melhor vira a invasão da onda, mas nem um musculo do rosto se lhe contraíra. Comprehendia a furia do povo contra a rendição vergonhosa. Morrêra-lhe um filho no cêrco de Badajoz, vira muita vez, sem um desmaio, partir o marido para o combate, ella mesma no Minho tratára dos ferimentos do filho mais velho, enviára agora seu outro filho, Simão de Vasconcellos, para o exercito do Conde de Villa Flôr. «Morram os traidores!» , gritava o povo; e ella intimamente ajudava-o em seu brado.

Appareceu El-rei á janella. Acclamaram-o. Mas não se calavam as vozes:

-- Morram os traidores, que entregaram Evora!

El-rei fez-lhes signal. Calaram-se todos.

-- Socegai, filhos! disse-lhes. Ninguem é traidor, senão muito leal.

Puzeram-se todos clamando pelo Marquez de Marialva.

-- Venha comnosco, porque é nosso capitão!

Mas já os mariolas se haviam mettido por meio da plebe, esperando boa occasião para um crime de que não receavam castigo.

-- Elle que não vem comcosco, um dos traidores é elle!

Saíram da praça furiosos, dirigiram-se ao palacio do Marquez, onde os creados á custa da vida lhes quizeram impedir a entrada. Saquearam a casa, arrojaram pelas janellas o que não puderam levar. Era tal a multidão de gente que se apertava nos quartos, que uns a outros se afogaram, e o chão ficou cheio de mortos.

-- A' morte Sebastião Cesar! gritaram umas vozes.

-- A' morte! gritaram os outros.

E na mesma furia, agora contra o arcebispo eleito de Lisboa, sem encontrarem resistencia, saquearam-lhe a casa, puzeram-lhe fogo.

Eram como loucos delirando. A' frente d'um magote uma mulher magra, d'olhos tortos, de camisa desabotoada deixando vêr os peitos caídos, gritava como endemoninhada:

-- A' morte!... A' morte!

-- E, quando ria, mostrava os caninos agudos.

-- Vamos a casa do Luiz Mendes d'Elvas! gritavam os bandoleiros, que ao povo tinham vindo unir-se.

Nenhuma culpa Luiz Mendes podia ter; mas era rico.

El-rei mandára a um capitão de infanteria de guarnição no Castello, que com cem mosqueteiros fosse ao encontro dos amotinados.

A mulher gritava.

-- A' morte!... A' morte!

Caíu com a primeira descarga.

A' noite, no silencio da cidade, o vento a assobiar muito lugubre baloiçava nas forcas, á luz do luar, os cabeças de motim summariamente julgados.

O Conde de Castel Melhor a toda a hora esperava no paço nova missiva dizendo-lhe a marcha do exercito portoguez, que, com tanto calor e actividade, organisára á força de repetidas levas, dinheiro e soccorros, que fizera concorrer das provincias para defeza do Alemtejo.

Os trez mil carros que acompanhavam o exercito castelhano e a multidão de bagagens facilmente haviam dado a conhecer que nao era tenção de D. João d'Austria sitiar praça alguma da fronteira, para o que não precisava embaraçar-se com numero tamanho de carruagens. Mas como suppôr que tão facil lhe seria até Evora sua marcha e como accreditar que tão sem resistencia assim se houvesse rendido a segunda cidade do reino?

Adoecêra o governador Manuel de Miranda Henriques, assim que vira apertar o perigo, entregando o governo ao siciliano D. Pedro Pecinga, que em Portugal procurára amparo por se haver rebellado contra seu rei, e era o cabo mais veterano dos que se achavam na praça.

Atrahíra a si D. João d'Austria com seus bons modos todos os povos do Alemtejo; quinze leguas em volta de Evora toda a villa ou logar veio dar obediencia a Hespanha. Lia em publico D. Pedro Pecinga varios papeis em que o principe castelhano ora fazia largas promessas, que a muitos afagavam ambições, ora estrondosas ameaças que aos paisanos infundiam terror. Nem queria ceder o governo, porque temia o castigo que merecêra como vassallo de El-rei de Castella, nem possuia coragem bastante para encaminhar os soldados á dilatada brecha que a artilharia inimiga abrira nas muralhas.

Eram mais os paisanos que os soldados e temiam pôr-se em risco de verem degolados suas mulheres e filhos. Entregaram elles a cidade, ante as hesitações do governador, para quem se estipulou, e para outros nas mesmas circumstancias, que pudessem saír da praça mascarados. Poderiam o governador e officiaes, com uma peça de artilharia, passar ao exercito portuguez; soldados e cavallos passariam para Castella até ao fim da campanha. Taes eram as condições.

Arvoraram-se nas torres e muralhas os estandartes castelhanos, e, por entre muitos vivas a El-rei de Hespanha, foi na cidade recebido D. João d'Austria, que sob o pallio caminhou até a egreja Maior, onde foi cantado o Te-Deum.

Saíra de Extremoz D. Sancho Manuel com seu luzido exercito e cada soldado levava dentro em si a certeza do vencer. Se Evora resistisse uns dias, quem da vicoria poderia duvidar?

-- Não é assim, capellão? perguntou Pero Rolão ao padre Ventura, que a seu lado cavalgava.

-- O que ? E' ainda da tal mulher que me fallas?

-- Valha-te não sei quem diga! No momento em que ia esquecel-a, tu me vieste recordal-a! Fallava-te da certeza que levo da victoria!

-- Mulheres e guerras não são para mim, bem sabes. Ah! ricas missas da minha Elvas querida!... O' Sé, quando tornarei a subir ao teu altar?

Pero Rolão poz-se a assobiar por entre os dentes, sorrindo como um bafejado pela sorte.

-- Vaes contente, disse-lhe o padre.

-- Pudéra!... Se estou vendo o que não tarda a succeder! Aquartelados sobre o Degebe, se D. João d'Austria levanta o sitio e passa o rio, occupamos Evora-Monte, e quero ver como os castelhanos hão de trepar a serra sob o chuveiro das nossas balas; se não se movem, vamol-os apertando, apertando, e com uma sortida da praça, e nós fortificados... Sabes o que tenho concluido?

-- Dirás, suspirou o padre com um olhar em que se lia a mais evangelica paciencia.

-- Pois concluí... que D. João d'Austria é tolo!

O padre Ventura deu um tal pulo em cima da sella que, perdendo os estribos, teve que segurar-se ao pescoço do cavallo.

-- S. Paulo advogado contra as quedas! berrou muito enfiado.

Susteve-se. O cavallo, velho capão d'orelha murcha, todo branco pela muita edade, parára, cheio de attenções para o cavalleiro.

-- Tolo! exclamou o padre Ventura, apenas conseguiu outra vez enfiar o pé no estribo. Um principe, que basta um homem ouvir-lhe duas palavras e logo fica preso de seu encanto! Pois qual o segredo de prestigio tamanho, até entre inimigos que mais se rendem a suas boas palavras do que ao temor de suas tropas?

-- Tal me não digas! exclamou o alferes com os olhos muito saídos, raiados de sangue, a rebolarem doidos nas orbitas.

-- Já me esquecia... rosnou o padre, D. João d'Austria, o inimigo de nós todos, é teu rival.

-- Meu...!

A cara de Pero Rolão exprimiu um encanto de tal natureza, que o padre desatou a rir de lhe ver o pasmo alvar dos olhos e o retorcer da bocca entre as bochechas gordas.

-- Se a viras, padre, se a viras! Todo o perigo me esqueceu! Quando o exercito castelhano marchava junto de Extremoz, como D. João d'Austria avistasse a nossa cavallaria fóra da praça e só da parte da villa podia recear-se, passou todos os batalhões do lado direito ao esquerdo, que nos fazia frente, e todas as carruagens ao lado direito da infanteria. Foi então que pude vel-a em seu coche... Mil annos que eu viva, não me torna a nascer outro sol como aquelle!

-- Sabes quem me lembras? perguntou o padre Ventura.

-- Quem?

-- Manuel Furtado, quando no cêrco d'Elvas nos fallava de sua Maria da Boa Hora.

O alferes encolheu os hombros.

-- Até que sei de cór duas historias de paixões!... Ao menos, o outro cantava-nos versos que fazia, mas tu...

-- Pensas que não tentei?... Até debaixo dos penedos, onde me escondera, mais seguro da morte que da Fortuna, por entre o piorno que me occultava, com seis mil aranhas que me dançavam sobre a cabeça e me mordiam no pescoço, vieram-me á lembrança coisas lindas ! Que a rima acuda é que eu não creio.

E continuou:

-- Na confusão da escaramuça que haviamos tentado, achei-me só, separado dos meus, illeso felizmente. Era quasi noite, quando uma bala, não sei lá d'onde, me furou o cavallo. Dei por certo que a minha ultima hora tinha chegado. Metti-me entre os penedos... Como escapei? Talvez para vir a morrer d'amor!... E os castelhanos e os italianos e os allemães e os irlandezes, que passavam junto de meu coito, iam praguejando em suas linguas. E eu não bulia um dedo e eu quasi nâo respirava.

O padre tirou da algibeira o livro das horas e começou lendo. O outro nem por isso se calou.

-- Foi então que, n'uma paragem do immenso desfilar, uma voz deliciosa veio acarinhar os meus ouvidos. Tu não calculas o que é estar um homem n'um buraco escuro, com aranhas por todos os lados, á espera da morte a cada minuto, e ouvir de repente a voz d'um anjo a dizer: -- «Pepe, mi abanico!» Não me contive; finquei as unhas no chão, rastejei, afastei o piorno; expuz-me a que uma bala de mosquete me entrasse pela cabeça e me saísse por um calcanhar, mas vi a mais formosa mulher...

-- Branca como a neve, olhos negros como a noite... Tal qual a do Manuel Furtado, disse o padre, logo voltando aos seus versiculos.

-- Evora-Monte! gritaram ao lado uns soldados, apontando para o castello, que por entre um rasgão da serra se via, alto em seu morro, com a bandeira branca das quinas a fluctuar sobre as ameias.

-- Ah! vencer esse maldito principe, tanto com a Fortuna contando, que traz a amante para assistir a suas victorias! Vencel-o, destroçar toda a sua gente, ouvir novas exclamações, mas só de raiva, em mais linguas que na confusão da torre de Babel! Correr com a minha espada nua por entre os esquadrões em fuga e dizer aos lindos olhos pretos: -- «Não choreis. Sou eu, Pero Rolão. O vencedor sou eu!» Ah! padre, ámanhã ou depois, a victoria é nossa! Ao Pepe talvez perdõe.

Mas em Evora-Monte estava D. Pedro Pecinga com a má nova de se ter Evora rendido.

Perguntou-lhe o Conde de Villa Flôr se na praça não entrara um homem, que havia quatro dias lhe enviara a ordenar-lhe que pelejasse, pois, com todo o risco, partia o exercito a acudir-lhe.

Desculpou-se D. Pedro:

-- Os paisanos eram mais que os soldados e me obrigaram a capitular, dispostos como estavam a revelar-se contra a guarnição da cidade.

-- Cobarde!... Infame! exclamou D. Sancho, desembainhando a espada e pondo-lh'a na garganta. Desculpas são essas de galinha! Mas quem foi traidor a seu rei, muito não é seja desleal ao estranho!

Carregou-o de ferros, mandou que o levassem a Extremoz.

Rendera-se Evora! Pelas faces dos veteranos corriam lagrimas de desespero.

-- Pero Rolão!... Padre Ventura! exclamou uma voz.

E Manuel Furtado, um dos officiaes mandados sair da praça, caíu nos braços dos amigos.

Como alegre os deixára e com que tristeza os revia!

E, toda a noite, com a maior melancolia, falaram de guerras e de amores!

Então, em longas confidencias, disse Manuel Furtado aos amigos a chave dos enigmas de suas cartas e a vida cruel que arrastára em toda sua ventura.

O padre, por mais innocente, levou mais tempo a perceber o tormento do apaixonado poeta que tanto amara idealmente uma mulher virgem de corpo e alma; por mais de uma vez, o interrompeu dizendo:

-- Mas, se virgem veio para teus braços...

E fazia perguntas a que Manuel Furtado, só embaraçadamente, respondia córando.

Pero Rolão, que n'outros tempos daria pouco attento ouvido aos queixumes de Manuel Furtado, agora, por melhor experiencia da paixão, por mais requintada sensibilidade, annotava-os com certa phylosophia.

-- Lembra-vos como d' Elvas me parti sonhando e que sol illuminava quanto eu via!... Por estas charnecas fóra, com a espora a sangrar o flanco do cavallo, atirando ás populações a boa nova da victoria, quem pudera dizer-me, que o eu acreditasse, que n'um carcere me havia de fechar, longos mezes, annos, que de mim mesmo havia de ser carcereiro e dar-me tratos para confissão, que não ouso, que não quero fazer... nem a mim mesmo!

-- Não és feliz, pobre Manuel!

-- Ter amado como soube amar! Ter em longa ausencia acrescentado cada virtude da mulher, com esta virtude do grande amor que faz maior o que é mais longe! Ella só, constante, revendo!

E disse Pero Rolão, d'olhos em alvo:

Toda a noite em doces sonhos, que mentiam!

Todo o dia em pensamentos que voavam!

-- Acerta, ao menos, os versos, disse o padre arripiado, já que, por acaso, me querem fallar portuguez!

Manuel Furtado sorriu-se.

-- Acertar um verso!... Ahi tens o meu martirio: é querer acertar os versos que fiz. Minha Maria da Boa Hora, que, transplantada para meu coração, o amor tornou tão santa! Com todos teus sorrisos, com todos teus afagos, com todas tuas lagrimas, melhor me fôra nunca te haver encontrado!... Só em meus braços vibrou teu corpo, mas os labios que eu te beijo a outros labios mentiram e a seus beijos responderam! Tua macula...

-- Apagou-se! disse o padre impaciente. Se chorasses sobre a ruina de Evora, entendia que fôsses Jeremias; mas por causa d'um beijo da senhora...

-- A macula passou á minh'alma entristecendo-a, continuou Manuel Furtado. Meu amor, que devia ser vida, deu-me cabo da vida e de meus sonhos de gloria. Não fôra D. Pedro d' Almeida, mandar-me que o acompanhasse por seu tenente, em Lisboa em ficára, como aquelles bebados que o vinho mata e que só no veneno do vinho encontram remedio ao soffrimento.

-- E deixaste-a?

-- Deixei. Mas na vespera do cêrco appareceu-me em Evora. Tinha vendido uns diamantes d'uma sua joia... E assim, ainda foi El-rei quem lhe pagou a jornada!

Cerrou os punhos, raivoso, córou de vergonha.

-- Atirei-lh'o á cara. Desatou a chorar.

-- Coitadinha! disse o padre.

-- Se eu pudesse atirar assim com a vergonha á cara da antiga amante d'um principe, disse Pero Rolão, era o homem mais feliz d'esta vida! Toda luz é ella, ella calor, ella unico aroma, e toda a musica para mim se resume em tres palavras: «Pepe, mi abanico!»

Estavam deitados ao ar livre, que a noite era de maio, cheia de estrellas para que Manuel Furtado se poz olhando, como para velhas amigas olvidadas. Tanta vez em Elvas, entretendo os olhos scismadores a contemplar a volta lenta e silenciosa do Carro em torno á estrella do norte, pensara em Maria da Boa Hora!

-- Ha tanto, disse, que não olhava para as estrellas! Em Lisboa sao as ruas tão estreitas e as casarias tão altas, que só vê a gente nesgasinhas de céu. Como agora bem me sabe respirar este aroma da charneca onde crescem as flôres do maio!

Bebia o ar em profundos haustos.

-- E' bom!... Parece que nos purifica o sangue, que nos dá uma alma nova!... Vive-se n'um campo de batalha, e eu já tinha saudndes... Voltam-me esquecidas ambições, renascem-me no coração...

O padre, deitado de costas, começou resonando.

-- Maldito D. Pedro Pecinga, que me veio dar cabo de meus sonhos de victoria! disse raivoso Pero Rolão. Aonde iremos d'aqui dar com os ossos? perguntou n'um bocejo cantarolado.

Manuel Furtado continuava devaneando, recostado n'um penedo, com as mãos cruzadas por detraz da nuca.

-- As estrellas dão sonhos bons á gente; sob os telhados moram os pesadêlos.

Pero Rolão, conforme podia, aconchegava-se e dava pequeninos suspiros queixosos.

-- Um colxão sempre é melhor.

-- Estrellas d'oiro no céu azul!... Conheço olhos da côr do céu, cabellos da côr das estrellas. Quem me déra amar tendo minh'alma assim, tão serena e perfumada como esta noite de maio em que respiro!... Amanhã partiremos d'aqui e Deus vá comnosco. Parece que outra vez sinto em meu peito aquella ambição de gloria, que foi toda a minha vida antes que negra fosse! Vencer, entrar onde leve a boa nova com um riso nos labios, e vêr lagrimas de alegria n'uns olhos lindos... da côr do céu!

Pero Rolão extranhou a comparação, pois eram negros os olhos de Maria da Boa Hora.

Quiz interrogar o amigo, mas a voz saía-lhe preguiçosa.

-- De côr do céu da noite, disse comsigo.

E adormeceu.

Manuel Furtado continuou a devanear baixinho.

Erguia-se de todo o acampamento um murmurio confuso, como de muitas abelhas que zumbissem n'um tom profundo. Ouviam-se gemidos de acordados, queixas chorosas, e, aqui, além, gritos abafados, rumores estertorosos dos que tinham sonhos maus.

Mas nem a terrivel noticia demudára o semblante do Conde de Villa Flôr, que a todos animava.

-- Se a castelhanos, dizia, foi facil a conquista d'Evora defendida por portuguezes, como nos ha de ser ardua se a defendem castelhanos? Conto com o valor das nossas armas. Nem motivo de perder-se a esperança é um lanço de má fortuna.

Houve indecisões nos primeiros conselhos sobre o melhor caminho a seguir. Lembraram alguns, como desforra, a conquista de Olivença e chegou o exercito a mover-se n'essa intenção; mas o Conde de Castel Melhor, que das pedras fazia soldados e lanças do ferro das charruas, aconselhou El-rei a que escrevesse a D. Sancho para que, sem demora, marchasse sobre Évora. «E assim, Conde amigo, ou ao céu ou a Evora, porque eu não quero ser rei de Portugal, se o não fôr tambem d'essa praça. »

A unir-se ao exercito chegára da Beira o mestre de campo general, Pedro Jacques de Magalhães, com dois mil e quinhentos infantes e quinhentos cavallos e, ao mosmo tempo, a, nova do que o Marquez de Marialva havia passado a Aldeia Gallega a formar um novo exercito.

Com estes reforços e boas esperanças de melhores, desvanecido o intento da tomada de Olivença, saíu o Conde de Villa Flôr do Alandroal onde fôra aquartelar-se.

-- O Conde de Castel Melhor olha por nós; não ha que temer! disse.

A's tres horas da tarde de 4 de junho, nas margens de Degebe, appareceram aos portuguezes os primeiros batalhões da vanguarda castelhana.

D. João d'Austria, deixando pequena guarnição na cidade, depois de mandar recolher a toda a pressa a cavallaria que enviára a Alcácer, saiu de Evora, e, mandando fabricar uma plataforma na eminencia mais visinha ao alojamento das tropas portuguezas, d'ella começaram jogando, mal cerrou a noite, quinze peças de artilharia.

Então o Conde de Schomberg foi collocar as ballisas d'um novo alojamento, para onde, de noite, em grande silencio, mudou todo o exercito. Deixára levantadas as tendas e accesos os fogos, e contra estes, até que alvoreceu, estiveram jogando as baterias castelhanas.

-- Principiamos bem, disse Manuel Furtado a D. Pedro d'Almeida.

A artilharia portugueza tão vantajosamente fôra collocada e com tanto denodo se houve a cavallaria na defeza dos dois portos por onde quizeram os castelhanos vadiar o rio, que teve D. João d'Austria que mudar de intento.

Manuel Furtado dera duas cargas e saíra illeso. Pero Rolão, inchando as bochechas, soprando encalmado, confiava na victoria.

-- Sou eu, Pero Rolão!... Que dirá ella quando me vir victorioso?

E todos davam a victoria como certa.

Começaram os castelhanos a descer o rio, mas adeantou-se-lhes o general de artilharia, D. Luiz de Menezes a occupar dois pontos que na vespera reconhecêra superiores á marcha que haviam de levar. A cada melhor descarga enchia de dobrões d'oiro as mãos dos artilheiros. Caiam dizimados os corpos de infantaria e cavallaria a cada tiro. Os ultimos, que vinham chegando, não souberam guardar fórma e valeram-se dos pés para pôr em salvo as vidas. Observou D. Luiz de Menezes que muitos cabos e officiaes se amparavam das paredes de uma casa arruinada, contra a qual mandou que todas as peças fossem disparadas ao mesmo tempo. Era a campanha coberta de mortos, entre os quaes um tenente general de artilharia e o mestre de campo, D. Gonçalo de Cordova.

Mandou D. João d'Austria que o exercito se desviasse das baterias e, recolhendo-se a Evora, achou alterado todo o povo, que, animado com a visinhança do exercito, festejava a fortuna do primeiro recontro.

Ao anoitecer, o Conde de Villa-Flôr, correndo os terços e os esquadrões de cavallaria, avistando Manuel Furtado, ao lado de Pero Rolão e do padre Ventura, franzia o sobr'olho como a querer rccordar-se. Illuminou-lhe o rosto um sorriso. Approximou-se do tenente.

-- Manuel Furtado, não é?

-- Outra vez ao serviço de V. Ex.ª

-- Com quem?

-- Na companhia de D. Pedro d' Almeida.

-- Folgo em ver-vos.

E seguiu.

Os soldados acclamavam-o.

D. João d'Austria, ao lado de sua dama, recolhia a colera em que o punha uma voz interior a dizer-lhe que ia correndo á sua perdição. Vencido elle! E por quem?... Por uma canalha sem lei, nem rei!

Olhou para a amante e estremeceu por ella.

-- Hoje nos retiramos d'aqui, disse.

E, logo que anoiteceu, mandou que com todo o silencio fossem saindo pela estrada de Bruceiras as tres mil carruagens que trouxera.

-- Em Arronches esperarei os reforços de Badajoz e terei certa a conquista de Lisboa!

Nunca o ella vira tão alterado. Olhava para elle como receando que a soberba offendida pelo desastre lhe offuscasse os talentos de militar. Tremia e não ousava dar palavra.

Mandou D. João d'Austria chamar o italiano, mestre de campo, Conde de Sertirana, em cujo valor e muita experiencia confiava. Deixou-lhe uma guarnição de tres mil infantes e oitocentos cavallos, treze peças de artilharia, artificios de fogo e munições e mantimentos em abundancia, com que pudesse sustentar um largo sitio.

Logo muito cedo, observando as disposições do exercito inimigo, dissuadiu-se do proposito que mostrára de combater. O mau successo de suas armas que tanto, na vespera, offendêra sua vaidade, pôl-o de sobre-aviso no caminho da prudencia.

Começou sua marcha para Arronches, vagarosa, cheia de difficuldades pelo grande trem que levava. Seguiu-lhe no encalço o exercito portuguez e ambos passaram o rio Tera, o nosso no porto do Evora-Monte, o dos castelhanos no da Venda do Duque.

Depois de toda uma noite em que andou sem descanço, porque não descançava D. João d'Austria, achou-se de madrugada o exercito portuguez proximo do Ameixial, entre a villa de Extremoz o o exercito castelhano.

O capitão general, receoso de qualquer decisão audaciosa de que conhecia capaz a D. Sancho Manuel, melhorou de terreno occupando tres outeiros dos mais altos, n'elles collocando sua infantaria e a cavallaria nos plainos lateraes.

O Conde de Villa-Flôr tomara sua resolução; mas vinham as tropas cançadas e bem sabia de que alento precisavam para ajudarem seu intento. Era força derrotar o exercito castelhano, antes que novos reforços se lhe viessem encorporar. Tinha de ser. Se os hespanhoes penetrassem na fronteira carecia Portugal de dois exercitos, um para sitiar Evora, outro para defender as praças quando fossem atacadas. Não era facil a victoria, que so alguma vantagem levavamos na infantaria aos hespanhoes, sua cavallaria dobrava quasi o numero da nossa. Contava D. Sancho com o ardente desejo da victoria, que animava todos os portuguezes, e sabia que desde a sortida de Evora muito diminuira o prestigio do capitão castelhano.

-- Deixemol-os descançar, pensava. Logo veremos.

Mas já Manuel Freire de Andrade, general da cavallaria de Almeida, sem esperar ordens e despresando determiçoes, não contendo seus impetos, fôra, levando comsigo a guarda que governava, atacar uma perigosa escaramuça com a rectaguarda do inimigo.

-- E' para hoje! dizia contente Manuel Furtado.

-- Se hoje a verei! suspirava Pero Rolão.

E o padre Ventura benzia-ze.

-- Apostas que é para hoje? perguntou-lhe o alferes.

-- Aposto que não, respondeu, interrompendo as orações. Seis vintens. Aqui os deposito nas mãos de Manuel Furtado.

-- Seis vintens!... Prompto!

E, terminada a aposta, um voltou a rezar, outro a pensar na fascinadora amante do principe inimigo.

Mandou o Conde de Villa Flôr ordens terminantes a Manuel Freire que retirasse; mas já o traziam sobre um cavallo e atravessado de um tiro, moribundo.

Correram duas lagrimas pelas faces de D. Sancho.

-- Por dois motivos, disse, sinto entranhavelmente morte d'este homem, porque hoje me ha de fazer falta e porque não morreu como general.

-- Mau principio! disse Pero Rolão.

-- Não gostam os hespanhoes de bons principios; mais agoirados estarão do que tu, respondeu Manuel Furtado.

Reuniu conselho D. Sancho e disse aos cabos;

-- Não chamo V. S.as para que me aconselhem se havemos de pelejar, senão para que me digam como havemos de pelejar.

Ergueu-se o Conde de Schomberg e lembrou que, não tendo Portugal outra defeza nem poder mais que o de aquelle exercito, um mau successo na batalha faria que todas as praças se rendessem, pois que só ellas em toda a provincia ainda sustentavam o nome d'El-rei.

-- Verdadeira victoria, disse, é vencer sem pelejar, conservando a provincia em respeito, que tudo perderá, se fôr o exercito desbaratado. Minha opinião é que sigamos o exercito até mettel-o para lá da fronteira, fazendo-lhe o damno que pudermos. Pouco será; com o pouco nos contentemos.

Muitos se inclinaram ante este arrazoado; mas o capitão general, um pouco desabridamente, procurando a principio expôr com serenidade suas razões, foi-se á medida que fallava, exaltando, até que concluiu dizendo:

-- Por vida d'El-rei, ninguem hoje se porá diante de D . Sancho Manuel!

Sem armas, montou a cavallo, não levando comsigo mais que um gibão de tela, uma casaca de verão e uma gorra na cabeça. Com a alegria a brilhar-lhe no semblante, correu os terços, seguido pelos seus generaes, tenentes-generaes, ajudantes e sargentos-mores, suas companhias da guarda e oito creados com seus cavallos á mão Animava os cabos, sorria aos soldados e em todos infundia a certeza da victoria.

O Conde de Schomberg começou logo a dispôr o exercito em fórma de pelejar.

D. Sancho Manuel encontrou-o rodeado de seus francezes e sua companhia da guarda, todos vestidos de azul com seus atabales e trombetas e vinte e quatro creados a cavallo com outros tantos cavallos á mão, todos com seus telizes bordados d'oiro e prata.

Sorriu-se para elle o Conde de Villa-Flôr.

-- Tudo disposto, sr. Conde? perguntou-lhe.

-- Como cabo e general, respondeu o allemão, entendi dizer o que convinha. A pelejar como soldado, ninguem no mundo jamais se avantajou ao Conde Schomberg.

-- Pois é começar a dar e quem mais der ha de vencer.

Tocaram as trombetas a degolar e os tambores a calar morrão.

Mandou D. Sancho a Diniz de Mello e Castro que fizesse carregar os esquadrões da ala direita onde era o mais forte da cavallaria.

Ergueu-se de repente um brado em todo o exercito. Os terços avançaram. A cavallaria partiu a galope.

Manuel Furtado e Pero Rolão não foram na primeira carga.

-- Perdi! disse o padre Ventura.

-- Queres a desforra? perguntou o alferes.

-- Como?

-- Aposto ainda que D. João d'Austria é tolo.

-- Aposto que não. Lá vão mais seis vintens para as mãos de Manuel Furtado.

Eram mais de cinco horas da tarde e já ia marchando a carruagem do exercito hespanhol, querendo D. João d'Austria seguil-a com suas tropas, assim que a noite caísse, a procurar ponto em que melhor se defendesse; mas vendo a resolução dos portuguezes, deu contra-ordem e sorriu-se com desdem.

Apeou-se do cavallo e com um junco na mão assim se dispoz a commandar a batalha, o que desesperou o Duque de S. Germano, que bem conhecia os inimigos com que tinha de arrostar.

Vinham subindo a collina, por um dos lados um terço de inglezes, pela frente o de Francisco da Silva, pelo outro lado o de João Furtado de Mendonça.

Mandou D. João d'Austria atacar os inglezes por dois esquadrões de cavallaria, que, recebidos com um chuveiro de balas, retiraram a toda a pressa.

O terço de Francisco da Silva ia subindo devagar. Mandou o sargento-mór Manuel de Sequeira Perdigão abrir claros nas filas para que menos perigassem os soldados com os tiros das peças carregadas com balas miudas. A meio caminho receberam uma descarga, que pouco damno lhos produziu pela boa disposição em que marchavam. Uma segunda descarga não fez effeito, porque passou o tiro muito por cima.

Nem uma só arma dispararam os portuguezes até que chegaram ao alto. Ahi deram uma descarga á queima-roupa.

-- E' tempo, senhores capitães! gritou o sargento-mór.

Já elles com as espadas na mão e seus broqueis, seguidos por todo o terço de baionetas caladas, atacavam a primeira fila dos hespanhoes, que, muito longe de esperar ataque tão rapido, deram costas e fugiram.

D. João d'Austria, convencido de que lhe não saíria barata a imprudencia, montára finalmente a cavallo e corria todo o exercito animando os cabos e os soldados.

Os primeiros fugidos desordenaram a segunda fila que, posta em confusão, se espalhou pela serra, cada qual procurando salvar a vida; mas os terços que vinham pelos lados nenhum deixavam escapar. Os inglezes a ninguem davam quartel; os portuguezes desarmavam os prisioneiros e tiravam-lhes as fardas.

-- E então nós? dizia raivoso Manuel Furtado, vendo que iam fugindo os hespanhoes e nenhuma gloria lhe caberia no successo.

Faziam-lhe ferver o sangue as exclamações que ouvia e, por entre o rumor confuso da batalha, os gritos de victoria que soltavam os portuguezes.

Mas na segunda collina, menos montuosa, embora a defendesse menor numero de gente, não lhes fôra a sorte egualmente propicia. Occupada por veteranos, encontrou resistencia o impeto com que a atacaram os terços de Simão de Sousa e Vasconcellos, irmão do Conde de Castel Melhor, e o de Tristão da Cunha de Mendóça. Pelejavam, havia muito, sem que uns e outros vencessem, quando os hespanhoes foram soccorridos pela cavallaria e os portuguezes começaram recuando.

-- Valha-nos Deus! disse o padre, juntando as mãos.

Já não se ouviam os tiros da artilharia hespanhola.

Então o tenente general, D. João da Silva, mandou marchar a toda a brida os quatro esquadrões de cavallaria. Voltou á carga a infantaria portugueza reanimada e, postos em confusão, os hespanhoes fugiram derrotados.

O terror de que iam possuidos tanto desanimou a parte do exercito que occupava a terceira collina, que, sem esperar maior desastre, foi retirando a passo largo.

-- Então é só isto? perguntou Pero Rolão, sem reparar que era o chão juncado de mortos. Passa para cá os seis vintens do padre.

Era quasi noite fechada. Entre os uivos dos feridos ouvia-se já o grasnar dos corvos.

Caíram em mãos dos portuguezes oito peças, que era toda a artilharia do exercito inimigo, grande quantidade de armas e mil e quatro centos cavallos. Não escaparam dois mil carros carregados de fato precioso, com muita prata e oiro e joias, e dezoito carroças entre as quaes tres que pertenciam a D. João d'Austria. Tão precipitada foi a fuga do principe, que nem da secretária teve tempo para mandar recolher os papeis, que, lidos, revelaram segredos dos mais importantes e muitos nomes de traidores á patria. Quinze estandartes ficaram no campo, até o do proprio D. João, com as armas reaes de Castella d'uma parte e da outra um sol dando sua luz á lua e ás estrellas com uma letra que dizia: -- «Si no es Sol será Deidad.»

-- Si no es Sol será Deidad! murmurou Pero Rolão.

Mandou D. Sancho Manuel ao Conde da Torre que, com trezentos e cincoenta cavallelros escolhidos, rompesse pelo inimigo e lhe trouxesse preso a D. João d'Austria.

O Conde da Torre arripiou os bigodes.

-- Iria a Madrid buscar a D. Filippe!

O capitão general olhava em volta. Manoel Furtado com D. Pedro d'Almeida haviam-se approximado.

-- Aqui tendes um tenente, disse o Conde de Villa Flôr que saberá prestar-vos auxilio.

-- Decerto, disse confirmando o dito o Conde da Torre. Conhecemo-nos; já uma vez lhe salvei a vida.

-- E a Pero Rolão, meu amigo, tambem, disse Manuel Furtado apresentando o alferes.

-- A mim! exclamou Pero Rolão, abrindo tanto a bocca que lhe doeram os queixos até ás orelhas.

-- Lembra-me, disse o Conde.

-- E lembra-se!

Manuel Furtado conservava todo seu sério.

D. Sancho Manuel sorria. Não o desamparára a Fortuna.

N'esse instante, viram levado para sua tenda, em braços de quatro soldados, atravessado por uma bala, o mestre de campo, Simão de Vasconcellos e Sousa.

-- O Conde de Castel Melhor terá esta nuvem em sua ventura, disse D. Sancho.

-- Mais negras as ha de ver, resmungou o Conde da Torre.

-- A galope! ordenou o capitão-general.

Os soldados portuguezes continuavam saqueando o campo inimigo e os feridos, soerguendo-se, uns pediam agua pelo amor de Deus e outros blasfemavam.

CAPITULO II

Si no es Sol, será Deidad

Saiu a cavallaria a toda a brida, mas fez-se a noite, breve, tão negra, que o Conde da Torre decidiu voltar ao acampamento.

Já alguns soldados pelo caminho se haviam deixado ficar, receosos de perder a melhor presa, facil de colher no quartel inimigo tão promptamente abandonado.

D. Pedro d' Almeida repetiu a Manuel Furtado a ordem do cunhado para que arripiassem a carreira; mas Pero Rolão, brioso, galopando á frente do esquadrão, sonhava com maior conquista. Queria vêl-a, ostentar-se a seus olhos em toda sua gloria de valente official portuguez, obter d'ella um olhar, ainda que fôsse d'odio, e assim esquecer-se da vergonhosa posição em que pela primeira vez a vira e fôra por seus encantos deslumbrado.

-- Meu caminho é para a frente, disse com tal decisão, apesar do risco em que se mettia, que Manuel Furtado declarou:

-- Pois vou comtigo.

Todos haviam voltado á ordem do Conde.

-- Pedro! gritou este de longe, chamando o cunhado.

-- Deus vos acompanhe, disse elle.

-- Boa noite ! respondeu-lhe o tenente.

Voltára todo o esquadrão para os lados de Extremoz; os dois amigos seguiram sós para a frente.

-- Sabes que estás doido, disse Manuel Furtado, mettendo as esporas no flanco do cavallo.

-- Sei, respondeu o alferes. E' por isso que tomas conta em mim.

E o tenente pensava comsigo:

-- Muito havia de confiar na Fortuna quem se mettesse em tal empreza.

Mas agradava-lhe a correria de noite, por aquelles caminhos perigosos. A aventura arriscada socegava-lhe o pensamento que, constante e cruel, o mortificava, como aquelle pingo d'agua de espaço a espaço caindo d'alto sobre a cabeça do paciente nos carceres da Inquisição.

-- Quando foi que o Conde da Torre me salvou a vida? perguntou Pero Rolão de repente.

Manuel Furtado desatou a rir.

-- Melhor te estimará pensando que te salvou que sabendo que o salvaste.

Mas o alferes nada respondeu á observação philosophica; esporeou o cavallo e animou-o com a voz.

-- Estás melhor cavalleiro, observou-lhe o amigo.

-- Nem calculas em que estado vou! Se ella soubesse pagar-me o sacrificio!... Ah! poder aprisionar D. João d'Austria e vêl-a a meus pés a implorar-me o perdão!

-- E que lhe respondias?

-- Isso por ora não sei. Corno é só imaginar, contento-me com o principio.

Os cavallos iam cançando. O caminho, já longe de Extremoz e menos reparado, era todo barrancos. Nem um fio de luar lhes mostrava o perigo em que iam correndo.

Pararam a descançar.

A noite era quietissima. Pareceu-lhes ouvir no silencio uns gemidos de moribundos, que vinham lá de muito longe, prolongados e tão tristes, que Manuel Furtado sentiu passar pela espinha um calafrio e Pero Rolão benzeu-se.

-- Onde estaremos? perguntou.

Manuel Furtado desconhecia aquella parte do Alemtejo.

-- Pela direcção que tomámos ao partir e pelo tempo que viemos galopando, devemos estar perto da villa de Fronteira.

Poz-se um cão a uivar.

-- Perto de Fronteira! dizes tu. Mas então errámos o caminho! Devem os hespanhoes ter tomado sem duvida o de Arronches.

-- Decerto. E foi a ter-te ajudado no engano que devemos o estar com vida.

-- Mas que me importa a vida? Não a quero longe da luz de seus olhos e sem a musica de sua voz!

-- Se um nada conhecêras das estrellas, verias como te fui puxando para norte; em todo cruzamento de caminhos te obriguei a tomares para a esquerda.

-- Mataste-me para mo salvar da morte! Saíste-me bom amigo, não ha duvida.

-- Pede á noite que te refresque os miolos. Descancemos um instante e voltemos atraz. Podem ainda estas regiões, sujeitas ao dominio de Hespanha, não ser propicias a dois officiaes portuguezes isolados.

Já não uivava o cão. A lua no minguante espreitou por detraz d'um pincaro da serra longe e uma luz de triste doçura illuminou o campo.

-- Que profundo silencio! disse Manuel Furtado. Parece que ouvimos cantar dentro em nós a nossa alma e lhe crescem azas para voar! Como estão perfumados os montes e que prazer beber soffregamente este ar purissimo! O vento mudou para o norte, já comsigo não arrasta lamentos de feridos e moribundos.

Mas então, um grito de mulher cortou os ares, tão desesperado, que Manuel Furtado, por um impulso de cavalleiro, sem uma reflexão, enterrando as esporas no cavallo, atirou-o para a frente a todo o galope.

-- Ella! exclamou Pero Rolão.

E seguiu no encalço do amigo.

Os cavallos feriam lume no granito do caminho. Saltaram um riacho. Pero Rolão desequilibrou-se.

-- Diz-me o coração que é ella!

Aguentou-se conforme pôde. Voou uma ferradura.

Callára-se quem clamára por soccorro; mas ouviram-se vozes d'homem contendendo, dois tiros, e depois um tilintar de espadas e gemidos roucos, logo abafados.

-- Castelhanos fugidos, que foram atacados... disse Manuel Furtado.

-- E' que eu ouvi, ouvi...

Mas sacudido pelo galope, Pero Rolão não podia dizer o que lhe parecia ter ouvido e o enchia do terror.

A lua, como um pharol de luz prateada sobre a serra, já deixava distinguir os contornos dos montes. O caminho ia a subir. Avistaram ao longe um coche parado, e mais acima alvejava ao luar a cal de grandes casarias.

Era uma mulher quem tinha gritado por soccorro... Os cavallos gemiam n'um derradeiro esforço, com os flancos em sangue.

-- A villa de Fronteira! disse Pero Rolão. Lá está a egreja... o castello...

Ouviram novos gritos de aviso e um tiro de mosquete. Passou-lhes a bala a assobiar por cima das cabeças.

Engatilharam as pistolas que levavam nos arções e viram uns vultos fugindo pela charneca.

-- Soccorro! gritou de dentro do coche uma voz de mulher, suffocada pelo susto e pelas lagrimas.

-- E' ella! disse Pero Rolão.

Junto d'um penedo, n'uma lanterna caída ainda ardia a torcida com uma luz fraca. Manuel Furtado apeou-se, concertou a chamma, approximou-se da janella do coche e deu um grito de espanto.

-- Maria da Boa Hora!

-- Piedade! disse em hespanhol uma voz sumida.

-- Maria da Boa Hora! repetiu Pero Rolão. Mas se reconheço o coche...!

Quatro hespanhoes estavam cahidos no chão, despidos, cobertos de ferimentos. Um d'elles exhalava o ultimo suspiro, de bocca aberta, n'um estertor de arripiar.

-- Senhor, acudi-me! disse a dama a quem os bandoleiros haviam arrancado os vestidos.

A lanterna tremia na mão de Manuel Furtado, a quem o pasmo, em que o punha o espectaculo d'uma parecença maravilhosa, sustinha na garganta as palavras.

Nem podia falar Pero Rolão, tão abysmado estava pelo successo.

-- Quem sois? perguntou ella.

O tom da voz, a differença de lingua, convenceram finalmente a Manuel Furtado, que recuperou o sangue frio.

-- Dois officiaes do exercito portuguez, respondeu. Nada temaes. Quem vos offendeu poz-se em fuga mal nos sentiu chegando. Socegae.

-- Villãos! disse o alferes.

-- Arrancaram-me as joias e o fato!... Insultaram-me!

Chorava de raiva.

-- Se houveramos chegado um minuto mais cedo...! exclamava Pero Rolão furioso.

Mas Manuel Furtado conteve-o com um gesto. Deante d'aquella dôr que observava temia-se dos impulsos amorosos do companheiro.

-- Começa a alvorecer, disse. Os vossos criados não estão em estado de defender-vos. A villa de Fronteira só pela força prestou obediencia a Hespanha e agora, sem presidio dos vossos, não vos dará boa hospedagem. Onde quereis que vos acompanhemos, senhora?

-- Pois não temeis...

-- Servir-vos?... Senhora, não.

-- Julgavamos caminhar para Arronches; mas a fuga precipitada e a escuridão da noite fizeram-nos errar o caminho.

-- Como a nós, que o mandou a Providencia! exclamou Pero Rolão.

-- D. João d'Austria? perguntou ella anciosa.

-- Em fuga. Mas creio que o principe escapou com vida da batalha.

-- Deus seja louvado!

E, perante aquelle impulso de amor, os dois officiaes sentiram nos corações uma punhalada, Pero Rolão porque cada vez mais a paixão o incendiava, Manuel Furtado porque a cada momento lhe parecia na infeliz vêr Maria da Boa Hora.

Vinha o dia a romper. Os feridos gemiam no chão manietados. Soltaram-lhes as mãos. Dois d'elles estavam em estado de mexer-se. Contaram o que succedêra: uns villãos de Fronteira, que, occultos, esperavam os fugitivos e que repentinamente os haviam atacado, ferido, despido e manietado. Um d'elles, de peores entranhas, entrára no coche e obrigára a amante do Principe a despojar-se de todas suas joias e alfaias. E mais por diante fôra, se, aos gritos que ella soltou, não houvera logo succedido ouvir-se o galope dos cavallos. Sabe Deus onde o villão maldito levaria sua audacia!

Pero Rolão estremecia de raiva e gaguejava palavras desconnexas.

Manuel Furtado observou os feridos. Perto corria uma fonte, ensopou o lenço, lavou-lhes o sangue. O terceiro a que accudiu tinha uma perna partida e, na bocca a espumar, todo o vocabulario das pragas castelhanas. Prometteu-lhe que da villa lhe mandaria gente que o recolhesse, recommendando-o á caridade. O outro, de bocca aberta, com dois fios de sangue a correr-lhe pelos cantos, d'olhos envidraçados, expirára d'uma bala que lhe attravessára o peito.

-- Pobre Pepe! disse ella.

-- Aquelle era o Pepe, pensou Pero Rolão contemplando o morto.

Felizmente as mulas nada haviam padecido.

-- Caminhemos, disse Manuel Furtado para os hespanhoes que apalpavam os musculos, queixosos de varias dôres.

Puzeram-se lentamente em marcha, abandonando o ferido e o morto. A amante de D. João d'Austria chorava devagarinho, com uns suspiros fundos muito maguados e estremecimentos de passarinho ferido que enterneciam Pero Rolão.

Mas que tenções eram as de Manuel Furtado? Perguntou-lh'o.

Iam a caminho de Fronteira. O tenente respondeu-lhe:

-- Mandar primeiro acudir ao ferido para que esse pobre diabo não morra ao desamparo, depois arranjar uma capa, seja o que fôr, com que esta senhora se componha.

Deixou Pero Rolão de guarda ao coche e voltava passados dez minutos, seguido por uma grande parto da população que o acclamava.

-- E agora? perguntou Pero Rolão ancioso mais commovido pelo sorriso de agradecimento com que a mulher o agraciára, quando lhe elle deitára a capa militar sobre os hombros a exalarem um perfume d'ambar entontecedor.

-- Agora é procurarmos uns officiaes hespanhoes a quem façamos entrega da melhor riqueza de D. João d'Austria.

No olho azul do alferes pintou-se a mais louca expressão de espanto.

-- Façamos entrega!...

-- Se, coitado, perdeu tudo mais, dê-se-lhe, ao menos, sua joia mais preciosa.

-- Pois não sabes que eu...

-- Nem para dentro d'esse coche me atrevo a olhar, e saberás um dia porquê. Parece-me que as fabulas do Amadis de Gaula e do Palmeirim de Inglaterra ficaram áquem da verdade.

-- E' linda, não é? Não t'o dizia?... Mas se eu sonhei...

-- Sonhaste, sim; tudo é sonho. O que não devemos é pôr nem mais uma sombra no coração d'essa mulher. Andemos como cavalleiros portuguezes que merecem tal nome. Com nosso proceder esqueça as acções dos villãos que em sua fuga encontrou. Provocaram-lhe as lagrimas que lhe viste e tu em seu rosto já lhe fizeste alvorecer um sorriso. Que mais queres para vangloria?

Pero Rolão firmou-se nos estribos com maior garbo, arripiou marcialmente o bigode, e até a Manuel Furtado pareceu que voava mais alto á brisa da manhã a pluma do companheiro, mais vistosa aos primeiros raios do sol que vinha a nascer no céu de junho sem uma nuvem.

-- Pela dama do outro! disse o tenente a rir. O mesmo succedeu ás vezes a D. Quixote, com quem, aliás, algum tanto nos vamos parecendo.

Havia perto d'uma hora que lentamente seguiam o coche pelo caminho de Arronches. O cavallo de Pero Rolão coxeava lamentosamente, porque perdêra a ferradura, e o alferes não tinha a certeza de ir fazendo figura condigna, quando, olhando a soslaio para o interior do coche, dizia comsigo:

-- Que pensará ella de mim?

A' frente, um dos hespanhoes feridos animava as mulas estafadas.

Um milhão de pensamentos atropelavam-se na cabeça de Manuel Furtado. Após muitas noites mal dormidas, aquella toda em claro, o cançasso da batalha e da correria de tantas horas prostravam-o, obrigavam-o por vezes a cerrar o olhos. Sentia nos ouvidos ura zumbido confuso e já mal distinguia do sonho a verdade. Parecia-lhe ás vezes que ía acompanhando o enterro d'uns velhos amores, que era devéras Maria da Boa Hora quem seguia chorosa n'aquelle coche e, ao tempo em que o coração se lhe opprimia como no remorso d'uma vergonhosa acção, sentia-o mais leve para voar a outro firmamento de estrellas mais quietas e não menos reluzentes.

Pero Rolão viu, ao longe, sobre um cabeço, erguer-se de subito um homem, collocar a mão sombreando os olhos como quem quer affirmar-se, metter-se a caminho entre os penedos. Parava de quando em quando, olhava, punha-se a andar mais depressa em direcção á estrada. Desappareceu. De subito collocou-se a meio do caminho, a dez passos do coche.

-- Alto! gritou com accentuação castelhana.

E apontou uma pistola contra o alferes. Pero Rolão, prevenido, desfechou contra elle, mas a arma errou-lhe fogo.

-- D. João! gritou a mulher.

-- Consuelo! exclamou elle.

E deixou cair a pistola.

Era D. João d'Austria, só, a pé e agora desarmado.

-- Consuelo! repetiu baixinho Pero Rolão.

-- Sou vosso prisioneiro, senhores! disse o Principe voltando-se para os officiaes portuguezes.

O alferes apeara-se.

-- Elles me salvaram! disse a mulher. Ah! vejo-vos outra vez, senhor!

Pela porta que abrira lançára os braços lindos ao pescoço de D. João, e Pero Rolão sentia o queixo todo a tremer, e assoprava, já que d'outra fórma não podia desabafar.

Esfarrapado, com os cabellos cheios de terra, pallido, d'olhos encovados, quem n'aquelle miseravel reconheceria o decantado principe, heroe em tantas luctas gloriosas?

Sempre agarrada ao pescoço d'elle, como a tremer que lh'o viessem roubar, dizia-lhe Consuelo mil phrases carinhosas, por meio das quaes lhe ia contando saudades, tormentos, sustos e vergonhas.

Manuel Furtado mordia o bigode, sacudia a cabeça, como indeciso entre milhões de pensamentos que lhe accudiam.

D. João d'Austria, de subito, com um movimento rude soltou-se dos braços que o enlaçavam. Fez um gesto como a pedir que o desculpassem.

-- Senhores, disse. Sem armas fui commandar o combate, sem armas me encontraes. A pistola que aos pés me caíu, quando ouvi uma querida voz pronunciar meu nome, não a desfecharia contra vós antes de saber se vida ou morte me trazieis. Reconheci de longe, d'onde a noite passei escondido o só, o coche da minha amante. Não me permittiu o coração maior prudencia. A vós me entrego; sei que o faço a dois generosos cavalleiros.

Pero Rolão mudou do sopro. Era com a maior satisfação que enchia agora as bochechas. Em vez d'uma mulher formosa, um principe. Ainda era boa sorte.

-- Senhor, não! disse Manuel Furtado. Facil me seria levar-vos á proxima villa de Fronteira, cujo povo contra o dominio d'Hespanha se insurgiu, e mandar aviso ao Conde de Villa-Flôr, sem maior risco, porque é todo vosso exercito desbaratado. Mas somos dois e temos armas; V. Alteza é só e desarmado. Nao me perdoariam os portuguezes minha acção, que mais lagrimas traria aos olhos formosos d'uma senhora.

-- Quereis pois dizer... exclamou o Principe.

-- Que jurei a mim mesmo pôr esta senhora em salvo o que, no estado em que vos vejo, sois para ella pequena guarda. Esperaremos até que sejaes soccorrido pelos vossos. Decerto não tardam, que devem de andar em vossa busca. Deus me dará melhor occasião em que possa mostrar-vos como sei manejar uma espada.

-- Nobres inimigos tenho encontrado em Portugal. Dizei-me vosso nome para que vos aponte como espelho de cavalleiros a toda Hespanha.

-- Cedo é por emquanto. Cumpri meu dever de portuguez, nada mais. Saiba-o a Hespanha um dia por outras mais altas razões.

Pero Rolão estava embasbacado.

-- Eis os vossos, senhor, continuou Manuel Furtado. Bem vos dizia que não deviam de tardar.

Effectivamente, avistava-se ao longe um grupo de cavalleiros que pela estrada se vinha approximando.

-- Avistaram o coche. Mettem a galope, disse o alferes.

Eram uns dez officiaes castelhanos acompanhados por uns cincoenta soldados.

Os primeiros que vinham á frente, reconhecendo officiaes portuguezes, desembainharam as espadas. D. João collocou-se a meio do caminho e fez-lhes signal que parassem. Conheceram-o e logo se apearam, rodeando-o com exclamações de jubilo.

-- O Principe!... O Principe! gritavam.

E os mais atrazados mettiam esporas aos cavallos.

Já Pero Rolão tornara a montar. Passavam-lhe pela mente ideias loucas.

Firmes marcialmente nas sellas, os dois portuguezes olhavam sobranceiramente para os officiaes castelhanos que vinham chegando.

-- E se nós agora o prendessemos? chegou Pero Rolão a perguntar. O Principe já não está só e todos elles estão armados...

Só cuidava em morrer ante os olhos da mulher, commettendo uma façanha. Mas Manuel Furtado, que tinha amor á vida, impoz-lhe juizo com um olhar severo.

-- Senhores ! disse D. João d'Austria aos seus, apontando para os officiaes portuguezes. E' vulgar a homenagem do vencedor ao vencido; assim muita vez a prestámos e nos foi prestada n'esta campanha, em que portuguezes e castelhanos pelejam por sua patria o por seu rei natural. Só com muita dôr d'alma, menos hoje, o vencido se descobre perante o vencedpr. Para dois homens vos aponto, que renovaram antigas façanhas de cavallaria, dignos de haver nascido n'esta terra de D. Nuno Alvares. Curvemo-nos com respeito, descendentes do Cid, perante seu singular valor. Acompanhemol-os, senhores, até que os seus encontrem.

-- Senhor! respondeu Manuel Furtado. Para tão pouco meritoria acção como a nossa, premio é bastante as palavras de tão grande principe como V. Alteza. Para volta segura ao campo portuguez contentamo-nos com o valor das nossas espadas.

-- Ide pois, respondeu-lhes D. João, e Deus vos acompanhe.

D. João d'Austria, que montara no cavallo d'um dos seus officiaes, tirou a gorra e todos os castelhanos o imitaram.

Consuelo com um sorriso saudou Pero Rolão que, no cavallo a coxear, algum tanto perdia do muito que desejava impôr-se.

Affastaram-se a passo.

-- E agora ? perguntou o alferes com o coração a trasbordar de jubilo e de saudades.

-- Agora, se quer a Providencia que cheguemos ao acampamento, contaremos a verdade ao Conde de Villa Flôr.

-- Consuelo! exclamava Pero Rolão.

-- Extranha parecença! dizia comsigo Manuel Furtado.

E deu-lhe de Maria da Boa Hora uma grande saudade que o espantou.

-- Agora, disse, é quanto antes a Evora, e reconquistal-a.

CAPITULO III

Os enforcados

Simão Peres coçava a cabeça como desesperado. El-rei dera-lhe agora a mania para não falar! D'antes, ao menos, em suas coleras explicava-se, e um bom serviçal emendava a mão. Fossem lá percebel-o agora!

E meditava profundamente.

Seriam conselhos do Conde? Não lhe parecia. O Conde, como todos o sabiam, lucrava em tel-o affastado dos negocios. Henrique Henriques de Miranda, todo de sua confiança, era dos primeiros a lisongear os vicios d'El-rei. Seriam os negocios de estado? A perda d'Evora?... Mas quando havia El-rei deixado uma perna de gallinha por se engasgar com uma má noticia? Se lhe perguntassem quem era o capitão general do exercito portuguez, não seria capaz de responder á primeira: -- «E' o Conde de Villa Flôr.» Não havia dois dias, gaguejára tres vezes para dizer o nome do Schomberg.

Seria compaixão pela Rainha D. Luiza? Amor com amor se paga; se Ih'o ella nunca tivera?

Fosse o que fosse, El-rei promettêra-lhe uma visita á Calcanhares e Simão Peres contava de tantas seducções rodear-lhe a amante que elle se desse por satisfeito da teimosia com que o obrigára.

Preparara a ceia a preceito, escolhera os melhores vinhos, dos mais famosos, que tambem preferia por gosto proprio, e, quando El-rei se enternecesse, os musicos começariam tangendo na camara ao lado, ajudando a formação da lagrima real, amorosa e avinhada.

Quando com D. Affonso se apeou á porta da Calcanhares, foi com fidalgo desdem que atirou ao mulato as redeas do cavallo e com intima confiança que subiu a escadaria atapetada.

El-rei, curvado como um velho, seguro ao corrimão, subia devagar, parando a cada degrau, respirando cançado e preguiçoso.

-- Mas que mais quer elle? pensava Simão Peres.

A Calcanhares recebeu-os com um olá alegre e familiar. El-rei sorriu-se, beijou-a na testa, disse-lhe umas finezas.

Ella queixava-se da longa ausencia, envolvendo-o todo n'um olhar muito carinhoso e reprehensivo, afagando-lhe as mãos, beijando-lh'as, obrigando-o a correr para depressa sentar-se, e ella a seus pés, com a cabeça sobre seus joelhos, os olhos nos olhos d'elle e a bocca muito vermelha, avivada pelo carmim, a desfiar mentiras.

Simão Peres acompanhára-os até á porta.

-- Sou de mais? perguntou malicioso.

E ella, a rir muito, mandou-o saír e aconchegou-se mais ao amante, tratou-o por tu, muito baixinho, a fingir-se envergonhada.

-- Porque não tens vindo?

Elle desculpou-se com os negocios do estado. A nova da tomada d'Evora pelos castelhanos causara-lhe profundo abalo. Tivera muito em que pensar: o exercito de soccorro que o Marquez de Marialva andava organisando, o Minho, Traz-os-Montes e a Beira cuja defeza não podia desleixar-se, negecios diplomaticos tão sérios como a guerra de Castella.

E ella meneava a cabeça com um espanto fingido, e seus olhos piscos não deixavam os olhos d'El-rei que, medroso, os afastava dos olhos d'ella.

-- Deixe V. Majestade esses cuidados ao Conde de Castel Melhor. Noites e dias tenho-os passado tão sósinha e triste! O estado!... Negocios!... Não posso, não quero ouvir essas palavras. O estado não tem coração para sentir nem lagrimas para chorar. Se havieis assim de deixar-me, melhor me fôra nunca haver-vos conhecido!

Puzera sobre os joelhos d'El-rei as mãos formosas em que os anneis scintillavam, encostára a face ás mãos n'um gesto infantil e gracioso, e ia fallando. E os olhos mais diziam que as palavras, sorrindo por entre as queixas.

Passando-lhe a mão tremula pelos cabellos muito finos, El-rei suspirava e já não respondia. Nos olhos mortiços passava-lhe ás vezes lampejar d'um desejo, que se reflectia n'um maior fulgor dos olhos da Calcanhares.

Ergueu-a, sentou-a junto de si, procurando desviar o dialogo para outro assumpto. Mas não o deixava ella, teimosa, obrigando-o a jurar que viria mais vezes, muitas vezes, que nao se deixaria affligir por tantos traballios que dava o officio de reinar.

Para que tinha elle um ministro dedicado, poderoso, capaz de arrostar sósinho contra todos os inimigos do throno? Fiasse d'elle a sorte do reino.

-- A sorte do reino!... disse El-rei tristemente. Sonhei toda esta noite com D. João d'Austria, que chegara a Salvaterra e vinha atravessando o Tejo, e que todos os navios salvavam á bandeira castelhana.

-- Se dormisseis em meus braços, outros sonhos havieis de sonhar.

-- E sonhei que minha mãe chorava e corria, doida, pelos corredores do paço a maldizer de mim. E meu irmão, o Pedrinho, andava a rir, a rir... E mais me doía o riso de meu irmão que as lagrimas de minha mãe.

A Calcanhares deitara-lhe os braços ao pescoço, fallava-lhe com o rosto muito chegado ao d'elle, animava-o como a creança, embebedava-o com o aroma de seu halito.

-- Eu sonhei comvosco. Minhas noites que passam voando são melhores que os meus dias a arrastarem-se e cujo fim não vejo. De noite, sempre vos julgo ao pé de mim, e, quando chega a madrugada e me accorda, então é que tenho frio e se renova e redobra o meu tormento. Passo o dia n'uma só esperança; chega a tarde e mais se me exalta. Cada hora parece mil horas; a cada rumor da rua corro anciosa á janella.

Era offegante a respiração d'El-rei e seis olhos exprimiam a maior angustia, quasi terror. Passou a mão pela testa, affastando uns fios d'oiro do cabello revolto da amante.

Ella continuou, ainda mais approximando seu rosto, d'olhos semi-cerrados, azas do nariz palpitando:

-- Assim queria sempre vêr-te, ouvir as tuas palavras, sentir-te, respirar o ar que respiras. Não fujas; junto a mim affasta ideias negras; olha para mim; dize que me acreditas...

Approximou a bocca; segurou com força a cabeça do amante, collou seus labios aos d'elle, e elle deu um grito.

-- Fiz-vos doer? perguntou ella.

Bateram discretamente á porta.

El-rei ergueu-se todo a tremer.

A cabeça de Simão Peres appareceu espreitando por um dos lados do reposteiro.

-- A ceia está na mesa! disse muito alegre, mostrando no sorriso amavel os dentes pôdres.

A Calcanhares estava já de pé no meio da sala, um pouco pallida. Simão Peres notou a leve expressão desdenhosa de seu labio inferior.

-- Conforme o costume, pensou.

E, muito alto, como quem quer os outros distraír de pensamentos melancholicos:

-- Um festim do arromba! A nossa Luzia esmerou-se!

El-rei ergueu-se lentamente, passou devagarinho a mão pelos cabellos, pegou no chapéu.

-- Não. Hoje não ceio. Estou desassocegado. Emquanto não chegarem noticias da guerra...

Simão Peres, impaciente, adiantou-se, mas não se atreveu a fallar.

El-rei olhava para a Calcanhares com o sorriso forçado e triste do paciente para o algoz a quem perdôa. Ella approximou-se e, muito baixinho, tornou a perguntar-lhe:

-- Fiz-vos doer?

Elle disse que sim com a cabeça, tristemente. Fez um signal a Simão Peres e saíu com elle, sem mais palavra.

A mulher ficou-se ainda um instante, immovel no meio da casa, trémula, envergonhada tambem. Depois abalou correndo, batendo com as portas, furiosa; foi ter com Henrique Henriques de Miranda, que a esperava n'uma sala interior.

Quando El-rei ia para montar a cavallo, repa- rou no Braz, de cócoras, ennovelado á porta da Calcanhares.

-- Vai para casa, maluco! disse-lhe.

Mas o aleijado fitou n'elle os olhos piedosos e disse-lhe que não com a cabeça.

D. Affonso metteu esporas ao cavallo e, a passo largo, tomou o caminho de S. Roque; desceu depois junto ás casas do Conde de Castel Melhor, viu uma taberna ainda de porta aberta, susteve o cavallo.

O Braz, caminhando á pressa, coxeando, atirando para a frente o corpo, com tregeitos que davam vontade de rir, approximou-se.

Disse-lhe El-rei:

-- Aquella mulher que me traga um pichel de vinho.

Chegou-se a rapariga e soltou um grito reconhecendo o cavalleiro.

-- Senhor!... disse.

A caneca tremia-lhe na mão.

E Simão Peres pensava:

-- Para que havia de dar-lhe a veneta! Trocar a ceia da Calcanhares pela zurrapa das tabernas!

El-rei bebia com soffreguidão.

-- Paga, disse a Simão Peres.

Affirmou-se na mulher.

-- Ainda me conhece V. Majestade? perguntou ella.

-- Magdalena!

E alegrou-se.

-- Ha quantos annos!... Estás uma mulher... e linda! Lembras-te de quando brincavamos juntos?... Eras tão minha amiga!

Ella baixou os olhos.

-- Nas zangas com meu irmão eras constante do meu lado. Eu era o mais fraco sempre!

Olhou para ella e repetiu como recordando alguma historia velha:

-- O mais fraco sempre!

Fez-lhe uma festa no queixo.

-- E' bom o teu vinho. De quem é taberna?

-- De meu tio.

-- Pois dize-lhe que hei de cá vir cear uma noite. Adeus, Magdalena.

Deu-lhe a mão e sentiu uma impressão extranha quando os labios d'ella a tocaram. O Braz tambem lh'a beijava assim; não era o beijo frio que lhe parecia ás vezes o contacto d'um verme. Apertou os dedos da rapariga, demorou-se um instante a contemplal-a.

-- Estás uma mulher... e linda!

Abalou seguido pelos seus homens. O Braz corria-lhes no encalço, respirando alto como animal ferido, cançado, atirando para a a frente o hombro e o braço direito para o ajudarem no andamento.

A cavalgada, levando á frente D. Affonso, atravessou o Rocio, metteu para os lados do Castello, voltou para Santo André.

-- Vamos passar pela antiga casa de Maria da Boa Hora, pensou Simão Peres.

Não se enganou.

-- Bem digo eu que elle é doido. Deu-lhe a mosca; temos noite de vadiagem.

Dirigiam-se agora para S. Vicente.

De quando em quando, El-rei tirava o chapéu, passava as mãos pelos cabellos, como a querer socegar as tropelias do pensamento.

As ultimas novas chegadas do campo da batalha desassocegavam-lhe o coração. Sabia que D. João d'Austria saíra d'Evora e que o exercito portuguez o perseguia. Mas que outras novas havia a esperar senão de maior lucto para o reino? Vira o povo de Lisboa alvorotado, entrando pelo paço em gritos de «morram os traidores» e receava noticias que viessem de maior desastre. Que faria D. Sancho Manuel? A que riscos exporia o exercito para bem de sua propria honra empenhada e para mostrar-se de mais alto valor que Schomberg e o Marquez de Marialva? O Conde de Castel Melhor mal lhe fallára n'aquelle dia; andava cabisbaixo, pallido, perplexo...

E, embuçado na capa, sobre o cavallo que voltára a seu andamento vagaroso, pôz-se a tremer. Se seria um castigo de Deus?... E quem no mundo conhecia que lhe tivesse amor?

Ouviu, lá atraz na calçada, o bater pesado das botas ferradas do maluco. Sorriu-se com amargura.

-- Conheço aquelle, pensou.

Lembrou-se depois da taberneira e da carinhosa impressão que sentira ao tocarem-lhe na mão os labios d'ella. D'um beijo passou para outro beijo e chicoteou, furioso, o cavallo, recordando o horroroso prazer que lhe arrancára um grito, ao sentir, collados aos seus os labios perfumados da Calcanhares.

-- Que desgraçado eu sou! disse comsigo.

Corria a galope pelos bêccos da Alfama, e, com dó de si mesmo, perguntava:

-- Porquê?... Porquê?

Seria castigo?... Teve medo.

Não lhe perdoaria Deus o ter usado de crueldade com sua mãe, que, lavada em lagrimas, saíra do paço o se rocolhêra em suas casas de Xabregas.

Não sabia o que lhe causava tamanha angustia em sua alma, se era medo ou remorso ou desespero.

-- Minha mãe!... Minha mãe!

Voltou-se para traz: que o deixassem ir só, que fossem procural-o a Xabregas.

-- E lá vai o doido! resmungou Simão Peres, aliviado afinal.

Metteram a trote curto. O Braz passou-lhes adeante, correndo afflicto, como se um instincto do coração lhe dissesse que El-rei era em perigo.

Sempre correndo, chegou á praia, seguiu ao longo do Tejo; mas o cavallo caminhava mais rapido e elle perdia terreno. El-rei só que faria? E o Braz tremia por elle. Já nem ouvia o galope do cavallo. Correu, correu; viu-o finalmente parado, proximo ao palacio da Condessa de Unhão, em frente ás casas que a Rainha D. Luiza mandára construir.

Ainda em obras, rodeadas de andaimes, com janellas não envidraçadas e os muros sem cal, infundiam tristeza como ruinas.

A noite era negra, e só o interesse amoroso com que Braz olhava lhe permittiria, em meio das trevas, descobrir El-rei, dar conta de seus gestos.

Parado, largára as redeas, cruzara os braços e olhava para as janellas que sabia do quarto da Rainha.

Quem desde novo o roubára a sua mãe ou lh'a havia roubado? E, porque ella o quizera suster n'um máo caminho, havia-lhe, elle, brutalmente, arrancado das mãos o governo. Desconsiderara-a depois e obrigara-a por seu proceder a saír do paço, a recolher-se n'aquella casa, cujos muros iam crescendo dia a dia para melhor a encerrarem em sua prisão.

Lembrou-se d'uma vez em que voltára ferido. Já melhor, viera uma noite a mãe sentar-se-lhe á cabeceira e elle vira-a tão triste que d'ella tivera piedade. Passára-lhe um braço pelo pescoço e, quando ella se quiz retirar, fez pressão, não a deixou; obrigou-a a ficar, que ouvisse uma vez os seus musicos, e, com tanto carinho lhe fallára, que ella quedára-se ao pé d' elle e lhe deixára descançar a cabeça sobre seu hombro. Então sentiu uma lagrima a escaldar caír-lhe na face, e, quando os musicos começaram a cantar, encheu de lagrimas o seio da mãe.

Porque obedecêra depois a receios que lhe incutiram? Porque havia de tão sem interior revolta acreditar que ella tentava substituil-o no throno de Portugal? Dera-lhe então pressa a que partisse e, sem uma lagrima, vira-a seguir, entre as alas silenciosas do povo que se apinhava pelas ruas, em seu coche negro a caminhar vagaroso, até o carcere que escolhêra, tumulo onde entrára em vida, onde nunca mais a vira, onde não mais a veria.

Confrangia-se-lhe a alma anciosa de um carinho e, se não fôra sentir a voz a estrangular-se-lhe na garganta, haveria gritado:

-- Minha mãe!... Minha mãe!

Começou soluçando e logo sentiu umas mãos piedosas a afagal-o, e, a seu lado, uma voz que bem conhecia, gemendo:

-- Senhor!... Senhor!

Não era só no mundo!... Ainda não.

Ouviu o trote d'uns cavallos. Não fosse a mãe assustar-se...

-- Corre! disse ao Braz. Que me esperem junto do Tejo, que já vou ter com elles.

Então voltou devagarinho.

Esmagado por suas culpas, receava que lh'as não perdoasse Deus e o castigasse e juntamente ao reino que o consentia no throno.

Que horas seriam? Passou-lhe pelo corpo um calafrio; era prenuncio talvez da madrugada. Já a lua vinha nascendo. Viu na praia os vultos dos companheiros e foi-se, cabisbaixo, approximando.

-- Em má companhia estamos, disse-lhe Simão Peres com ar de mofa.

El-rei, erguendo os olhos, viu duas forcas armadas e n'ellas dois cadaveres a baloiçarem-se ao vento.

Estremeceu horrorisado. Parou-lhe o coração e um sopro frio correu-lhe pela raiz dos cabellos.

-- Foram dois ladrões de muita e muito má fama, que hontem ahi penduraram, disse Simão Peres. Sabe V. Majestade de seus crimes e de como assaltavam quem ia seu caminho descançado. Elles sós, muita vez, deram agua pela barba á mais forte companhia, e agora...

Simão Peres desembainhou a espada, poz-se de pé nos estribos e, empurrando as pernas do que lhe ficava mais proximo:

-- Tão-ba-la-lão, cabeça de cão... cantou com uma gargalhada.

-- Quero vel-os, disse El-rei, apeando-se do cavallo.

Já um mulato trepára a uma das forcas e com uma navalha cortára a corda. O cadaver bateu com os pés na areia, susteve-se direito um instante, caíu de costas com um baque surdo. O mulato desceu, subiu á segunda forca, e o outro cadaver veio caír junto do primeiro. Simão Peres com a espada destapou-lhes os rostos. A lua com seu clarão muito frouxo já ía mais alta no céo e, livida, illuminou a descomposta, mortal fealdade dos condemnados.

D. Affonso approximou-se devagarinho, a passos curtos, dando ao corpo ás vezes um movimento de recuo, como a querer instinctivamente fugir do horror para que o impellia a curiosidade. Com os olhos doidos, curvado sobro os cadaveres, começou a examinal-os detidamente; e um riso nervoso arripiava-lhe os cantos dos labios a palpitarem. Do buraco negro das boccas muito abertas parecia-lhe que saíam imprecações e que os olhos fóra das orbitas, embaciados, se fitavam n'elle, a accusarem-o.

Simão Peres resmungava, os mulatos haviam-se affastado, e El-rei, encostado á corcunda do Braz, não desfitava os olhos dos olhos que o fascinavam.

Offegante, parecia querer interrogar aquelles labios arroxados entre os quaes pendia a lingua em horrivel escarneo. Ultimo signal de vida, haveriam beijado o crucifixo do frade que os acompanhára ao patibulo. Talvez d'aquelles corpos que a podridão já começava a esphacelar uma alma houvesse voado, purificada pela contricção. Porque exprimiam aquelles olhos tamanho terror? Porque se estorciam assim aquellas boccas disformes?

Como era feia a morte!

Que negros crimes haviam os desgraçados commettido para tão cruel tormento, para assim expol-os á piedade d'alguns e aos improperios de muitos como exemplo da justiça de El-rei?

A justiça d'El-rei!... E se Deus o havia de castigar por seus crimes?

E via a alma tão negra como a sua desventura!

Reis havia que tinham subido ao patibulo, como se foram miseraveis. E começou outra vez a tremer, com medo dos homens e com medo de Deus.

-- Ouve, disse chamando um dos mulatos, que mal se atrevia a approximar-se. Amanhã avisarás o capellão que quero me diga missa no oratorio por alma d'estes dois infortunados.

Dsscobriu-se, benzeu-se.

Tornou a montar a cavallo, seguindo ao longo do Tejo, caminho do Terreiro. Parecia-lhe que os enforcados iriam virando os olhos a seguil-o e que as boccas apodrecidas gargalhariam uns risos de mofa.

A passo lento, acabrunhado, com a cabeça pendida, certo de que veria toda a noite aquelles rostos careteando, já entrava, ainda acordado, no pezadello que lhe daria suores frios e lhe poria fervores na garganta.

Chamou o Braz.

-- Dormirás esta noite no meu quarto.

O aleijado respondeu-lhe com um gemido que era uma queixa piedosa. Depois, contente, riu-se, e não mais se affastou da ilharga do cavallo, caminhando com os tregeitos descompassados que davam vontade de rir.

Havia luzes no paço, nos quartos do Conde de Castel Melhor. Simão Peres avistou sombras que passavam por detraz das cortinas.

-- Olhae, senhor. Parece que temos novidade.

El-rei ergueu os olhos e o sangue affluiu-lhe ao coração. Que má nova o esperava?

Galopou para a porta do jardim, por onde costumava entrar, quando voltava, alta noite, de suas aventuras.

Os soldados da guarda eram todos a pé.

-- Deus me valha! Deus me valha! ia El-rei murmurando.

E logo na primeira sala encontrou o Conde.

-- Que temos de novo? perguntou-lhe, assustado, pallido, com as faces a tremerem, interrogando o Conde com os olhos que pareciam implorar misericordia.

Mais pallido que El-rei era o escrivão da puridade.

-- Muito boas novas, senhor, respondeu-lhe, para vós e para o reino. O exercito de D. João d'Austria foi desbaratado pelo nosso. E' em fuga o Principe e foi grande a preza que fizeram os portuguezes.

Sentiu El-rei, de alegria, correr-Ihe tão rapido o sangue, que levou as mãos ao peito e um nó na garganta impediu-lhe o fallar.

-- Louvado seja Deus! disse por fim.

-- Para sempre seja louvado!

Era a Condessa velha quem lhe respondia.

-- Como o soubeste? perguntou El-rei, ancioso de conhecer a batalha em seus pormenores.

-- Despachou-me o Conde de Villa Flôr um dos seus officiaes, que ao paço chegou ás onze horas da noite.

-- Quando, onde se venceu a batalha?

-- Hontem á tarde, no Ameixial. Terminou, era já tão escuro, que não foi possivel aprisionar o Principe D. João.

-- E as nossas tropas?

-- Houveram-se como sempre. Sabe V. Majestade que não ha desconfiar do valor dos portuguezes.

-- E agora?

-- Agora sem perda de tempo, é reconquistarmos Evora. O exercito organisado pelo Marquez de Marialva irá quanto antes juntar-se ao de D. Sancho Manuel. A vingança do desastre soffrido por cobardia de D. Pedro Pecinga tem de ser completa! A nossa bandeira, dentro em breves dias, ha-de fluctuar em todos os castellos de Portugal! Sessenta annos soffremos sob o poder de Castella, de mais nos demorámos a esmagar seus exercitos.

-- E mortos e feridos? perguntou El-rei a medo.

-- Muitos ficaram no campo. Mas á boamente dão portuguezes o sangue por sua patria e seu rei natural. Ainda sobejaram bastantes para a missão que me impuz e levarei a cabo com a ajuda de Deus e a vossa, meu Senhor, se me não desamparardes.

-- Vencemos! disse El-rei como se fallasse n'um sonho, pasmado da misericordia com que o tratava Deus.

Fechou os olhos entontecido, e deu-lhe de repente um desejo immenso de desabafar em gritos. Depois da noite em que tanto padecêra, parecia-lhe a alegria tão sobrenatural que, suffocado, levando mãos á gola, puxando-a, arrancou os botões do gibão junto ao pescoço.

-- Vencemos!... E' D. João d'Austria em fuga!

Desejaria ter alguem com quem desafogasse sua alegria, tamanha que até lhe fazia doer. Olhou para o Conde; quasi, por impulso, já lhe estendia os braços, mas viu-o tão severo, com um ar tão doloroso, que se conteve.

Vinha a manhã a romper; a claridade do céo já desenhava nas cortinas corridas os caixilhos das janellas. A chamma empallidccia nos grandes tocheiros aos cantos da sala.

Porque esperaram a alvorada? Porque não repicaram logo os sinos em todas as torres? perguntou El-rei.

-- Porque não era V. Majestade no paço, respondeu o Conde.

-- Repiquem todos os sinos da cidade! Saiba todo o povo a nova feliz! ordenou. E depois... dobrem pelos defuntos, ajuntou soturnamente. Quantos ficaram no campo?

-- Não lhe sei dizer, meu senhor; ficou juncado de cadaveres.

-- Bemdito seja Deus! exclamou D. Affonso.

-- Bemdito! respondeu a voz da Condessa.

El-rei olhou para ella. Lembrou-se de sua mãe; era a mesma altura, o mesmo lucto, a mesma dureza impassivel. Mas viu-lhe no rosto uma expressão de tão funda amargura, que, acordada a memoria, perguntou-lhe:

-- Vosso filho?

-- Pelo seu rei, pela sua patria... e não foi dos meus filhos o primeiro... caiu atravessado por uma bala, cumprindo seu dever de soldado portuguez.

-- Ferido, disse o Conde; conservamos esperanças de melhores novas.

-- Em todas as egrejas se façam preces pelos que por mim combateram. Conde, tu cumprirás as minhas ordens.

Saíu; mas, junto á porta, olhando para a Condessa, viu-a cambalear, caír nos braços do filho.

-- Tantos que morrem por mim!... E se eu não for digno de ser rei? ia dizendo. Deus me não castigue! Deus me não castigue!

E, em quanto os sinos repicavam e nas egrejas se diziam as primeiras missas pelos mortos no campo de batalha, El-rei, de joelhos em seu oratorio, ante o padre revestido de negro, cumpria sua promessa, ouvindo missa pelos enforcados.

-- Afastae do meu leito, Senhor, os phantasmas nocturnos! murmurava baixinho.

Aquelles olhos estourados!... Aquellas boccas torcidas!... Quantas vezes havia de sonhar com ellas!

CAPITULO IV

Um embuçado

D. Sancho Manuel esperava junto da porta do Rocio que fosse dado principio ao que fôra assignado nas capitulações.

Não fôra sem difficuldade que o Conde de Sertirana entregára a praça de Evora.

Dois dias antes, um ajudante de D. Luiz de Menezes levára ao governador das tropas castelhanas, da parte do general de artilharia, um papel com este verso do psalmo: Nisi Dominus custodierit civitatem, frustra vigilat qui custodit eam; mas fôra mandado retirar sem resposta. No dia seguinte, amanheceram fortificados os approxes tão proximo dos baluartes e barbacãs, a brecha da bateria do quartel de D. Luiz de Menezes era tão capaz de facilitar o assalto, que o Conde de Sertirana, em vista de tantos ameaços, fez uma primeira chamada. Foi nomeado Diogo Gomes de Figueiredo para a conferencia das capitulações; mas a nenhum accordo chegou com o governador da praça.

Todo o resto d'aquelle dia, toda a noite se pelejou. Os inglezes investiram uma meia lua e d'ella passaram á barbacã, onde se fortificaram. Os portuguezes, trez vezes rechaçados, conseguiram occupar, á custa de muitos mortos, o baluarte de S. Bartholomeu. Tres mestres de campo commandaram o assalto da muralha a que se arrimaram mantas, introduzindo-se-lhe mineiros. Defenderam-se os castelhanos lançando sobre os assaltantes bombas, granadas e barris de polvora; mas o posto foi sustentado. Quiz o Conde de Sertirana salvar sua cavallaria, valendo-se do escuro da noite, mas logo a atacou D. Luiz da Costa com seus cavalleiros e obrigou-a a retirar-se.

Na confusão da carga, ficou ferido D. Pedro d'Almeida, que, dando um grito : -- «Margarida!» foi sustido na queda pelos braços de Manuel Furtado, que batalhava alegremente a seu lado.

Defendendo o amigo, pelejando sempre, rompeu por entre os castelhanos, levou-o até ao quartel e logo voltou para a batalha.

No dia seguinte fez nova chamada o Conde de Sertirana, mas foram duras as condições impostas, embora lhe não houvessem regateado as honras militares devidas aos rendidos de boa fé. Entregaria todos os cavallos das companhias e todas as munições, petrechos e mantimentos que houvesse na praça, concedendo-se apenas ao governador levasse comsigo duas peças de artilharia com as munições precisas para se carregarem. Poderiam sair da praça oito embuçados e passar logo a Castella sem impedimento algum.

Estava o exercito formado em batalha em frente á porta do Rocio e o Conde de Villa Flôr, a cavallo, assistia ao desfilar da guarnição.

-- Vão de orelha murcha os castelhanos, disse o padre Ventura.

-- Se te parece! ajuntou Pero Rolão. Pôrem o pé em ramo verde por dez dias e meio e logo uma marcha pelo Alemtejo, debaixo d'um calor d'estes, até suas casas! Ouve os sinos como repicam!... E que foguetorio nos ares!... Deve ser o general de artilharia, que vai a caminho da Sé. Falta lá a tua linda voz, meu padre.

Effectivamente fôra D. Luiz de Menezes, pelo privilegio de seu posto, o encarregado de tomar posse da cidade.

-- Canto o Te-Deum com os meus botões, que elles me ouviram coisas lindas todos estes dias. Ah! se este cêrco fosse um ponto final...

-- Não me digas isso, que perdia de todo a esperança...

-- De mais um posto?

-- Do tornar a vêl-a!

O padre encolheu os hombros aborrecido e voltou-se para Manuel Furtado.

-- Como vai D. Pedro d'Almeida?

-- A cutilada foi puxada com alma. Abriu-lhe ao meio a orelha e prolongou-se-lhe até ao olho esquerdo. Foi grande a perda de sangue.

-- Mas o licôr d'oiro é santo remedio, disse o padre, e o capitão, cercado em sua casa de muitos carinhos, por certo ha-de arribar em poucos dias.

-- Tão breve não estará D. Pedro em estado de dirigir-se a Lisboa.

-- Que importa? Virá D. Margarida para Evora. Não tem difficuldades a jornada, ainda menos agora que tão cedo não voltarão os castelhanos a metter-se por esse Alemtejo.

-- Decerto virão acompanhando a afflicta senhora a mãe e a irmã de D. Pedro, disse Pero Rolão, que andava de pedra no sapato e poz-se a observar o effeito que faziam no amigo suas palavras.

A Manuel Furtado passou-lhe uma alegria de esperança pelos olhos.

-- Comtanto que me deixem ficar de guarnição em Evora...

-- Se D. Pedro d'Almeida manifestar esse desejo ao cunhado...

Manuel Furtado calou-se.

O sol abrasava. Pero Rolão assoprou impaciente.

-- Tomára que saíssem! Com que vagar entregam as armas e os cavallos!

Eram estes oitocentos e doze e tres mil e duzentos os infantes, que seriam remettidos a varios logares pelos alferes das companhias de cavallo e infantaria.

Manuel Furtado parecia scismar.

-- Deves ter maior pressa do que nós, disse-lhe o alferes. Esperam-te os lindos braços de Maria da Boa Hora.

Mas o tenente notou uma ligeira ironia no tom da observação. Olhou, desconfiado, para o amigo.

Approximava-se um grupo de officiaes e entre elles vinham os oito embuçadas a que as capitulações se referiam.

-- Quem lhes arrancára as capas! disse Pero Rolão. Condições taes não devia haver; pois quem quer esconder o rosto alguma antiga traição a isso o obriga.

-- Embuçado saíu de Evora D. Pedro Pecinga, quando a entregou aos castelhanos.

-- Porque traidôr fora a seu rei, disse o padre.

-- De pouco lhe valeu salvar-se de uma vergonha, continuou Manuel Furtado; n'outra maior caíu quando não teve que responder á colera de D. Sancho Manuel.

-- Queria, ao menos, ver-lhes os olhos, disse o alferes, para saber o que dizem e se falam de vergonha. Em cada soldado que entrega a arma, vai n'alma um desespero que não sabe esconder. Olha aquelle; limpa os olhos á mão ainda negra de polvora; este mordeu os beiços, que os leva em sangue: aquelle velho de cabellos brancos levantou o mosquete, que parecia querer dar com elle no peito do soldadinho vencedor.

Os embuçados approximavam-se a cavallo, entre os officiaes que deviam acompanhal-os até á fronteira.

-- Muito novo deve de ser este, disse o padre apontando para o que vinha mais de seu lado. Tem mãos de creança, reparae.

Os dois officiaes olharam.

-- Algum pequenito espião, disse Manuel Furtado. Não seria caso de espantar... Com certeza não é official do exercito. Ou muito commovido vae ou pela primeira vez sustenta umas redeas.

O embuçado, como se tivesse ouvido aquellas palavras, olhou para elles.

-- Aquelle olhar!... exclamou o alferes, sem poder conter um grito de espanto.

-- Quem te pareceu? perguntou Manuel Furtado commovidissimo .

-- Ella!... Era ella! digo-t'o eu.

-- Quem? disse o padre.

-- A Consuelo!... A amante de D. João d'Austria!

O padre largou uma gargalhada.

-- Como querias que houvesse entrado?

-- Mais ninguem no mundo tem uns olhos assim!...

Vi-os brilhando por debaixo da mascara, fitos em Manuel Furtado.

Este, muito pallido, dizia comsigo:

-- Seria Maria da Boa Hora?... Mas como?... Mas porquê?

E ria-se da suspeita, quando sentiu apertar-se-lhe com ciumes o coração.

Ancioso, esperava o momento de entrar na cidade; mas, de quando em quando, vinham-lhe uns impulsos de abalar a todo o galope, romper por entre os soldados prisioneiros, afastar á espadeirada os officiaes, encontrar-se com os embuçados e arrancar-lhes as mascaras. Logo uma voz interior lhe dizia:

-- Para que tamanha loucura?... Rir-se-íam todos de ti e de teu ataque de risiveis ciumes. Com tua acção má irias ennodoar todo o teu passado. Que seria de teu prestigio?

Ainda o resto dos terços castelhanos vinha saíndo pela brecha e já era quasi noite. A fome e a constancia monotona do espectaculo começavam a abrir formidaveis bocejos em todas as boccas.

Pero Rolão, com os queixos já desconjuntados, continuava murmurando:

-- Era ella!... Era ella!

-- Cala-te! disse por fim Manuel Furtado impaciente, já de todo convencido da insensatez de suas suspeitas.

Saíram finalmente os ultimos castelhanos e o Conde de Villa-Flôr deu sua entrada na cidade entre acclamaçoes dos moradores. De todas as janellas eram lançadas flores sobre seu cavallo e tudo eram vivas ao capitão-geneal victorioso e ao Marquez de Marialva.

Manuel Furtado, de coração muito socegado, disse a Pero Rolão:

-- Vais agora saber porque tamanha impressão me causou a vista d'aquella mulher, amante do capitão-general nosso inimigo. Acompanha-me.

-- E comer? perguntou o alferes.

-- Maria da Boa Hora deve ter-se lembrado de nós.

Seguiram uma viella, passaram por defronte d'uma egreja, atravessaram uma praça, metteram por sob um arco, e por toda a parte o jubilo parecia rejuvenescer a velha cidade. Eram luminarias com que se enfeitavam as casas, fogueiras que se preparavam e muitas raparigas rindo e soldados galhofando.

-- Se não haviamos de vencer!... Se é vespera de S. João!

E outra vez repicavam os sinos e estoiravam os foguetes nos ares.

-- E' ali, disse Manuel Furtado mostrando a Pero Rolão uma casa lá no fim da rua estreita, com duas janellas de rotulas muito cerradas, tão cerradas que o tenente pensou:

-- Se commetteria a imprudencia de saír? Se se foi por ahi ao nosso encontro?

Assustado, apressou o passo. Pero Rolão, cheio de curiosidade, acompanhava-o, custando-lhe o andamento, maguado como estava das muitas horas que se demorára a cavallo.

O tenente bateu á porta, que logo se abriu, puxado de cima o fecho por uma corda.

-- Maria da Boa Hora! gritou elle jubilosamente.

Ninguem lhe respondeu. Subiu.

Só, muito pallido, despenteado, de cabeça baixa como quem merece castigo, com olhos de quem sabe d'alguma tristissima tragedia, estava no meio da casa Pantaleão Gonçalves.

-- E ella? perguntou Manuel Furtado.

O pintor vergou ainda mais a cabeça, afastando os braços n'um gesto de impotente ignorancia. Nos olhos piscos scintillava-lhe uma lagrima pequenina.

-- Que sabes?... Falla!

Mas Pantaleão Gonçalves gaguejava e não dizia coisa com coisa que fizesse sentido.

-- Responde! disse Manuel Furtado sacudindo-o. E nada!... Viu-lhe o beiço a tremer.

-- Quem vinha a esta casa? perguntou colerico.

-- Aqui?...

Recuou uns passos, como receando que o tenente o esmagasse e, com difficuldade, pronunciou:

-- Aqui, ninguem... Só duas vezes...

-- Quem veio?

-- O Conde de Sertirana.

-- O Conde!... Mas como?...

Pantaleão Gonçalves, chorando, fez menção de ajoelhar, como quem quer pedir perdão.

-- Quero saber tudo, exclamou Manuel Furtado passeando pela casa, doido, espicaçado nem elle sabia porquê, se pelo ciume, se pela vaidade offendida, se pelo mysterio d'aquella fuga. Pois nada mais sabes?... nada?

Pero Rolão calava-se, boquiaberto, nada entendendo.

Percebiam-se os esforços que Pantalão Gonçalves fazia para fallar, mas sumiam-se-lhe as palavras na garganta.

-- Vamos, desafoga! Vê em que estado me pões!

E Manuel Furtado deitou-lhe mãos ás goelas.

-- Dize-me depressa o que passou, porque peço licença ao Conde de Villa Flôr e vou na perseguição dos embuçados...

-- Que queres dizer? perguntou Pero Rolão. Endoideceste?... Pois julgas que assim póde faltar-se...

-- Tens razão! respondeu o tenente, caíndo em si e com a maior dôr. Mas que importa?... Deserto!... fujo! Aquelle embuçado que vimos...

-- A Consuelo!

-- Era Maria da Boa Hora, retrato vivo da amante do principe!

-- A tua...

-- Duvidas?

Abriu uma gaveta; tirou d'ella a miniatura que Pantaleão Gonçalves pintára para El-rei e fôra o élo primeiro de todo aquelle romance.

Pero Rolão abriu a bocca, que até lhe fez doer. Encantado, olhava para o retrato.

-- Nem duas gottas de orvalho n'uma mesma folha de rosa!

Pantaleão Gonçalves cambaleava no meio da casa.

-- Bebado!... Estás bebado!

O tenente empurrou-o e elle caíu n'uma cadeira.

-- Desde quando estás assim?

-- Desde os primeiros tiros. Foi o mêdo... foi o vicio...

-- Mas conta-me o que sabes!... Conta, por Deus!

Os olhos do desgraçado puzeram-se a piscar. Via-se o esforço que fazia para recordar-se, para pôr em ordem umas ideias. A lingua muito grossa ageitava-se-lhe mal a certas palavras, e o tenente, cheio de impaciencia, com os olhos a devoral-o, ouvia-o, recompunha a historia toda com as phrases soltas que o bebado pronunciava entre mil protestos de arrependimento.

-- A culpa foi minha, que sou um bebado!

E agarrava as mãos de Manuel Furtado e beijava-as, enchendo-as de lagrimas.

Ora, por entre as expansões avinhadas do pintor, phrase aqui, phrase acolá, correspondentes a factos, déram a saber a Manuel Furtado pouco mais ou menos o que passára. Duas vezes viera o Conde de Sertirana a casa de Maria da Boa Hora e conversára com ella, qne muito alegre se mostrára como quem medita coisa que lhe agrada. Uma só vez a vira Pantaleão a chorar e fôra sobre um papel procurado na gaveta do amante. E, logo depois, puzéra-se a rir, mas seu riso fizera doer ao velho, que mais por isso dera em beber, em beber...

O tenente abriu a secretária, procurou com o pintor o papel em que ella, indiscreta, haveria mexido.

-- N'este! disse logo Pantaleâo Gonçalves. Conheço-o pelo sinete.

Era a carta que D. João d'Almeida escrevêra a Manuel Furtado e a que D. Anna juntára umas palavras de seu punho. No mesmo subscripto, enrolado n'um bocadinho de sêda, um comprido fio côr de oiro recordava a Manuel Furtado a primeira vez em que a noiva de André d'Albuquerque tanto chorára, pendida a formosa cabeça sobre seu hombro. Era um cabello seu, que piedosamente guardava em memoria d'aquella noite.

Exactamente sobre as palavras de D. Anna haviam caído as lagrimas de Maria da Boa Hora, quasi apagando-as.

-- Deixou seduzir-se pelo italiano! Vingou-se da minha frieza!

Atirou os punhos ao ar com um gesto de ameaça.

Dos ultimos dias nada Pantaleão sabia contar. Os tiros da artilharia, as bombas que rebentavam nas muralhas, a soldadesca hespanhola que ás vezes andava pelas ruas a fazer tropelias, tudo transtornára quem sempre fora tão amigo do socego. Puzera-se a beber, a beber -- vinho não faltava na praça -- com medo á morte, mais temendo morrer de susto do que atravessado por uma bala. E nada mais sabia.

Quando entrára em casa n'aquella manhã, encontrara-a já na escada, vestida d'homem, afivelando a mascara de velludo preto; e elle nada achára para responder-lhe, quando lhe ella dissera adeus. Viu-a descer, montar a cavallo, abalar, e elle fôra á garrafeira, começara outra vez a beber. A culpa fôra d'elle, que não a soubera guardar, porque era um desgraçado!...

E chorava e batia no peito.

-- Sou um bebado!... Sou um bebado!

Lá fóra, na cidade, era uma alegria em todas as ruas, que o povo percorria dando vivas a El-rei de Portugal, ao Conde de Villa Flôr, ao Marquez de Marialva.

Não se calavam os sinos e os soldados e as raparigas dançavam em volta das fogueiras.

Cantava um homem:

E' dançar como os mais annos,

Que já lá vai todo o mal.

Nada quer com castelhanos

S. João de Portugal.

E respondia-lhe uma voz de mulher:

Só vendo muita saudade,

Lá do alto do seu altar,

Taes voltas deu, que a cidade

Se lhe poz toda a cantar.

Pantaleão Gonçalves, sentado n'um mocho, com os cotovellos fincados sobre a mesa, continuava a arrepellar-se.

De repente, Manuel Furtado com um gesto nervoso, pegou no chapeu.

-- Aonde vaes? perguntou-lhe Pero Rolão, inquieto com o transtorno que lhe via no rosto.

-- Não sei. Preciso saír, apanhar ar. Abafo aqui n'esta casa.

-- Acompanho-te.

Caminharam juntos até ao Rocio. Ahi Manuel Furtado perguntou onde se alojára o Conde da Torre. Ensinharam-lhe o caminho.

-- Deve ter levado comsigo o cunhado. Vou saber de D. Pedro d'Almeida.

Mas Pero Rolão, temeroso de que elle tomasse alguma decisão arriscada, acompanhou-o até á porta.

-- Espera-me um instante, disse-lhe o amigo.

Entrou, subiu. E Pero Rolão ficou pensando:

-- O que me admira é que não esteja ainda mais doido. Duas gottas de orvalho n'uma folha de rosa mais não se parecem! Saíu-me exacta a comparação. São os olhos d'ellas quatro estrellas muito eguaes, como as não ha no céo; os labios teem a mesma expressão e o mesmo sorriso que, quando se abre, faz cantar os passarinhos como se fosse uma alvorada; os cabellos são negros e ondeados para n'elles baloiçarem nossos desejos. Tão similhantes em tudo! O ar que respirei n'aquella casa até me pareceu avivar lembranças do perfume que me embriagou, quando deitei a capa sobre os hombros de Consuelo!

Continuava o povo a passar e, por um momento, Pero Rolão esqueceu-se do amigo, todo enlevado n'um rancho de raparigas que iam cantando.

-- Mulheres ha muitas, disse comsigo philosophicamente.

Mas Manuel Furtado demorava-se. Assentou-se.

Poz-se a pensar em Consuelo para melhor levar o tempo. Tinha a certeza de que ella tambem nunca mais o esqueceria.

-- Dê a volta que der a fortuna de D. João d'Austria, aquelle official portuguez, que tão denodado e cavalleiro se lhe mostrou, ha-de habitar seu pensamento d'ella para sempre e talvez os seus mais bellos sonhos!

Defronte da porta, com tal ideia, poz-se a passear mais garbosamente, saudando com bondosos gestos familiares os grupos que passavam dando vivas ao exercito.

-- Assim como eu digo: -- «Consuelo! Consuelo!» alguma vez ella dirá: -- «Pero Rolão! Pero Rolão!»

Mas lembrou-se de repente de que ella não lhe sabia o nome.

-- Deixal-o! Quando pensa em mim, chama-me aquelle bello, aquelle distincto, aquelle garboso...

Passeou mais um boccado, repuxando os bigodes, passando a mão pela cara, pensando que no dia seguinte havia de fazer a barba.

E Manuel Furtado que não voltava! Estaria D. Pedro peor?

-- Pobre amigo! Abandonado pela mais formosa das amantes!... A mais formosa, salvo, é claro, a de D. João d'Austria.

E continuou a procurar epithetos para si mesmo.

-- Aquelle garboso, aquelle denodado, aquelle...

Por fim, assustado com a demora, mandou recado ao tenente. Trouxeram-lhe como resposta que S. Mercê saíra do palacio por uma das portas trazeiras.

-- Doido! gritou o alferes.

E correu, que parecia que rebentava, até casa de Maria da Boa Hora.

Pantaleão Gonçalves adormecêra encostado á mesa. Manuel Furtado nâo estava!

A que perigos teria ido expôr-se?

Lembrou-se de correr até casa de D. Pedro d'Almeida contar-lhe o que passava, pedir ao Conde da Torre que mandasse meia duzia de soldados a toda a brida no encalço do apaixonado. Mas para que? Com a deanteira que levava onde apanhal-o?... E se Manuel Furtado não houvesse saído as portas da cidade? Se, como todo o apaixonado, apenas tivesse ido procurar a solidão? Iria fazer um escandalo sem proveito.

Decidiu esperal-o.

Deu com os olhos no retrato de Maria da Boa Hora. Que formosissimos olhos! Que sorriso de tamanha bondade!

-- Consuelo! dizia.

E, morto de fome, com o coração ferido dos maiores cuidados, entre os roncos do Pantaleão, não desfitava os olhos de tão singulares encantos.

Uma voz d'homem cantava cá fóra:

Andei na guerra com sorte,

Andei co'a morte a brincar.

Teu olhar é que dá morte,

Vim morrer d'um teu olhar.

Pela manhã, quatro paisanos trouxeram para dentro da praça, Manuel Furtado, que, a uma legua d'Evora, haviam encontrado, caido no chão, moribundo, atravessado por uma bala.

CAPITULO V

Convalescença

Manuel Furtado accordou sem febre n'aquella sumptuosa manhã de julho.

Ainda inconsciente, sorriu-se maravilhado para o boccadinho de céo muito azul, que via de seu leito, e onde os raios do sol a nascer se desfaziam n'uma poeira d'oiro. Cantavam umas andorinhas na beira do telhado e encantou-o seu chilreio, tão doce era e amoroso. Roçava-Ihe de quando em quando pelos vidros da janella um ramo de ulmeiro, de folhas muito verdes que parecia chamal-o, e elle olhava e logo o ramo se escondia. Vinha o sol a subir. Um raio de luz, vivo, criador, saudado pelas andorinhas com gritos de jubilo, irrompeu pelo quarto, veio tingir de côr de fogo as roupas da cama e accordoii lá fóra as cigarras. E elle, todo enlevado, ainda como na atmosphera d'um sonho bom, respirou fundo.

Magoou-o então uma dôr aguda no lado esquerdo do peito; quiz levar-lhe a mão, mas sentiu-a presa.

A dôr o a difficuldade do movimento accordaram-o de vez.

Onde se achava? que quarto seria aquelle?

Olhou para o braço mettido em ligaduras. O direito estava livre; ergueu-o, passou a mão pelos cabellos emmaranhados, esfregou com força os olhos, poz-se outra vez a olhar. Apertou a testa. Nada lhe recordava. Estaria ainda sonhando?

Relanceou os olhos em volta, mas coisa alguma no quarto reconheceu, nem o leito em que estava deitado, nem a grande poltrona que lhe ficava á cabeceira, nem o bufete, nem o oratorio que sobre elle estava, com santos a que nunca resára.

Onde se achava?

Mas aquelle ceu tão luminoso, aquella chilreada alegre, um certo perfume que ainda no quarto esvoaçava, pareciam-lhe a continuação d'um sonho bom que durára muitas noites, que bem sabia haver sonhado, mas de que tambem não podia recordar-se. Fechou os olhos, com o rosto voltado para o sol; mas, na grande aureola formada de milhares de estrellas a girarem, ao vulto de alvas roupagens que lhe appareceu não soube distinguir o rosto.

Sim, era n'aquelle quarto... Alta noite, uma mulher viera debruçar-se, anciosa, sobre seu leito, puzera-lhe a mão na testa... Com um pequeno esforço talvez conseguisse difinir-lhe as feições.

E logo toda memoria lhe fugiu, como de melodia esquecida que um momento canta na lembrança e de repente se esvai.

-- Sonhei! disse comsigo. Ainda é sonho!

Quiz soerguer-se. Não pôde.

-- Mas que tenho eu? disse em voz alta.

-- Quer V. Mercê alguma coisa? Aqui estou para prestar-lhe serviço.

Quem lhe fallava era um creado velho, que entrára em bicos de pés, afastando o reposteiro.

Manuel Furtado abriu muito os olhos. Lembrou-se de contos de fadas, que lhe contavam em pequeno, e com vontade de acreditar no que diziam. Aquelle velho!... Nunca o vira!

-- Mas onde estou ? perguntou pasmado.

-- E' V. Mercê em casa do sr. Conde da Torre. Não admira que se não lembre... O estado em que para aqui o trouxeram...

-- Ferido?

-- Ferido.

-- Em combate?

-- Ninguem sabe como, se V. Mercê o não disser.

Manuel Furtado procurava coordenar as ideias, começava a accender-se-lhe uma pequenina luz na memoria.

-- Estamos em...

-- Em Evora! sr. Manuel Furtado.

-- Em Evora! repetiu. E' isso. Cercámol-a e os castelhanos renderam-se. Mas não foi no assalto que...

-- D'elle saíu V. Mercê são como um pêro. Foi depois...

-- Sim, sim... Recordo-me...

A physionomia transformou-se-lhe por instantes. Assustou-se o creado.

-- Sente-se V. Mercê peor?

-- Maria da Boa Hora!... murmurou o tenente.

-- Que ia V. Mercê fazer aquella noite a uma legua da cidade? O sr. Pero Rolão vinha ahi tão assustado...

-- Sim... Pero Rolão... Queria fallar-lhe.

-- Foi mandado marchar para Elvas.

-- E ha quantos dias?...

-- Não poucos foram, sr. Manuel Furtado, em que de vós não d'estes accordo. Mas felizmente, a Virgem Maria ouviu as orações de todas estas senhoras que por vós resavam...

-- E D. Pedro?

-- Vai melhor. Já se levanta e não tarda que venha saber noticias vossas.

-- Que novas ha do exercito?

-- Tudo é prevenido para qualquer vingança que possa querer tomar D. João d'Austria.

Manuel Furtado fechou os olhos. O creado callou-se.

-- Deixal-o socegar.

Maria da Boa Hora! Sim, fôra por causa da amante que elle abalára, como louco, atraz dos embuçados. Agora todos os factos, pouco e pouco, ia restabelecendo em ordem: a pancada que lhe déra o coração, seu posterior socego, a chegada a casa, o que lhe contára Pantaleão Gonçalves, como enganára o amigo deixando-o á porta do Conde da Torre, saíndo pela outra rua. E via-se pela estrada fóra, correndo á desfilada, sem uma ideia que não fosse do vingança e nem sabendo como vingar-se. Depois toda a lembrança se apagava.

-- Onde me acharam? perguntou sem abrir os olhos.

-- Ferido, moribundo, em meio da estrada, a uma legua d'aqui. O sr. D. Pedro, mal o soube, quiz que vos transportassem a esta casa, respondeu o criado.

Manuel Furtado repetiu comsigo:

-- Maria da Boa Hora!

E causou-lhe espanto não sentir uma dôr intensa ao pronunciar-lhe o nome. Parecia-lhe que alguma coisa mais haveria de ter passado n'aquelles dias ou n'aquellas noites de que não conservava lembrança. Porque lhe socegára assim o coração? Que milagrosa mão pousára sobre sua testa e lh'a refrescára e de seu leito afastára o pezadelo? O que fôra realidade já pudera com esforço das faculdades, passo e passo, reconstituir; queria o mesmo fazer ao sonho, mas as imagens sumiam-se-lhe, etereas, na penumbra em que se haviam formado.

A porta rangeu devagarinho, empurrada por mão discreta. Abafando os passos alguem so approximou do leito.

-- Que tal? perguntou uma voz em tom muito baixo.

O criado respondeu:

-- Fallou agora em seu juizo natural. Parece-me que o temos salvo.

Manuel Furtado outra vez abriu os olhos e sorriu-se para D. Pedro d'Almeida, que trazia a cabeça ainda toda envolta em panos complicados.

-- D. Pedro, Deus vos salve.

-- Ora viva quem ha tantos dias não dizia coisa com coisa! Como vos sentis?

-- Bem. Como quem renasce.

-- Muito cuidado nos destes; mas, felizmente, não vos faltaram remedios de phisicos nem orações de santas senhoras.

Era a segunda vez que lhe fallavam em orações. Perguntou:

E quem se lembrou de mim, para rogar a Deus por minhas melhoras?

-- Minha mulher, minha mãe e minha irmã, que em Lisboa souberam do gilvaz com que fui mimoseado por um maldito castelhano. Partiram logo para Evora e todas vos estão muito gratas pelo que por mim fizestes.

Sentiu Manuel Furtado subir-lhe ás faces um boccadinho de sangue; o coração bateu-lhe apressado.

-- São vossas melhoras tantas, disse-lhe D. Pedro, que até a pallidez do rosto vos desapparece.

Quem me déra ver-vos restabelecido, pois estou ancioso de saber que ideia, vos levava só, de noite, por esses caminhos perigosos.

Manuel Furtado, novamente córando, ia responder embrulhadamente qualquer desculpa, quando irrompeu pelo quarto o Conde da Torre em seu estardalhaço costumado, fazendo tilintar as esporas, batendo com a ponta da espada em todos moveis, fallando alto e limpando com estrondo o pigarro da garganta.

-- Estaes melhor?... Pois sabei uma boa nova: foi pelos ares o castello de Arronches!

-- Como?

-- Como é costume. Pelos ares! Mas o que é notavel é que foi ás horas era que eu, aqui no meu quarto, estava a meditar n'isso. Eu disse assim: -- «Fogo!» e ao mesmo tempo, como se lá elle me ouvisse, com um barulho infernal, voou o castello inteiro! Eu a dizer: fogo! e elle a voar!

D. Pedro desatou a rir.

-- Foi-nos trazida a nova por um official que chegou de Extremoz.

-- Andam com má sorte os castelhanos.

-- Então melhor?... anh?... Melhor? perguntou o Conde com interesse, encostando-se á banca onde estavam os potes e garrafas dos remedios, partindo-lhe um pé e derrubando tudo.

-- Muito melhor, agradeço a V. Ex.ª, respondeu o tenente com um sorriso.

-- Pois é pôr-vos quanto antes de pé, que ainda temos de pelejar, e quero-vos a meu lado. Eu salvei-vos a vida, vós a salvastes a Pedro...

E, como se repentinamcnte a ideia lhe accudisse:

-- Deves-me a vida! disse ao cunhado.

O phisico entrou n'esse momento.

Era um velho cauteloso, de vozes mansas, que logo se mostrou afflicto por vêr a janella aberta de par em par e o Conde fallando alto como n'um quartel de cavallaria.

Procedeu ao curativo minucioso, meneando a cabeça com ar satisfeito; elle mesmo cerrou a janella e, fallando baixo, abafando os passos, recommendou silencio e ainda a maior prudencia. Era perigosa uma recaída.

O Conde e D. Pedro saíram; o creado retirou-se em bicos de pés para o quarto ao lado.

Sentia Manuel Furtado na alma a mesma sensação de convalescença, que era como o renascer para uma vida nova.

Emquanto foi dia, para ali se ficou a scismar.

-- Foi ella que resou por mim! dizia n'um enlevo. E revia-a ajoelhada em frente do altar, na capella do palacio de Lisboa, aquella manhã em que se dissera missa por alma de André de Albuquerque. Loira, esbelta, angelica, nunca mais a formosa imagem lhe saíra do sentido. Recordava-se do que n'esse instante pensára: que valia a pena morrer, para obter as orações d'uma mulher assim. E fôra D. Anna de Portugal quem resára por elle! Parecia-lhe que em ondas sentia correr-lhe nas veias a saude!

Era grande o calor, e as cigarras estridulas cantavam lá fóra, convidavam ao somno.

Mas Manuel Furtado era feliz de achar-se acordado. Já não sentia dôr alguma; apenas uma impressão, que devia desapparecer, um adormecer da sensibilidade em que achava delicia. Quando a imagem de Maria da Boa Hora vinha pôr-lhe uma sombra no idealisar luminoso, afastava, impaciente, o pensamento, e remexia-se no leito, com preguiça de descer ao fundo da alma e interrogal-a. Que demonio o incitára áquella acção? O do ciume? O da vaidade? O da loucura?... Seria apenas uma fonfarria de soldado?

O criado, sempre zeloso, entrava de vez em quando, trazia-lhe o caldo, approximava-lhe dos labios sequiosos o copo d'agua, perguntava-lhe se ia melhorzinho. Manuel Furtado respondia-lhe só com um mover dos olhos agradecido.

-- Talvez vos fizesse damno a palestra com os amigos, dizia-lhe o velho. Tratae de chamar o somno. Parece-me que estaes outra vez com um boccadinho de febre.

Devia de estar. Começavam novamente a embruIhar-se-lhe as ideias.

Já as cigarras iam abrandando a cantoria. Ouvia-se ao longe o chiar monotono d'uma nora. Uma mosca varejeira zumbia de encontro aos vidros. Uma nuvemsinha muito doirada pairava no céo e uns andorinhões negros andavam aos gritos lá por cima.

D. Pedro d'Almeida entrou outra vez no quarto.

-- Como passastes o dia?

-- Bem.

-- Foram grande alegria para todos nós as vossas melhoras. O phisico prohibiu-nos o fallar-mos comvosco. Boas noites, Manuel.

-- Deus vos guarde, D. Pedro.

D. Pedro d'Almeida saíu.

-- Elle disse: para todos nós! accrescentou baixinho Manuel Furtado.

Deram ave-marias e então fechou os olhos, consolado.

-- Vou dormir bem, pensou, a sorrir-se com certo contentamento voluptuoso.

Adormeceu, o só alta noite acordou com um grande socego, já não extranhando o quarto em que se achava.

A luz da lamparina que ardia em frente do oratorio, movendo-se, fazia correr pelas paredes, quebrar-se no tecto alto, apainelado, as sombras das cortinas.

Manuel Furtado reconheceu o scenario; lembrou-se de que, mais d'uma vez, o tinha visto no delirio da febre. Era aquelle mesmo, não havia duvida, aquelle o reposteiro que se entreabria e dava passagem ao vulto branco deslisar sereno na meia escuridão, como fadas em lagos azulados pelo luar.

A mesma hora, o mesmo silencio, a mesma luz, ajudavam-lhe agora a memoria.

O creado, repimpado ao lado da cama n'uma grande poltrona, roncava alto.

Nos labios do enfermo adejava o sorriso de quem procura a chave d'um misterio, certo de que vai breve encontral-a. Com os olhos muito vagarosos consultava as sombras, pedia-lhes que lhe viessem em auxilio da memoria.

Era profundo o silencio em todo o palacio. Lá fóra, um relogio na torre d'uma egreja bateu tres quartos. Ouviram-se os gritos de «alerta» das sentinellas. Nenhum outro rumor na cidade.

-- Deve ser tarde, pensou Manuel Furtado. Que suavissima paz! Parece que a alma vôa no silencio e com que delicia!

Um grillo cantava ao longe. Uma noite socegada como aquella, estivera em Evora, á janella com Maria da Boa Hora -- que tempos -- olhando para a noite, ouvindo-lhe os seus rumores que pareciam carinhos segredados. Em que scismavam? Não o disseram um ao outro, mas quando elle olhou para a amante viu-lhe pela face duas lagrimas a correrem, em que luziam as estrellas do céo. Um mocho tinha começado a piar n'um cipreste. E agora lembrava-se de Maria da Boa Hora, como d'um sonho que houvesse sonhado havia muito.

-- Mas o de todas estas noites, esse queria eu sonhar mil noites!

Seria um sonho?

Bateu o relogio outra vez os quartos e logo um sino mais grave annunciou as horas.

-- Uma... duas...

Pôz-se Manuel Furtado a contal-as.

-- Meia noite!... A hora dos phantasmas!

Sorriu-se.

-- E' que tenho phantasmas bons que me visitam.

E uma ideia, que lhe pareceu de extremada loucura, atravessou-lhe o cerebro.

-- Se fosse !...

Paralisaram-se-lhe os labios, que se moviam para pronunciar um nome.

Era tão profundo o silencio, que, por muito mansa que a porta girasse nos gonzos, elle sentiu-a abrir-se, viu na parede moverem-se mais rapidas as sombras do reposteiro.

Batia-lhe com tal força o coração que lhe pôz medo não fossem ouvil-o.

Um perfume que bem conhecia espalhou-se pelo quarto.

Fechou os olhos n'um encanto, tal era o receio de caír, desilludido, em alguma vulgar realidade; e, ao mesmo tempo, queria vêr, queria vêr, certificar-se de que podia haver realidade muito acima de quanto alguma vez se atrevêra a sonhar.

Sentiu junto ao rosto um halito que respirou n'um transporte de todo o ser, arrebatado a regiões mais altas que os vôos de toda a sua phantasia. Uma doce mão carinhosa pousou-lhe na testa por instantes, afagando-a. Depois os passos afastaram-se do leito e então Manuel Furtado abria os olhos.

D. Anna de Portugal era junto do oratorio. Concertou a luz da lampada, depois, pondo as mãos, quedou-se em frente das imagens orando.

E o enfermo via-a e não acreditava. Estendeu para ella o unico braço que podia mover, como n'um appello de toda a sua alma á visão que o deliciava. A cabeça na sombra parecia nimbada pelo oiro dos cabellos revoltos entre os quaes passava a luz tenue que luzia aos santos. Manuel Furtado deixou outra vez cair o braço e ficou-se mudo, sustendo a respiração, com medo que um suspiro mais alto desfizesse o sonho, o arrancasse de sou extasis. Tornou a fechar os olhos e sentiu novamente os passos leves, abafados, caminharem para elle.

As mãos carinhosas concertaram-lhe a almofada, aconceharam-lhe a roupa.

-- Ella!... Ella! murmurava Manuel Furtado n'um enlevo.

Olhou então para ella que, sem d'elle desfitar seus olhos, foi recuando, recuando, sumiu-se...

Anninhas! quiz elle gritar.

Mas a voz morreu-lhe na garganta.

Era o sonho das outras noites... Seria sonho?...

CAPITULO VI

Tragi-comedia dos ciumes

Quando Maria da Boa Hora abalára de Lisboa para Evora já levava aquelle espinho no coração.

Fôra maldade de Fr. Bernardo.

Mal o vira entrar na casa do Salvador, de muletas, como andava desde a queda que o salvára do desterro, e acompanhado pela tia Lindosa, sentira-se engulhada pela recordação de sua antiga vida. Com taes improperios os recebeu, que Fr. Bernardo ria ás gargalhadas e a velha benzia-se.

-- Viraram-nos a Falcôa da cabeça para os pés! dizia o frade.

Não tivera a Lourença saído, não lhe faltariam motivos para espantar-se. Ella, que tanta vez perguntava quando iriam os dois pombinhos á egreja, córaria do vocabulario em que os tres, sobrinha, tia e alcaiote, se mostravam mestres em competencia.

Até que emfim tinha Maria da Boa Hora contra quem gritar, e desafogava com uma tal expansão, que o frade alegrava-se por mais esperto e a tia era côr de cidra.

-- Não é só por nossa causa que esbravejas, donzella que eu conheci nos braços d'El-rei, disse-lhe Fr. Bernardo. Tens em teu bahu muito fel e ora aproveitas para deital-o fóra.

-- Paga o justo pelo peccador!... Ora vejam onde ella veio encaixar-se! exclamou a Lindosa contemplando com desdem a miseria da casa. Em que se parece isto com o luxo dos teus quartos de Santo André, que abandonaste?... Se viras como o sr. D. Affonso tem sido generoso com a Calcanhares!... Uma desgraçada que não é para ser moça da tua cosinha!

Maria da Boa Hora era toda em tremores de raiva. Palpitavam-lhe as azas do nariz; batia com o pé no chão; os beiços brancos moviam-se-lhe buscando palavras que ferissem como punhaes, e como punhaes feriam seus olhares.

-- Que vieste cá fazer, gente de má raça? perguntou.

A Lindosa procurou amacial-a.

-- Viemos trazer-te outra vez a ventura de que fugiste; pedir-te que seques as lagrimas d'uma tia.

-- Viemos trazer-te o ciume, declarou Fr. Bernardo.

E atirou com as muletas para a frente e deu tres saltos pelo quarto, a rir, remelgando o olho que na queda deitára abaixo. Pareceu a Maria da Boa Hora que via o diabo. Aquella palavra opprimiu-lhe o peito; o ciume!...

Bem suppunha o frade que era este o bom caminho; agora estava quasi certo da victoria.

O que elle scismára aquelles dias longos, tantos mezes que passára estirado na cama, todo escangalhado pela queda e sempre receoso do caminho que pudesse Simão Peres triumphador galgar com a Calcanhares! Se lhe havia de fugir a boa sorte, que já calculava ter fechada na mão?... Ninguem tinha com quem podesse abrir-se, ninguem de que pudesse fiar-se para negocio de tanta monta.

D. Affonso mandára que o recolhessem no paço. Uns mulatos e moiros, não sabendo se, mais tarde, elle reconquistaria as boas graças d' El-rei, tratavam-o com respeitoso receio e contavam-lhe os gastos que se faziam com a Calcanhares e como a visitavam os mais considerados fidalgos da côrte o as attenções que para ella sempre tinha o homem de confiança do Conde de Castel Melhor, Henrique Henriques de Miranda, encarregado dos prazeres d'El-rei.

Simão Peres trepava. Devia de ter trabalhado como sapador em desabono do desgraçado que, por amor d'El-rei, para ali estava a gemer suas dôres.

E, no seu intimo, accusava de ingrato a D. Affonso, que nunca mandára saber d'elle.

Uma coisa, entretanto, o consolava. Sempre que El-rei saía a vadiar por essas ruas, merencorio como ave nocturna, governava o cavallo para os lados de Santo André e demorava os olhos cheios de saudades nas janellas da casa onde morava a Falcôa. Não se extinguira de todo o amor. Com um sopro n'aquellas cinzas tiraria o frade sua desforra.

E ali deitado, com os ossos n'um feixe!...

Ainda fôra sorte ter podido a tempo informar-se com os creados de D. João d'Almeida do que lhe era mister averiguar. Umas canecas de vinho, e logo deram á taramella. Notára toda a familia da casa que, mal Manuel Furtado entrava no palacio, logo do olhar de D. Anna de Portugal o luto se afastava. De pequeninas anecdotas sem valor tirára o frade suas conclusões, ainda que atrapalhadas ás vezes, mal costumado a perceber corações de gente séria. Uma só prova queria ter... A Falcôa que a procurasse! O caso era metter-lhe o ciume na alma e o mais era com ella.

Ajudou-o a partida de Manuel Furtado para Evora.

Foi bater á porta da Lindosa, que o recebeu com aquelle ar negro de quem tem o peito injustamente esmigalhado pela dôr mais pungente.

-- Sois vós! disse derretida. E melhorsinho? melhorsinho?... Ai, como estimo ver-vos!... Soube, soube de que padecestes. Se vos curastes, muito deveis decerto ás minhas orações, porque, não me lembrando de quem era o santo advogado das pernas partidas, resei a todos os santos e santas da côrte do céo, que era para me não escapar. E é o que tenho feito; resar e chorar, pedindo para vós saude e para o santo sr. D. Affonso. Para mim só quero a morte!

Assoou-se com estrondo.

N'isto, o papagaio começou a praguejar com tão má lingua e uma accentuaçâo tanto da Lindosa, que o frade não poude deixar de concluir que eram exquisitas as orações da velha. Mas disse muito sério, apontando para o bicho.

-- E' o que faz uma má visinhança, D. Maria.

-- Tão mal me dei com a educação de minha sobrinha, que nunca mais cuidei de educações!

E mudando de expressão, muito curiosa, muito amavel:

-- Mas que vos traz a esta casa, sr. Bernardo?

-- Uma grande nova, uma feliz nova, D. Maria. Vossa sobrinha...

A Lindosa levou a mão ao peito, mostrando a maior anciedade. Fr. Bernardo prolongou propositadamente a reticencia e depois em confidencia alegre:

-- Descobri-lhe o paradeiro! disse, destacando muito as sillabas.

-- Descobristes!

-- Olhae quanto vos quero. A arrastar-me em minhas muletas, sabe Deus ás vezes á custa de quantas dôres, um só momento não perdi de idéa o vosso socego.

-- E onde?... onde? perguntava ella, mal podendo fallar.

-- Muito perto. O tal Manuel Furtado, que a namorava...

-- O alferes sem vintem!

-- E' hoje seu amante!

-- Mil raios... disse a Lindosa.

Mas arrependeu-se.

-- O partam! concluiu o papagaio.

Então o frade contou o mais que sabia: que continuava El-rei apaixonado, que o tenente partira para Evora deixando a amante em Lisboa, que a Lourença tinha horas certas para ir ás suas orações e que era por isso facil encontrar sósinha em casa a rapariga.

-- Mas como convencel-a? perguntava a velha. Os meus santinhos me alumiem!

-- Pelo ciume, disse Fr. Bernardo.

E contou o de que suspeitava.

A Lindosa ria e esfregava as mãos, contentissima. Queria passar pelo Senhor dos Passos, pôl-o de seu lado. Mas Fr. Bernardo oppoz-se á devoção. Nada de chamar a attenção de Deus!

-- O caso é urgente, disse. E antes vá comnosco o diabo n'este negocio.

Saíram.

O ciume!... Era aquelle o caminho!

-- Que tens? perguntou Fr. Bernardo á Falcôa, vendo-a ainda mais pallida do que a puzéra a raiva e como se todo o sangue lhe affluisse agora ao coração. Julgavas talvez ter para sempre conquistado a fidelidade ao homem! Ha muita senhora bonita em Lisboa e não era o sr. Manuel Furtado tão mettido em usos de convento que não désse muito passeio por fóra d'esta casa. Mil vezes mais formosa que a sr.ª Calcanhares é D. Anna de Portugal.

Era um punhal de duas pontas. Se ambas haviam de servir?

Maria da Boa Hora levou a mão ao peito com intensa expressão de angustia. Cambaleou, virando para o céu os olhos lindos. Amparou-a a tia.

-- Filha! filha!... Eu tudo te perdôo e abro-te, outra vez, sem reservas, as portas da minha casa!

Mas, n'um desespero, soltando-se dos braços que a prendiam.

-- Saí! exclamou furiosa Maria da Boa Hora. Saí!

E corria pelo quarto, como procurando coisa que lhes pudesse atirar.

-- Canalha!... Alcaiotes!... Saí!

Os dois recuaram até á porta e começaram a descer a escada. Mais depressa os fez andar uma cadeira que veio pelos ares acertar na cabeça do frade.

-- Quem tal diria com a educação que lhe dei! dizia chorosa a velha, já na rua e ainda a alargar o passo.

Mas o frade ía radiante.

-- Deixae. E' que fez seu effeito a mésinha.

Maria da Boa Hora caíra sentada sobre o leito, em convulsões de chôro.

-- D. Anna de Portugal!... Ah! como parece que adivinha o coração ás vezes!

Assim Lourença veio encontral-a, quando, ao voltar de suas devoções, entrou acompanhada pelo pintor.

-- Que tendes, menina? perguntou cheia de cuidados, acarinhando-a muito. Saudades?... Vamos, vamos... Deus hade ouvir as supplicas de tantos portuguezes. Hade a guerra findar mais breve do que todos pensamos e o nosso Manuel não tarda por ahi e sem que um só castelhano o beliscasse.

E, como lhe visse ainda mais lagrimas a correrem-lhe pelo rosto:

-- Então!... Pois não vos escreveu d'Evora, dizendo-vos que ia de saude e só ancioso de combates?

-- Uma carta tão curta e fria! soluçou a pobre rapariga.

-- Um soldado tem lá tempo para glosas! Isso é bom na lua de mel, depois...

-- Depois... os olhos distrahem-se para outra luz de formosa novidade e pódem os olhos nossos encher-se de lagrimas, que já ninguem as vê a scintillarem. Eu sabia que era certo o meu pesadelo, mas não queria n'elle acreditar. Sabia e não queria!... E vieram contar-me... Para quê?... Que lucros tiram da minha morte?

-- Mas quem esteve?...

Nunca assim vira Lourença tal expressão no rosto da Boa Hora.

-- O diabo veio e foi o diabo quem m'o disse.

-- Explicae-vos!

Julgou que ella houvesse endoudecido.

-- Aquellas idas a casa de D. João d' Almeida... A alegria que tinha ao ser convidado... Como prompto partia e pensativo voltava, que nem adeus me dizia e não me via depois horas e horas a mendigar um seu olhar!... Ah! porque não fugi ao dar-me o coração o primeiro rebate? Agarrava-me sempre a uma esperança... Como havia de elle comparar-me, a mim, mulher perdida, vendida aos alcaiotes de El-rei, a Falcôa... com D. Anna de Portugal?

-- D. Anna de Portugal? repetiu a boa velhinha. Que dizeis?

E alegrou-se-lhe tanto o rosto, que Maria da Boa Hora sentiu-se desfallecer.

Sim, a filha de D. João d'Almeida era mulher digna de Manuel Furtado!

Pois até lhe falharia a amisade d'aquella santa velhinha?... Olhou, anciosa, para ella, com olhos que imploravam um bocadinho de compaixão. E logo a Lourença, como arrependida, mais tarde já, veio beijal-a, consolal-a, dize-lh que tudo eram falsas presumpções de seu scismar saudoso, calumnias de gente má, que lhe queria mal.

-- Mas, se fôsse verdade, que dirieis? perguntou-lhe ella com um tom de reprehensão amiga e muitas lagrimas na voz.

A Lourença não se atreveu a responder, mas bem Maria da Boa Hora lhe adivinhou o pensamento. Quem havia de comparar aquelles dois amores? Quem, amando a Manuel Furtado, lhe não diria: -- «A filha de D. João d'Almeida e a sobrinha da Lindosa não pódem ser rivaes!»

Devia de ser certo.

Vira umas duas vezes Manuel Furtado, enlevado, lendo uma carta; outra vez, entrára ella de surpreza, e elle beijava um papel, e logo o escondêra e fechára na gaveta. Que tentações lhe deram de saber do segredo! Mas sustivera-a não sabia que pudor, e medo tambem, medo, não fôsse a confirmação d'uma suspeita trazer-lhe a morte.

Agora não havia que hesitar! Foi buscar um martello, arrombou a gaveta.

-- Que fazeis? perguntou Lourença toda assustada.

Remexeu nos papeis febrilmente. A carta não era entre elles; decerto Manuel Furtado a levára comsigo.

-- O meu retrato! exclamou. Esse aqui está!

E muito dolorosamente:

-- Para que havia de leval-o?

Sentou-se a chorar, encostada ao bufete.

Sósinha!... sósinha no mundo!... Aquelle olhar da Lourença fôra a condemnação definitiva!... Quem lhe havia de querer e porquê? Meia duzia de encantos que ainda possuia valiam dinheiro... não valiam amor!

Deu então com os olhos em Pantaleão Gonçalves, que, mudo, assistira a toda a scena, muito encolhido, como creancinha com medo, olhando para ella com olhos tão piedosos que souberam commovel-a.

Pegou no retrato. Com a ponta d'uma tesoura desengastoou uns diamantes.

-- Toma, disse-lhe. Vende o que fôr preciso para a jornada. Esta noite partes commigo para Evora.

Porque tomára aquella resolução? Nem sabia.

Pantaleão Gonçalves abalou sem mais dizer palavra.

Ella caminhou, toda banhada em lagrimas, para Lourença; mas logo, arrependida do impulso:

-- Deixa-me, disse-lhe; quero chorar sósinha.

Quando se viu na falúa, a caminho de Salvaterra, atravessando o Tejo em sua maior largura, pela quietação da noite que um luar muito claro illuminava, baloiçada mansamente no barco, que o vento inclinava sobre as aguas a scintillarem, na funda tristeza do seu coração encontrou uma certa paz. Lembrou-lhe aquillo de Camões, que Manuel Furtado uma noite lhe dissera: «Tristeza, remedio de tristes!»

Um dos barqueiros cantava á prôa uma canção arrastada, de muita melancholia, e ella assomaram-lhe aos olhos duas lagrimas, que depois se lhe demoraram nas olheiras cavadas.

Pantaleão Gonçalves, que não achara phrase para dizer por muito que a procurasse, embrulhado na velha capa, fitara os olhos na margem de que se approximnvam e cujas casarias muito brancas pareciam sorrir ao luar. Não acreditava na deslealdade do amor que vira tão vehemente em Manuel Furtado. Era lá possivel!

E a noite era tão serena e o Tejo tão crystallinamente espelhava o céu, que o pintor sentiu-se invadido em todo o seu ser por uma ternura infinita. Quem acreditava que no mundo pudesse haver algum mal?

Durante a viagem pelo rio e atravez das charnecas cheias de sol que abrazava, Maria da Boa Hora sentiu avigorar-se-lhe uma tenção, muito fóra do arrebatamento com que decidira a jornada. Viveria uns dias mais de venturosa mentira, esforçando-se por não abrir os olhos, até que a encandeasse a luz côr de sangue da evidencia. Seriam quantos dias?... Pois quantos ao céu approuvessem! Viveria a despedir-se da vida. Um, dois dias que fossem, seriam de sobra para ter ainda que agradecer á bondade divina, em meio dos posteriores tormentos com que já contava.

E assim foi; assim passou uns dias felizes ao lado do amante, demais sabendo que era mentira a sua felicidade, embora por vezes a accordassem lagrimas que dos olhos lhe corriam. Sempre que o amante via distrahido, punha-se a scismar em que scismaria; mas já seu coração era disposto ao sacrificio e sem forças para a revolta. Mortificavam-a ás vezes tentações de procurar a carta, de ver o que ella diria; mas tanta doçura de embriaguez havia na mentira em que ia vivendo, que achava ainda muito cedo para morrer.

-- Depois... mais tarde, dizia comsigo.

E, quando via o amante, beijava-o com tanto ardor, que o sentiu por vezes corresponder-lhe aos beijos.

Punha-se a recordar toda sua vida com elle, desde o primeiro olhar maravilhado com que a saudára para a sua janella do Salvador. Assim se começaram namorando. O que se apoquentava a tia! E tantos ralhos mais a acirraram em sua teima. Os versos que lhe elle cantava e a Lindosa meio surda não ouvia, e as mentiras que ia pregando se lhe perguntava onde apprendêra as modas novas! Partira Manuel Furtado para a guerra e haviam começado junto da tia as instancias de Fr. Bernardo, apaixonado por conta d'El-rei pelos olhos mais lindos de toda Lisboa. Era em sua memoria a recordação d'aquelles tempos como nuvem de lucto sobre o azul scintillante d'uma alvorada de abril. Muito chorára, e batera com o pé, e odiara o frade que a tratava por tu diante da tia a sorrir-se babada! Pouco, ainda assim, teimára e deixára-se emfim seduzir pela opulencia do quadro que lhe descreviam. Mas que miserias vira! El-rei de Portugal a seus pés, beijando-lhos, contava-lhe horrores que soffria, e, porque lho ella mostrára compaixão, mais elle a seus pés, com mais dolorosa cantilena de mendigo, se queixava: -- «Tu, só tu me percebes»! E para esquecer vergonhas, mergulhára em toda a vergonha. Era o dinheiro em casa a rodo, mal dando ella, com só mover os olhos, signal d'um desejo, que logo não fosse realidade. Que mais queria?... E entretanto alguma coisa lhe faltava. Quanta vez, extenuada pelo aborrecimento da côrte infame que vinha lisonjeal-a, e pela piedade que, horas e horas, já de sobre posse mostrava ao infermo, se punha a scismar no alferes que, lhe cantava versos tão lindos, e sonhava levar, só com elle, uma vida de pureza, de paz e de amor! E assim foi que de muito longe, começou a amal-o muito, muito...

Para que?

Ah ! com que doloroso aperto de coração, logo de principio, viu a certeza de que haviam de terminar aquelles dias, de que não podia Manuel Furtado amar para sempre Maria da Boa Hora, que já se chamara a Falcôa!... Como se envergonhava!... Para que deixára que a levasse a tão mau caminho seu genio de aventureira?

Agora, só com esforço da sua phantasia conseguia affastar o phantasma e entrar no sonho por minutos. Mas que minutos deliciosos!

Chegaram as horas terriveis do cêrco, e Manuel Furtado mais se mostrava soldado do que amante. Não saía de casa Maria da Boa Hora, que lh'o elle prohibira. Sabia que D. Pedro d'Almeida estava em Evora. Seria porque lhe queria esconder seus amores?

E, tremula, cada vez que ouvia disparar a artilharia castelhana, pensava que seria doce final leval-os a ambos, n'um dos raros momentos em que ainda estavam juntos, uma bala do inimigo.

Capitulou D. Pedro Pecinga e Manuel Furtado saíu da praça.

Emquanto em Evora habitou D. João d'Austria, nunca ella ergueu uma rotula, fechada sempre no quarto, vivendo da saudade de seu ultimo adeus ao amante. Se deveras teria sido um adeus para sempre, um ultimo adeus?... Chegavam-lhe lá dentro o estrondo festivo dos sinos a repicarem e o éco dos vivas com que os soldados percorriam as ruas da cidade.

Trouxe-lhe, um dia, Pantaleão Gonçalves a noticia de que eram novamente cercados, mas agora pelas tropas portuguezas. E ella avistou lá no alto, fluctuando sobre os quarteis dos sitiadores, a bandeira branca com as armas de Portugal. Saíu d'Evora D. João d'Austria e ella atreveu-se, com a alma ainda outra vez aquecida por uma nova esperança, a abrir a janella, querendo, entro a fumaceira da polvora, ver se lhe ouvia Deus as orações.

Passava pela rua um official castelhano commandando uma tropa e, ao avistal-a, soltou um grito de espanto:

-- Consuelo!

Recolheu immediatamente.

Mas, n'essa mesma noite, lhe vieram bater á porta. Era um recado do Conde de Sertirana que um capitão lhe trazia.

Cheio de attenções, como se fallasse a uma rainha, explicou-se. O Conde julgava que S. Alteza levára comsigo a amante; mas agora soubera que, melhor pensando e com maior prudencia, cedêra a seus rogos, que lhe mostravam a que perigos ia expôr a mais formosa mulher do universo. Porque a escondêra em casa tão ruim? Pois não lhe merecia confiança o Conde de Sertirana para caso tão grave, se lh'o merecêra para defender aquella praça contra as armas do inimigo! Muito maguado se sentia e se punha a seus pés para o que ella quizesse ordenar.

Valeu a Maria da Boa Hora o ter sido amante da Lindosa um castelhano, que muitos annos em sua casa vivêra occulto e com quem, de pequenina, aprendêra a facilmente manejar a lingua. Muito pasmada, sem perceber a principio o motivo d'aquelle recado, respondeu, em curtas phrases, que muito agradecia ao Conde, que o Principe a deixára secretamente muito recommendada a alguem, e que pedia ao governador não revelasse sua presença em Evora, promettendo-lhe que o avisaria se lhe fosse urgente seu soccorro.

O official fez seu cumprimento tâo profundo, como se estivesse em presença da Rainha, esposa de D. Filippe.

-- Nas poucas palavras que disse, não houve desastre, pelo que vejo, pensou Maria da Boa Hora. Valeu-me o castelhano de D. Pacomio.

E sorriu-se.

Uma aventura talvez!... Se era esse seu destino, ser uma aventureira!

Tomavam-a pela amante de D. João d'Austria!... Porque?... Que importava? Talvez para mais servisse no mundo do que para chorar sua dôr, ainda que fosse para uma traição.

No dia seguinte era o Conde em pessoa quem Ihe vinha bater á porta.

Felizmente para ella o italiano fallava a mais complicada das linguas, algaravia composta de todos os dialectos de italia, francez, hespanhol e já meia duzia de palavras portuguezas. Mais difficil seria a Maria da Boa Hora percebel-o, do que a elle notar qualquer dislate no castelhano em que lhe respondiam.

Tempo de sobra tivera para prevenir-se. Meditára muito no caso e assentára seu proceder, comprehendendo que devia uma sobrenatural similhança ser motivo da confusão, de que tiraria seu proveito, se possivel lhe fosse, visto que tão pouco lhe importava o perigo.

Começou o Conde por declarar, entre muitos rapapés e bem torneados madrigaes em lingua de trapos, que o muito respeito e amor que dedicava ao Principe D. João o animára n'aquella visita e a sollicitar-lhe a honra de beijar sua mão pela primeira vez.

Maria da Boa Hora respondeu aliviada. Nunca decerto fallára com a amante do Principe. A confusão continuava.

Eram taes as circumstancias, que, decerto, D. João d'Austria lhe perdoaria o atrevimento.

O italiano era tagarella. Maria da Boa Hora deixou-o ir fallando, procurando esclarecer alguma duvida que tivesse, e ouvia-o com principesca benignidade, animando-o com seu sorriso, que, bem o via, encantava o Conde de Sertirana, seu mais humilde escravo, como o declarava, cortesão.

Depois queixou-se do segredo que D. João para com elle guardára, pois que devia ter motivos para não desconfiar de sua discripção.

Curvava-se cheio de galanteria, e taes expressões de lisonja encontrava, tanto com a mão no peito jurava sua dedicação, que Maria da Boa Hora, que já fôra amante d'um rei, depressa conheceu que abafadas ambições conservavam o italiano á ilharga do filho de D. Filippe de Castella.

A benevolencia com que o ella tratava enchia-o da mais viva gratidão. E comsigo mesmo pensava que quanto por ella viesse a praticar lhe seria pago com altos juros pela opulencia do Principe, senhor supremo da distribuição das graças.

De bom animo, senão com todo o coração, entrou Maria da Boa Hora na comedia.

Saíria d'Evora, poria ponto definitivo n'aquelle sonho bom em que se deixára embalar, cerrando os olhos com força, não querendo ver a luz da verdade.

Ser-lhe-ia menos doloroso fugir de Manuel Furtado n'aquella occasião, em que estava longe. Um só beijo mais que lhe elle désse, ainda que distraído ou falso, abater-lhe-ia o animo em que se achava.

Mas não saíria sem levar comsigo uma inteira certeza de que perdêra para sempre o amante por quem se perdêra e sem engendrar o plano que, posto em pratica, a resgatasse a seus proprios olhos de sua misera vida passada. O quê? Não sabia.

Disse ao Conde, entre muitos agradecimentos, que nunca se esqueceria de seus favores, que applaudiria sua acção junto de D. João d'Austria para que o Principe avaliasse na altura de seu merito a lealdade de seu vassallo e que esperasse as suas ordens, as quaes lhe mandaria logo que houvesse urgencia de seus serviços. O que resolvesse lhe faria saber por alguem de sua confiança.

Emquanto ao seu isolamento d'ella n'aquella casa pobrissima, entendeu dever explical-o por meias palavras envergonhadas, attribuindo-o aos exageros do amor de D. João d'Austria, extremamente zeloso.

O Conde, com a cabeça e gestos muito discretos, dava a entender que tudo percebia, e defendia o Principe.

Uma mulher tão formosa!... Comprehendia-se que até do proprio sol elle houvesse ciumes.

Maria da Boa Hora soniu-se e deu-lhe a mão a beijar.

O Conde saíu recuando; levava n'alma uma tamanha alegria que ella chegou a ter piedade de vel-o tão enganado e tão ditoso em sua esperança.

Mas logo seu rosto assumiu uma expressão de tamanha tristeza, que Pantaleão Gonçalves, entrando n'esse momento, se mostrou todo assustado.

Era preciso tomar uma resolução. Se tivesse de fugir, havia de executal-o com provas de que não mais pudesse duvidar, que lhe não trouxessem mais

tarde, por uma duvida, o arrependimento.

Correu á secretária e abriu-a. A carta lá estava; reconheceu-a pela marca do sinete. Era aquella!... Se dentro estaria sua condemnação á morte?

Tremia-lhe o papel nas mãos; uma nuvem nos olhos turvava-lhe a vista; ás vezes via tudo negro, outras vezes côr de sangue. Custava-lhe morrer e mais ainda sem vingar-se.

Aquella carta!... Que iria lêr? Que phrases de amor que lhe explicassem a frieza dos labios do amante, preguiçosos de corresponder a seus beijos?

Custava-lhe morrer sem vingar-se. Vingar-se de quem? De D. Anna de Portugal?... Que culpa era a sua?... Do amante?... Mas lembrava-se da alegria que illuminára os olhos de Lourença... Pobre Falcôa! Tarde quizera lançar suas garras ao coração do amigo!... Vingar-se, sim, do alcaiote que a perdêra!

N'um gesto desesperado abriu a carta. Lançou-lhe rapida a vista. Caíu de dentro da folha o quer que fosse; mas só a carta a interessava.

Letra d'homem; um convite muito simples. Que mysterio era aquelle? Virou-a, revirou-a; passava a mão pelos olhos, limpando-os das lagrimas, já disposta a sorrir, quando distinctamente reparou que havia junto da assignatura de D. João d'Almeida um espaço circular em que as linhas de tinta haviam perdido sua nitidez e em que o papel se embaciara.

-- Aqui o beijou, disse.

E reparou então na letra mais leve que accrescentára á carta duas palavras. Tornou a limpar os olhos e leu: -- «Não falte».

Viu a data. Era, mais dia menos dia, a de quando ella se fôra acolher nos braços de Manuel Furtado.

-- Desgraçada que eu fui! Nunca elle me pôde amar!

Viu no chão o bocadinho de seda, que lhe caíra ao desdobrar o papel; abaixou-se, apanhou-o, foi parajunto da janella e estendeu a todo o comprimento de seus braços abertos o fio d'oiro.

Como scintillava! Lembraram-lhe madrigaes dos poetas do tempo, que fallavam dos cabellos da aurora. Os seus cabellos d'ella eram negros, negros da côr da noite.

Enrolou-o outra vez; olhou para a carta, e na marca indelevel dos beijos de Manuel Furtado coUou seus labios.

Collocou o bocadinho de seda dentro da carta, fechou-a, metteu-a na gaveta.

Voltou o Conde de Sertirana a conversar com Maria da Boa Hora.

Era-lhe impossivel resistir por mais tempo aos assaltos dos portuguezes, certo como estava de que não podia esperar soccorro. Seu brio de militar não lhe permittira acceitar as duras condições que lhe impunham; mas, com mais vinte e quatro horas de lucta e a morte nos baluartes de mais uns centenares de soldados, haveria demonstrado sua lealdade a Castella, e salvo sua honra.

E, sempre cortesão e madrigalesco, dizia coisas formosas em varias linguas detestavelmente combinadas, sobre as lagrimas que vincavam as faces da dedicada amiga de S. Alteza.

-- Salval-a, senhora, ó hoje minha principal missão e a que me traz a vossos pés.

Maria da Boa Hora agradeceu-lhe. Depois contaria a D. João o que lhe ficára devendo. O Conde era realmente um cavalleiro de antiga tempera.

O italiano desvanecido espalmava no peito a mão direita e todo se curvava, afiançando sua dedicação ao Principe e á maravilhosa possuidora dos mil encantos que o deslumbravam.

Maria da Boa Hora, cada vez mais firme em seu proposito de saír sem tornar a ver o amante, fallou de suas saudades que a minavam e, mentindo, disse tanta verdade, com tantas lagrimas, que o Conde apiedou-se.

Não lhe consentia seu animo ver o pranto em faces de tão formosa mulher. Breve a levaria para os braços de D. João d'Austria, jurava-lh'o. No dia seguinte faria chamada ao Conde de Villa Flôr e acceitaria as condições que lhe haviam sido propostas. Saíriam uns embuçados, ella iria entre elles.

Nunca Maria da Boa Hora montára a cavallo; deu-lhe um certo receio; mas acceitou o que lhe propunham.

Fez signal ao Conde de Sertirana, que se ergueu, curvou o joelho e lhe beijou a mão. Havia uma tal prece de protecção em seus olhos que Maria da Boa Hora sorriu-se. Baixou a cabeça como em signal de promessa, e outra vez o Conde sentiu o coração encher-se-lhe de maiores esperanças do que se houvesse ganho, illustre capitão, a mais notavel das batalhas.

Estava pois decidido! Maria da Boa Hora saíria d'Evora acompanhando os officiaes castelhanos que, livres, partiam para Badajoz. Se a favoreceria um acaso, se levaria a bom fim um plano que confusamente ia engendrando?

Doía-lhe a alma ás vezes: parecia-lhe que nem para um santo fim era permittida uma traição. Mas desde que acceitára ser amante de D. Affonso, que mais havia feito na vida senão mentir?

Decidiu-se, embora com a certeza de que havia de encontrar a morte ao cabo de sua arriscada aventura.

Vestiu o fato d'homem, que lhe levaram, pôz a mascara de velludo, montou a cavallo, embuçou-se no manto, pôz-se a caminho entre os mais traidores, todos embuçados.

Batia-lhe o coração, mas não de susto, que ia só cheio de saudades.

Então avistou Manuel Furtado. O caminho, que o exercito rendido ia levando, obrigava-a a passar por junto d'elle. O sangue affluiu-lhe ao coração, a vista turvou-se-lhe, pareceu-lhe que lhe fugia o pensamento, julgou que não podia aguentar-se na sella. Mas chamou a si toda a energia, e, d'olhos fitos nos olhos do amante, que viu scintillarem de curiosidade, disse-lhe o adeus da sua alma. Julgou um instante que elle viesse, n'um impulso, ter com ella que não resistiria a deixar-se caír em seus braços.

-- Não me reconheceu, disse comsigo.

E continuou seu caminho sem voltar a cabeça.

A historia de seus amores chegára á ultima pagina!

O Conde de Sertirana todo elle era mostrar seu cuidadoso respeito. Logo no primeiro descanço preparára-lhe a melhor tenda, em que nada faltasse a seu conchego. Muito confidencialmente declarára a alguns officiaes, expressamente encarregados de assistir á illustre senhora, quem tinham a honra de servir e quão grato ficaria D. João d'Austria a todos que soubessem rodear de attenções aquella a que no mundo mais queria.

Um capitão velho e rabugento respondeu ao italiano com muito mau modo, entre pragas castelhanas que Maria da Boa Hora percebia um nadinha melhor que os melifluos madrigaes do Conde. Olhou para elle, cheia de sympathia, e, com uns olhos tão lindos, que o velho soldado torceu a pêra e murmurou um caramba! que envergonhou todos os outros mais palacianos.

Noticias, que iam encontrando pelo caminho, todas o Conde em pessoa vinha contar a Maria da Boa Hora, procurando assim encurtar-lhe as horas de marcha, sob o calor que tomára posse da provincia e que fazia ao longe estremecer os contornos das serras.

Foi assim que ella soube de como D. João d'Austria mandára, para tomar vingança de seu desastre no Ameixial, tentar surprehender Elvas, onde só paisanos cuidavam de sua guarda. Nem havia na praça quem fizesse sentinellas, nem quem, sendo necessario, pudesse tocar ás armas. Escolhêra, para seu intento, a noite seguinte á de S. João, em que toda a população estaria cançada de folguedos e danças. Mandou de Badajoz saír, mal a noite cerrou, um troço grande de cavallaria e infantaria, com todos os aprestos para poderem escalar uma praça.

A noite era pequena e tres leguas havia que andar. A empresa, com ser facil, não deixava de ser gloriosa e de grande vantagem. Mas a fortuna do Principe começara variando. Talvez com esse receio elle não acompanhára a expedição. Pois mal andára. Sobre preeminencias de a qual dos dois competia a vanguarda, tal discussão entre os cabos se accendeu, que, tendo o exercito feito alto, o muito tempo que levou a resolução do caso, era a meia legua da cidade quando o sol vinha nascendo. Ouviram de longe as descomposturas das mulheres e viram os moradores armados occupando as muralhas. Compunham o exercito castelhano uns nove ou dez mil homens, entre infantes e cavalleiros, que todos voltaram costas, sem disparar um tiro. Nao se despicara S. Alteza por emquanto do feio desastre do Ameixial.

O Conde de Sertirana só cuidava em consolar Maria da Boa Hora, cuja tristeza seus olhos d'ella diziam, por detraz da mascara negra que ainda não abandonara.

Ao passarem á vista das muralhas d'Elvas, como a visse relanceando o olhar para a cidade, approximou seu cavallo e disse-lhe com ar prophetico:

-- Ali será nossa desforra!

Como aquelle homem a aborrecia com suas manhas de cortesão ambicioso!

Olhava commovida para o alto do monte, procurando adivinhar onde haveria morado Manuel Furtado nos tempos em que só ella habitava seu coração. Deu-lhe uma dôr tão funda, que até se poz a rezar pelos defunctos, como se em volta d'aquellas muralhas andassem phantasmas. Um andava, o d'um amor desapparecido.

Finalmente avistaram terras de Castella. Chegaram ao Caia e os castelhanos respiraram. Era a patria, que muitos haveriam agoirentamente pensado não tornar a vêr. Muitos olhos se marejaram de lagrimas.

Maria da Boa Hora caíu em maior tristeza entre a alegria dos mais. Irritaram-a phrases que ouviu maldizendo a terra d'onde voltavam os vencidos. Que fim seria o seu? Que fizera em toda sua jornada senão mais amarguras colher? Que nova esperança lhe nascêra no peito? E dentro de poucas horas, sua mentira seria descoberta, mettida a riso sua aventura!

Mas uns officiaes castelhanos esperavam na fronteira, com alguns esquadrões de cavallaria, os rendidos de Evora. Ao Conde de Sertirana ordem foi dada para com maior pressa continuar sua marcha até Badajoz. Outros officiaes a receberam para immediatamente se dirigirem a Arronches, que D. João d'Austria, logo depois da conquista, mandára fortificar, e onde mettia agora quantidade de mantimentos e munições, dobrando-lhe a guarnição de soldados, não viesse D. Sancho Manuel ganhar a praça e mais uma juntar a tantas victorias. Breve D. João partiria de Badajoz, querendo em pessoa assistir aos preparativos da defeza.

O Conde de Sertirana veio immediatamente implorar as ordens da amante de seu Principe. Respondeu-lhe Maria da Boa Hora que de sua parte beijasse a mão de S. Alteza, que anciosa se ficava por vel-o, mas, não lhe permittindo o animo ser portadora de más novas, a desculpasse. Iria para Arronches e lá, com viva impaciencia, esperaria que elle se dignasse acabar seu tormento. Com a sede, em que morria, de suas caricias, não queria ver-lhe o sobrecenho carregado, o pensamento muito longe de seus amores.

Assim ganhava umas horas, em que Deus velaria por ella.

Quiz oppôr-se a tão louco intento o Sertirana, a quem muito favoravel seria a entrada no paço acompanhado pela formosa senhora.

Mas Maria da Boa Hora insistiu em seu proposito.

Ainda o Conde lhe objectou que os officiaes sabedores d'aquelle segredo o deviam acompanhar a Badajoz. Era extremamente delicado escolher assim de repente gente capaz para uma nova apresentação. Só o resingueiro capitão velho era indicado para acompanhar os esquadrões até Arronches.

-- Pois o velho me basta, respondeu.

O italiano ainda fez um gesto para continuar falando; ella atalhou-o, dizendo-lhe apenas:

-- Quero.

O Conde curvou-se. Mandou chamar o capitão D. Florencio, que ainda resmungou rudemente umas phrases indistinctas, pontuadas com variadas exclamações, declarando afinal que acceitava gostoso o cargo.

Por dois motivos lhe havia a ella agradado o velho militar: o despresal-a como amante do Principe, o haver-se encantado de sua formosura: por dois instinctos bem diversos, que a má sorte lhe não apagára no coração.

Separaram-se os officiaes; mais melancholicos ficaram os que voltavam a Portugal, mais inquietos os que acompanharam o Conde de Sertirana e haviam de aguentar as primeiras furias do capitão-general vencido.

A' bocca pequena, porém, já se dizia que breve D. João d'Austria seria substituido no commando do exercito.

Collocou-se D. Florencio ao lado da tão donairosa dama que se encarregára de proteger, e, garboso, obrigando a imprudentes caracoes o cavallo estafado, arrebitando as guias do farto bigode, annunciou-lhe em castelhano cerrado que peta enorme em Badajoz corria.

Ria muito, e, no buraco negro da bocca, via-lhe Maria da Boa Hora estremecer um unico dente da frente, enorme, muito amarello.

-- Contai-me como foi, disse, estremecendo ás primeiras palavras.

-- Pois sabereis que D. João d'Austria mandou um troço de cavallaria e infantaria á villa de Fronteira com ordem de incendial-a e passar a ferro toda pessoa que achassem.

-- Barbaro!

-- O mesmo disse. Mas nem viva alma os castelhanos encontraram, que, receosos do castigo, os moradores tinham abandonado a villa.

-- Porque tanto rieis então?

-- Pelo motivo que me deram para tamanho furor do principe. Adivinhai.

-- Fraca sempre fui em jogo de adivinhas.

-- Por vossa causa.

-- Minha!

-- Dizem que, fugida do campo de batalha, havieis sido insultada, antes de chegardes á villa, e que foreis heroicamente salva por dois portuguezitos... Vêde que romance! Vós que desde Evora acompanho!

Por momentos ainda valeria sua mentira, só por momentos!... E nem um só plano, ainda que fosse absurdo, lhe atravessara a phantasia! Era preciso que tomasse com rapidez uma resolução, fosse qual fosse. Chegaria o Conde de Sertirana a Badajoz, instantes depois falaria com D, João d'Austria, logo viria para Arronches a ordem de prendel-a. E depois? Que haveria lucrado?

D. Florencio, muito alegre com sua historia disparatada, deitava para o alto grandes fumaças de seu cachimbo, entre commentarios, que julgava profundos, sobre a phantasia humana.

-- Os dois portuguezitos! O Principe a descobrir-se ante dois officiaesinhos a quem mal aponta a barba nas caras e que se negam a dizer-lhe os nomes, porque novas e mais altas façanhas os farão conhecidos um dia!

-- Pois que são portuguezes!... disse ella quasi involuntariamente e logo arrependida.

-- Que dizeis? perguntou D. Florencio.

-- Que são portuguezadas.

-- E' isso. Mas até seus nomes citam os que a aventura me contaram! Como póde uma mentira ter todos os visos d'uma verdade!

-- Como, se elles os não disseram?

-- Diz-se que em boccados de dialogo vós os ouvistes.

E riu-se muito.

-- Vós em Évora!

Maria da Boa Hora, disfarçando o estado acabrunhado do seu espirito, disse em tom faceto:

-- Desejaria saber o nome dos meus salvadores.

-- Pois vol-os digo.

Esteve um instante a fumar, d'olhar em alvo, piscando muito os olhos, a querer recordar-se.

-- Manuel... Manuel...

Ella sentiu o coração a bater-lhe mais rapido e um nó na garganta a suffocal-a. Perguntou anciosamente:

-- Manuel?...

Elle procurava recordar-se.

-- Manuel... Manuel...

Deu um grito victorioso. Lembrara-se.

-- Manuel Furtado e Pero Rolão!

Mal pôde Maria da Boa Hora suster-se sobre o cavallo. D. Florencio lançou-lhe o braço direito á cintura.

-- Que tendes, senhora?

E, de repente, começou a dar pancada em si mesmo, insultando-se com os mais feios nomes do vocabulario d'um soldado. Queria apear-se, ajoelhar a seus pés, pedir-lho perdão de sua tonteira.

Agora via o disparate commettido. D. João d'Austria tinha outra amante!

Maria da Boa Hora soluçava sem pejo, desafogava sua immensa dôr, livre do receio de que pudesse o fogoso capitão saber a verdadeira causa de suas lagrimas.

Era bem uma acção de Manuel Furtado aquella! Para que haviam, agora que o perdêra para sempre, dar-lhe maior motivo á exaltação do seu amor?

Perdêra muito; para que lhe haviam de lembrar que ainda mais perdêra do que pensava?

E mais não disse, e o pobre velho todo se desfazia em palavras de consolo: que enxugasse suas lagrimas, que, se um capitão não valia no mundo um Principe, n'um velho havia tanto fogo como n'um mancebo e muito maior constancia.

Era noite muito velha, quasi madrugada, quando avistaram Arronches.

Quiz D. Florencio procurar alojamento onde ella descançasse, tão alquebrada a via, tanto quando a ajudou a apear-se, sentiu, dando-lhe uma suave commoção, o peso do seu corpo delicado, que mal seus pésinhos sabiam suster.

-- Amparai-vos a mim, disse-lhe, a um tempo farronqueiro e carinhoso. Dai-me vosso braço e caminhai.

Nenhum incommodo sentia com a longa jornada; achava-se fresco e bem disposto, e, firme nas pernas, fazia marcialmente tinir as esporas, cada vez mais repuxando os bigodes, achavelhando-lhe as pontas.

Animava-o uma esperança, ainda que algum tanto lhe doesse na consciencia a infidelidade a seu Principe.

-- Mas, que diabo! dizia comsigo. Em tempos de guerra e, visto que elle tem outra...

Recusou-se Maria da Boa Hora a acompanhal-o. Sentou-se n'uma pedra e poz-se a contemplar a tristeza infinita d'aquelle nascer do dia, ultimo talvez de sua vida. Umas nuvens baixas circundavam o horisonte, mais accumuladas para o lado do oriente, para onde ella se poz olhando com um desejo intenso de ainda uma vez tornar a ver o sol.

O hespanhol fallava, fallava, mas Maria da Boa Hora não o ouvia.

Vêr o sol ainda uma vez!... Para morrer, porque havia de ter vindo tão longe?... Morrer! E poz-se a soltar uns queixumes de passarinho ferido, muito devagarinho, n'um murmurio muito brando.

O hespanhol fallava, fallava; mas vendo-a tão desattenta, tocou-lhe com um dedo no hombro.

Então ella accordou em sobresalto, e, vendo os olhos do velho a luzirem, recuou instinctivamente.

Andavam por ali soldados descarregando d 'uns carros umas barricas de polvora, que depois levavam, a rolarem, para os armazens.

-- Por Deus, attendei-me, disse o capitão, que vos fallo com toda minh'alma e de vós como resposta apenas obtenho murmurios!

E, raivoso, pôz-se a encher o cachimbo.

Não tardava que viessem procural-a. Era força que não a encontrassem com vida.

Iam-se as nuvens desfazendo.

Adeus, natureza! Adeus vida!... Para que vivera?

E, de repente, teve dó de si mesma, começou a chorar.

-- Vamos, vamos, disse-lhe D. Florencio com certa commoção na voz em que ella reparou e n'aquelle instante lhe fez bem.

-- Não quero que me vejam a chorar na minha ultima hora, pensou.

Limpou os olhos e reparou que uma das barricas ia deixando no chão um rastilho de polvora, que decerto penetraria até o armazem.

Ergueu o rosto com uma esperança e pareceu-lhe avistar muito ao longe um grupo de cavalleiros que se vinha approximando rapidamente.

-- Ora graças, que vos vejo sorrindo, disse-lhe o capitão. Que importa um amor que foge, se pelo mundo andaes a semear amores, a cada passo de vossos lindos pés? Toda nuvem se desfaz; é desfazel-as officio do sol. Olhae aquellas, ali, do lado de Hespanha, como se vão sumindo. O sol vai nascer. São curtas as noites na vossa edade.

Maria da Boa Hora, com os olhos fitos na polvora, continuava a sorrir. Tirára a mascara. O sangue subira-lhe ás faces. D. Florencio pegou-lhe na mão, que ella retirou docemente.

Os cavalleiros vinham a toda a brida. Já se ouvia o barulho do galope e o tilintar das espadas sacudidas nas bainhas.

O gesto brando com que Maria da Boa Hora repellira sua caricia animára D. Florencio. Passou a mão pelo bigode a disfarçar um riso de vaidoso contentamento e deu tres passos largos, batendo no chão com os calcanhares, para desentorpecer as pernas.

Avistou um soldado com o morrão acceso.

O capitão chamou-o.

--Eh!

-- Eu vos dou lume, disse-lhe ella.

O soldado parára embasbacado, reconhecendo uma mulher.

Ella, sempre sorrindo, approximou-se do capitão, que, com o cachimbo nos dentes, aprumado, peito para fóra, cheio de si e da sua conquista, a considerava d'alto, com o olhar luzente sob a vasta sobrancelha grisalha.

Maria da Boa Hora, com seus olhos lindos nos olhos d'elle, pôz-lhe o morrão sobre o tabaco, e D. Florencio aspirou deliciosamente duas fumaças, que no ar muito sereno da manhã se ergueram mansamente, como fumo de incenso no altar do Amor.

-- Como te chamas? perguntou respirando a custo, commovido de vêl-a tão perto.

-- A morte! respondeu ella com tanta doçura na voz e tanta meiguice no olhar, que elle cuidou lhe implorasse um madrigal a contar cruezas das settas classicas.

Pouco certo na mythologia, confundindo-a com varias historias, e Ganimedes com Cupido, só bem se lembrando da rima, disse-lhe, pomposo:

-- A morte sim, porque és Archimedes!

Chegavam os cavalleiros castelhanos ao pé das muralhas. Só então deu por elles D. Florencio.

A que virão com tanta pressa? disse, vendo os cavallos a escorrerem em suor. E' gente que chega de Badajoz, olhae; vem D. Gaspar com elles.

Era um dos officiaes pelo Conde de Sertirana apresentados a Maria da Boa Hora.

-- A que vêm? disse esta.

E, logo, em sua lingua, abandonando toda a ideia de difarce:

-- Eu t'o digo, capitão D. Florencio: vêm ter comigo, vêm ter com a morte!

-- Portugueza! exclamou elle, pasmado.

-- Chegou finalmente a minha hora, a de nós todos! Correi, correi; não chegareis a tempo de prender-me!

Os cavallos vinham dando a volta pelo caminho que subia encostado á muralha.

-- Prender-te! disse o capitão. Vem comigo; eu te salvarei!

Deitou-lhe um braço á cintura, approximou seu rosto ao d'ella, que lhe sentiu o bafo quente nos cabellos.

Empurrou-o com energia que elle não esperava.

-- Salva-te a ti mesmo, D. Florencio; resa o acto de contricção.

Desembocaram no largo, dando volta á esquina, os cavalleiros a todo o galope.

-- Aquella! gritou D. Gaspar.

Correram para Maria da Boa Hora.

O sol vinha a nascer. O primeiro raio illuminou-a toda e ella appareceu resplandecente aos olhos dos hespanhoes.

Vira o sol ainda uma vez!

-- Agora! exclamou com um grito, descompostas as tranças dos cabellos negros, que reluziram.

E approximou o morrão do rastilho de polvora.

Immediatamente, com medonho estampido, ergueu-se dos armazens uma enorme columna de fogo. Armazens, muralhas, baluartes, egrejas, casas voaram pelos ares.

Maria da Boa Hora sentiu erguer-se da terra entre uma espessa nuvem de poeira e fumo. Foi atirada para longe; caiu. Ainda sentiu em volta d'ella a chuva dos penedos. Atordoada, ergueu-se; tornou a caír. Abriu-se um panno da muralha e as pedras da parte mais alta vieram rolando até seus pés. Sentia na cabeça, nos ouvidos, uma confusão, como se durasse ainda o estrondo primeiro. Levou-lhes as mãos; retirou-as tintas de sangue.

Mas estava viva!... Como? Por que milagre?

Olhou para a villa. Por entre a nuvem de poeira e por entre o fumo, viu erguerem-se alto as chammas do incendio que ateára.

Pôz-se de pé outra vez. Doía-lhe cruelmente o corpo, mas nenhum membro era partido.

O fumo alargava-se por todo o campo.

Desatou a correr. Viu cavallos soltos á desfilada. Um d'elles caíu ao querer saltar uma valla. Conseguiu apanhál-o, montou-o, segurou-se-lhe ao pescoço e abalou pela estrada fóra, parecendo-lhe que ouvia gritos de horror que a perseguiam. Uma carreira á doida.

Não conhecia o caminho; talvez o mesmo fosse, que trouxera á vinda pela noite escura.

Andara uma legua, quando ouviu o tropel de mais cavallos. Olhou para traz. Eram officiaes castelhanos, que lhe vinham no encalço. Julgou reconhecer n'um d'elles D. Gaspar. Por má sorte escaparía tambem.

Toda Arronches estava ardendo. Saíam dos telhados grandes rolos de fumo negro.

Animou o cavallo com a voz. E, sempre agarrada ás clinas, de cabellos esvoaçando ao vento, galopava estrada fóra.

Vinham-lhe no encalço os castelhanos, cada vez mais perto.

Gritava, mas o cavallo arquejante ia perdendo terreno. Viu na sua frente levantar-se um bocadinho de pó e, quasi ao mesmo tempo, ouviu um tiro e logo depois outro. O cavallo deu um salto para a frente, parou a cambalear.

-- Estaes presa, senhora!

Era a voz de D. Gaspar, que lhe deitára ao hombro a pesada mão.

-- Soccorro! gritou ella por instincto mais para o céu que para a terra d'onde já não esperava auxilio.

Mas enganára-se. Quasi no mesmo instante, d'uma volta da estrada surgiu a todo galope um troço de cavallaria portugueza. D. Gaspar largou Maria da Boa Hora e o official portuguez que commandava a tropa, ao avistar a mulher, gritou-lhe enthusiasmado:

-- Pero Rolão! Sou Pero Rolão!

E atirou-se á doida com sua gente para cima dos castelhanos, todos derrubados ainda antes que houvessem tempo de voltar a si da surpreza.

Maria da Boa Hora, caída do cavallo, desmaiára.

-- Consuelo! dizia Pero Rolão, erguendo-a em seus braços, emquanto um soldado lhe molhava as fontes.

-- Sou eu... Conheceis-me... Sou Pero Rolão.

Ella abriu os olhos.

-- Manuel Furtado? perguntou.

O alferes sentiu umas garras de ferro apertarem-lhe o coração. Porque logo assim lhe perguntava ella pelo outro?... Depois caíu em si e exclamou entre alegre e desilludido:

-- Maria da Boa Hora!

CAPITULO VII

Intrigas no Paço

Era na capella dos paços da Ribeira.

Frei Luiz de Souza, esmoler mór de El-rei, acabava de baptisar, com toda a pompa e solemnidade, o filho mais velho do Conde de Castel Melhor, seu sobrinho, a quem puzera o nome de Affonso, em attenção padrinho, D. Affonso, Rei de Portugal.

Fôra madrinha a Marqueza, viuva do Conde D. João, elevada áquelle titulo, como prova do muito amor que tinha El-rei ao escrivão da puridade e como testimunho do alto apreço que lhe mereciam as qualidades da agraciada, mulher de animo varonil que provára em mais d'uma occasião.

Finda a cerimonia, a que assistiram os parentes do Conde e a maior parte da côrte, todos vieram beijar a mão a El-rei, em agradecimento do alto favor concedido a Luiz de Vasconcellos e Sousa, que tão desinteressadamente e com superior dedicação empregára a energia de sua mocidade e força de seu talento a erguer a patria do abatimento em que se achava.

Os sinos repicavam que era alegria ouvil-os.

Promessa já fizera o Infante a Simão de Vasconcellos de conceder-lhe a mesma honra quando nascesse seu primeiro filho.

Sorria orgulhosamente a Marqueza.

Recolhido El-rei a seus quartos, dirigiu-se ella para o de D. Guiomar, onde, affastando as roupas da cama, se pôz a contemplar a creancinha recem-nascida e logo tão alto collocada na côrte de Portugal.

Seu neto!... Que lindo era!

A Condessa D. Guiomar, com os olhos semi-cerrados, cançada ainda, sorria n'um enlevo. E, muito devagarinho, no quarto quasi ás escuras, vaidosa de seu estado, movia-se lentamente, cora uns queixumes muito brandos, D. Joanna de Tavora, filha de João Gomes da Silva, alcaide-mór de Ceia, havia um anno casada com Simão de Vasconcellos

Chamou-a a Marqueza para junto de si, segurou-lhe n'uma das mãos, estendeu a outra á Condessa.

-- Filhas! disse, mal podendo conter a expressão de seu jubilo.

E ambas ellas sorriram-lhe.

Todas suas ambições eram satisfeitas. Seu filho mais velho, o Conde, era senhor absoluto da vontade real, ou pouco lhe faltava, estorvo pequeno a derrubar; Simão de Vasconcellos, governador da casa do Infante, por sua fama de official decidido, conquistara todo o affecto de D. Pedro.

Deus ajudava-a, Deus ouvira suas supplicas pelo reino e pelos seus. Era vêr quanta gloria cobrira as armas portuguezas, desde que seu filho tomára a peito a causa da independencia. Juntára dinheiro, organisára o exercito, fizera valer os direitos da victoriosa nação em todas as côrtes da Europa, obrigando-as a respeital-a.

Exaltava as proezas do Conde do Prado e do Conde de S. João, tão notavelmente combinando seus movimentos no Minho e em Traz-os-Montes que, por mais d'uma vez, inutilisaram toda a sciencia bellica de D. Baltazar Pantoja, capitão general d'um formidavel exercito. Toda ella era admiração pelo valente Pedro Jacques, que, na Beira, não sómente destroçára as tropas do Duque de Ossuna, mas obrigara-o a fugir vergonhosamente disfarçado.

Riam a Condessa e D. Joanna de Tavora do enthusiasmo com que a Marqueza se referia ás victorias, erguendo alto a cabeça como se ao longe ouvisse os clarins.

Mas o enthusiasmo ainda não chegára ao seu auge, ainda não se referira aos feitos do Marquez de Marialva, offerecendo batalha, quasi ás portas de Badajoz, a D. João d'Austria que não lh'a aceitou.

-- E foi d'ahi conquistar Valença de Alcantara, disse D. Joanna.

-- Se não te havias de lembrar! Se foi teu homem quem nos trouxe a nova! A tua alegria!... E logo o Luiz foi da parte de El-rei levar os parabens á Marqueza. Que dia foi esse para todos nós! Tremulavam finalmente bandeiras portuguezas em terras de Castella, como outr'ora em Salvaterra de Galliza, quando o Conde D. João foi governador do Minho. Muita lagrima chorei!... Vingou-as o Marquez de Marialva.

Reparou que as duas senhoras se calavam.

-- Porque nada me dizeis? perguntou.

E riu-se.

-- Já me lembra. E' sempre assim, quando fallo do Marquez e sobretudo de seu irmão D. Rodrigo. Que motivo tendes para d'elles recear?

-- Não sei, respondeu D. Joanna. Fidalgo, valente soldado é decerto... mas não sei... poz-me uma duvida no coração sea proceder com D. Sancho Manuel.

-- Loucuras são tal suspeita! O Marquez com todas as suas razões, que as tinha contra o Conde de Villa Flôr, nem palavra disse em conselho contra o seu rival!

Mas o pequenino poz-se a chorar. D. Guiomar voltou-se no leito para accudir-lhe e a Marqueza, esquecida de guerras e assaltos, ajoelhou junto do leito, enlevada nas graças do pequenino.

O Conde, em seu gabinete, só, defronte dos mappas e papeis, que se accumulavam sobre a secretária, rememorava suas glorias e considerava o caminho andado e quanto ainda esperava vencer. Consultava sua consciencia e não lhe vinha escrupulo de quanto concertára para ser unico no mando em Portugal. Quanta victoria lhe conquistara!... Affastára do governo o arrebatado Conde de Atouguia e esperava nmito breve pôr de parte o astucioso Sebastião Cesar.

Toda a côrte, aquelle dia, se reunira em seus quartos; mas nem todos os sorrisos seriam prazenteiros. Por alguns déra de feitio venenoso que fazia descaír os cantos dos labios, dando-lhes um geito de inveja e de sarcasmo.

Mais que a todos temia a Sebastião Cesar, homem de altissimos dotes intellectuaes, tão cheio de prudencia e sagacidade que, em tempos d'El-rei D. João IV, duas vezes preso por inconfidente, tivera artes para saír da cadeia com maior valimento do Principe, que a muitos outros condemnára sem provas evidentes.

Era Sebastião Cesar muito bem visto d'El-rei D. Affonso, que o ouvia frequentemente em particular. Certos pequenos signaes de intelligencia surprehendidos fizeram mais d'uma vez desconfiar o Conde de que algum segredo haveria entre El-rei e o arcebispo eleito de Lisboa.

Mas era difficil penetrar no intimo d'aquelle homem, sorridente sempre, tanto mais aparentando modestia quanto mais alto o collocavam, uma santa paciencia revelando se a sorte o desfavorecia.

De má trama desconfiava o Conde, e prevenia-se.

Pareceu-Ihe ouvir tiros de artilharia ao longe, para os lados de Belem. Algum navio que viria entrando.

Olhou para o mappa e com o dedo ia correndo a linha da fronteira a alargar-se para o lado de Hespanha. Relia notas que escrevêra, datas, posições de exercitos, conquistas de portuguezes. O que sonhára, ía a caminho de realisação.

Que general surgira de dentro do velho Marquez de Marialva! Fôra de grande consequencia para o futuro de Portugal a tomada de Valença de Alcantara. Os habitantes das povoações visinhas tinham vindo prestar vassalagem a El-rei D. Affonso. Os castelhanos haviam desmantelado Arronches, cuja communicaçao com qualquer outra praça lhes era embaraçada pelas continuas partidas que corriam de todas as villas e cidades occupadas pelos portuguezes.

E assim se havia desfeito em poucos dias toda a gloria que D. João d'Austria levára um anno inteiro a conquistar!

Ah! pudesse o Conde de Castel Melhor consolidar devéras seu poder! Como alargaria aquella fronteira!

Muito valído do Infante era D. Rodrigo de Menezes, irmão do Marquez de Marialva, e, para conquistal-os a seu partido, já se malquistára com D. Sancho Manuel, uma das mais puras glorias d'aquella campanha. Doêra-lhe o coraçõo.

Que intrigas ferviam no exercito! De um lado D. Luiz de Menezes e o Conde de Shomberg, do outro o Marialva e Gil Vaz Lobo! Que pulso era preciso para contel-os!... Assim se vira obrigado um dia a sacrificar o Conde de Villa Flôr, talvez o maior de todos elles.

Um remorso o acabrunhava pela feia acção; mas, sem calcar remorsos, como seria possivel a victoria?

Lembrava-se da chegada de D. Sancho Manuel a Lisboa e de como o povo o havia recebido em seu desembarque na praia, que nem o coche podia romper pelo ajuntamento. Davara-lhe vivas os homens, deitavam-se-lhe aos pés as mulheres.

Entrou finalmente em palacio; mas veio á escada recebel-o o secretario de estado Antonio de Sousa de Macedo, que, depois de lhe dar os parabens, lhe disse:

-- Está Sua Majestade embaraçado com negocios importantes. Siga V. Ex.ª para sua casa, que S. Majestade lhe mandará aviso de quando possa recebel-o.

Enfiou D. Sancho, que respondeu:

-- Sr. secretario, eu sei melhor servir a S. Majestade na campanha do que sei lisongeal-o no paço.

E retirou-se para a sua casa de Subserra, a duas leguas de Lisboa, onde todos os grandes da côrte o fôram visitar, sendo dos primeiros o Marquez de Marialva e D. Rodrigo.

Pois era o Marquez quem maior guerra lhe movia.

Accusavam a D. Sancho, por sua vaidade louca e desmedida imprudencia, de haver posto o reino em perigo imminente de perder-se.

Offendido contra elle se mostrava o Marquez por nunca o haver consultado quando do cerco de Evora; picado estava Schomberg por se haver vencido a batalha do Ameixial, desprezando-se, por inutil, seu conselho de velho militar, pratico na guerra.

Era por elles o Conde de Villla Flôr considerado valente e fortunoso soldado, mas perigoso general.

O Conde de Castel Melhor, levado pelo interesse da promettida amisade do Infante, que julgava indispensavel á realisação de seus planos de salvação da patria, deixou que o conselho de estado se reunisse para averiguar se D. Sancho Manuel fôra criminoso em seu governo.

Mas logo o Marquez de Cascaes, depois das primeiras falas dos que accusavam o capitão general e propunham que fosse ouvido o Conde de Schomberg, se levantou e, com admiração de todos, aquelle doido que só dizia verdades, propoz que, sem mais discussão, se cortasse a cabeça a D. Sancho.

-- Tanto não! exclamaram arripiados os outros conselheiros.

El-rei, tremulo, puzera-se de pé.

-- Que razão tendes, perguntaram-lhe, para condemnação tão barbara?

E o Marquez respondeu:

-- Porque é valoroso, porque livrou a patria da escravidão, porque fixou a corôa na cabeça de S. Majestade, porque, se não pelejára não vencêra. Ou se lhe corte a cabeça pelo que tem feito ou seja premiado com grandes mercês.

-- Venha já D. Sancho fallar-me, ordenou El-rei.

E o Marquez de Cascaes, dobrado, com os punhos sobre a mesa, os olhos chammejantes, tremendo com a cabeça, que, por toda branca, o authorisava a dizer alto as verdades, ria triumphante.

Obedeceu presto o Conde de Villa-Flor, e n'esse mesmo dia veio beijar a mão d'El-rei, sem proferir palavra em que se mostrasse escandalisado.

Tinha o Conde de Castel Melhor mais um inimigo. De maior damno, porém, lhe haviam de ser os amigos que procurára.

E esse pensamento o acabrunhava, tanto mais que se fiava das mulheres e a sua lhe dizia que se temesse de D. Rodrigo.

Mas era agora Simão de Vasconcellos quem de tudo punha e dispunha em casa do Infante.

Encolheu os hombros. Socegou. Passou a mão pela testa, como a affastar nuvens que a sombreassem.

Lembrou-se do filho e sorriu-se!

O filho!... Como era bonito e pequenino! Poz-se a recordar as mãosinhas d'elle, os braços cheios de covinhas, os pésitos que pareciam feitos de folhas de rosa. Estava agora dormindo, todo envolto em rendas, ao lado da mãe, ainda queixosa do muito que soffrêra. Como a vista d'aquelle boccadinho de carne tinha o condão de socegal-o! E deu-lhe, de repente, um grande desejo de o beijar, de lhe ouvir a respiração muito doce, de, ajoelhado á beira da cama, esperar que elle abrisse os olhos, para se ficar, ao lado da mulher, muito tempo, ambos silenciosos e encantados, admirando-o em suas graças.

Caminhou para o quarto devagarinho, abafando os passos.

Assomou á porta um escudeiro.

-- Que é? perguntou o Conde.

O homem murmurou um nome, baixinho, como envergonhado.

O Conde fez um gesto de enjôo, mas, conformado, disse comsigo:

-- Que remedio!

E alto.

-- Manda entrar.

Entrou Simão Peres.

Parecia outro. Tão bem trajado, tão gentilmente embuçado na capa, tão barbeado e penteado, todos o tomariam por um fidalgo da côrte, se aos perfumes usados pela Calcanhares não se misturasse certo fedor de vinho azedo e um indelevel cheiro de cavallariça.

-- Que temos? perguntou o Conde sem dissimular sua impaciencia.

-- Grandes novas, senhor! pessimas novas!

-- Dispenso-te commentarios. Explica-te em poucas palavras. Que mais quer a Calcanhares?

O alcaiote enterneceu-se.

-- Servir-vos, senhor, e a S. Majestade. Mas não é ella quem me envia a vossos pés.

O Conde franziu severo o sobr'olho. Já Simão Peres se atreveria a entrar n'aquelles quartos para tratar negocios seus?

Muito humilde, o escudeiro encolhia-se todo.

Não, não era capaz de assim abusar da condescendencia... E' que perigava o socego de S. Ex.ª

-- Não ouviu V. Ex.ª as salvas de artilharia? Não é capaz de adivinhar V. Ex.ª... Nem eu a principio queria acreditar em tamanha desgraça para mim, para o reino, para S. Majestade e para V. Ex.ª

-- Conta.

-- Pois saberá V. Ex.ª que, com muitas musicas de clarins e atabales, que, ha muitos dias, por ordem do sr. Sebastião Cesar, estavam prevenidas em Belem, estão desembarcando...

Levou a mão ao peito como se nem pudesse falar.

-- Quem? perguntou o Conde suspeitoso.

-- Antonio Conti e seu irmão!

Ahi estava pois o segredo de Sebastião Cesar com El-rei! As contra-ordens do Conde não haviam sido attendidas! Com aquelle artificio contava o arcebispo dominar, pelo favor dos italianos, a fraqueza de D. Affonso!

Azafamado entrou n'esse momento Henrique Henriques de Miranda.

-- Já sabeis?... perguntou.

E mal podia falar.

O Conde olhou para Henrique Henriques, tenente-general de artilharia do reino e provedor dos armazens, a quem encarregára de quanto dizia respeito ao officio de velar pelas amantes de S. Majestade. O homem acceitára o cargo com certo gosto e desempenhava-o a contento de El-rei, da Calcanhares e sobretudo do Conde, mais livre assim de cuidar nos muitos negocios de estado.

Viu-o pallido, afflicto, atarantado, como se o sceptro de lama já das mãos lhe escorregasse.

Aquelle, sim, é que tinha a perder com a chegada do antigo valído. Mas para elle, Conde, quem vinha a ser Antonio Conti? Impellia-o apenas para uma rapida decisão o mostrar a Sebastião Cesar quão facil lhe era quebrar-lhe nas mãos a arma traidora em que tanto confiára.

-- Se esse homem volta a seu antigo valimento, estou... estamos perdidos! dizia Henrique Henriques, gaguejando com a surpreza da nova e o susto de suas consequencias. Se chega El-rei a encontrar-se com elle, sabidas as artes que teve Antonio Conti para introduzir-se-lhe no animo...

O Conde reflectia. Olhou para Simão Peres. Parecia duvidar ainda; o caminho era pouco de tentar.

Henrique Henriques continuou:

-- Quem uma vez se fez senhor absoluto d'uma vontade, que lhe póde custar a reconquista de seu antigo poderio? Elle conhece bem os meandros d'aquelle coração, onde nunca nenhum de nós soube entrar. Ha em El-rei um mysterio. Ainda esta manhã, vi a Calcanhares a chorar de raiva...

-- Pobre rapariga! suspirou Simão Peres enternecido.

Henrique Henriques, d'olho esgazeado, cheio de pavor, não se calava.

-- Se nem aquella mulher, com toda sua formosura, dedicação á nossa causa e tão poderosos elementos que tem para subjugar, pôde tornar-se senhora d'aquelle homem, ora alegre como uma creança nas maiores tristezas, ora...

-- Olha tu, disse repentinamente o Conde para Simão Peres. Não me disseste um dia...

Todo o rosto de Simão se illuminou. Até que emfim, o Conde precisava de seus serviços! Saberia depois explorar a gratidão em que lhe ficasse.

Não o deixou terminar a phrase.

-- Senhor, disse, é verdade. A' unica mulher que o sr. D. Affonso amou n'este mundo, desde que o eu conheço, Antonio Conti escreveu-lhe namorando-a. Tenho as provas commigo.

E, tirando uma carta da algibeira interior do gibão, entregou-a ao Conde, vergando o joelho.

Tinha gravado no lacre o sinete de El-rei.

-- Que ministro o d'agora!... Até dá gosto...

Mas n'esse mesmo instante D. Affonso entrou o seu rosto exprimia o maior jubilo.

-- Conde!... Conde! disse, mal podendo fallar. E' hoje o dia mais feliz da minha vida!

Reparou em Simão Peres, que pela primeira vez encontrava n'aquelles quartos. Estranhou sua presença.

-- Vieste aqui trazer a boa nova? perguntou.

Simão Peres dobrou-se todo.

-- Quanto a V. Majestade interessa...

-- Alguma vez te ouvi rosnar contra Antonio Conti, continuou El-rei carregando o semblante. Alguma vez te mandei calar, pois amigo não tive que soubesse egualal-o.

Henrique Henriques torcia-se.

Olhou para elle D. Affonso e reparou-lhe na cara toda enfarruscada. Dirigiu-se ao Conde.

-- Mandarás receber Antonio Conti com toda a festa que exige a alegria de meu coração. Ao cuidado zeloso de Sebastião Cesar devo minha tamanha felicidade. Elle me trouxe a nova e parecia ainda maior que o meu seu contentamento. Não ouviste como soava a artilharia? Manda que já se aprompte um coche e me tragam a palacio quem minha mãe tão cruamente affastou de minha presença. Lembras-te, Conde?... O que eu soffri n'esse dia e o que tu me consolaste!

-- Vou cumprir as ordens do V, Majestade, respondeu elle curvando-se. Agora soube a nova e dispunha-me a sair para a V. Majestade a communicar.

Viu El-rei tamanha frieza no Castei Melhor, que lhe perguntou:

-- E porque não te adeantaste a Sebastião Cesar, sabendo quanto seria do meu agrado a diligencia feita?

Respondeu altivamente o Conde:

-- Porque não tenho sobre Antonio Conti opinião egual á de V. Majestade e á do sr. arcebispo.

Pelos olhos de El-rei passou um fulgor de colera.

-- Tarde fallas. Conde!

-- Porque mais cedo não tinha de fallar. Sebastião César fez o que entendeu; nossas consciencias são differentes e elle ignora o muito que eu sei.

-- Infamias que se espalham e a que prestas ouvidos. Antonio Conti despertou muita inveja e por esses cantos do paço o mal que hoje dizem de ti ainda não apagou os ecos das velhas calumnias.

O Conde estremeceu. Mas era seu firme proposito destruir toda a maquina que Sebastião Cesar pudesse ter architectado; o ensejo era dos melhores. Respondeu serenamente a El-rei:

-- Quando contra minha lealdade fallarem a V. Majestade, seja assim tão renitente a acreditar na mentira.

E com uma ironia um tanto dolorosa continuou, sublinhando as palavras:

-- Não terei certas prendas de Antonio Conti nem brilham em mim seus talentos, mas traidor a meu rei não o serei nunca!

-- Vai estoirar a bomba! dizia comsigo Simão Peres, que tambem estoirava, mas de jubilo.

Henrique Henriques respirava ancioso.

-- Traidor! exclamou El-rei cheio de espanto. Pois alguma vez esteve Antonio Conti em correspondencia com os castelhanos?

Foi de piedade o sorriso do Castel Melhor.

-- Que sabieis vós n'esse tempo, que sabia Antonio Conti dos castelhanos? Pensaveis tão só em dar combate á boa gente de Lisboa, de noite, por essas ruas, em rixas que escandalisavam a cidade.

Calou-se um instante. Depois, devagarinho, como se cada syllaba fôsse um punhal que lhe enterrasse no coração, continuou:

-- Uma só mulher amastes; por ella Antonio Conti vos foi traidor!

-- Com!...

El-rei empallideceu. Era decerto de Maria da Boa Hora que fallava o Conde. Quiz gritar; mas não pôde. Os labios ainda se moveram para dizer:

-- «Mentes!» , mas a voz estertorou-se-lhe na garganta.

-- Duvida V. Majestade do que affirmo; vou entregar-lhe a prova. Não sei que diz esta carta, mas foi sellada com os sellos de V. Majestade, que decerto conhece a letra de quem a escreveu.

Tremulo, deitou-lhe mão D. Affonso.

Não havia que duvidar. Era a lettra de Antonio Conti.

Simão Peres sorria, Henrique Henriques animava-se e o Conde de Castel Melhor córava de vergonha.

Ter, para subir, que descer tanto! Mas lembrou-se do juramento feito á memoria de seu pae o qual havia de cumprir. Menos honrado, mais glorioso, deixaria seu nome ao filho.

D. Affonso abriu a carta. Eram uns versos detestaveís, com pretensões a villancete e voltas, em que «Falcôa» rimava com «mulher mais bella de Lisboa».

Amachucou a carta, metteu-a no bolso.

-- Mas como?... perguntou, ainda com uma duvida que era uma esperança.

-- Interceptei-a, disse Simão Peres. O muito amor...

Deitou-lhe El-rei um olhar tão carregado de furias, que o alcaiote calou-se. Estava contente, porque estava vingado.

-- Que Antonio Conti parta para a sua quinta de Oeiras e lá espere as minhas ordens, disse D. Affonso.

E saíu colerico, atirou com a porta, seguiu coxeando pelo corredor, a sonhar vinganças.

-- Mandae em meu nome que se cumpra o que El-rei determinou, disse o Conde para Henrique Henriques. Vae-te! continuou, virando-se para Simão Peres.

Os dois saíram juntos. Não tinham ganho para o susto.

O Conde ficou só.

Como Sebastião César fizera sua teia mansinho! Como lh'a elle quebrára! Do odio d'El-rei facil seria conseguir a pequenina pena de desterro para o arcebispo.

Entristeceu. Respirou a custo.

Até onde lhe fôra preciso descer!... Até acceitar os serviços politicos d'um alcaiote immundo! Como lhe repugnava a seus nobres instinctos todo aquelle lodo que revolvia! Mais sacrificava pela patria, muito mais do que a vida!... Lembrou-se do irmão que lhe morrêra no cêrco de Badajoz. Tambem elle fôra ferido no campo de batalha. Porque não havia a bala de o ter levado?... Mais valêra.

E então recordou-se outra vez do filho.

Agora não; que tinha amor á vida!

Nos bicos dos pés entrou no quarto. O pequenino ainda não accordára e D. Guiomar fechára os olhos n'aquelle instante. Eram silenciosas D. Joanna de Tavora e a Marqueza, sentadas ao pé do leito.

Na quasi completa escuridão, foi tacteando até chegar junto d'ellas.

-- Não o acordes, disse-lhe a Marqueza com um tom de voz carinhoso, tão baixo que era quasi um murmurio.

-- Precisava tanto beijal-o! respondeu. Querido filho!... Não. Deixal-o dormir.

E sentou-se ao lado da mãe, sem fazer rumor, e pegou-lhe nas mãos e beijou-as. Ouvia-se o respirar lento de D. Guiomar.

Que serenidade n'aquelle quarto! Como ali descançavam os corações!... Aquella mão que beijára fôra a que lhe apontára o caminho a seguir. Pobre mãe! Se adivinhasse em que lameiro elle havia de atascar-se!... E El-rei?... Como soffrêra d'aquelle golpe cruelmente vibrado!

Seguira D. Affonso pelo corredor, entrára em seu quarto. Dera expansão á colera passeando desordenadamente pela sala, como fera em jaula, e, vendo tudo côr de sangue, atirava murros sobre as mesas, mostrava o punho ao retrato do pae que o havia gerado. Para quê?

Releu os versos de Antonio Conti e exclamou:

-- Assassino!

Achava mesquinha a vingança que El-rei D. Pedro tirára dos matadores de Ignez de Castro. Arrancar-lhe o coração, trincal-o!...

Mas o amor que tinha a Maria da Boa Hora era maior em seu peito que quantos odios pudesse n'elle crear. Aquelle nome «Falcôa» relembrou-lhe horas, unicas com um nadinha de claridade em toda sua vida. Sentou-se, começou a recordar encantos que eram só d'ella. Só em seus olhos vira uma luz de piedade, que mais ninguem lhe concedêra. Horas e horas passava escutando-a, deitado a seus pés. E, quando ella pegava na viola e se punha a cantar, sua voz ia acariciar-lhe recantos da alma de que até então não sonhára a existencia.

Corriam-lhe o corpo estremecimentos nervosos, cerrava os dentes, erguia os punhos; mas logo recaía na saudade, sentimento que o dominava todo.

Se ella não fosse morta? Se havia de voltar algum dia milagrosamente?

Anoitecêra.

Acordaram-o de sua meditação as pancadas compassadas d'umas muletas no corredor. Devia de ser Fr. Bernardo. Déra ordem El-rei que lhe deixassem a entrada livre sempre, fosse a hora qual fosse, porque lhe elle dera uma vez a esperança de encontrar Maria da Boa Hora.

Palpitou-lhe apressado o coração. Mas tanta vez assim o ouvira, que já n'elle não acreditava nem acreditava em algum bem que ainda lhe viesse no mundo.

O frade bateu á porta a dar signal, empurrou-a, affastou o reposteiro.

El-rei olhou para elle, sem uma palavra, com os olhos anciosos a interrogal-o. E de repente voltou-lhe a colera. Aquelle era dos companheiros de Antonio Conti, um dos justamente por sua mãe indigitados para o desterro! Vinha talvez dar-lhe os parabens pela volta do antigo valído.

-- Sae! disse-lhe. Sae! Tão bom és tu como elle!... Vens cá para atormentar-me? Cumplice foste, quem sabe?

O frade, que se approximava para beijar-lhe a mão, estacou com as muletas. Aquella recepção não esperava, por muito que o genio irregular e arrebatado conhecesse d'El-rei.

-- Que quereis dizer, senhor?

-- Vens dar-me teus parabens pela chegada de Antonio Conti?

Foi tal o espanto de Fr. Bernardo, que D. Affonso reconheceu-lhe a sinceridade.

-- Antonio Conti! exclamou.

-- Dize então...

-- Outra melhor nova venho trazer a V. Majestade.

El-rei nem podia respirar. O frade, vendo-lhe o olhar que se alegrava, fez-lhe um signal com a mão, movendo muito a cabeça affirmativamente: -- E' isso, senhor, é isso!

-- A Falcôa...? E' viva...? perguntou D. Affonso com a maior commoçao.

-- Viva! E em sua antiga casa, arrependida de suas aventuras, lá vos espera. Ah! se soubesseis quantas lagrimas chorou por vos haver abandonado!

-- Mas...

-- Fugiu, porque teve medo...

Tinha-lhe a Lindosa contado o que por Simão Peres soubera da paixão de Antonio Conti, e entre os dois haviam combinado uma historia complicada, medos de vingança, que haveriam transtornado a cabeça da Falcôa. O antigo valído era de volta, podia ser perigosa a mentira sabiamente urdida, e, assim do pé para a mão, sem combinação prévia, arranjar outra...

-- Diabos o levem! rosnou comsigo Fr. Bernardo.

E disso El- rei:

-- De Antonio Conti, que ella desprezou! Por isso o eu não quiz receber, e pagará com o desterro sua traição.

O frade respirou alliviadissimo:

-- Mas como soube V. Majestade...?

D. Affonso nem lhe respondeu.

-- Corre, vôa! Monta a cavallo, vae dizer-lhe que dentro em meia hora estarei a seus pés.

E toda a noite esteve de joelhos a contemplal-a, como antigamente, dizendo-lhe coisas doidas, pedindo-lhe que nada lhe contasse que lhe pudesse dar soffrimento.

Ainda mais contentes do que elle, a Lindosa e Fr. Bernardo, no quarto ao lado, por detraz do reposteiro, escutavam do desgraçado enfermo as lastimosas declarações d'amor.

CAPITULO VIII

Resurreição

Era ao pôr do sol, e no jardim do palacio, sob as arvores frondosas, nos bancos encostados aos altos buxos, estava sentada a familia de D. João d'Almeida e, com ella conversando, Manuel Furtado.

Retirara-se, havia pouco, o Conde da Torre, que os alegrára com suas arremettidas, exaltando, facundo, façanhas que obrára nos campos de batalha desde o inicio da campanha, ideias estrategicas que sustentára e, seguidas pelos mais cabos, haviam dado a victoria, castelhanos que matára e exercitos que, n'um só relance d'olhos e rapida decisão, salvara da derrota.

Mas o caso de Manuel Furtado com a amante de D. João d'Austria, que elle, discreto, occultára, fôra pelos proprios castelhanos tão celebrado, que lhe déra grande fama no exercito e já chegára, dizia-se, aos ouvidos d'El-rei. Desejava D. Affonso conhecer os heroes que tamanha honra davam ao exercito portuguez, e o Conde da Torre não sabia como chamar a si a gloria da decantada aventura. A não ser o ter nas linhas de Elvas salvo a vida aos dois rapazes, nenhuma outra lhe cabia. Déra-lhes exemplos, déra-lhes conselhos, mas achava pouco. Entretanto promettia sua protecção a Manuel Furtado, que lh'a agradecia sorrindo.

Deliciosos dias, infelizmente muito rapidos, havia passado n'aquelle palacio, onde todos o tratavam como salvador de D. Pedro.

Não se repetira a visão da noite inolvidavel, mas um maior acanhamento no trato de D. Anna persuadia-o de que não seria tudo mentira de seu delirio a apparição, cuja lembrança luminosa guardava como melhor joia de seu pensamento. Não se repetira a visão, mas era a realidade, aquelle suavissimo rodar de seus dias, que o punha n'um encanto como de sonho. Uma só nuvem os turvava e era a certeza da tão proxima saudade.

D. Pedro d' Almeida era completamente restabelecido e Manuel Furtado bem sabia que só a demora na cura de seus ferimentos muito mais graves fizera com que D. João adiasse sua partida para Lisboa.

Nunca em sua vida se sentira assim tão inteiramente venturoso, nem respirara, contente, ar mais sereno e balsamico. Quem lhe déra soffrer horas e horas durante a vida, padecer para sempre os mais barbaros tormentos physicos, comtanto que um só minuto lhe fôsse dado, um minuto só em cada dia, d'aquelle mystico enlevo a que o arrebatavam a presença de D. Anna de Portugal e seu perfume e seu olhar de tanta doçura em que lia ás vezes mais, alguma coisa mais, do que piedade.

Fizera-o sua mocidade arribar mais depressa do que era seu desejo.

D. João d'Almeida resolvera partir d'Evora no dia seguinte pela madrugada.

Acompanhal-o-ía o Conde da Torre, que julgava indispensavel sua presença na côrte.

Parecia, porém, que todos levavam saudades d'aquelles dias que a tantas attribulações haviam succedido, tranquillos decorrendo.

O jardim olhava para o nascente, d'onde já vinha caminhando a noite, estendendo seu véu silenciosamente. Accendiam-se no azul sereno as primeiras estrellas e uns bafos de vento, que viera acariciando a charneca pisada pelos exercitos, traziam de longe o som apagado das campainhas dos rebanhos. Voltára a paz áquelles campos.

Todos se calavam escutando seus pensamentos.

D. Pedro d'Almeida, sentado junto da mulher, que, desde havia uns mezes, se achava de esperanças, sorria-lhe, apertando-lhe brandamente a mão. O filho que lhe ía nascer havia de conhecer o pae, salvo por um soldado valente da morto quasi certa. Nos olhos amorosos de D. Margarida de Noronha a mesma alegria brilhava. E D. Violante e D. João d'Almeida sorriam de vêr o filho a sorrir e sentiam um alivio tamanho do susto com que vieram correndo, que lhes parecia poder voar até o céu e agradecer-lhe seus beneficios. E pelo mesmo sentimento de gratidão, os quatro, de quando em quando, volviam os olhos para Manuel Furtado.

Este, n'uma poltrona junto á mesa tosca, forrada de cortiça, com os cotovellos sobre a mesa e a cara nas mãos, olhava para o extremo horisonte d'onde vinha nascendo a noite, lá de traz das collinas onduladas em que sobre o matto escuro se arredondavam as copas das oliveiras com reflexos prateados, as velhas azinheiras alargando seus ramos, os sobreiros que ainda no começo da noite se differençavam pela folha mais verde, mais alegre.

Era a ultima tarde... Que saudades iam começar!

Continuavam as trevas a cair com grande doçura. D. Violante ergueu os olhos e viu uma estrella muito brilhante a luzir por entre a ramagem densa do velho ulmeiro que rumorejava mansamente.

-- Vê se te faz mal, minha filha, disse a D. Margarida. Está a caír uma cacimba... e todo cuidado comtigo agora é pouco.

-- Sentia-me aqui tão bem! respondeu queixosa D. Margarida, olhando apaixonada para D. Pedro, que lhe não largára as mãos. Ha instantes na vida que seria gosto sustel-os para sempre.

-- Se ha! murmurou muito baixinho Manuel Furtado.

Reparou que D. Anna olhava para elle n'esse instante o que poderia saber traduzir aquelle mover de seus labios. Um momento demoraram um no outro seus olhares.

D. Margarida continuou:

-- Soffremos tanto, e é tão bom lembrarmo-nos de que já lá vai todo o tormento! Calados como estivemos, todos pensavamos o mesmo. Não é verdade, Pedro?

O marido beijou-a na testa.

Puzera-se de pé; ella ergueu-se devagarinho e tomou-lhe o braço. D. João deu o braço á mulher. D. Anna levantou-se como se lhe custasse.

-- A'manhã não veremos juntos o anoitecer, pensou Manuel Furtado.

Voltou-se para elle D. Pedro.

-- Acompanho minha mulher e volto já a buscar-te.

-- Não, respondeu-lhe. Obrigado. Irei com meu vagar para me ir costumando a caminhar sem auxilio.

Deixou-os saír, seguindo com a vista seus vultos indecisos até que desappareceram na curva da grande alameda.

Quando se voltou, reparou que D. Anna de Portugal deixára o lenço sobre a mesa. Pegou n'elle o, cheio de paixão, beijou-o soffrego, inebriado de seu perfume.

E tudo ía acabar, tudo que não chegára a começar e já era tanto! O louco prazer que o enlevava beijando aquellas rendas, porque haviam de agual-o lagrimas de saudade cuja humidade sentia nos olhos? Mandavam-o ficar na guarnição da praça; que longos e melancolicos lhe ia parecer os crepusculos d'aquellas tardes de verão!... Se um só minuto sem ella lhe parecia uma eternidade!

Que suavissima paz gosára em sua convalescença! Como feliz se arriscaria a todas as balas do inimigo, se lhe fôsse dada em premio uma só hora mais d'aquellas em que julgára respirar na terra como só anjos no céu respiram!

Sentiu passos a caminharem ligeiros; avistou um vulto branco que se approximava, e tanta surpreza o invadiu, tão sem movimento se achou, que, ao chegar D. Anna ao pé d'elle, ainda o surprehendeu sobre os labios amachucando o lenço.

Vinha offegante, em palavras cortadas pela respiração alta explicando porque voltára atraz, fingindo procurar o que esquecera e dizendo por fim a Manuel Furtado:

-- Ah!... Obrigada. Era o meu lenço...

E ficou-se, encostada á mesa, e sem voz, sorrindo enleada á espera nem ella sabia de quê, mas como a confessar que outro motivo a trouxera.

Manuel Furtado fez menção de levantar-se; mas era grande o esforço que tinha de empregar. Batia-lhe o coração com violencia. Disse:

-- Deixei-me ficar para aqui a despedir-me.

-- E' amanhã, disse ella com voz sumida.

Houve mais um instante de silencio, embaraço de que nenhum achava como saír. Ambos teriam muito que dizer e eram por isso calados.

Manuel Furtado olhava para ella, que, de pé, junto da mesa, fitava seus olhos no horisonte longe, onde as estrellas se apagavam no luar nascente.

-- Vou ter muitas saudades, disse elle a custo. Muitas.

-- Como nós, respondeu ella. Todos vos estamos tão gratos!

-- Porquê? Por haver arriscado uma vida a que até então não tinha amor?

Era um bom ensejo para continuar. D. Anna esperou um momento com anciedade; mas, vendo que Manuel Furtado se calava, fez um pequenino movimento de impaciencia. O novo silencio foi ella quem o quebrou.

-- Ainda hontem, com minha irmã Margarida, muito fallámos a vosso respeito. Ella estima-vos muito, como eu... como todos nós. Mas meu pae não podia demorar-se mais tempo... Dizeis então que ides ter saudades nossas...

-- Muitas, muitas! respondeu elle n'um impeto que a fez estremecer. Vou viver de recordações, do muito que vivi, e mais ainda do muito mais que sonhei.

E tornou a calar-se.

Já se avistava um segmento pequenino da lua, lá de traz das serras espreitando por entre a ramagem d'uma azinheira.

D. Anna olhou desconfiada para a alameda, receosa não viesse alguem.

-- O que nós conversámos! disse-lhe. Hei de sempre recordar-me da hora triste em que vos conheci e das tão piedosas palavras com que suavisastes minha dôr muito aguda.

Immediatamente se arrependeu do caminho em que puzéra o dialogo. A que vinha ali a recordação de André de Albuquerque? Porque fugir para tão longe do que ali a trouxera? Commettera um erro. Se não tivesse depois tempo?... E olhava, inquieta, para os lados do palacio, d'onde poderiam vir procural-a.

Manuel Furtado respondeu-lhe:

-- Se me lembro!... Ingrato seria a tal memoria se não a tivesse em meu coração constante. Foi em dias de lucto que surgiu a minha boa estrella, á qual devi meus deslumbrantes dias... que amanhã acabam.

Custava-lhe o que dizia d'aquella recordação; mas animava-o a esperança de ainda desviar o dialogo para o que estava morto por dizer e mal podiam seus labios medrosos pronunciar.

-- Se algum bem vos fiz, ao céu o agradeço.

-- Se algum bem me fizestes!... Se horas assim não tive como aquellas em que vos ouvia!... Sem vós, que haveria sido de mim?

Deu para elle um passo, receosa; affastou-se outra vez. Continuou sem se atrever a volver para elle os olhos:

-- Quando a esta casa chegastes ferido, que até vos julguei morto, na minha afflicção passava-me ás vezes pela mente o horrivel terror de ficar no mundo sem ter com quem desabafar tanta coisa que ás vezes me opprime, muita que já vos disse, muita mais que de dizer-vos tinha esperança.

E ao pronunciar estas ultimas palavras, quasi a voz se lhe apagava.

-- Não sei se o pensei antes, se só depois me lembrou... Vinheis tão horrivelmente ferido!... Que noites me destes!... Não tive tempo para ter dó de mim. Pero Rolão, por nós todos anciosamente interrogado, tanto se confundia com nossas perguntas, que devia de ter a chave do mysterio d'aquella vossa aventura. Eu não tinha segredos para vós... Porque nunca me fallastes... Não vos merecia eu confiança?

Manuel Furtado não desfitava d'ella seus olhos. Com seu vestido branco e o diadema de seus cabellos loiros banhados pelo luar, tão radiante de sobrenatural formosura lhe apparecia, que se ergueu coom em extasis e quiz caminhar para ella. Mas fôra tal o impulso com que se erguêra, que o atacou, viva, a dôr no lado; cambaleou D. Anna amparou-o, ajudou-o a sentar-se no banco, sentou-se-lhe ao lado, carinhosa.

-- Perdoae-me, disse-lhe. Fiz mal talvez em trazer-vos alguma recordação pungente. Perdoae-me.

Era D. Anna quem lhe fallava de Maria da Boa Hora!... Porque havia de ser n'aquelle instante? Foi com magua que aos olhos viu surgir-lhe a imagem da outra mulher.

-- Fiz mal? tornou D. Anna a perguntar.

E como elle a olhasse com olhos que imploravam piedade.

-- Amou-a muito? perguntou ella.

E Manuel Furtado não se atreveu a mentir.

-- Muito, respondeu, mas como quem confessa uma culpa e se dispõe a resar um acto de contricção.

-- Tambem eu amei muito e comvosco desabafei minha paixão, que a morte de meu noivo exacerbou e que eu julgava só teria fim com rainha morte. Contae-me vossos amores; algum bem eu vos farei, egual a este que me fizestes. Em vós puz minha confiança e não vos mereço a vossa! Fallae.

Manuel Furtado pegou-lhe nas mãos e, pallido, tremulo, olhava para ella, parecendo-lhe que seria um crime, uma profanação d'aquella alma purissima, deixar-lhe o pensamento posto na Falcôa, na mulher perdida.

D. Anna fechára os olhos e, com os labios entreabertos n'um sorriso, respirava como n'um sonho, esperando uma só palavra quo a deixasse, soltar as azas por aquella noite casta e silenciosa.

-- Anninhas! disse-lhe em voz muito baixa, quasi n'uma supplica.

Ella descerrou as palpebras e, com o olhar mortiço e um suspiro fundo, murmurou:

-- Manuel!

Elle apertou-a nos braços e ella affastou para traz o rosto como a querer fugir-lhe.

-- Manuel! repetiu n'uma queixa muito branda.

E sem forças, reclinou-lhe a cabeça sobre o hombro. Elle então, devagarinho, pousou os labios sobre os cabellos loiros, perfumados, que eram na formosura de Anninhas o que mais o endoidecia.

De traz do buxo ouviu-se n'esse instante um grito immenso e doloroso.

Manuel Furtado pôz-se de pé.

Ao mesmo tempo ouviu-se a voz de D. Violante chamando lá do fundo da alameda:

-- Anninhas!

D. Anna abalou correndo.

Manuel Furtado deu volta ao grande ulmeiro, e ainda viu ao longe, á luz do luar, galgando o pequeno muro de vedação, um vulto de mulher e outro d'um homem, que ia aos saltos irregulares como um lobo ferido.

Quem seriam elles, os senhores de seu segredo?

Tinha na mão o lenço que Anninhas lhe deixára. Beijou-o muito, em completa ventura de seu amor.

Mas quem seriam aquelles?...

Muito devagarinho encaminhou-ae para o palacio.

CAPITULO IX

Artimanhas do frade

Em quanto El-rei, aos pés da Falcôa, feliz e desgraçado, murmurava sua paixão em phrases desconnexas, que não chegava a acabar, na prece de seus olhos d'elle tristes, implorantes como de gasella ferida, Maria da Boa Hora encontrava seu remorso.

Pedia-lhe elle, de mãos postas, que lhe calasse a vida que levára aquelles tão longos dias -- ai d'elle! tantos ! -- que longe passára de seu amor e que levára a tiritar no frio das saudades, n'uma treva habitada por espectros.

-- Não digas!... não digas! supplicava. Se eu pudesse arrancar-te a lembrança!... Teus olhos ainda são meigos. Não quero saber do que viram, não quero saber que outros olhos viveram da luz dos teus, não quero saber que passaste.

-- Miserias! respondeu ella.

Mas instantes que tivera venturosos, por um só que pudesse voltar, que maiores miserias não era prompta a padecer?

Uma affeição criara no mundo, forte, inabalavel aos vendavaes, em que ella se deixára sossobrar. O que esphacelára aquelle coração que só d'ella vivia e lhe rogava apenas lhe nao tirasse o queixar! Onde guardava El-rei seu amor que mais viridente florescia nas podridões d'uma chaga?

Porque abandonára aquelle homem que lhe queria tanto? Porque fôra correr aventuras que a puzeram em busca da morte? Se tinha quem a amasse, algum calor conservariam aquellas cinzas. Fôra o desvario só culpa de sua mocidade.

Tinha soltas as tranças; passou as mãos pela vasta cabelleira e viu-lhe El-rei dois cabellos brancos. Sorriu-se piedoso.

-- O que ella soffreu, coitadinha!

O que ella soffria só de rememorar os ultimos dias, desde que accordára nos braços de Pero Rolão!

Havia a cavallaria de Elvas feito uma d'aquellas sortidas com que os officiaes e soldados minoravam o tedio dos ocios dentro das praças.

O estrondo da explosão nos armazens de Arronches obrigou-os a galopar, querendo tomar conhecimento do que houvera. Souberam-o pelos castelhanos presos, e o milagre por que haviam sido salvos no local em que se achavam. Mas D. Gaspar estava ferido e D. Florencio era morto,

-- Manuel Furtado? perguntára Maria da Boa Hora.

E pelo caminho por onde voltavam a Elvas, Pero Rolão foi-lhe contando o que sabia, animando-a, dizendo-lhe palavras carinhosas, introduzindo-lhe outra vez na alma uma esperança.

-- Julgou reconhecer-me, quando eu passava mascarada!... disse ella. Procurou-me em nossa casa!... Soube que eu havia partido com o Conde de Sertiranal... E abalou, para uma morte quasi certa, para me arrancar aos castelhanos!... Mas, se eu me enganei!... Se eu fui causa, por minha cegueira, de seu ferimento?... Dizei-me, dizei-me como elle está. Que novas tendes?

-- Salvo, está salvo, descançae. Nada lhe hade faltar em casa de D. João d'Almeida.

-- De D. João d' Almeida dizeis!

E empallideceu de susto. Se o pesadêllo que tivera se havia agora de tornar realidade!

-- E D. Anna? perguntou.

-- Acompanhou os paes e a cunhada. D. Pedro d'Almeida foi ferido durante o cerco e salvo da morte por Manuel Furtado.

-- Meu Deus!... Meu Deus! exclamou Maria da Boa Hora, tão dolorosamente que Pero Rolão teve de amparal-a para que não caísse do cavallo.

Era o vivo retrato de Consuelo. Nem Pero Rolão saberia dizer como estremeceu e as arterias lhe bateram e que nuvem lhe passou pelos olhos, ao sentir nos braços desfallecido aquelle corpo de singular belleza.

Chamou um soldado velho, de sua maior confiança, e disse-lhe:

-- Espera-me aqui com os presos. Supponho não haverá que temer agora. Não posso abandonar esta mulher, nem a podemos transportar comnosco. Dois soldados bastam para ajudar-me.

Apearam do cavallo Maria da Boa Hora, fizeram-lhe com uma capa travesseiro para a cabeça e, n'um sitio mais liso da charneca, deitaram-a desmaiada.

Pero Rolão subiu a um pequeno outeiro d'onde avistou, meio occulta no arvoredo, uma casa pequena, arruinada.

-- Vejamos, disse.

Approximou-se. A porta era fechada.

Rodeavam a casa umas arvores de fructo; uma cerejeira, duas figueiras. Havia mais adeante um pequeno meloal e, n'um caniçado, enrolavam-se uns feijoeiros viçosos.

Manuel Rolão bateu á porta. Ninguem Ibe respondeu.

-- Olá!... Dono da casa! gritou.

E a cabeça d'uma velhinha surgiu então, espreitando medrosa de traz d'uns penedos.

-- Sois portuguez? perguntou com voz ainda sumida pelo susto.

-- Pois não me ouvis?

A velhinha veio andando, tremula, dobrada, encostadinha a seu bordão.

Deus vos salve, meu senhor!

-- Deus vos salve, santinha, respondeu o alferes. Mercê venho pedir-vos.

-- Dizei, sr. official.

-- Uma senhora tenho ali na estrada, enferma e ferida. Acolhei-a. Saberei pagar-vos.

-- Pois Deus a traga e na minha pobreza lhe prestarei o soccorro que puder. Vêde, quanto é meu tudo ali está, e vivo em sustos não m'o venham roubar. Mas vós fallaes a lingua em que eu reso a Nossa Senhora e abençoada seja a vossa visita.

Acompanhou-o até á estrada.

Dois soldados apearam-se, levantaram do chão Maria da Boa Hora, desfallecida sempre, e transportaram-a até á miseravel casa.

Pero Rolão, ajudada pela velha, deitou-a na enxerga, cobriu-a com a sua capa, ajoelhou a contemplal-a, com os olhos rasos de lagrimas.

A velhinha resava.

Não se fartavam os olhos do alferes de tanto se deslumbrarem, maravilhados de tamanha formosura. Aquella que vira chorosa pelo Principe D. João não era mais bella que a triste ali desmaiada por seu amor a Manuel Furtado. Deu-lhe um remorso de assim apaixonar-se.

Mas, subito, do arrebatamento arrancou-o uma terrivel preoccupação. Não tinha dinheiro. Deixal-o, pedil-o-ia ao padre que andava com sorte. A velha tinha cara de muito boa pessoa. Dar-lhe-ia, quando voltasse, umas pratinhas.

Era preciso ali tornar muito breve. Mandaria trazer uma liteira; viria com uma duzia de bons soldados.

Que diabo! Havia do convencer os generaes que se tornavam urgentes umas entradas pela Andaluzia, até onde se pudesse dar saque a alguma villa importante. Sempre assim... sem dez reis!

E, outra vez, segurando nas mãos pequeninas de Maria da Boa Hora, pediu á velha que lhe refrescasse as fontes com uma gotta d'agua.

Então ella voltou a si. Passou as mãos pelos cabellos com gesto muito cançado, descerrou as palpebras, olhou espantada para o casebre em que se achava, reconheceu Pero Rolão.

-- Dizei-me...

Custava-lhe muito a fallar.

-- Dizei-me que foi um sonho mau tudo o que soffri.

-- Foi, respondeu elle.

-- Sei que sois bom. Quanta vez elle de vós me fallava!... E' por bem que me quereis illudir?... Respondei.

-- Juro-vos que vos disse toda a verdade.

E, endoidecido pela meiguice da voz que lhe fallava, pelo olhar supplicante que o commovia, pelo gesto d'aquellas mãos de tão puro desenho que, postas, o imploravam, como se elle fosse esmoler de venturas n'este mundo, avaliando pelo seu o coração dos outros, certo de que em todos, tanta graciosidade e lindeza haviam de produzir a mesma deliciosa perturbação, acrescentou:

-- Juro-vos que vos adora!

N'um encantamento Maria da Boa Hora voltou a cerrar os olhos.

Pero Rolão respirou fundo. Que confusões lhe iam lá dentro! Orgulho, felicidade, ciumes e, logo que jurou tão solemnemente, um certo receio de haver commettido um disparate. E' que Manuel Furtado não fallava de Maria da Boa Hora como da outra.

Por um buraco do telhado um raio de sol entrava, o qual pousou sobre a testa da rapariga; e ainda mais brilhava seu sorriso do que o sol!

Disse-lhe Pero Rolão:

-- Corro a Elvas contar o que passastes e logo volto a buscar-vos com o que fôr preciso para que façaes com maior commodo a joruada. Trarei commigo um physico.

Ella disse que não com um gesto de cabeça. Obrigou-o a jurar que a ninguem fallaria do que sabia d'ella, nem qual seu nome, nem que vida levára.

-- Deixae-me ficar com esta velhinha. Logo que puder, metto-me a caminho. Irei ter com elle para voltar á minha feliz clausura, onde só com elle viva, e todos os mais me julguem morta. E' minha ventura em vossas mãos. Jurae.

-- Este me saia mais certo do que julgo o outro, pensou elle.

E jurou.

Prometteu á velha que breve voltaria e saberia pagar-lhe seus serviços. Não devia demorar-se, que levava feridos.

Voltou a Elvas com seus prisioneiros.

O caso fez bulha. Contou-o D. Gaspar no hospital, attribuindo-o a intervenções diabolicas; repetiam-o os soldados crentes em milagre de Nossa Senhora; diziam os castelhanos que o fumo da polvora em Arronches cheirava de mais a enxofre, e, ao conto accrescentados varios pontos, já corria era Elvas que o céo se havia aberto aquella noite e para os lados da villa se vira uma luz muito branca a descer d'um céo mais alto.

O Marquez de Marialva chamou Pero Rolão á sua presença.

-- Que me contam? Vós melhor que os outros me sabereis dizer a verdade. Diz- se que uma mulher em Evora, por sua maravilhosa parecença com a amante de D. João d'Austria, illudindo o Conde de Sertirana e outros officiaes hespanhoes, saíu embuçada da praça, sendo acompanhada até Arronches por um tal D. Gaspar, um dos presos que trouxestes. Dizem mais que foi ella quem largou fogo á polvora dos armazens e que, villa, fortes e muralhas, tudo voou pelos ares. Fostes vós um dos dois valentes officiaes portuguezes que mereceram ser pelo Principe apontados aos seus como espelho de cavalleiros.

Pero Rolão curvou-se. O Marquez sorriu-se e continuou:

-- Ha-de El-rei premiar-vos e eu tomarei a peito que não tarde a recompensa.

-- 'Beijo as mãos a V. Ex.ª, disse Pero Rolão logo que pôde fallar.

Rebolavam-lhe os olhos de alegria.

-- Contae-me pois o que sabeis de tão notavel similhança, vós que ambas conhecestes.

Lembrou-se o alferes do que promettera a Maria da Boa Hora. Tentou desculpar-se do pouco que poderia informar o governador das armas.

-- Foi de noite que eu e Manuel Furtado encontrámos a amante do Principe. Quando amanheceu, não quiz ser indiscreto olhando para dentro da liteira. E, demais, ella não fazia senão soluçar com a cara no lencinho... Sabe V. Ex.ª que n'aquelles assados em que nos viamos...

Temeu que o Marquez levasse a mal a palavra que pronunciára, mas viu-o rindo e continuou:

-- V. Ex.ª perdôe-me; mas ha horas na vida em que um homem não pensa em mulheres.

O Marquez disse em tom de mofa:

-- Na vossa edade!

O alferes fez-se que nem um pimentão.

-- E esta, a quem soccorrestes a tempo e horas, não vos disse quem era?

-- Apenas trocámos meia duzia de palavras. Vinha muito ferida; nem sei como podia suster-se no cavallo. Teriamos andado pouco mais d'uma legua, quando ella desmaiou em meus braços. Recolhi-a n'uma casa muito pobresinha, um pouco affastada da estrada e, mal percebi que lhe voltavam os sentidos, montei a cavallo e puz-me a caminho, como era meu dever.

-- E' natural que os castelhanos saíam a procurar essa mulher e n'ella queiram vingar-se de quanto os persegue a má fortuna.

-- Não é Deus por elles, sr. Marquez, mas comvosco.

O Marquez de Marialva pôz as mãos sobre os hombros do alferes.

-- Ninguem tendes que vos recommende na côrte?

-- Ninguem, sr. Marquez.

-- E' força acudirmos á desgraçada heroina. A' bocca da noite partireis outra vez. Dar-vos-hei, para que mais commodamento a possaes transportar, a minha liteira, e, para que os castelhanos não se atrevam a impedir-vos o passo, ireis acompanhado por uma escolta de cem soldados. Em Elvas trataremos de resolver o enigma.

Estendeu-lhe a mâo.

-- Folguei em conhecer-vos.

Não havia meio de obedecer á vontade de Maria da Boa Hora. Quem mandava era o Marquez.

Pero Rolão saiu d'ali a endoidecer de contentamento. Foi ter com o padre, que estava a lêr o breviario.

-- Aposto que ámanhã antes do meio dia estou aqui de volta com ella e com pelo menos cincoenta castelhanos prisioneiros.

-- Aposto que não encontras nem meia mulher nem meio castelhano.

-- Doze vintens?

-- E meio.

Continuou a lêr o breviario. Pero Rolão saíu.

Mas quem ganhou foi o padre.

Quando o alferes, alta noite, chegou com a liteira e a sua tropa, bateu á porta da velha, logo fallando-lhe portuguez, para que não se temesse d'elle.

Encontrou-a muito chorosa.

-- Ha duas ou três horas que se foi. Não creio que tenha força para muitos passos; mas não houve sustel-a, por muito que lh'o rogasse pelas sete dôres de Nossa Senhora!

Boquiaberto Pero Rolão escutava-a.

-- Vestida ainda...

-- Não. Ajoelhou diante de mim a pedir-me que lhe désse uma roupinha velha. Tanto chorava... que remedio tive? Deixou-me seu fato de cavalleiro, o chapeu, as botas com as esporas de prata... Demais me pagou, coitada. Foi descalçasinha por ahi fóra. Uns pés tão pequeninos, tão mimosos... não hão de leval-a muito longe, com o tojo que ha por essas charnecas... Dei -lhe a minha saia mais rota, um lenço e o meu bordão de zambujo. Ora ria, ora chorava.

-- Valha-me Deus ! disse Pero Rolão, que não cuidára pudesse a imprudente resolução ser tomada para tão breve. E como passou ella o dia?

-- A dizer coisas que não entendi, como nós ás vezes, quando estamos com terçãs.

-- E não sabeis para que lado...

-- Foi d'aqui direitinha á estrada, mas não sei para onde voltou.

-- Para Evora decerto... pensou o alferes. Só, de noite! Foi o delirio da febre que lhe deu para fugir... para matar-se!

A velha benzia-se.

-- Metti-lhe no bolso tres pedaços de pão duro que ahi tinha e disse-lhe: -- Pois Nossa Senhora vá comtigo.» Abracei-a; ella beijou-me. Até julguei que tinha um anjo em meus braços... Anjo será a estas horas, que talvez já esteja com Deus.

Foi Pero Rolão com seus soldados correr a charneca. O resto da noite, o outro dia todo até que anoiteceu, não houve collina a que não subisse, moita que não mandasse bater, grupo de rochedos que aos soldados não apontasse.

Nem Maria da Boa Hora, nem meio castelhano!

Recolheu a Elvas morto de cançasso, furioso.

-- Toma lá os doze e meio! disse ao padre.

Deitou-se. Adormeceu logo. Sonhou com ella.

Mas emquanto elle a via vestida de seda, collo e cabellos cheios de pedrarias que rebrilhavam, e outra vez no throno a que a subira El-rei de Portugal, Maria da Boa Hora, com os pés em sangue, caminhava pela charneca.

Com uma mão-cheia de lodo sujára os cabellos e o rosto.

Bem vira os soldados que a procuravam. Um d'elles até lhe dissera:

-- Deus vos salve, santinha!

E ella respondêra:

-- Deus vos salve!

N'aquella mendiga suja, de pé descalço, cabello desgrenhado de que saíam pelos buracos do lenço umas farripas cheias de lama, quem ousaria suspeitar que se disfarçava a amante por quem El-rei ainda suspirava e rodeára de caprichoso e magnificente luxo? Como eram longe os tempos da Falcôa!

Caminhava de noite, receosa, pelas estradas; de dia mettia-se pela charneca onde fôsse o matto mais denso. Acabára-se-lhe o pão; ia comendo amoras da silva que o sol do verão ainda não amadurára de todo. A uma mulher que viu á porta d'uma casa e que fazia rir uma creancinha toda nua, deitada em seu regaço, pediu uma esmola pelo amor de Deus; mas quando a mulher voltou, já ella fugira, envergonhada. Acceitou d'um cabreiro uma tijella de leite e, ao cabo d'esse dia e quando se deitou, com a cabeça sobre uma pedra, cuidou que ia morrer de fome.

Doiam-lhe os pés horrivelmente. Lavava-os nas fontes. Quantas leguas ainda teria de andar?

Mas não esmorecia.

Atreveu-se por fim a bater ás portas das casas isoladas, a pedir um bocadinho de pão, a perguntar se ia bem n'aquelle caminho. Uma vez enganou-se, e, á noite, quando soube de seu erro, chorou com desespero as leguas perdidas. Ao pé de uma aldeia, uns rapazes correram-a á pedra, chamando-lhe bruxa. Mas até gosava com tanto soffrimento, a pensar em Manuel Furtado.

-- Ainda me ama!... Adora-me, que m'o disse o outro e o jurou!

E caminhava mais depressa, e no pó do caminho os pés ensanguentados tingiam de vermelho suas pegadas.

Quantos dias levou na jornada? Sabia lá!

Avistou Evora afinal; mas só no dia seguinte lá pôde chegar, que eram suas forças cada vez menores. Passou a noite sob uma azinheira, contemplando a cidade toda banhada de luar. Ouviu os sinos tocarem Ave-Marias, viu accenderem-se as luzes nas casas, sorriu-se ouvindo o toque do recolher, viu as luzes apagarem-se. Toda a noite esteve de ouvido á escuta para as horas que batiam nos relogios das torres. De madrugada abririam as portas. Punha as mãos no peito para conter o coração excitado.

Começou a aurora a luzir e ella poz-se a caminho, arrimada a seu bordão. Um homem que passou a cavallo n'uma mula contemplou-a com um olhar de piedade e atirou-lhe dez réis. Ella abaixou-se, apanhou a moeda coberta de pó e beijou-a.

Entrou na cidade que toda reluzia, muito rosada pelos beijos do sol. Mal podia arrastar-se, tão cançada vinha e os pés trazia em carne viva; mas pareceu-lhe que os casebres mais pobres e as velhas egrejas, cujos sinos a repicar punham em fuga os passaros revoando, a saudavam em sua chegada e se enfeitavam com a luz da manhã para com seus cantos festejal-a e dar-lhe as boas vindas.

Achava forças na alegria que levava dentro n'alma e, com um riso a illuminar-lhe o rosto macerado, metteu-se pelas viellas que a conduziam á porta de casa.

Se ainda lá encontrasse Pantaleão Gonçalves, elle lhe daria noticias de Manuel Furtado e lhe arranjaria maneira de se avistar com o amante.

Bateu á porta uma argolada. Esperou. Bateu outra e ainda outra com mais força. Mais duas vezes bateu, já impaciente.

Se o pintor tivesse deixado Évora?... Se ninguem ali morasse?...

Abaixou-se, apanhou uma pedra, pôz-se com ella a bater repetidas vezes.

Sabia dos maus costumes de Pantaleão Gonçalves. Teria bebido, estaria ferrado no somno.

Abriu-se uma janella. Maria da Boa Hora ergueu os olhos e avistou a cabeça de Fr. Bernardo, ainda estremunhado, a perguntar furioso:

-- Isto são modos?... A estas horas!...

-- Tu! exclamou ella.

Então elle reconheceu-lhe a voz.

-- A Falcôa! disse pasmado.

E, já costumado ás muletas, desceu a escada em dois pulos.

Os olhos d'ella luziam cheios de colera.

Que faria ali aquelle homem?

Subiu veloz ao primeiro andar.

-- Pantaleão Gonçalves? perguntou.

Fr. Bernardo, que subira a escada com todo o vagar, respondeu-lhe a rir:

-- Andou toda a santa noite offerecendo libações ao deus Baccho; deve estar nos braços de Morpheu.

-- Mas tu, como te vejo aqui?

-- Eu te explico: foi um dever de caridade. Quem havia de acudir ao grande artista quando se elle embebedasse? Para que não morresse por ahi ao desamparo, nem andasse á bulha com os cães a espiolhar o lixo nos quintaes, offereci-lhe do meu pão negro, e elle em troca obsequiou-me com a hospitalidade. Amor com amor se paga.

-- Acorda-o; quero fallar-lhe.

-- Nem a murro o despertarias agora. Foram tantos os picheis entornados, que lhe perdi a conta. Afogou suas tristezas, coitado. Deixa-o dormir.

Olhou para Maria da Boa Hora com um ar tão mau, com um sorriso tão ameaçador de desgraças, que ella estremeceu e perguntou-lhe:

-- Que vieste fazer a Evora?

-- Cuidar de ti.

-- E como te atreveste a entrar, a viver n'esta casa?

-- Eram tenções minhas mudar-me ámanhã, pois me consta que breve tornará o sr. tenente. Vai melhor. A culpa não foi de quem o tiro lhe apontou; o diabo do homem deve ter sete folegos como os gatos.

-- E quem...

-- Quem lhe atirou? De noite, no meio da charneca... Vão lá saber!

Poz-se outra vez a rir.

-- Alguem que te queria bem, naturalmente.

Olhou para ella, malicioso, o continuou:

-- Dizia-me cá dentro não sei quê...

-- O demonio que em ti falla!

-- Seria. Dizia-me que n'esta casa devia esperar-te, que, se escapasses da aventura que o pintor me contou... por miudos m'a contarás tambem... se escapasses, aqui devias de voltar, como as andorinhas a seus ninhos na primavera.

-- Infame!... Manuel Furtado te saberá castigar.

O frade desatou ás gargalhadas.

-- Manuel Furtado!... Bem pensa elle n'isso!... Castigar-me! Tomára elle que o eu livrasse de ti!

-- Sai!... sai! gritou ella.

-- E onde queres que te espere? perguntou o frade com ironia que a exasperou. Não has de ir sósinha por ahi fóra.

Aquella suspeita que o frade lhe mettêra no coração!... Seria verdade que Manuel Furtado se fartára de seu amor?

Correu ao quarto do Pantaleão Gonçalves, sacudiu-o, chamou-o; obteve d'elle apenas um rosnar duvidoso, e deixou-o, estalelado de costas sobre a cama, de bocca aberta, a roncar.

Devia de ser mentira... No que Pero Rolão lhe dissera, encontrára forças para a caminhada. Mas que dias levára a andar tão poucas leguas!... E se entretanto... Porque, melhor meditando, era só uma esperança o que a animára: o alferes bem poderia ter mentido por compaixão, vendo-a tão doente. Mais tarde, pouco a pouco, ir-lhe-ía revelando a verdade... Mas se o jurára!... se o jurára!

Saiu do quarto.

-- Ainda aqui? perguntou a Fr. Bernardo.

-- Ouve, minha doida, disse-lhe elle com ar hypocritamente paternal. Voltaste o andaste bem. Olha em que figura me appareces! Mais limpo e menos esfarrapado é um esfregão de cozinha. Tão magrinha te vejo e escavacada, tu que eu sentei n'um throno! Porque bem te deves lembrar, fui eu. Deixa dormir o Pantaleão e tu acorda. Para que pensas em Manuel Furtado que não pensa em ti?

-- Mentes! exclamou Maria da Boa Hora, com mais odio do que visivel convicção. Mentes! Por minha causa, por meu amor é que elle saiu de Evora e foi expôr-se á morte.

-- E que fosse? Toda a vida has de ser tonta! Deu muita volta o sol em torno da terra e, entretanto, D. Anna de Portugal deu volta ao miolo do tenente. Apanhou-o mais fraco, foi um instante.

-- Como o sabes?

Havia tanta anciedade na pergunta de Maria da Boa Hora, que o frade, sorrindo com o tal sorriso mau, lhe disse piscando o olho:

-- Ora ainda bem! Começo a convencer-te.

-- Não!... Não! disse ella dolorosamente.

-- Pois olha que, por informações que tenho, aquelle amor caminhou. Nem podia deixar de ser.

Maria da Boa Hora desatou a chorar.

Porque não morrêra em Arronches? Porque a haviam depois resuscitado introduzindo-lhe no coração uma esperança, que o poz outra vez a bater?

O frade approximou-se d'ella, diligenciando tornar a voz meiga.

-- Vamos, vamos, Falcôa!

Ella estremeceu, ouvindo a alcunha; quiz revoltar-se, mas já não teve animo. Era a Falcôa!

O frade continuou a persuadil-a.

-- Afinal que desejamos nós, quem devéras te quer bem? Livrar-te do mau caminho em que tanta miseria soffreste, livrar-te d'um ingrato, d'um traidor... Até parece impossivel!

-- Se eu visse... murmurou ella.

-- Vais vêr, se quizeres, respondeu o frade.

O lance era arriscado, mas elle tinha quasi a certeza de saír victorioso.

-- Logo, á boquinha da noite, saltaremos o muro do jardim; caminharás até poderes esconder-te atraz dos grandes buxos, no largo onde a alameda termina. Ali costuma reunir-se, passando a tarde, a familia de D. João. Observarás o que puderes, e, se Deus me ajudar...

-- Ou o teu demonio...

-- Quem tu quizeres. Espero que algumas palavras ouvirás...

-- Se, com tanto que soffri, minha vida hei de perder...

-- Perder!... Virás commigo.

-- Que me importa a vida?... Irei comtigo.

O grito ouvido por Manuel Furtado foi Maria da Boa Hora quem o soltou.

Fr. Bernardo, antes de saír, deixára umas moedas de cobre sobre a mesa, junto á cama de Pantaleão Gonçalves ainda adormecido. Quando chegou a casa, noite fechada, com Maria da Boa Hora, o pintor tinha abalado.

-- Foi para a taberna, disse Fr. Bernardo comsigo. Estamos sós.

Maria da Boa Hora estirou-se sobre a cama, chorando convulsamente, dizendo palavras sem nexo, que fallavam de morte e de perdição. A febre, o cansaço, a dôr que lhe feria o coração, roubavam-lhe todas as forças. Sentiu que o frade lhe tocava, que lhe fallava junto do rosto. Revoltada, fez um esforço para affastal-o... Succumbiu; quiz dar um grito e não pôde; reviraram-se-lhe os olhos; desmaiou.

CAPITULO X

O Infante

Continuavam as victorias do Conde de Castel Melhor.

Quando, na primavera de 1665, tratando das bases para os casamentos de El-rei e do Infante D. Pedro, o Marquez de Sande voltou a Portugal, um sopro de fundada esperança de victoria definitiva veio encontrar no reino, em caminho de collocar-se á ilharga das primeiras nações da Europa.

Era absoluto o mando do Conde e já por ninguem contestado seu valimento. O Conde de Athouguia retirára-se, e um ataque de melancholia, que lhe sobreviera, punha-o ás portas da morte; Sebastião Cesar padecia no desterio as consequencias de sua demasiada agudeza.

Tudo mandava o Castei Melhor e em todas as côrtes da Europa produzia assombro a lucta que sustentava gloriosa contra o poderoso inimigo.

Conversavam o famoso diplomata e o ministro de D. Affonso.

-- Os successos da campanha seriam por si bastantes para demonstrar vosso alto valor, dizia o Marquez.

-- Deus me tem ajudado, respondeu o Conde. Em tempos difficeis é que os homens se conhecem. Quantos se teem agora revelado! Muito deve o reino a V. Ex.ª tambem, pois não é apenas nos campos de batalha que a victoria tem sido por nós. O novo auxilio, que S. Majestade Luiz XIV nos promette, a V. Ex.ª o devemos. O reino tem feito os esforços que lhe foram exigidos por circumstancias terriveis, mas muito breve receberá o premio, vendo incontestada sua independencia.

-- Consta-me que o Marquez de Caracena, quando atravessou a França, vindo de Flandres, para tomar o commando do exercito castelhano, criticára, conversando com alguns officiaes francezes, o grande erro de seus antecessores, dizendo que deveriam ter marchado immediatamente sobre Lisboa, em vez de se entreterem a cercar as praças que encontravam no caminho.

-- Não ha duvida, repondeu o Conde, que por esse motivo padeceram suas derrotas os generaes D. Luiz de Haro em Elvas o D. João d'Austria em Evora.

-- E' formidavel o exercito que em Hespanha se está organisando. Sem outra guerra exterior e podendo ser auxiliado pelo imperio agora, livre dos turcos, D. Filippe IV mandou vir alguns mil homens de Italia, Suissa e Allemanha, que se juntarão ás tropas do Caracena. Como se não fôra bastante, o traidor Duque de Aveiro aconselhou que fôsse tentada uma expedição maritima contra Lisboa.

-- Sei dos planos do governo hespanhol. A frota deve reunir-se em Cadiz e a gente commandada pelo Duque tentará mais provavelmente desembarcar em Setubal, d'onde marchará -- se puder -- a reunir-se ao exercito que haverá atravessado a fronteira.

-- E não temeis...

O Conde de Castel Melhor sorriu-se e o Marquez não terminou a pergunta.

-- Confio na minha boa estrella.

--Tão só?

-- Confio nos portuguezes. Quando foi preciso, sempre os encontrei promptos a derramar o sangue pela independencia, que é o que mais amam no mundo. Para que apresentar-vos provas? Os proprios homens da ordenança sabeis que prodigios teem obrado. Ao só denodo das nossas tropas quanta vez temos devido a victoria! Recordae-vos das linhas d'Elvas; apenas gente bisonha levava comsigo o Marquez de Marialva. Hoje temos verdadeiros soldados, e não ha episodio de batalha em que talentos militares se não revelem, por tal maneira que excellentes generaes teremos, muito breve.

-- O Marquez de Caracena vem de Italia costumado a vencer.

-- Tambem D. João d'AustrIa -- para não fallar de tantos outros que viram aqui despedaçadas suas coroas de loiro -- vencêra em Napoles e Barcelona, combatêra ao lado de Condé e não temêra medir-se com Turenne. Pois fugiu no Ameixial.

-- Tornaes-me a esperança a meu coração. Mas não existem entre os cabos do exercito certas rivalidades perigosas?

-- Não. Gil Vaz Lobo desistiu de suas queixas e foi nomeado governador de Setubal, posto arriscado, visto ser o porto mais ameaçado pela esquadra castelhana. Schomberg ficará com o exercicio de mestre de campo general e o titulo de governador das armas. D. Luiz de Menezes continuará em seu posto de general da artilharia. Convenceu-o El-rei de quanto eram seus serviços indispensaveis quando se via ameaçado o Alemtejo por um novo, poderoso exercito. Eu ajudei ás pazes entre D. Luiz e o Marquez de Marialva.

O Conde sorriu-se tristemente. Dizia-lhe o coração que em luctas maiores havia de entrar um dia contra inimigos mais temiveis que o Marquez de Caracena. Não faltavam ambiciosos na côrte.

O Marquez de Sande fingiu não ter notado a nuvem que sombreara o rosto do ministro.

-- Tendes confiança nas fortificações do Alemtejo? perguntou-lhe.

-- Algumas praças poderão resistir longo tempo, outras o valor dos soldados ns saberá defender. Estremoz, em que puz meu maior cuidado pela sua posição no centro do Alemtejo, muito deve embaraçar os castelhanos.

-- Não socega V. Ex.ª, sr. Conde.

-- Os portos de mar todos estão defendidos; augmentei a guarnição do Lisboa; mas, como no Alemtejo é que deve, creio eu, decidir-se a sorte do reino, chamei de Traz-os-Montes o Conde de S. João, que virá acompanhando quatro troços de infantes e quatorze companhias de cavallo; da Beira virão quinhentos cavallos e mil e quinhentos infantes commandados por Pedro Jaques de Magalhães, cujo só nome faz enfiar o Duque de Ossuna; de Lisboa marchará meu irmão com quinhentos homens de cavallaria e dois mil infantes.

-- E onde achastes recursos para tanto? disse o Marquez. Por isso cresce a vossa fama em toda a Europa e é vosso nome venerado em todas as côrtes.

E ficou se a contemplar com respeitoso espanto a juventude d'aquelle homem que iria talvez tornar Portugal a seus antigos tempos de esplendor.

-- Muito haveis alcançado.

-- Em vós encontrei sempre, sr. Marquez, o mais valioso auxiliar; a vós muito deve o reino de seus progressos pelas allianças que alcançastes para a familia de El-rei. O casamento do sr. D. Affonso com a Princeza D. Maria Francisca Izabel de Saboia...

O Marquez interrompeu-o.

-- Perdoe-me V. Ex.ª uma pergunta. E' um escrupulo de consciencia que...

-- Adivinho, disse o Conde. A fama d'El-rei...

-- Não me refiro a extravagancias proprias da mocidade, ainda que pouco favoreçam o brilho da opulenta corôa que lhe estaes preparando. E' de crer que as virtudes da Rainha e sua formosura contenham o marido dentro dos limites, pelo menos apparentes, de seu dever.

O Marquez de Sande não sabia como explicar-se em termos que não offendessem aquellas paredes do paço em que se achava. Sorrindo, continuou:

-- Se eu fôsse o Marquez de Cascaes, que tem licença de fallar em bom portuguez...

Titubeou ainda um pouco.

-- E' fama geral entre o povo, disse por fim, que não deve El-rei casar-se, porque...

O Conde de Castel Melhor córou ligeiramente.

-- Queira V. Ex.ª acompanhar-me.

Saíram da sala e entraram nos quartos que serviam de residencia ao Conde e á familia.

Sentado no chão, batendo enthusiasmado n'um tambor, estava o pequenino Affonso, que, estranhando o Marquez, deu com a vaqueta n'um dedo e se poz a fazer beicinho. Era gordo, lindo, com os cabellos loiros muito encaracolados sobre a testa. O pae, correu para elle, beijou-o, consolou-o.

-- E' meu filho, disse. Desculpae-me.

E, voltando-se para a criada:

-- Vêde não faça muita bulha; não vá com tantos rufos acordar o outro.

E, pé anto pé, acompanhado pelo Marquez, que o mysterio intrigava, entrou n'um quarto ao lado.

-- Adeus, ama, disse a uma rapariga muito formosa, que se erguêra ao entrarem no quarto os dois fidalgos. Está dormindo?

A ama approximou-se d'um berço, descerrou as cortinas de seda, levantou cuidadosamente os lençoes arrendados e mostrou ao Marquez de Sande uma creancinha de oito dias, que o maravilhou por suas graças. As feições, ainda que mal definidas, certo geito da bocca, o desenho da sobrancelha, eram como o esboço das linhas purissimas de Maria da Boa Hora.

O Marquez interrogou o Conde com um olhar, e este respondeu-lhe em voz muito baixa, como em segredo:

-- Um filho d'El-rei.

A ama sorria maliciosa. Não o havia ella de saber!... Não vira como El-rei o beijava e que horas passava ali, de joelhos, ao pé do berço?

-- N'esse caso... disse o diplomata com seus escrupulos mais socegados.

-- Mentiu a voz do povo, como V. Ex.ª vê, concluiu o Conde.

O outro cá fóra continuava a tocar tambor e o pequenino dormia n'uma paz tão serena que os dois homens commoveram-se.

-- Pobre creança! disse o Conde comsigo.

Fez um gesto convidando o Marquez a acompanhal-o. Voltaram á sala.

Mas o Castel Melhor vinha preoccupado. Pouco antes da chegada do Marquez de Sande, fôra avisado de que o Infante D. Pedro, sem que houvesse de tal decisão uma suspeita, declarára resolutamente recusar-se a casar com Mlle de Bouillon. Era a noiva que lhe destinavam sobrinha do marechal Turenne, que fôra o mais poderoso auxiliar da politica portugueza na côrte de França. Não sabia o Conde como participal-o ao diplomata, que tomára tanto a peito a causa de Portugal junto de Luiz XIV e que tão facil abrira seu caminho afagando ambições do grande marechal.

Adiára o Conde as explicações, tão difficil se lhe antolhava o primeiro passo, tão receoso o punha não fosse o Marquez recusar-se a voltar á côrte de França, levando ao melhor amigo de Portugal, a desillusão que ao reino poderia trazer fataes consequencias.

Gosava Turenne do maior valimento junto d'El-rei de França e era muito para temer o desabrimento com que decerto receberia o portador de tão má nova.

-- Socegastes minhas inquietações com respeito ao casamento de El-rei, disse o Marquez como alliviado d'um grande pezo. Conversemos agora.

Mas logo no Conde notou um enleio tão visivel, que, habituado como andava a estudar a significação de meias palavras e até de pequeninos movimentos o gestos irreflectidos, sentia que se lhe aportava o coragão receoso.

-- Recusaria o Infante?... perguntou a medo.

-- Recusa, respondeu o Conde, alliviado por já não haver de procurar termos com que suavisasse a declaração.

-- Mas!...

-- Tem razão para todo seu espanto, que foi o meu egual ao de V. Ex.ª. Ha poucos minutos me avisou o sr. Infante de que razões particulares se lhe offereciam que o obrigavam a dilatar qualquer resolução. Ignoro quaes sejam.

-- Mas sabe S. Alteza que difficuldades me acarreta e o perigo a que vai talvez expôr o reino?

-- Não o desconhece decerto. Confio, porém, no valor d'El-rei junto de seu irmão, que deixará persuadir-se. Hoje mesmo lhe fallará a meu pedido. Conte V. Ex.ª com todos os meus esforços para que ao marechal Turenne não seja dada uma prova tão cruel de ingratidão.

Enfiára o Marquez de Sande. Costumado andava a combater contrariedades; nenhuma maior do que esta se lhe offerecera em sua carreira politica.

Illuminou-lhe o rosto um clarão de esperança, que lhe pôz lisas de repente as rugas em seu rosto formadas.

-- Algum amor?... perguntou.

O Conde, sem abandonar o ar apprehensivo, encolheu os hombros.

-- Fallareis com El-rei? tornou o Marquez.

-- Hoje mesmo.

-- Esquecei por instantes o Caracena e as fortificações do Alemtejo; maior inimigo do bem d'este reino temol-o talvez abrigado aqui, n'estes paços.

Saíram.

O Conde foi procurar El-rei em seus quartos.

D. Affonso acabava de vestir-se para assistir na tribuna da capella aos officios da semana santa.

Estava alegre.

-- O pequeno? perguntou logo.

-- Agora o deixei, respondeu o Conde de Castel Melhor. Dormia, que parecia um anjo descido do céo para nos encantar.

-- O retrato da mãe! disse El-rei como enlevado. Quem me déra ser um lavrador, um rustico, um mendigo, e que me deixassem gosar minha ventura!. . .

Ser rei!... Todos fallam no que mandamos e não fazemos mais que obedecer! Entretanto ha dias bons.

E, de repente, lembrando-se:

-- Da Calcanhares tens tido noticias?

-- Senhor, não, disse o Conde com uma inflexão de impaciencia na voz. Henrique Henriques de Miranda levou-lhe, ha dias, a mezada que V. Majestade lhe ordenou.

-- Tenho-a esquecido, coitada, e é talvez ingratidão, porque afinal...

Reparou no rosto severo do Conde e interrompeu-se

-- Que tens? Já, para não vêr caras de palmo, mandei retirar toda a gente, e aqui me vês sósinho com o Braz. Quando deixará de me apparecer teu rosto de todas as manhãs com que vens agoirar-me o dia? Más novas de Hespanha?

-- De Hespanha não, meu senhor. Para as tropas do Marquez de Caracena sobejam soldados em Portugal.

-- Pois, se temos soldados contra o Caracena e o meu Joannico dorme como um anjo, que mal nos ameaça?

-- Vosso irmão, senhor...

-- Lá temos queixas contra o desgraçado Pedrinho! E' sestro agora. E' novo, sente o sangue a correr-lhe nas veias, tem forças e tem saude. Assim eu... Mocidade!... E eu sou um velho!

Sacudiu o pensamento que o attribulava.

-- O pequenino!

Voltou-se outra vez para o Conde.

-- Vamos, dize, que novas proezas commetteu o Pedro, que obrigam uma patrulha ou algum burguez da cidade a terem a audacia de queixar-se?

-- Cumpre-me participar a V. Majestade que S. Alteza nega seu consentimento ao casamento projectado com Mlle de Bouillon e que tão conveniente era para bem d'este reino e segurança da corôa de V. Majestade.

-- Nega!... exclamou El-rei convulso de colera.

Mal podia articular as palavras. Os assomos do irmão revoltado contra o poder real levavam-lhe a ira ao extremo.

-- Pois que prisões tem seu coração que se comparem a estas minhas? E não vou eu sacrificar-me? E não acceitei eu para esposa uma mulher que não conheço?

E batia no peito, orgulhoso de seu amor, orgulhoso do sacrificio que pelo reino dizia praticar.

Saíu do quarto, ainda abotoando o gibão, sem espada, com os cabellos revoltos. Encontrou o Infante que o esperava á porta da capella, e foi na tribuna que, dirigindo-se-lhe em altas vozes, lhe perguntou se havia esquecido que elle, rei, tambem tratára seu casamento e se eram laços aquelles que principes dignos de tal nome costumassem desatar.

O Infante esperava o impeto; respondeu serenamente:

-- Sempre foi costume no mundo dissolverem-se desposorios.

El-rei vermelho de colera continuou, sem que lhe importasse o cantochão dos padres lá em baixo na egreja, nem que o ouvissem os officiaes da casa:

-- Pedro, o que resolveste para meu mal foi por industria de minha mãe!

Estremeceram todos. No pulpito um frade, com um tom de voz enternecido, dizia palavras de Christo no evangelho da paixão.

Andava-lhe atormentando as noites aquella suspeita: a mãe que ainda lhe queria mal, que o perseguia lá das trevas onde se escondêra! Desafogava emfim!

O Infante conteve-se. Respondeu alto para que todos o pudessem ouvir tambem:

-- Da doutrina da Rainha, minha mãe, mais não aprendi do que acções iguaes á grandeza do meu nascimento.

-- Ou acceitas o que te proponho ou mandarei que te mettam n'uma torre!

-- Póde meu rei castigar-me como entender, respondeu o Infante altivamente; nunca terá imperio para persuadir minha vontade.

-- Pedro!

E El-rei caminhou para elle. Interpoz-se o Conde de Castel Melhor.

-- Senhor! Attendei pelo menos ao sagrado do logar!

O Infante calou-se.

Terminado o officio, ordenou El-rei pelo secretario de Estado aos dois gentis-homens da casa de D. Pedro, Simão de Vasconcellos e Sousa e D. Rodrigo de Menezes, que reduzissem o Infante a acceitar o casamento proposto ou que se daria por mal satisfeito de seu procedimento d'elles se o não conseguissem.

Mais exasperado ficou D. Pedro ao saber da missão que traziam. Mandou immediatamente voltar Simão de Vasconcellos com resposta que continha um ultimo e definitivo desengano.

-- Não!

E mais não disse.

Simão de Vasconcellos curvou-se e saíu.

O Infante olhou para D. Rodrigo. Temia-se agora do irmão do valido omnipotente.

-- Senhor! disse-lhe o gentil-homem, percebendo que D. Pedro procurára achar-se só com elle. Ponderosos motivos imperaram decerto no animo de V. Alteza, afóra os que houve por bem allegar para decisão que nos causa tamanho espanto.

O Infante passeava pelo quarto, com o semblante carregado, de braços cruzados, os labios tremulos, o olhar faiscante.

-- Se tenho motivos!... disse depois d'um longo silencio. Tenho o melhor d'elles, a revolta de meu coração!

-- Um amor que n'elle vos nasceu?

E D. Rodrigo sorriu-se.

Ou conseguiria sem mais auxilio que sua prudencia e sagacidade o que lhe ordenára El-rei, com desaire para Simão de Vasconcellos, ou receberia a confidencia do Infante, talvez de utilidade para seu futuro.

-- Perdôe-me V. Alteza. A razão seria das melhores a apresentar, se houvesse princeza na côrte de Lisboa que...

O Infante olhou para elle. Lia-se-lhe nos olhos negros, scintillantes de irrequieta mocidade, a ancia de desabafar.

D. Rodrigo continuou:

-- Quem pode V. Alteza conhecer que seu amor lhe mereça e tamanho que o obrigue a tão audacioso passo?

Parecia querer convencel-o a desistir; obrigava-o a revelar o segredo.

-- Se nunca meus olhos a viram! disse o Infante.

Foi sincero o espanto de D. Rodrigo perante a estranha confisscão.

-- Mas como...?

D. Pedro adivinhou-lhe a pergunta.

-- Pelo muito que suas perfeições ouvi encarecer, porque horas e horas passei na contemplação de seu retrato e nunca minh'alma senti presa de tal maneira, porque o odeio... a elle, porque uma só mulher amo na vida e amarei para sempre!

-- E é...? perguntou D. Rodrigo não podendo dominar um visivel terror.

D. Pedro chamou-o, levou-o por um braço para longe da porta, como receoso que pudesse alguem ouvil-o, e, muito baixo, com tons na voz que diziam odio e diziam paixão, murmurou:

-- A que vai ser minha irmã... a Rainha... Maria Francisca de Saboia!

CAPITULO XI

Montes Claros

-- Parece lo quiere Dios! disse D. Filippe IV de Castella, deixando caír das mãos a carta em que o Marquez de Caracena lhe declarava o desbarato do exercito.

E, recolhendo-se, mais palavra não pronunciou, ferido mortalmente em sua alma.

Sabia que nem a todos, na propria Hespanha, desagradára a noticia. Os parciaes de D. João d'Austria, que formavam numerosa facção, eram offendidos da confiança que mereceram ao governo os talentos militares do Marquez. A derrota de Montes Claros, a fuga do Caracena que, acompanhado pelo Duque de Ossuna, do alto da serra da Vigaria assistira, sem risco pessoal, ao desastre soffrido pelos castelhanos, faziam esquecer, por sua maior importancia, o mao successo do Ameixial. Essa consolação levaria El-rei para o tumulo, o muito que amava Castella a seu filho. Mas que luctas previa a desencadearem-se, logo depois de sua morte, entre os partidos da Rainha e de D. João, sempre mal visto pela madrasta!

Assim vencido, assim desgraçado, decrepitou para o tumulo o herdeiro de Carlos V.

-- Parece lo quiere Dios!

Deus o quizera.

Quanto mais o Conde de Castel Melhor pensava no milagroso successo, mais a convicção se lhe arreigava d'uma protecção divina.

A Marqueza, a Condessa e D. Joanna de Tavora haviam passado horas na capella, rogando o auxilio do céo, temendo que o affastasse das armas portuguezas a falta de fé de Schomberg, que não se havia alimentado com o suave leite da religião catholica, como disséra o Caracena em sua oração aos soldados, animando-os para a batalha.

Mas Deus estivera com Portugal, apesar do herege.

Foi tanta a diligencia que pôz Simão de Vasconcelos em trazer a nova de mais uma grande victoria, que, no dia seguinte ao do combate, ás sete horas da tarde, entrava no paço, radiante de alegria.

El-rei e o Infante baixaram logo á capella rendendo graças ao céo por tamanho beneficio. Pelas ruas cheias de gente, que manifestava ruidosamente seu jubilo, acompanharam o Santissimo até á Sé, onde prégou o bispo de Targa.

Grande estrago haviam soffrido as forças de Castella. Poucos seriam os mezes que sobravam de vida a El-rei D. Filippe, que levára seu reino á maior ruina só por desejar a ruina de Portugal. Seria aquella a ultima grande batalha, a definitiva victoria?

O Conde de Castel Melhor sentia mais firme o chão que pisava.

E aos serões, com seu irmão e as três senhoras, não se cançava de inquirir pormenores e de commentar com orgulhoso contentamento a victoria e suas consequencias.

Toda a acção particular o interessava, conservando na memoria os nomes dos mais valentes officiaes. Meditava sobretudo em tantos erros commettidos, milagrosamente transformados pela mão de Deus em proveito das armas portuguezas.

Enthusiasmava-o o valor dos soldados. Ah! se no mais lhe fosse dado confiar assim!

Saíra o Caracena a sitiar Villa Viçosa com quinze mil infantes, sete mil e tantos cavallos, quatorze peças, dois morteiros, muitos instrumentos de expugnação, munições e carruagens de mantimentos.

Era villa aberta, mais não tendo que um castello antigo de muito irregular defeza.

Oito dias resistiram n'elle os portuguczes ao melhor exercito que de Hespanha atravessára a fronteira, até que o Marquez de Marialva saíu de Extremoz para vir em auxilio dos cercados e se encontrou em Montes Claros com os soldados do Marquez de Caracena.

-- Muitos erros commetteram os castelhanos! disse o Conde, rememorando toda a historia da batalha.

-- Muitos! disse a Marqueza, lembrando-se de velhos tempos e sentindo o sangue guerreiro a galopar-lhe nas veias.

As outras senhoras sorriam. Não se falava em batalhas que sua opinião não dissesse a viuva do Conde D. João.

-- O primeiro e maior de todos foi deixarem Villa Viçosa e acceitarem a batalha que o Marquez de Marialva lhes ganhou em Montes Claros, a meio caminho de Extremoz para a villa. Esqueceram-se das difficuldades de terreno que haveriam de embaraçar o nosso exercito paia levar soccorro aos sitiatiados: vinhas, vallados, muros e todo o arvoredo da tapada.

-- Quem bem conhece aquellas fortificações, disse Simão de Vasconcellos, pasma de como, por mais d'uma semana, puderam defender-se os portuguezes, sempre rebatendo os expugnadores em todos seus assaltos, dia e noite. Verdade é que a mina que dois dias levou a abrir contra a muralha da villa velha, ao dar-se-lhe fogo, só fez damno...

E não pôde deixar de rir-se.

-- A quem? perguntou D. Joanna de Tavora.

-- Aos officiaes e soldados castelhanos que se achavam mais perto e lá ficaram mortos.

-- A mão de Deus! disse a Condessa.

-- Tens razão, minha filha, continuou a viuva. Em tantas occasiões a vêmos! Logo n'esses dias, em que tanto precivamos de auxilio, chegaram os mil soldados francezes que ajudaram Schomberg a compôr os terços d'aquella nação. Nem tiveram os homens, coitados, o descanço que mereciam depois de tão longa viagem, e logo marcharam para o Alemtejo.

E disse o Conde:

-- Saíu de Badajoz o Marquez de Caracena mais cedo do que devia. O plano meditado d'um desembarque de tropas em Setubal, que dividiria o nosso exercito, era bem combinado.

-- Mas não saíu de Cadiz a frota, porque se demoraram na viagem os galeões da America carregados de prata. Era a ancia da victoria tanta, que não quiz o general ouvir as razões do sargento maior, D. Manuel Garrafa, que o aconselhava a que não deixasse o quartel. Desordenado encontraria ou não o nosso exercito; desordenado por certo viria o seu.

la-se exaltando a Marqueza á medida que falava.

-- E' que não sabia o Caracena, envaidecido por outras victorias mais faceis, que havia de encontrar pela frente o Marquez de Marialva, Pedro Jaques, o Conde de S. João, D. João da Silva, D. Luiz de Menezes, Diniz de Mello e Castro... e tu, Simão, meu filho.

Puzera-se de pé. Ao terminar a resenha dos valentes, beijou o filho na testa.

-- Esqueceu-se de Schomberg, minha mãe.

-- Já temos noticia certa das perdas que soffreram os inimigos, disse o Conde: quatro mil mortos e seis mil prisioneiros; tomámos-lhe tres mil e quinhentos cavallos, quatorze peças, dois morteiros e oitenta e seis bandeiras.

-- Gloria é tua, mais que de todos os outros! disse a condessa olhando para o marido apaixonadamente.

D. Joanna de Tavora abespinhou-se.

-- Os que arriscaram a vida merecem maior gloria.

-- A vida! disse sorrindo Simão de Vasconcellos. Do risco em que a tive generosamente me pagaram tuas palavras que em teu coração nasceram. Na ultima carga que demos contra os hespanhoes já desanimados, sabes tu em que eu ia pensando?... Em ti e em nosso filhinho que está para nascer, em ti que por mim resavas, no filho que me ha de abençoar porque lhe deixo um melhor nome.

-- Um melhor nome...! disse o Conde. Entre os prisioneiros está D. Diogo Correia, general da cavallaria castelhana, que não deu soccorro, como devia, ao Principe de Parma.

-- Elle nos tornou a victoria mais facil, que não fôra seu erro...

-- Dize antes seu crime. Esqueceu o que devia a si e a seu rei, para que não puzessem em Hespanha o Caracena acima de D. João d'Austria, de quem D. Diogo Correia é ferrenho partidario. Intrigas de côrte, que dão cabo d'um reino e o levam á sua ruina!

Calou-se um instante; esteve meditando. Uma sombra de tristeza passou-lhe pelo rosto com a rapidez d'um relampago.

E para mudar o curso a seus pensamentos, perguntou:

-- E' verdade, e Manuel Furtado, que levaste comtigo?

-- Um heroe!

CAPÍTULO XII

Dias negros

Tinha El- rei passado a Salvaterra no principio do anno, como costumava.

Mas toiros e caçadas não sabiam distrahil-o.

El-rei andava triste, preoccupado. Tão novo, e a sentir-se cada vez mais velho.

Foi grande o contentamento de Simão Peres quando recebeu ordem de levar a Calcanhares para Benavente.

-- Grande novidade ! exclamou o rufião entrando em casa e brandindo alto a carta de Henrique Henriques.

A Calcanhares levantou preguiçosamente o busto, voltou-se, fincou os cotovellos na cama e encostou a cabeça ás mãos pequeninas, que se lhe perderam nos cabellos emmaranhados.

-- Que temos?

-- Voltou o juizo a S. Majestade!

Ella abriu muito os olhos.

-- Quer-nos em Benavente!

-- Em Benavente!

-- A dois passos de Salvaterra. Upa acima, e toca a vestir!

Nunca El-rei saíra de Lisboa com mais luzido acompanhamento, que era a maior parte da nobreza e da côrte. Mas El-rei andava triste, dormia mal as noites, sentia sempre um receio que lhe difficultava o respirar. Quanta vez viu na cama nascer o dia, tantos phantasmas negros lhe andavam pelo quarto a gemer soturnos prognosticos!

Andava triste, mas sem razão.

As armas portuguezas continuavam victoriosas em todas as provincias, mas o Marquez de Caracena, querendo mostrar á côrte de Madrid que era homem para emendar o erro de Montes Claros, apenas se atrevendo a fazer entradas em pequeninos logares abertos e despovoados, mandava as gazetas castelhanas dar-lhes titules de grandes cidades. E, emquanto assim procurava com mentiras livrar-se do descredito, o Conde do Prado, o Conde de S. João, Pedro Jaques de Magalhães continuavam triumphantes. O Conde de Schomberg com dois mil cavallos e dois mil infantes saíra de Serpa e entrára nove leguas pela Hespanha dentro. Assim conquistára as villas de Alcaria de la Puebla e de Paymogo.

Bem sabia o Conde de Castel Melhor que nSo deviam as armas portuguezas de ficar ociosas para que mais gloriosa e breve a paz se conquistasse.

Era grande o interesse que a Infanta portugueza, Rainha de Inglaterra, tomava junto de seu marido para que protegesse os direitos do Portugal vencedor; não descançava na côrte de França o Marquez de Sande, recebido secretamente por Luiz XIV, que lhe dava provas do mais subido apreço. A declaração de guerra entre os dois paizes, ambos interessados em serem medianeiros da paz de Castella com Portugal, alterou uns tempos o animo dos ministros, finalmente socegados com a nova de que saíra da côrte de Madrid em direcção a Portugal o embaixador inglez junto da Rainha regente, o qual vinha propôr a El-rei meios de ajustamento entre as duas corôas. Breve de França devia de vir a Portugal o abbade de Saint-Romain e toda esperança havia de que a bom accordo chegariam todos.

E entretanto El-rei só um ouvido distrahido prestava ao Conde, que lhe dava conta de como os negocios corriam por suas mãos e que esperanças o alentavam.

-- Isso é comtigo, é comtigo. Estimo. Obrigado.

E, quando chovia, mandava na lareira accender o lume, e queria que o deixassem sósinho na grande sala, só com seu pensamento.

Ia casar!... Punha-lhe terror aquella ideia. Um dia d'aquelles, seria assignado o contracto de seu casamento. E não seria uma comedia infame que elle assim estava consentindo?... Era elle homem para casar? Porque haviam assim de tel-o obrigado? Era tão feliz com a Falcôa!... Porque não o deixavam em socego, quieto em seu amor? Se havia de perder a unica mulher que deveras amava no mundo! Não quizéra ella acompanhal-o... Depois que seu casamento ajustára, mais d'uma vez a encontrára chorando. Aquella, sim, estimava-o, e elle a ella mais que a tudo n'este mundo!

E animou-o uma esperança repentina. Tinha um filho!... A velhice de que tanto se queixava, seu maior mal na vida, interrompera-a uma hora de alvorada; a coroa de espinhos milagrosa mão lh'a soubera cuidadosamente affastar do coração por instantes, do coração exangue. Tinha um filho!... Não era perdido para sempre, não! Outro filho de seu matrimonio lhe nasceria um dia, herdeiro do throno.

Se para sempre iria perder a Falcôa?

Rogara-lhe ella, chorando, que lhe deixasse em casa o filho, que lh'o désse por aquelles dias, para que vivesse com elle, o beijasse muito, lhe lavasse com suas lagrimas os pésinhos côr de rosa.

-- Tem ciumes da Rainha! pensava D. Affonso com ternura e certa vaidade.

Despedira-se d'ella affectuosamente.

-- Até á volta, minha filha.

-- Até á volta.

Foi-se embóra a pensar em seus encantos; ella pensava no filho e em Manuel Furtado.

A Lindosa entrou concentrando uma furia.

-- Porque não fôste com El-rei?

-- Porque não quiz.

A velha calou-se. Bem sabia por experiencia de quanto era capaz a sobrinha, possuidora da chave com que ella abria os cofres d'El-rei. Dominou-se, e logo lhe fez muita festa, chamando-lhe seu thesoiro, menina de seus olhos, abraçando-a, beijando-a.

Maria da Boa Hora aborrecida affastou-a com um gesto cançado.

-- Deixai-me. El-rei prometteu mandar-me o filho. Feliz, passarei com elle estes dias, tão feliz quanto possa... na minha vergonha.

-- Lá vens tu com palavrões que me irritam! Irra, que é demais! A tua vergonha!... Não vivesses escondida como freirinha carmelita, mulher não havia em Lisboa que não te invejasse!... Pois que te falta?

E, mudando de tom, ameigando-a como a criança.

-- Queres sabor?... Mandei hoje ao convento da Esperança buscar uma lampreia d'ovos para o teu jantar. E que não se esquecessem de lhe metter na bocca uma pera doce. Hein, filhinha? E havemos de beber juntas um copinho de vinho abafado com o prato que El-rei ficou de mandar-te... Quem tem uma tia muito bonita, quem tem?

Maria da Boa Hora sentára-se no chão, com os joelhos para cima e a elies se encostava, d'olhos muito abertos, pensativos, esgazeados.

Vivêra de mentiras quando não a tinham amado, vivia agora mentindo quando a amavam tanto! Uma tenção de vingança atirára-a outra vez para os braços d'El-rei, conspurcada, pedaço de lodo em que já não sentia alma a vibrar. Tão perto vira a morte, que lhe importava a vida?

Sorria com dó de si mesma.

Tanta! Julgára ella que podia, salva da morte heroica, accender uma fagulha de ciume no peito do antigo amante, quando a elle soubesse afogada no mesmo pantano de venenosos miasmas de que a salvára um dia! E foi com odio, e foi ainda com a mesma tenaz ideia de suicidio, que voltára áquella casa. Acordára-lhe novamente a alma um sentimento de piedade acceso á luz d'um amor que não murchára. O asco mudou-se em compaixão, e ella teve dó d'El-rei e ella teve dó de si mesma.

Um dia percebeu que ia ser mãe, e a alegria da Lindosa revelou-lhe em que abismo de deshonra ia mergulhar occultando a verdade. Lembrava-se, sim lembrava-se, com horror, d'aquellas ultimas horas em Evora, quando sentira junto de sua bocca o halito empeçonhado de Fr. Bernardo. E calou-se e a tanto punhal que a feria no mais sensivel da alma juntou o do remorso mais pungente que toda a miseria. Mentiria para salvar o filho de suas entranhas. E viu El-rei doido de alegria, abraçando-a, commovido, quando ella se estorcia em dôres, e viu o Conde de Castel Melhor entrar-lhe em casa e levar seu filho para o paço, c continuou mentindo!

Mas n'essa hora teve medo. O olhar do Conde fixou-a severamente e ella julgou vêr n'elle uma desconfiança. Para que deixára ir o pequenino para o paço, onde, por El-rei o sabia, tantas ambições afiavam os dentes e traições pela treva rastejavam?... Se havia de o pequenino ser victima...! Porque não disséra a verdade?

Mas se El-rei chorava de alegria? Se da bocca d'elle ao pequenino ouviu chamar o infantesinho?

E perguntava-lhe a Lindosa porque não acompanhára El-rei! Não. Era preciso que ninguem soubesse que ella existia ali. Só D. Affonso subia aquella escada, só o Conde havia sabido de seu segredo.

Fr. Bernardo, ameaçado por Maria da Boa Hora, contente com a generosidade de El-rei e as esportulas que a Lindosa lhe enviava, não ousava apparecer, mal suspeitando sequer o que se passara n'aquella casa tão miseravel por fóra, cada dia de maior luxo ornada em seu interior.

Em coisas negras scismava Maria da Boa Hora e tão alheada se mostrava do que a Lindosa lhe dizia com meliflua cantilena, que esta por fim zangou-se. Deu um nó no lenço e pôz-se a sovar o papagaio cada vez com peor lingua.

-- Mas onde é que elle vai aprender estas coisas?... onde?

-- Tia!... Pelo amor de Deus! disse, implorando socego, Maria da Boa Hora, que sentia a cabeça a estalar-lhe.

Que saudades lhe davam de Manuel Furtado! Deveria ter-lhe contado Pero Rolão o que em Arronches se passára e como lhe ella fugira. Onde estaria elle agora?... Talvez na casa do Salvador, com a Lourença, tão boa velhinha, pensando em D. Anna de Portugal e em quem tanto por elle soffrêra esquecido.

E pôz-se a recordar horas felizes, ella tambem esquecendo El-rei, El-rei que só d'ella se lembrava.

Nos maiores tormentos, nas maiores angustias, lembrava-se de Maria da Boa Hora como d'um refugio e do peso dulcissimo de seus braços meigos abraçando-o e do olhar piedoso com que serenava a dôr de sua miseria d'elle.

Desde que o Infante recusara o casamento que lhe propunham, nunca mais seus olhares se haviam com os do irmão cruzado, que não scintillassem como laminas de espada.

El-rei adivinhava que se urdiam traições em volta de seu throno e só confiava na guarda que lhe fazia o Conde de Castel Melhor. Os creados do Infante, receosos dos impetos colericos de El-rei, haviam, sob differentes pretextos, abandonado o serviço a que eram obrigados, e D. Pedro apenas era assistido pelo governador de sua casa, Simão de Vasconcellos, e seu estribeiro-mór, D. Rodrigo de Menezes.

A nomeação do novos fidalgos para seu serviço, requerida pelo Infante e que El-rei lhe negára, novo odio accendêra entre elles, tanto mais que bem sabia D. Affonso quanto sua má vida chamára sobre o Infante mais cuidadosa a simpathia de quasi toda a nobreza.

Caro a Rainha D. Luiza de Gusmão estava agora pagando a pouca ternura de que rodeára El-rei e a tentação em que deixára quasi caír-se de lhe tirar o sceptro e entregai-o em mãos do filho mais novo. Do pensamento de D. Affonso não lhe saía aquella ideia.

-- Minha mãe só me quer mal!... Minha mãe só me quer mal!

Queria convencer-se de que fôra em propria defeza que tão cruel com ella se mostrára. E seu maior tormento era aquella lucta interior em que vivia, a incerteza de sua vontade, de seus desejos.

Por isso chamára a Calcanhares, para se aturdir, para esquecer.

E foi uma alegria quando lhe disseram que ella chegára a Benavente. Os mesmos criados, que adereçaram o palacio em que deviam de ser alojados o ministro inglez e seu secretario, haviam recebido ordem para não menos luxuosamente prepararem as casas que viria habitar a amante de El-rei.

-- E a mim tudo me falta, e esquece meu irmão que sou de seu real sangue, herdeiro da corôa de Portugal! dizia o Infante D. Pedro, raivoso, a D. Rodrigo.

-- Que importa a vosso irmão, senhor, a pobreza de vossa casa? Não tem elle ouvidos para vossas queixas, brade muito embora aos céos a justiça que vos assiste. Quem devia attender-vos não quer; quem tudo manda, verdadeiro rei d'estes reinos, não é vosso irmão, e teme dar-vos força, não useis d'ella algema vez contra sua tyrania.

-- Que ouves dizer, D. Rodrigo, das faltas de meu irmão?

-- Que são muitas, senhor, e que a V. Alteza cumpre um dia pôr cobro a tanto escandalo.

-- Quem terei eu a meu lado?

-- Todos quantos não estão á ilharga de S. Majestade, os primeiros fidalgos de Portugal: meu irmão, Marquez de Marialva, o Conde de Villa Flôr, o Conde da Torre, o Duque de Cadaval, D. Luiz de Menezes... quantos mais!

-- E em que se fia o valido para se atrever assim, contra a opinião de tantos e tão bons portuguezes, a continuar em seu governo absoluto?

-- Em que lhe não hade querer mal V. Alteza emquanto...

Calou-se um instante para dar maior valor ao que afinal se atrevia a confessar.

-- Emquanto...? perguntou D. Pedro.

-- Não me leve V. Alteza a mal que eu manifeste uma opinião que não é só minha.

-- Falla.

-- O Conde bem conheço o valimento de V. Alteza por Simão de Vasconcellos.

O Infante estremeceu.

-- Julgará o valido que ou sou dos que deixam dominar-se, esquecidos do que devem a seu sangue e nascimento?

-- Cega-o a vaidade em seus discursos.

E como n'esse mesmo dia o Infante voltasse novamente a exigir a casa com os fidalgos que indicára, El-rei encolerisou-se e outra vez julgou entrever a mãe, lá de sua clausura, a querer atormentar-lhe a vida, a querer abalar-lhe o throno.

Chegou finalmente o embaixador inglez que foi hospedado com a maior magnificencia. Antes, porém, já chegára de França o Abbade de Saint Romain, com uma carta de Turenne para o Conde de Castel Melhor em que da parte de Luiz XIV lhe dizia que, sabendo do grande desejo dos castelhanos em fazer pazes com Portugal, entendia que, sendo ella vantajosa e honorifica, devia de ser acceita; em caso contrario, assistiria a Portugal no que preciso lhe fosse com tropas, armadas e dinheiro.

Foi grande o contentamento do Conde, assim mais seguro de sua resposta ao embaixador de Inglaterra na côrte de Madrid.

Pouca demora teve a conferencia, porque disse o embaixador que estavam promptos os castelhanos a tratar da paz com declaração que seria não de rei a rei, mas de reino a reino. Não trazendo ordem para abrir de outra sorte o tratado, foi o embaixador despedido com muitas dadivas de grande valor.

-- Melhor, porque mais duras condições imporemos aos vencidos, disse o Castel Melhor a El-rei beijando-lhe a mão.

Mas D. Affonso respirava mais desafogadamente. Até que emfim era livro de todo o peso com que lhe haviam carregado a corôa n'aquelles dias! Mal anoiteceu, embora a chuva caísse em jorros, montou a cavallo e, sósinho, galopou para Benavente.

Ainda não vira a Calcanhares e precisava desannuviar-se. O Conde molestára-o com os seus conselhos; em Benavente, conforme lhe fôra contado por Henrique Henriques, o povo havia murmurado contra o luxo espaventoso com que se a Calcanhares rodeava e as insolencias de Simão Peres desvanecido com o quarto crescente em que via outra vez seu valimento; o Infante deixára caír d'alto, desdenhoso, certas observações a meia voz e começava a tratar mais friamente o governador de sua casa.

El-rei esporeava o cavallo pela estrada lamacenta, á desfilada sob as rajadas do vento sul.

Estava farto!... farto! Devia de ser a mãe, lá do cubiculo onde se encaixára, que ainda assim continuava tramando contra elle e impellia o irmão desrespeitoso e aliciava os fidalgos e açulava o povo.

Até que emfim podia espraiar-se!

A Calcanhares era formosa. Como por tanto tempo o esquecêra? Beberia com ella um bom trago de vinho.

Chegou encharcado.

-- Em que estado vindes, senhor! disse ella, a fingir-se pasmada de vel-o áquella hora e correndo para seus braços, rindo muito como encantada pela surpreza.

-- Ancia de vêr-te.

Simão Peres erguêra-se e, trigoso, tirava a El-rei a capa, e a cadeira mais ampla puxava-a para o lume, que na lareira crepitava muito alegre.

-- Senhor, aqui!

A Calcanhares, de joelhos aos pés d'El-rei, olhava-o com seus olhos muito vivos, que lhe animavam a elle o olhar mortiço.

-- E vós a queixar-vos! disse para ella Simão Peres. Quando vos eu dizia... Olhae se ainda vos tem amor!

-- Tinha saudades tuas, disse-lhe El-rei baixinho.

Ella envolveu-o todo num olhar cheio de lubricos desejos e, com as palpebras meio cerradas, esperou que elle continuasse a fallar-lhe, movendo mansamente a cabeça, como a implorar-lhe palavras de maior ternura.

-- Venho cear comtigo e trago fome, disse-lhe elle.

-- Luzia! gritou ella muito alegre.

A Luzia veio logo a correr e El-rei riu-se muito porque lhe ella chamou ingrato.

-- Deveres do meu cargo. Luzia, deveres do meu cargo, teem-me affastado...

E voltando-se para a Calcanhares:

-- Sabes lá que inferno tem sido!

Ella deu á bocca uma expressão piedosa.

-- Eu vos farei esquecer amargos que padecestes.

Havia leitão assado, lombo, chouriço com hervas e canja.

-- Canja de gallinha preta, que é a melhor, disse a Luzia. Parece que adivinhava que a havia de coser para V. Majestade!

-- E vinho! muito vinho! gritou Simão Peres. Vinho de Salvaterra, com fumos que sobem n'um galope pela gente acima!

-- Pois traze-me o vinho! disse El-rei. E' novo?

-- Ainda a ferver!

-- Traze m'o n'uma tigellinha de barro.

Simão Peres saíu correndo.

A Calcanhares approximou seus labios muito vermelhos dos labios d'El-rei.

-- Por onde andastes?

Elle fechou os olhos e não respondeu.

Simão Peres voltou.

-- Dá-lhe ura beijo, disse El-rei á Calcanhares, offerecendo-lhe o pucarinho de barro novo em que o vinho chilreava.

Ella tocou-lhe com os beiços, sorrindo, mostrando os dentes muito alvos.

-- Por onde? perguntou El-rei.

-- Por aqui, respondeu a Calcanhares mostrando o lado por onde bebêra.

E por ali o levou elle á bocca, e esvasiou o pucaro.

-- Luzia! gritou. Depressa ou morro de fome!

Mas já ella vinha correndo. Foi ama alegria. A Calcanhares batia palmas. Que bem cheirava a canja!

Chovia lá fóra a ceu rasgado; mas as chammas na lareira trepavam alto pelo tronco de azinho.

A Calcanhares sentou-se ao lado de El-rei, comendo com elle no mesmo prato.

-- Como chove! disse.

-- Que importa? Ao pé de ti, só tu no mundo existes!

Como elle se achava ali bem, despreoccupado, longe de inimigos!

A Luzia puzera sobre a toalha muito branca o leitão doirado, o lombo com rodinhas de limão, o chouriço de sangue a que Simão Peres com modos importantes de conhecedor arregalou a venta.

-- Mais vinho!... E á tua saúde, Calcanhares! disse El-rei.

Ella encostou-lhe a cabeça ao hombro.

Um cavallo, que vinha á desfilada, estacou á porta, de repente.

-- Que será? perguntou Simão Peres, com curiosidade.

Desceu.

-- E' gente má que vem roubar-te a meus braços, disse a Calcanhares.

-- Seja o que fôr, não saírei de ao pé de ti, respondeu El-rei beijando os cabellos loiros da amante.

Simão Peres voltou.

-- E' um fidalgo de vossa casa. Traz para V. Majestade uma carta urgente.

-- Manda entrar.

Foi á sala ao lado receber a carta. O fidalgo esperava. Mandou-o retirar.

-- Lê, disse á Calcanhares, entregando-lhe o papel para que o ella abrisse.

Simão Peres atalhou-lhe o gesto.

-- Não abraes!... E' uma carta de mulher!

Riram todos.

El- rei enchêra de novo o pucaro.

-- Cala-te! disse ao escudeiro.

Ella fingia-se amuada.

-- E se fôsse?... Quero vêr... quero vêr...

Nunca El-rei a vira assim tão appetitosa como n'aquella noite. Ha quantos mezes não a procurava!

Bebeu.

-- Como se está bem ao pé de ti!

E ella começou a lêr:

-- «Filho»!

-- De minha mãe! exclamou El-rei.

Que nova infamia lhe estaria preparando?... Quem lhe armára a traição tivera dedo para escolher a hora! Elle que dias e dias soffrêra, nem um minuto lhe davam de descanço!

E leu mais a Calcanhares:

-- «Fico em tal estado que duvidam os medicos da minha vida e eu com elles entendo que não posso durar muito...»

El-rei puzera-se de pé, pallido, tremulo...

A Calcanhares continuava a lêr; a voz tremia-lhe um pouco; mas elle apenas vagamente percebia uma ou outra phrase: -- «...Tudo vos digo, lembrando-vos que sou vossa mãe e tudo espero de vós, quando reconheçaes as obrigações com que nascestes... Aqui espero a morte entre as lagrimas d'aquelles a quem falto... Só a minha benção vos deixo, porque só esta tenho que deixar-vos...»

El-rei ficou silencioso largo tempo, d'olhos fitos no papel a tremer nas mãos da Calcanhares. Duas vezes encheu o pucarinho e o esvasiou.

-- Como chove! disse, parecendo alheio ao que passára.

Duas grossas lagrimas correram-lhe pelas faces. Desceu, montou a cavallo, correu á desfilada para Salvaterra.

-- Mais sobeja, disse Simão Peres com a bocca cheia de chouriço de sangue.

CAPITULO XIII

A Rainha-mãe

El-rei escrevêra á Rainha, promettendo-lhe partir quanto antes para Lisboa; escrevêra-lhe tambem o Infante. Foram portadores das cartas o Marquez de Gouveia e Simão de Vasconcellos.

«Fico de caminho com toda a pressa» , dizia El-rei a sua mãe. E, duvidoso, passeava pela sala, tiritando de frio dentro da capa encharcada. Os fidalgos esperavam ordens e elle coisa alguma decidia.

Voltavam-lhe as duvidas. Sentia n'alma, que até lhe fazia doer, o embate de varios impulsos e, de mistura, o remorso ainda indeciso de haver concorrido para maior crueza da morte que lhe annunciavam, termo da muito barbara enfermidade padecida longe dos seus, em casa inhospita, por quem nascera n'um palácio e em palacio devia morrer.

Duvidavam as lagrimas em subir-lhe aos olhos, os gritos em despedaçar-lhe a garganta.

-- Mais lume, que tenho frio, disse.

E continuou passeando, com os braços cruzados, fincadas as unhas nos seios.

Ainda sentia nos ouvidos vibrar a voz da Calcanhares, lendo-lhe as ultimas expressões ternas que a mãe lhe dirigia ás portas da morte. Parecia-lhe que, n'um pesadello, lhe dava requebros lubricos, acanalhados, com que a mulher perdida lhe fallava ás vezes, quando estavam sós. Aquella palavra «filho», que expressões tinha diversas, conforme os labios que a pronunciavam!

Sim, talvez a mãe houvesse tido razão, quando o quizera affastar do caminho de devassidões em cujo declive o via a despenhar-se, fria de susto, arripiada de horror. E elle então puzera-se contra a mãe!

Dirigia-se para a porta, ia dar ordem para que a toda a pressa se dispuzesse o bergantim para a jornada, quando o Infante D. Pedro entrou e El-rei estacou em seu proposito.

-- Minha mãe escreveu-te? perguntou.

-- Sim, irmão, respondeu o Infante.

E pôz-se a lêr:

-- «Filho. O tempo que me póde durar a vida é tão pouco, que por instantes me vejo acabar. Sou vossa mãe e, entrando do caminho para a sepultura...»

El-rei tremia. Esquecido das ternas palavras que lhe a mãe dirigira, mordia-o o ciume pelo que ella carinhosamente escrevia ao irmão. Sentiu outra vez accender-se-lhe o rancor nas entranhas.

Terminou sua leitura o Infante e disse:

-- Com sua benção me encommenda minha mãe o temor de Deus e a obediencia a V. Majestade. Peço-vos, senhor, que me deixeis ir beijar a mão que me aponta o caminho do dever, do qual, assim Deus me ajude, não saírei nunca.

-- Ireis quando eu fôr, disse-lhe El-rei seccamente.

O Infante retirou-se.

Entretanto, na casa de Xabregas, a rainha hydropica, depois de haver lido as cartas dos filhos, anciosa por vêl-os, alegrava-se. Mas tardavam. Chorava. lam-se-lhe os olhos embaciando com o sopro da morte, e, com tanta lagrima chorada, fagulha não restaria que os filhos accendessem para lhes dar luz com que pudesse vêl-os.

Perdêra a falla. Já mal ouvia, mas, correndo uma falsa voz que os filhos chegavam, ainda a percebeu, ainda ergueu a mão, lançando sua benção para a porta por onde haviam de entrar.

Foi seu ultimo esforço. Era ao cerrar da noite. A Rainha D. Luiza entrou na agonia.

Era já tarde, quando El-rei no dia seguinte partiu de Salvaterra.

O vento era de feição; em menos de uma maré poderia fazer-se a travessia.

Entrou no bergantim com o Infante, o Conde de Castel Melhor e outros fidalgos. D. Pedro chorava.

-- Esquecia-me!... disse El-rei, dando na testa uma palmada. Os musicos!... Quero commigo levar os musicos!

Ninguem se atreveu a contestar.

-- O vento é do sul; vai levar-nos o bergantim por sobre as aguas que nem uma gaivota nos apanha!

As ondas negras do Tejo gemiam fundamente e no céo corriam rolos de nuvens baixas e pesadas.

-- Vamos ter chuva, disse El-rei.

Reparou nas lagrimas do irmão e cresceu-lhe o rancor. Queria talvez roubar-lhe os ultimos carinhos da mãe como lhe roubára os primeiros! Antes chegar e encontral-a morta!

Avistou os musicos que vinham correndo. Mandou içar a véla. Partiram.

El-rei ía encantado com o temporal que havia de apanhal-os. Fallava com as gaivotas que fugiam para terra e apontava aos peitos brancos com o braço esquerdo e o indice estendido como para atirar-lhes. A meio caminho a chuva começou a caír com maior violencia e elle mandou ao homem do leme que bordejasse e aos musicos que se puzesaem cantando. Queria uma cantiga terna, das que lhe davam para scismar.

-- Senhor!... Senhor! disse-lhe o Conde em voz baixa.

Mas El-rei pôz n'elle severamente os olhos fitos e com os labios muito brancos pronunciou apenas:

-- Quero.

Era noite cerrada quando desembarcaram. Esperavam-os na praia impacientes os criados.

-- Depressa! depressa!... A Rainha está com o estertor!

Dobrados sob o chuveiro, com o vento a atirar-lhes as capas para a cabeça, subiram a escadaria do cães. No alto, El-rei fêl-os parar e disse-lhes:

-- Olhae. Foi ali que eu vi os enforcados.

E recordou-se d'essa noite e viu-se sob as janellas da mãe, cheio de remorsos. Deu-lhe de repente um pavor immenso ao lembrar-se das caras dos justiçados. Encostou-se ao Conde e murmurou:

-- Não tenho animo!... Não tenho animo!

O Infante passou-lhe adeante.

-- Pedro! chamou.

Entraram no quarto. A Rainha perdêra todo o acordo. Ouvia-se-lhe a respiração difficil, uns fervores que angustiavam. Ajoelharam todos. O quarto era quasi ás escuras, apenas alumiado por uma véla de cera ante uma Imagem do Senhor dos Passos. Só quebrava o silencio, nas pausas do temporal, o estertor da moribunda.

-- Vossa benção, minha mãe! gritou D. Pedro dolorosamente.

Uma dama approximou-se do leito, destapou a mão da Rainha que o Infante encheu de lagrimas. El-rei, muito pallido, ergueu-se, approximou-se do leito, tornou a ajoelhar, tocou com os labios na mão immovel e amargaram-lhe na bocca as lagrimas do irmão.

-- Vamos, disse.

E, saíndo com o Infante, foram-se no mesmo coche em direcção do paço.

-- Agora tenho medo, disse o Conde de Castel Melhor.

Simão de Vasconcellos olhou para elle.

-- Medo do castigo do céo.

Recostados nas almofadas do coche, o Infante soluçava e El-rei tremia do frio. Aquelle quarto soturno em que expirava a Rainha-mãe nunca mais lhe saíria do pensamento, havia de perseguil-o, constante scenario de todos seus pesadellos. Tinha medo!... Tinha medo!... Porque não corrêra logo a Lisboa, assim que a Calcanhares lhe havia lido as primeiras palavras da carta? Odiava agora aquella mulher!... Fôra a culpa só d'ella!... Porque não a calára elle como era seu dever? Porque haviam de labios affeiçoados ás palavras abjectas conspurcar phrases de tamanha ternura?

Repetia: -- «Filho!... filho!»

Aquelle irmão que ali chorava!... Senhor! Senhor!... Em quem havia de elle acreditar?

Avistou O Braz a correr ao lado do coche. Não era a primeira vez que em horas de desanimo lhe apparecia, tirando de toda sua miseria um bocadinho de piedade para a miseria do amigo. Reparou talvez que El-rei o tinha avistado e poz-se a sorrir para o coche illuminado pela luz da lanterna que o moço de estribeira levava e que, nos vidros rachados, estrebuchava ao vento de temporal.

Ao menos, tinha o Braz.

Fechou-se com elle no quarto, mal chegou ao paço. Deu ordem que ninguem entrasse.

-- Hoje não me deixes.

O Braz olhou para a porta, sacou da algibeira a navalha.

-- Não, não é de vivos que tenho medo, disse El-rei segurando-lhe o braço; é de phantasmas.

Então o aleijado começou a estorcer-se e a uivar devagarinho, e El-rei, tremendo de pavor, d'olhos saídos, com a respiração oppressa, atirou os braços trémulos para o maluco, a implorar-lhe baixinho que se calasse.

O Braz veio-se aconchegar a elle, e, muito triste, começou a gemer, sempre no mesmo tom, por muito tempo. Acalmou-se por fim.

O vento lá fóra bramia e a chuva chicoteava as vidraças. Estalou um trovão.

-- Ouve, disse El-rei ao maluco. Vamos saír a pé, os dois sósinhos. Quero que venhas commigo; quero-te a meu lado sempre.

E foi para casa de Maria da Boa Hora. Estendeu-se no chão ao lado do berço, onde o pequenino dormia, e ali ficou toda a noite a beijar-lhe a mãosinha côr de rosa e pedindo a Deus um milagre; pois lhe faltára a benção da mae, que o abençoasse aquella mão pequenina.

-- Joannico!... Joannico! Ao pé de ti não ha phantasmas!

E o Braz deitára-se ao pé d'El-rei e beijava-lhe devagarinho a capa, devotamente.

CAPITULO XIV

Duas cartas

De Pero Rolão a Manuel Furtado

Meu amigo:

Quinze ou vinte dias depois que esta carta chegue a tuas mãos, irei bater á tua porta e caír-te nos braços.

Nem imaginar podes com que alvoroço recebi a nova. Tenente da cavallaria de Lisboa!

O Conde de Schomberg não nos dá tres dias de descanço; andamos n'uma roda viva desde que o temos em Elvas. D'aqui a pouco já nem ha castelhanos n'estas paragens. Confesso-te que ando cançado e apraz-me ir vêr Lisboa adereçando-se para receber a Rainha. Dizem que é maravilha de formosura; mas não creio; maravilhas... ha uma só em todo o mundo, uma... ou duas.

O padre Ventura abraçou-me, coitado, muito choroso. E' que lhe faço muita falta. Cresce a tua importancia na côrte, porque só a ti devo certamente a nomeação que me deixou boquiaberto, como deves suppôr, mas muito mais do que o costume. Vê se arranjas para o homem um logar de capellão no paço. Elle está com uma linda voz, que é prenda de valor, e eu não queria d'aqui levar saudades.

Bem dizias tu que havias de trepar. Foi Montes Claros quem te accrescentou a fama. E eu na guarnição d'Elvas a jogar o monte com o padre Ventura! Cá me contaram teu denodo na ultima carga e que nenhum foi mais longe por entre a cavallaria castelhana. Só eu, se lá estivesse, havia de acompanhar-te aonde fosses, com risco dos meus dias... e das minhas noites. Sabes lá o que padeço depois d'um galope! Andar a cavallo engordou-me por má sorte, e fico sempre em lastimoso estado.

Levo toda a noite sem fechar os olhos e, como o padre os não abre senão depois que já o gallo cantou sete vezes, penso muito, penso n'ella e no meu tormento, e, ainda mais que o corpo, doe-me a alma.

Lisboa, com seus monumentos e muita mulher bonita, vae distraír-me d'esta ideia constante que me endoidece.

Quero ir comtigo ao pateo das comedias, e, em dia de procissão, has de acompanhar-me pelas ruas e dizer-me o nome de todas as mulheres que me encantarem, se alguma houver capaz de tamanho milagre depois de Consuelo Rodriguez.

Já vês, não me tenho descuidado, que até lhe sei o nome de familia. E' pouco para tamanho amor, mas, n'uma das nossas correrias por Hespanha, tomei lingua só para sabel-o.

Manda dizer se tens alguma rima boa para Rodriguez. Uma d'estas noites accordei o padre para lh'o perguntar e respondeu-me:

-- Não tivesse que dizer missa d'aqui a tres horas, como te responderia sei eu.

Lembro-me muitas vezes de Maria da Boa Hora. Que feito seria da desgraçadinha?

Adeus, Manuel Furtado. Que doido de contentamento lembrar-me que dentro em poucos dias te hei de ter nos meus braços, a não ser que, de joelhos a teus pés caído, os beije pelo muito que por mim fizeste.

Obrigado, meu rapaz, que até me parece que, desde a boa nova, penso menos na Consuelo.

Teu amigo

Pero Rolão.

Não te esqueças do padre, que talvez nos faça conta para nos entretermos em dias de chuva.

De Manuel Furtado a Pero Rolão

Pero amigo:

Não fui eu, foi a nossa aventura em busca da tua Consuelo Rodriguez quem te fez tenente da cavallaria de Lisboa, de que fui nomeado capitão. Mais não fiz que pronunciar teu nome e acclamaram-o. Foi D. Anna de Portugal quem fallou ao Conde da Torre que deseja deveras protege-te. Fica certo de que nunca deixará de pregar o muito que lhe deves.

Quando a conheceres verás deslumbrado o rosto d'um anjo, que até parece que d'elle sáe claridade! Marco com pedra negra os dias em que não a vejo. Quero-te aqui ao pé de mim, porque tenho ancia de desabafar. A alegria, que nos enche o peito, parece suffocar-nos ainda mais do que tristezas.

Mas d'estas já não sei fallar; se algumas tive na vida, esqueci-as. Parece-me que foram um sonho sonhado ha muito, que todo se desvaneceu no resplandor d'uma aurora.

Da desgraçadinha, como lhe chamas, nada mais sei do que tu. Quando em Evora a historia de sua aventura me chegou aos ouvidos e de como Arronches fôra pelos ares com suas muralhas, adivinhei qual era a mulher formosa que se disséra amante do Principe. Nem tu me puderas enganar. Mas se meu coração era já outro, outro o perfume que me era vida! Que feito seria d'ella?... A Lourença resa-lhe todas as noites por alma.

Boa velhinha! Se visses como anda alegre!

Noite não ha em que eu chegue de casa de D. João d'Almeida, que não a encontre, de olhar cheio de malicia e curiosidade, a querer saber o que houve. Anda em volta de mim, olha-me a soslaio, e eu calo-me e finjo-me preoccupado, e de quanto finjo lhe vejo no rosto a expressão exagerada pela sinceridade e seu amor por mim.

-- V. Mercê está doente? pergunta-me ella tão cheiasinha de cuidados que desato a rir.

Então offende-se, ralha commigo, quer bater-me. chama-me criança, e logo depois, como se criança eu ainda fôra, faz-me festas, beija-me, trata-me por tu.

-- Quem te viu e quem te vê! Ai! Manuelsinho, se fosse viva tua mãe!...

E já mais de vinte vezes me contou o que me diria minha mãe se pudesse adivinhar que eu havia de ser um dia marido da filha de D. João d'Almeida, commendador de Loures, alcaide mór de Alcobaça, veador da casa d'El-rei.

-- Mas, Lourença, onde sobes com teus sonhos? pergunto-lhe eu. Não sou mais que um soldado aventureiro.

E lá torna ella a zangar-se. Que sou parente da casa e que valho com meu fato novo muito mais que muito bons fidalgos, que tanto vale Furtado como Almeida e que se D. Anna de Portugal me não quizer...

-- Quer-me, Lourença, quer...

Capitão da cavallaria de Lisboa! Já me vejo mestre de campo d'um terço, a commandal-o no Alemtejo!

Acabaram -se as loucuras, Pero Rolão, ainda que d'ellas me veio toda a minha felicidade. Em delirio saí d'Evora correndo para uma morte quasi certa, em delirio outra vez acordei para a vida. Mas que differença entre um e outro!

Como estou grato a D. Pedro d' Almeida, que me acolheu em sua casa, que mais tarde me trouxe para Lisboa, que com a expressão de seus olhares me perdôa a altura a que ousei levantar os meus.

Ao escrever-te, recordo-me d'uma outra carta que, ha muito, para Elvas te rabisquei n'esta mesma secretária a que estou sentado. Que tormentosa era então minha vida e como agradeço a Deus a paz de que me rodeia agora!

Tu depois me disseste que não souberas decifrar os enigmas espalhados aos mil, n'aquellas linhas. Nem eu sabia o que passava em meu coração n'esse tempo, em que por amor odiava e na febre da paixão rangia os dentes.

Póde ser que d'esta vez tambem, me não percebas, que amor como este meu outro não ha no mundo. E' feito de paz, de esperança, de certeza. Se me proponho relembrar como n'alma se me infiltrou, sei apenas que foi em deliciosos momentos e tão suavemente como no halito perfumado d'um anjo carinhoso.

Isto, sim, é vida! E agora espanta-me como a pude levar tão fóra d'este anceio sem nodoa d' uma suspeita, n'este mesmo quarto em que hoje habito, a cuja porta vinham bater-me tantos espectros!

Onde vão elles agora!

Casa hoje El-rei em Paris por procuração enviada ao Marquez de Sande.

Deus lhe perdôe como eu lhe já perdoei.

Sim, é linda a Rainha, segundo affirma quem viu seu retrato. Não me encantou a descripção: olhos e cabellos negros. Mas gabam todos seus dotes de coração e de espirito, que a tornam, entre as princezas da côrte de França, a mais digna de subir os degraos d'um throno. Vae grande azafama em palacio e só El-rei anda triste e como temeroso. Os que de mais perto hão lidado com elle estes ultimos dias notaram com espanto o pavor que seus olhos revelam, as distracções de que desperta com um estremecimento doloroso de todo o corpo.

Como feliz me sinto, porque já n'esse homem não penso com aquelle odio que me obrigava a cerrar punhos e dentes e me parava no peito o bater do coração!

Vão casal-o, que a tanto obriga o bem do reino!... Desgraçado, porque os labios lhe emmudecem de vergonha!... Mais desgraçada Princeza!

Nos festejos do casamento vamos estrear nossas novas insignias. Não sei se as verão um dia ainda os castelhanos. Nem eu sei se o desejo, que me é penosa a ideia d'uma separação e das saudades em que havia de viver de quem me é luz e vida.

Quero- te ao pé de mim, quero desabafar comtigo, que me ouvirás calado. Nada quero saber do mais que vai pelo mundo. Alegrias e dôres são assim: fecham ao homem os olhos a toda alegria e dôr que suas não sejam. Já vês, por mais que a Lourença me affirme o contrario, que me não tornou melhor minha paixão. Quero o posto para servil-a, como degrao que subirei para adoral-a de mais perto.

Não voltarão os castelhanos a Portugal; mas só Deus sabe se outras maiores luctas não teremos no reino. Em meio de minha ventura vem-me ás vezes esta ideia: -- Vai El-rei casar; vae começar a tragedia.

Teu

Manuel Furtado.

FIM DO PRIMEIRO VOLUME

D. João da Camara

O Conde de Castel Melhor

ROMANCE HISTORICO

(ILLUSTRADO)

VOLUME II

Segunda edição

PORTO

Edição e propriedade d'O PRIMEIRO DE JANEIRO

199, Rua de Santa Catharina, 201

o Rua Formosa, 232

Todos os direitos reservados

TERCEIRA PARTE

A BRICHOTA

CAPITULO I

Senhora Nossa Clementissima

Depois de trinta dias de viagem, que tantos levou a armada franceza a vir do porto de Arrochella até Lisboa, a Rainha, D. Maria Francisca Isabel de Saboia, a 2 de agosto de 1666, avistou afinal o Tejo e a capital de seu reino.

Deu fundo a nau capitania em frente da Junqueira. Salvaram navios e torres.

A franceza, deslumbrada, via, por sobre a fumaceira da polvora, erguer-se, em suas collinas reluzentes de sol, a famosa cidade, toda engalanada para recebel-a; via o rio, d'onde saíra Vasco da Gama e apoz elle os conquistadores da Asia que assombraram o mundo, e dizia comsigo, orgulhosa:

-- Vou ser rainha d'esta gente!

Immediatamente chegara o escrivão da puridade com sua mãe, a Marqueza, nomeada camareira-mór, navegando n'uma falua doirada, que mais tres seguiam com familia do Conde, vestidos os romeiros de escarlate com passamanes de prata.

Mas passavam as horas e El-rei não saía de seu quarto. Os fidalgos que deviam acompanhal-o estranhavam a demora e já murmuravam da inconveniencia. Não guardando cautella na lingua, começavam a fallar da escandalosa offensa á Princeza e dos perigos a que um temerario ajuste de casamento expozera o bom nome do rei e a amizade da França.

O Conde da Torre, arrebitando marcialmente os bigodes, ao vêr entrar D. Rodrigo de Menezes, approximara-se perguntando-lhe a que nova loucura poderia attribuir-se a affronta com que, no proprio dia da chegada, era recebida em seus reinos S. Majestade a Rainha de Portugal.

Nada sabia D. Rodrigo que vinha, por mandado do sr. Infante, buscar novas de seu irmão. Estava S. Alteza na maior das inquietações, o muito amor que tinha a S. Majestade exagerando-lhe o cuidado e fazendo-o temer fosse o transtorno motivado por alguma muito grave enfermidade.

Grave, gravissima!... respondeu o Conde, como quem sabia tudo.

E bateu na espada, muito pasmado de vêr pasmados os olhos de D. Rodrigo.

Nada sabia! Disseram-lhe apenas que El-rei estava em seu quarto com Henrique Henriques de Miranda e mais uns da patrulha baixa.

Por todos os cantos da sala se avistavam caras desconsoladas, outras sorrindo com malicia.

Sentado n'uma cadeira, ainda meio por vestir, com os olhos muito parados e tristes, estava El-rei em seu quarto. Batia-lhe o queixo, embora estivesse de abrazar a radiante manhã de agosto; passavam-lhe arripios pelo corpo. A Henrique Henriques, que procurava convencel-o de que era desaire não partir immediatamente a buscar a noiva, dizia quasi lagrimoso:

-- Mas não vês que não posso, que estou doente? Manda chamar Martin dos Reis, elle te dirá que não posso.

E, como estribilho a todas suas queixas, vinham sempre aquellas duas palavras: não posso, não posso, com a teima d'um dobre doloroso.

Henrique Henriques começava a desanimar, ancioso olhando para a porta, morto por que voltasse o Conde.

Simão Peres, com gestos eloquentes de approvação ao que dizia Henrique Henriques, soprava satisfeito de sua importancia, e o Braz arrastava-se pelo quarto, assustado, gemendo docemente.

Rogo a V. Majestade que chame a si sua razão; vença, embora com esforço, sua reluctancia, supplicava o tenente general da artilharia. Toda a côrte espera ha muito por V. Majestade; que dirá?... que poderá suppôr a Rainha?

El-rei ergueu para elle uns olhos tanto de implorarem piedade, que Henrique Henriques estremeceu. Seria certo o que diziam alguns, que fôra crime do Castel Melhor obrigar El-rei? Demais sabia elle o de que murmuravam as amantes de D. Affonso. Mas aquelle filho misterioso de que fallava El-rei com tanto amor?

Simão Peres, buscando ser agradavel ao amo, a quem dedicadamente servia, atreveu-se a dar seu parecer.

A Calcanhares instára tanto, que lhe promettêra El-rei suas ultimas horas de solteiro, e ella chamára em soccorro todas suas seducções. Nunca lhe fecharia D. Affonso o thesoiro de sua generosidade. Simão Peres fôra da festa, que durára toda a noite. Recordou-a, dizendo para affastar sombras negras:

-- Descance V. Majestade; outras havemos de ter como a de hontem, passado este periodo angustioso das cerimonias.

Henrique Henriques lançou-lhe um olhar terrivel; mas El-rei não o tinha ouvido.

-- Senhor!... Senhor! Ao menos um melhor pretexto vos desculpe!

-- Um pretexto... ? perguntou El-rei esperançado.

-- Toda a côrte vos espera lá fora para acompanhar-vos.

Simão Peres passeava pela sala.

-- Que espere.

Um pretexto... Mas qual? Lembrou-se Henri- que Henriques de que era dia da Porciuncula.

-- Sim... sim... disse El-rei.

Era adiar por umas horas o instante horrivel.

Simão Peres foi dar ordem que trouxessem a liteira.

E Henrique Henriques explicava aos fidalgos por entre os quaes propositadamente ia passando: -- A Porciuncula... El-rei muito devoto... Tinha escrupulos, em dia tão solemne, de não ganhar o jubileu...

Levou-o a Santo Antonio dos Capuchos.

Cresceu o murmurio das conversações. O Marquez de Cascaes disse em tom mais alto umas phrases a que uns sorriram, com que outros se escandalisaram. O Marquez de Marialva approximou-se curioso.

Entretanto o Conde de Castel Melhor voltou ao paço, correu até á egreja de Santo Antonio, obrigou El-rei a seguil-o.

Eram seis horas da tarde.

Havia seis horas que a Rainha esperava. Não tardaria que o sol desapparecesse no horisonte. Soprava já mais fresco o vento norte, com um ligeiro perfume das flôres que beijára nos campos, dos pinhaes em que roçára na serra de Cintra. Os montes da margem esquerda azulavam-se docemente nas manchas de sombra. E a Rainha, contendo-se ante a expressão, íuigustiada mas severa, da Marqueza camareira-mór, mal pudera com a dama, que de França a acompanhára na longa viagem, trocar duas palavras, a dizer seus receios, a queixar-se da affronta que recebia. lam-lhe as forças faltando para calar-se, quando lhe deu de repente uma grande tristeza, uma saudade amarga da terra que deixára. Penetrava-lhe na alma, pouco e pouco, toda a melancolia da tarde de agosto, cujo crepusculo de enorme duração ia começar.

Acordaram-a de seu meditar vozes alegres, tumultuosas.

Chegava El-rei. Reluziam ao longe as fardas vermelhas com passamanes de oiro e prata dos romeiros que traziam voando sobre o rio espelhado o bergantim real, ricamente entalhado e dourado, com toldos, cortinas e almofadas de brocado carmezim com ramos e franjas de prata e oiro. Soavam alegres as trombetas nas muitas faluas adereçadas que o seguiam. A' praia, onde uma ponte se armara para o desembarque, vinham chegando a trote largo os coches e carroças, e na capitania, por entre os sons estridentes das musicas, ouvia-se o rumor festivo do povo que se apinhava na margem do rio e socegára afinal sua impaciencia.

Salvaram todos os navios e a Rainha desceu á sua camara. O Marquez de Sande e o bispo de Laon approximaram-se do portaló para no bergantim beijarem a mão de El-rei e do Infante e acompanhal-os na subida para a nau.

Chegava El-rei!... A Rainha tremia. Finalmente ía vêr o homem que o céo lhe destinára o a quem havia jurado fidelidade eterna. Nunca sentira assim bater o coração, nem quando o amor lh'o fizera vibrar pela vez primeira. N'aquella hora ía saber de toda a sua vida. Deu á França que deixára um ultimo pensamento saudoso, sentiu turvar-lhe os olhos a névoa d'uma lagrima. Animo!... Compoz-se, preparou seu melhor sorriso.

Os navios continuavam disparando a artilharia. Os soldados francezes estavam formados no convez e em ala desde o portaló até á camara da Rainha.

Maria Francisca de Saboia fechára os olhos, commovida. Ia vêr El-rei!

D. Affonso caminhava como somnambulo. Assim atravessou por entre os soldados. Mas, já quasi no limiar da camara, segurou-se ao braço do Conde de Castel Melhor.

-- Não posso! disse ainda uma vez.

Estacou de repente.

O Infante caminhou dois passos ainda.

-- El-rei! disse a Marqueza.

E a Rainha abriu os olhos.

Deslumbrado, estava diante d'ella o Infante D. Pedro, gentil, resplandecente de mocidade, com um fulgor nos olhos negros em que a franceza leu de subito a admiração amorosa que lhe inspirava. Deu-lhe claridade ao rosto um sorriso, e elle ajoelhou para beijar-lhe a mão. Era aquelle!

N'esse momento adeantava-se El-rei e dizia ao Marquez de Sande o curto recado que lhe haviam ensinado e o embaixador traduziu por melhores palavras do que as gaguejadas por quem mal as sabia de cór. Enganára-se a Rainha. Depressa a côr lhe fugiu do rosto só por um instante animado.

Disparou novamente sua artilharia a nau capitania e o mesmo fizeram as torres e todos os navios da armada franceza e os portuguezes da corôa e mercantis.

O bergantim d'El-rei navegava para a ponte da Junqueira.

O sol descêra quasi de todo e a Rainha, com uma expressão de ultimo adeus, fitava os olhos no segmento luminoso, que ía diminuindo a esconder-se nos areaes doirados da foz do Tejo. Passaram umas gaivotas voando apressadas, sumiram-se nos esplendores do poente. Seria por haver contemplado o sol um instante que Maria Isabel de Saboia tinha os olhos rasos de lagrimas? Com que melancolia vinha a noite descendo!

E o bergantim corria ligeiro sobre as ondas. Para onde o levavam aquelles homens vestidos de vermelho, queimados pelo sol, puxando compassadamente os remos com seus braços robustos e cabelludos?... Onde estava ella?... Como era longe a sua França!

Ergueu os olhos. Sentado em sua frente viu o Infante. Outra vez lhe acudiu ao rosto um rubor ligeiro. A seu lado esquerdo, El-rei cabisbaixo, pallido, respirava a custo.

Com grande pompa foram os reis de Portugal recebidos por toda a nobreza, que desde a praia da Junqueira acompanhou o coche real até á egreja das religiosas flamengas, onde aos desposados foi lançada a benção pelo bispo de Targa.

Anoitecêra no caminho, e, dentro do coche, fitos na Rainha, ainda esta via brilhar os olhos do Infante sentado na cadeira da frente.

-- Quem os diria irmãos? pensava.

Emquanto o zelo dos vereadores preparava a solemne entrada dos monarchas em Lisboa, habitaria El-rei o paço de Alcantara cuja quinta cercava o convento.

Era curta a distancia. Acompanhou-os o Infante até á porta da segunda ante-camara, onde á Rainha pediu licença para beijar-lhe a mão, cujos dedos sentiu estremecerem nos seus.

Retirou-se.

El-rei acompanhou a Rainha até seus quartos e passou á sala onde o esperavam Henrique Henriques e o Conde de Castel Melhor.

Até que afinal tinha uma hora em que podia desafogar! Nunca tanto lhe doêra o coração afflicto, ora a palpitar com desespero, ora calado pelo mêdo. Olhou para o Conde, e, lembrado de que elle fôra quem mais o obrigára ao passo melindroso, relampejou-lhe nos olhos um fulgor de raiva. O escrivão da puridade approximou-se para beijar-lhe a mão. Tocou-a com os labios, achou-a fria de neve.

-- Pódes retirar-te, disse-lhe El-rei.

Melhor, mais á vontade se acharia quando a sós com Henrique Henriques,

O Conde saiu recuando.

-- Permitte-me V. Majestade que lhe beije a mão? perguntou o confidente d'El-rei. Deve, meu senhor, sentir-se venturoso; não ha em thronos da Europa rainha mais formosa do que a nossa, que pelo céo nos foi concedida.

D. Affonso olhou para elle com uns olhos vasios de pensamento, como se não o houvera percebido.

Com uma intimidade a que lhe davam direito passadas aventuras, Henrique Henriques, sorrindo, continuou:

-- Foram-se felizmente os motivos do justificado receio que a V. Majestade apoquentavam.

Mas El-rei, como se não o ouvira, perguntou:

-- Que horas são?

-- Agora deram nove, meu senhor.

El-rei suspirou.

-- E a que horas...

Não acabou a phrase. Perecia receoso da resposta. Havia tal pavor em seus olhos, tal tremor em sua voz, que Henrique Henriques estremeceu.

Fingiu não perceber o desanimo de El-rei, mas foi com mal seguro tom, a vêr se podia infundir-lhe uma esperança, que ainda começou dizendo:

-- Cedo vos espera decerto S. Majestade a Rainha.

-- Logo hoje... disse El-rei queixoso. Sinto-me tão indisposto!... Não sei que tenho. Accordei assim... Simão Peres onde está?

-- Simão Peres!... exclamou Henrique Henriques sem disfarçar seu pasmo.

-- Sim, sim; quero fallar-lhe... Se não está no paço, procurem-o... Quero... E a Fr. Bernardo tambem... São dois recados...

-- Mas senhor...

-- Quéro.

Henrique Henriques ia a saír.

-- Espera.

Poz-se a passear pelo quarto.

-- Nove horas dizes tu. Até á meia noite vão tres horas. Basta que seja á meia noite.

Estavam os musicos a tocar. Parou a ouvil-oa.

-- Esta musica é triste!

Passava as mãos pelos cabellos. Corria-lhe o suor em bagas pelo rosto. Puxou pelo lenço, limpou a testa e a nuca.

-- Olha, não chames Frei Bernardo; mas Simão Peres venha já, que tenho um recado para a Calcanhares.

Henrique Henriques não se moveu. Convinha-lhe que El-rei não deixasse as antigas amantes, mas apavorava-o a ideia d'um escandalo.

-- Procurem-o até encontral-o. E' creado fiel, é dos fixos; não deve andar longe.

Mudou o tom da voz.

-- E o meu Braz, se o virem... Talvez hoje precise d'elle.

Henrique Henriques saíu do quarto um instante, até que achou um escudeiro de confiança. Deu-lhe ordem para que, passada hora e meia, fosse participar a El-rei que nem o Braz nem Simão Peres haviam sido encontrados.

Quando voltou, andava outra vez El-rei passeando, com os braços cruzados, as mãos mettidas pela abertura do gibão, lacerando o peito com as unhas, soltando suspiros que mais pareciam uivos abafados.

O confidente já bem conhecia aquelles accessos de impotente raiva.

-- Foi o Conde!... O culpado foi o Conde!

Parou.

-- Déste o recado?

-- Que o procurassem por todos os lados, n'este paço, no da Ribeira, na casa da Calcanhares e nas tabernas que V. Majestade lhe ordenava hoje aqui sua presença.

-- Logo hoje... Acordei assim.

E muito assustado:

-- Porque se calaram os musicos?... Não, não... ainda não são horas. Manda que não deixem seus instrumentos sem ordem minha. Meu Deus!... Meu Deus!... Que terei eu, que estou doente... estou doente!... Deviam de ter dó de mim!

Deram dez horas.

-- Duas horas ainda!

-- Vamos, senhor, animo! disse-lhe Henrique Henriques. Esquecei vãos receios, que antes de vossa esposa conhecerdes seriam legitimos, mas agora...

-- Não, nao... teimava elle. Não saírei d'aqui sem haver mandado o recado que preciso.

Agarrará-se áquella razão, não a largava, ainda que Henrique Henriques não a acreditasse. Queria Simão Peres por força; antes d'isso não entraria nos quartos da Rainha.

Punha as mãos sobre o coração, respirava a custo. Tinha vida para pouco. Deviam de ter dó d'elle. Repetia a fio a mesma phrase, com uma teima de creança maquinalmente, já sem lhe saber o sentido.

Sentou-se n'uma cadeira, escondeu a cabeça nas mãos, e assim esteve murmurando queixas até que o escudeiro entrou.

Simão Peres não fôra encontrado.

Deram onze horas.

El-rei ergueu-se a gaguejar. Que o procurassem, que severamente castigaria quem lhe não desse conta de seu mandado.

No momento em que outra vez se voltava furioso para a porta perguntando pelo Braz, deu com o Conde de Castel Melhor. Estacou, abriu a bocca, levou as mãos ao peito, abafou-se-lhe a voz na garganta.

Era severo o aspecto do escrivão da puridade.

-- Que mal quereis, senhor, ao reino e a vós mesmo?

-- Mas se não posso!... se não posso! disse El-rei n'uma convulsão de chôro, de raiva e de vergonha.

Quatro semanas depois, havendo já partido a armada de França, deram os reis de Portugal solemne entrada em Lisboa.

Iam á frente do cortejo os procuradores do senado e ministros de sua jurisdição, ricamente adereçados os cavallos e ao lado os lacaios com suas librés. Seguiam-se os porteiros d'El-rei, reis d'armas, arautos e passavantes, corregedores e juizes do crime e mais justiças, era brilhante cavalgada aquelles, estes em coches e liteiras. Caminhava atraz o coche do estribeiro-mór, e outros de respeito precediam o coche sem tejadilho em que a Rainha deixava admirar sua formosura ao povo deslumbrado. Ia El-rei á sua direita, o Infante na cadeira da frente, a Marqueza camareira-mór no estribo do lado esquerdo.

E ella ía lendo enthusiasmo nos olhos de muitos homens, piedade no de muitas mulheres. Pois já assim seria conhecida sua miseria, que mettesse dó uma rainha?

Seguiam o coche real carroças doiradas com damas, meninas e donas de honor.

-- Viste-a? perguntou a Pero Rolão boquiaberto Manuel Furtado que, com a cavallaria de Lisboa fazia alas, para depois seguir atraz do cortejo.

-- E' linda como flôr a abrir-se a um beijo do sol, como um pedaço de céo n'uma alvorada de maio!

-- Não é? perguntou Manuel Furtado com alegria expansiva.

-- Linda! repetiu Pero Rolão. Mas que tamanha tristeza levava em seu rosto!

Manuel Fartado olhou para elle, espantado.

-- Triste! Se de seu coche me sorriu, que me senti illuminado mais que este céo com o resplendor do sol de agosto!

-- Se ella houvera razões para alegrias!...

-- Anninhas?

Pero Rolão sorriu-se.

-- Em que houveras de pensar?... E eu tão louco que te falava da Rainha!... Vamos.

Puzeram-se a caminho atraz dos coches, que seguiram devagarinho pela Pampulha, Santos e Calçada do Combro, até ás portas de Santa Catharina. Paráram.

-- Que teremos? perguntou Pero Rolão?

-- O coche de El-rei que deve ter chegado em frente do primeiro arco. Foi ali levantado um theatro para o presidente do senado da camara e vereadores. O mais antigo, Cristovão de Abreu, principiou talvez sua oração, entregando a El-rei as chaves da cidade.

-- Quem me déra fôsse eterna! disse Pero Rolão d'olhos fitos nas janellas, aturdido por tanto luxo, pela belleza das mulheres, pela vida que se lhe antojava como tanta vez fôra ambição de sua mocidade.

Quem lhe déra suster aquelle momento!

-- Olha!... Olha! disse apontando para uma mulher formosa que, batendo com o leque no parapeito d'uma janella, fitára n'elle um instante os olhos risonhos. Quem é?... Quem é?

Manuel Furtado não sabia.

Tomou fundo a respiração para mais alto espandir seu contentamento.

-- Manuel!... O que eu te devo!

Mas logo outra curiosidade o distrahiu do sentimento da gratidão sobre que já preparava sua glosa.

-- E aquella?... Aquella trigueirinha que ali desfolha um cravo? Has-de conhecel-a, porque deve ser fidalga. Quem é?

Fôra a pergunta, que sempre aos labios lhe acudira durante o trajecto. Quem é?

Manuel Furtado já nem olhava. Se de todas perguntava o mesmo!

-- Tantas... tantas!... E eu que passei minha mocidade em Elvas a namorar uma padeira!... D'ora ávante só me apraz a mulher rodeada de luxo!

Manuel Furtado nem o ouvia. Pensava em Anninhas. Que mais vira no cortejo? Nasceu o sol, fôram-se as estrellas. N'um relance passou-lhe pela lembrança Maria da Boa Hora, e sorriu-se ao recordar-se de seu encontro com El-rei, do odio que lhe tivera, da espada que d'elle recebêra, do sentimento de compaixão que lhe inspirara um instante. Eis o que só lhe havia ficado de tão complicado drama em que sua vida se emmaranhara. Compaixão. E baixinho dizia comsigo:

-- Pobre Rei!... Desgraçada Rainha!

E sorrindo outra vez:

-- Anninhas!

Distrahiu-o de seus pensamentos um frade que atravessava a rua, apressado por entre o povo. Era Fr. Gregorio. Tambem este o reconheceu e sorriu-se para elle; mas logo se poz sério. Ia d'olhos doidos, afflictos, e murmurava fôsse o que fôsse, que lhe dava idéas negras.

-- Que dirá o Bandarra do casamento d'El-rei? disse, a rir-se comsigo, o capitão.

Entretanto o velho vereador felicitava El-rei por ter dado logar no solio excelso ao novo astro, Venus celestial, lirio francez, emulação da purpurante rosa. Falava do amor que em harmonia suave havia de cantar o epitalamio e invocaria o himeneo real com as teias ardentes das chammas amorosas. De tão elevada conjuncção, do consorcio de tanta luz e tanta flôr quem poderia duvidar de serem em o numero e belleza os fructos estrellas?

Citou versos de Camões:

E julgareis qual é mais excellente,

Se ser do mundo rei, se de tal gente.

E terminou, tremulo de enthusiasm.o e commoção, elevando a voz e dizendo:

-- E tu, feliz, argumentosa abelha, se humilde, se simples borboleta, a quem por tanta dita coube a honra de esta acção, abrazada em glorioso incendio entre abismos de luzes e labirintos de flôres, liba o nectar celeste e livra nas azas e nos clarins da fama tudo ao que não póde checar o teu vôo nem a tua rhetorica, alternando com o côro dos cisnes a ultima voz que durará nos gloriosos e immortaes eccos. Vivam, vivam, Affonso e Maria, senhores nossos clementissimos!

Corresponderam aos vivas os outros vereadores.

-- E aquella ?... aquella? continuava Pero Rolão a perguntar.

Mas já o cortejo se puzera outra vez marchando caminho da Sé, passando sob os desasseis arcos á competencia endereçados, enriquecidos de oiro, prata, preciosas pedras, emblemas e inscripções, pelos italianos, francezes, allemães, inglezes, flamengos e misteres dos officios de Lisboa.

Ao chegarem á rua Nova, lembrou-se Manuel Furtado de quando pela primeira vez vira a Calcanhares. Fôra n'um d'aquelles balcões, quando do cortejo que á Sé acompanhára a Infanta D. Catharina.

-- Vou mostrar-te a mais decantada formusura de Lisboa, se não lhe sobejou vergonha...

Mas já Pero Rolão, dando um grito de pasmo, cambaleára sobre a sella, quasi caíra do cavallo. Não desfitava os olhos da mais adornada janella, thesouro deslumbrante de preciosidades da India.

-- Aquella mulher!... Aquella!

-- Pois essa mesma queria mostrar-te.

-- E como se chama a deusa, que é sua belleza sobrehumana ?

-- Ninguem o sabe !

-- O misterio auxilia o encanto. Mas aquelle fidalgo que se esconde por detraz d'ella... E' seu irmão... seu tio? Que nome tem elle?

-- E' o alcaiote-mór d'El-rei, e ella tem por alcunha a Calcanhares.

Continuaram andando. Pero Rolão virou-se na sella para que ainda um instante o maravilhasse a deusa que com seus olhos piscos olhava desdenhosa para o povo.

Ia este murmurando e ouvia-lhe as queixas Manuel Furtado.

-- Nem um sorriso alegrava os labios da Rainha!... Parece que nem sabe mentir!

-- Que desgraçado parecia El-rei!

-- Pudera! disse uma mulher nova, vestida de negro, viuva decerto.

Um soldado dos que faziam alas, voltou-se para traz e disse:

-- Pudera!

Na tarde d'esse mesmo dia, porque lhe El-Rei faltára ao que promettêra sobre a nomeação de fidalgos para sua casa, pedia-lhe o Infante licença de retirar-se á quinta de Queluz.

Começava a lucta.

CAPITULO II

A doença da Rainha

Adoecêra D. Maria Francisca de Saboia. Não atinavam os phisicos do paço com as causas da enfermidade e com muitos latins ordenavam-lhe sangrias.

Ella, sem uma queixa, estendia o braço formoso á lanceta do cirurgião e suspirava com tristeza.

Murmurava-se baixinho nas salas do paço, um pouco mais alto nas cavallariças, que nada a febre da Rainha a atalharia a sciencia do sabio Martins dos Reis e mais valia que por El-rei se rogasse a Deus nos conventos.

Tanto a Rainha mordêra os beiços para não queixar-se, que n'elles conservava o signal dos dentes. Horas e horas que a Marqueza camareira passára a seu lado, nem uma palavra lhe ouvira d'onde concluir as razões de sua magua. Anciosamente, quando o encontrava, consultava os olhos do filho, que da Marqueza desviava a vista, como envergonhado. A mãe é que já lhe não via no rosto a mesma expressão de audacia, a luz d 'uma ideia segura, a prega energica entre os sobr'olhos franzidos.

A Rainha era triste. Os mais innocentes explicavam sua melancolia pelas saudades dos seus e de sua terra. Tão poucos tinha a seu lado com quem fallar, com quem desabafar suas dôres mais intimas!... As palavras que ía sabendo pronunciar em portuguez tão poucas eram! Essas mesmas a quem dirigil-as?

Nem as festas que lhe haviam preparado, nem todo o luxo, com que em sua honra se haviam apresentado os fidalgos, nada pudéra distraíl-a de seu pensar melancolico.

Com o olhar indifferente assistira aos fogos de artificio no Terreiro e, no dia seguinte, aos jogos das canas, que se realisaram na praça luxuosamente armada e decorada. Que lhe importavam as escaramuças e que d'ellas saísse vencedor o Marquez de Gouveia ou Conde de Castel Melhor, o Marquez de Marialva, o Conde de Aveiras, o Conde da Torre, o Conde de Sabugal, o Conde de Villa Flôr ou o Conde de S. João? Que lhe importava toda essa gente? Cada quadrilheiro nomeára para acompanhal-o cinco fidalgos seus parentes e de seu appelido. Cada um dos que entravam nas canas trazia comsigo dois lacaios, cada um dos padrinhos vinte e quatro.

Não podia conter-se Pero Rolão extasiado. Apontando para os palanques perguntava:

-- E aquella?... E aquella?

Mas nas janellas do palacio, á esquerda da Rainha, estavam as damas, donas de honor e mais familia do paço, e Manuel Furtado não lhe respondia.

No primeiro dia de toiros saíram á praça, o Conde da Torre, D. João de Castro, o Conde de S. João e seu irmão Francisco de Tavora. Vinham os doze lacaios do Conde da Torre com seus vestidos guarnecidos de alamares de ouro ao martello; a D. João do Castro acompanhavam cento e sessenta lacaios vestidos ao modo de varias nações, com sêdas e alamares de ouro e prata; trezentos creados fôram apresentados todos ricamente vestidos, pelo Conde de S. João e D. Francisco de Tavora.

Mas nem um sorriso apontou nos labios da Rainha quando o Conde da Torre despediu ao toiro uma cutilada tal que se lhe enterrou a espada dois palmos no chão da praça.

A camareira-mór só via aclarar-se o rosto da Rainha quando lhe annunciavam a chegada do Infante, que, obrigado a não faltar em occasião como aquella na assistencia do paço, amiudadas vezes fazia a jornada de Queluz a Lisboa.

Estava enferma sua irmã; não era tempo do recordar aggravos.

Mas todos no paço os conheciam e muitos admiravam sua prudencia e gentileza.

Tendo-lhe o general da armada franceza mandado pedir para falar o despedir-se, achara se o lnfante sem creados com que dignamente pudesse recebel-o. Queixára-se ao Conde, de quem se deu por mal servido, e, apresentando a El-rei as queixas accumuladas, foi por este recebido com desabrimento.

Passando um dia em seu coche da quinta onde habitava para o paço de Alcantara, levando aos estribos Simão de Vasconcellos e D. Rodrigo de Menezes, em alta voz, que os dois o ouviram, disso que só ao Conde de Castel Melhor attribuia os desacertos de seu irmão. E logo altivamente lhe respondeu Simão de Vasconcellos, despedindo-se de governador de sua casa.

Era um primeiro triumpho de D. Rodrigo de Menezes, que, havia muito, o vinha preparando.

-- Simão, que fizeste! bradou o Conde de Castel Melhor, quando o arrebatado irmão lhe contou seu dialogo com o Infante.

Era talvez o primeiro abalo em sua fortuna.

Buscou pretexto de varios negocios politicos e elle em pessoa foi procurar a D. Pedro. Justificou seu proceder e terminou pedindo-lhe que outra vez admittisse o irmão a seu serviço. Poz o infante uma só condição: moderasse o Conde as acções d'El-rei.

Começara dentro do paço a lucta que por tantos mezes o Conde affastára, ora com sua altivez, ora com sua prudencia. Breve foi de todos conhecida a animosidade que se ateára entre os dois irmãos e houve no castello de S. Jorge expansões de jubilo, quando d'ella souberam os prisioneiros de guerra castelhanos.

Mas El-rei andava louco e não havia arrancar-lhe duas palavras. Ora chorava em casa de Maria da Boa Hora, beijando os pés do pequenino, ora, em casa da Calcanhares, phantasiava morrer n'um beijo em que lhe ella entornasse peçonha nos labios.

-- Acabar!... Acabar! dizia.

E instintivamente, ao perceber que ía crescendo o partido do irmão, punha-se a tremer como um velhinho medroso.

Alegrava-se a Rainha quando D. Pedro chegava. Só com elle mandava-o sentar junto de si e encantava-o com o que lhe dizia em sua lingua atrapalhada, deliciosa, sorrindo-se a procurar as palavras em portuguez, enganando-se, rindo de seu engano a pedir-lhe que a ajudasse. Despedia-o e logo o obrigava a sentar-se outra vez, e perguntava-lhe porque andava triste, e chamava-lhe seu irmão.

Um dia instou com elle que voltasse para a côrte real. Estaria ali muito mais perto; poderiam vêr-se muito a miude; era que na solidão sentia estiolar-se. Muita vez tinha saudades d'elle.

Com sua accentuação muito franceza repetiu a palavra:

-- Saudade!

E era tão doce nos labios d'ella, porque a dizia com tanta graça, que o Infante empallideceu.

Ella sorriu-se. Pegou-lhe nas mãos.

-- Não m'o fareis? Quereis que eu vol-o peça muito, muito?

Que melhor sonho na vida poderia elle sonhar do que viver de joelhos a seus pés? Bem adivinhou ella o que os labios não disseram, porque o Infante soube conter os impulsos do coração.

Fallou do Conde, repetiu suas queixas, revoltado contra o poder de que dispunha o valído. Chegou a dizer colerico que, soubesse ao certo ser elle o autor da cisania, o mandaria matar.

A rainha olhava para o cunhado com um ar muito innocente, mandando-o calar de vez em quando, batendo na bocca como a querer recordar palavras com que lhe respondesse, pedindo-lhe explicações de certas phrases, interrompendo-lhe o discurso com exclamações francezas:

-- Oh!... Comment!... Ce n'est pas possible!

E, quando viu que o Infante, de quem mais se approximára para que elle lhe fallasse quasi em segredo, perturbado, só mechanicamente continuava, mas com seu pensamento muito longe das palavras que dizia, então, sorrindo com grande ternura, murmurou-lhe ao ouvido, como n'uma caricia tentadora que havia de enleal-o:

-- Mas que póde o Conde... contra nós?

Tão segura estava do que dizia que o Infante pasmou.

-- Contra nós! repetiu baixinho.

E como ella continuasse a sorrir, baixinho repetiu:

-- Nós!

-- Venha para ao pé de mim, continuou ella, venha... Não tenho mais ninguem!

O Infante beijou-lhe a mão e ella ainda o reteve um instante, com seus olhos fitos nos d'elle, puxando-o a si mansamente:

-- Quero ter um irmão ao pé de mim.

D. Rodrigo de Menezes esperava pelo Infante na ante-camara.

-- Hoje mesmo, disse-lhe D. Pedro, volto para o palacio da Côrte Real.

D. Rodrigo nem pestanejou. Esperava a nova.

CAPITULO III

Primeiros passos

A noticia de que o Infante voltára para a Côrte Real foi recebida em toda a côrte com apparente jubilo, não havendo quem calasse pomposos elogios á Rainha, que assim, por virtude do muito que lhes queria, congraçara os dois irmãos.

Dias depois, consentia El-rei que fossem nomeados gentis-homens da camara do Infante os condes de S. João, da Torre, de Aveiro e de Villar Maior.

O paço alvoroçara-se com a noticia, e o Conde de Castel Melhor, para evitar mais perigosos embaraços, fôra dos primeiros a aconselhar El-rei accedesse aos rogos da Rainha.

E quando esta passava entre as alas dos cortezãos inclinados, no sorriso triste de sua bocca havia tanta bondade, tanta innocencia em seus olhos negros, que um murmurio a seguia de abafadas exclamações de sympathia e de piedade.

Preparava-se o paço para a jornada de Salvaterra, quando entre os irmãos novas occasiões surgiram de descontentamento, querendo D. Pedro nomear sumilher da cortina a D. Verissimo de Lencastre. Negou-lhe El-rei a permissão.

D. Rodrigo de Menezes aconselhou o Infante, como unico meio de atalhar maiores perigos, representasse a El-rei que, tendo por sua mãe sido nomeado capitão general do reino, de que era condestavel, lhe tocava passar á provincia do Alemtejo, levando em sua companhia o Marquez de Marialva, pela Rainha nomeado seu tenente-general.

Era largo o papel que D. Rodrigo enchêra com suas ponderações. Queria o Infante mostrar ao mundo sua capacidade; não trataria apenas da defeza do reino, mas de lhe estender o dominio com novas conquistas.

Nenhuma resposta lhe concedeu El-rei; mas tremulo, tendo acabado de ouvir a leitura, com os beiços pallidos mal podendo pronunciar as palavras que a colera accumulava, attribuiu ás más ilhargas do irmão o novo arrojo.

-- E depois... largaria o Caracena e marcharia a Lisboa... contra mim!

O Conde calava-se. Sentia um remorso a mordel-o. Para que seguira as pisadas de seu pae, que muito perdêra em perdoar?

-- Conde de S. João...! O Conde da Torre...! Foi tua a culpa, Conde, se os deixei ao lado de meu irmão!

-- O Conde de S. João ó um valente soldado, disse o Castel Melhor; dê-lhe ordem V. Majestade para continuar no governo de Traz-os-Montes e ao Conde da Torre que parta a levantar gente na comarca da Extromadura.

Não se deu o Infante por offendido, respondendo que por mais benemeritos em seu serviço julgaria os que bem servissem a S. Majestade.

Quando a côrte partiu para Salvaterra, eram o nome da Rainha e o do Infante que andavam em boccas proclamando suas virtudes e a prudencia de suas acções.

-- Temol-a travada! dizia Fr. Bernardo em seu quarto, enfiando as meias para ir até ao Terreiro apanhar um boccado de sol, visto correr esplendido o verão de S. Martinho.

Olhava pela estreita janella junto do telhado e fazia suas considerações:

-- Vão passar os dias lindos em Salvaterra: musicas, grandes caçadas, correrias atraz dos toiros... Vae senão quando, desaba o inverno...

Poz-se a coçar o queixo.

Tambem elle havia de preparar-se. Os reis costumam ser ingratos e talvez o sr. D. Affonso esquecesse algum dia o grande serviço que lhe elle prestára... o maior que o monarcha da Lusitania recebêra! Havia de preparar-se para o inverno. Parecia-lhe que El-rei já não queria saber d'elle. A Lindosa era quem mais lhe valia. Mas andavam os ares turvos...

Entrou Simão Peres.

-- Olá! exclamou o frade.

Quantos mezes passára sem vêr o antigo companheiro!

-- Por aqui! disse.

-- Olha o espanto!... respondeu o outro. Venho visitar um velho amigo.

Sentou-se de perna traçada, contemplando desdenhoso a miseria do quarto.

-- Como vamos de fortuna?

-- Mal como vês, respondeu o frade, enfiando os dedos pelos buracos das meias.

Simão Peres, com ares de principe, murmurou:

-- Coitado!

-- E tu?

-- Aborrecido.

-- Muito que trabalhar?

-- Agora menos, desde que El-rei partiu para Salvaterra.

-- E a Calcanhares?

-- Não fômos convidados.

Fr. Bernardo olhou para elle. Começaria decahindo o valimento da orgulhosa amante? Percebeu-lhe Simão Peres a esperança a reluzir-lhe nos olhos.

-- Iremos talvez mais tarde, quando eu, El-rei e o Conde o tivermos por conveniente.

Poz-se o frade a contemplal-o.

-- Que luxo! exclamou, escondendo a inveja n'uma exagerada admiração.

-- Não é por gosto, disse Simão Peres modestamente; mas bem vês que certas posições obrigam a maiores despezas.

-- Decerto.

la-se vestindo com a maior cautela, não fôsse algum movimento imprudente alargar-lhe os buracos dos calções.

-- Como pódes viver aqui! continuou Simão. Miseraveis ciganos do Alemtejo dormirão com maior conforto.

E n'um tom ligeiro, de bom amigo:

-- Passa um dia d'estes lá por casa; talvez te possa favorecer com duas ou tres camisas e uma capa fóra d'uso para mim. Ah! Bernardo! Bernardo!... A fortuna bafejou-me!

Parou; poz a mão no hombro do frade:

-- E que tal é agora a cozinha do paço, desde que veio a franceza?

Mas nem deu tempo a que Fr. Bernardo respondesse.

-- Eu agora... é até aqui!

Poz o dedo na garganta e, para confirmar o que dizia, arrotou, levando a mão á bocca com a maior delicadeza.

Fr. Bernardo pensava:

-- Que virá elle aqui cheirar?

E alto:

-- Porque não fôste a Salvaterra?

-- Meu caro, por certas razões de Estado.

-- Segredo?

-- Não os deveria ter para ti. Mas o Conde não me auctorisou...

-- Bem, bem... disse Fr. Bernardo fingindo-se resentido.

-- São estes os ossos do officio. Constantes nos molestam negocios politicos, ás vezes melindrosos. Acredita que estas ultimas novidades, as pretenções do Infante e a muito fidalguia que tem aliciado, me hão feito perder algumas noites. Prefiro vêr-me em lucta com os castelhanos.

Passeava de braços cruzados, fazendo tinir alegremente a prata das esporas.

Fr. Bernardo prevenido esperava a pergunta que Simão Peres lhe havia de atirar á queima roupa. Não teria vindo só para humilhal-o com seu luxo.

-- Nem vagar hei tido para vir abraçar-te. Pois muita vez pensava em ti e no bom conselho que me poderias dar.

-- Obrigado. E' de amigo.

-- Palavra d'honra. Felizmente agora descanço uns dias. Meu primeiro cuidado em minhas ferias foi este, visitar-te.

E de muito alto, ainda que em voz baixa, mettendo dois dedos na algibeira, perguntou:

-- Ouve: precisas d'algum dinheiro?

Fr. Bernardo, para não o escandalisar, respondeu:

-- Deixa-me uns vintens em cima d'esse banco. O vinho é que é sempre, cá no paço medido tão sovinamente...

-- Quanta vez fallo de ti á Calcanhares! Agora, aleijado no serviço d'El-rei, quanta vez te lembrarás com saudades d'aquellas nossas correrias... Deixo-te um cruzado. Chega?

-- Deixa dois, se não te faz transtorno.

-- Isso acabou, El-rei moderou-se... Estou certo de que muito lhe terás valido com teu conselho... Porque, emfim, um homem casado...

-- Sim, não deve...

-- Ainda que...

-- Está claro...

-- Póde...

-- Quando póde...

-- Mas com a maior cautella...

-- Ahi é que bate o ponto, disse Fr. Bernardo, fingindo-se muito interessado pelo que Simão Peres parecia querer contar- lhe.

-- El-rei moderou-se e fez bem; mas não era sua moderação motivo para, quando só com a Calcanhares...

-- Continuar em sua moderação.

Simão Peres olhou fito para Fr. Bernardo.

-- E' agora! pensou este.

-- El-rei tem outra amante! declarou-lhe com inflexão da maior certeza.

Fr. Bernardo nem pestanejou.

-- Outra amante! disse, fingindo-se pasmado. Quem?

-- Tenho a certeza, affirmou Simão Peres. Eu conheço o coração dos homens e sobretudo o d'El-rei. Outra mulher influe n'elle, digo-t'o eu. Sabes de quem me lembrei?

E os olhos de Simão Peres observavam com a maior cautella a menor vibração que enrugasse o rosto do frade.

-- De quem? perguntou este com o tom da maior innocencia.

-- Da Falcôa! disse o escudeiro da Calcanhares, a quem a voz tremia um pouco.

-- E porque não da Rainha? perguntou Fr. Bernardo.

O outro abriu muito os olhos, sinceramente pasmado de que tal ideia lhe não houvesse occorrido.

Sim, devia de ser isso. Rangia ligeiramente os dentes podres. A Rainha! Diabos levassem a Brichota!

Despediu-se.

-- Apparece, Bernardo. Jantarás com a Luzia, que ha-de estimar conhecer-te.

E saíu cantarolando um villancete posto em voga pelos comicos do pateo das comedias.

Já Simão Peres ía longe, já mal se ouvia o tinir das esporas a cada um de seus passos majestosos pelo corredor, e ainda Fr. Bernardo se não movêra, ainda da porta por onde o vira saíndo não afastára os olhos.

Sibilava-lhe a respiração por entre os dentes cerrados. Com que altivez lhe fallára o moço da cavallariça!... Dois cruzados! Dera-lhe dois cruzados generosamente! Se pudesse, mettia-lh'os pelas goelas abaixo até que o afogassem! Patife?

Ergueu a cabeça, começou a torcer a pera. O gesto que fôra de raiva, serenando agora, acompanhava uma profunda meditação. Era certo que Simão Peres não o procurára só para humilhal-o; outro motivo haveria: talvez a suspeita de que Elrei voltara a seus antigos amores. Dar-lh'a-ía alguma frieza ciumentamente adivinhada pela cupidez da Calcanhares.

Pois que mais queria do que o luxo escandaloso do seu viver?

E elle ali sem um vintem -- peor que sem vintem -- com os dois cruzados, esmola do inimigo!

Para tão pouco havia arriscado a pelle mais d'uma vez; para tão pouco, no dia em que Maria da Boa Hora saíra d'Evora, havia feito a espera a Manuel Fartado. Como lh'o pagavam!

De braços cruzados, cabeça pendida sobre o peito, na mesma posição em que no convento meditava sobre as verdades christãs, poz-se a scismar na ingratidão dos homens e das mulheres.

Que fôra feito da Falcôa tão alegre, que havia conhecido tão generosa, de cabecinha sempre em busca d'uma loucura nova com que se alegrasse El-rei, com que folgassem todos? Fechava-se agora a sete chaves e nem pelo buraco da fechadura o deixava a Lindosa espreitar!

Porque viera Simão Peres visital-o? Bom era prevenir a velha.

Pegou nas muletas, desceu a escada, mandou apparelhar o cavallo. O mulato que lh'o trouxe quasi nem levou a mão ao barrete.

-- Estás caíndo muito, Bernardo, disse este comsigo. Ninguem te respeita, e os que mais te devem desprezam-te.

Puxou o cavallo para junto d'um banco de pedra e, muito devagarinho, com muitos ais, conseguiu passar a perna por cima da anca. O mulato ria-se e o frade foi roendo comsigo os seus odios. Quando El-rei voltasse a Lisboa, havia de queixar-se.

Metteu pelas ruas mais solitarias; não queria vêr gente. Apeou-se a uns cem passos da casa da Falcôa; deu o cavallo a segurar a um maroto que o tratou por senhoria. Foi o que o desannuviou um pouco.

E, caminhando pela rua acima, as muletas batiam-lhe o compasso d'uma ladainha de improperios.

A Lindosa fez grandes espantos quando o viu.

-- Quem elle é! quem elle é!... Ha quantos quinze dias! ha quantos!

Mas o frade viu-lhe uma aza do nariz a tremer, o que era signal de pouca satisfação. Ficou de pé atraz.

-- Saudades, D. Maria, saudades. A manhã era linda, disse commigo : -- «Vou vêr a D. Maria».

-- E bem andou V. Mercê, sr. Bernardo. Quanta vez eu dizia: -- «Que será feito d'elle? Que será feito d'elle?» Ora... ora... ora!...

E o sorriso a fingir-se enlevado arregaçava-lhe o beiço, deixando vêr o dente amarello com pintas pretas.

-- E saude? perguntou elle.

-- Graças a Deus...

-- E o mais?

-- Morreu a Marota.

-- Coitada!

-- E o papagaio tambem...

-- Morreu? perguntou Fr. Bernardo com expressão de muito interesse.

-- Não tem passado bem. Tem tido...

Fingiu-se atrapalhada, nao sabendo como havia de explicar...

-- Arroz branco, D. Maria, arroz branco. E a nossa Falcôa?

A Lindosa assumiu um ar muito compassivo.

-- Coitadinha, muito saudosa! El-rei se tivesse melhor coração...

-- El-rei é um ingrato!

-- Eu devo-lhe muito, sr. Bernardo, muito!

-- E que nos deve elle a nós?... E' justo que deixe chegar amigos dedicados a estes extremos?

E mostrava os buracos dos calções, os punhos esfarrapados, o chapéo uma vergonha.

-- Olhae... olhae... olhae.

O ar sentimental da Lindosa animava as queixas do frade. Mas reparou de repente no olhar inquieto que a velha dirigia para o quarto de Maria da Boa Hora. Disse então:

-- Quem anda nas alturas agora é o Simão Peres. Quem triumpha é a Calcanhares.

-- Não me fale d 'essa mulher que até me dá nauseas! disse ella juntando as mãos e separando-as como a querer affastar-lhe a imagem. E dizem-me que é dinheiro a rodo...

-- E palacio...

-- E liteira...

-- Escudeiros e creados...

-- Joias...

-- Um macaquinho que lhe trouxeram do Brazil...

-- Valha-me Deus!... Valha-me Deus!

-- Um escandalo, D. Maria!

-- Saíu-me uma boa prenda o sr. Simão Peres! disse ella fincando o dente no beiço.

-- Mas é quem gosa!

-- Lá isso!

-- E eu vou fazer o mesmo.

A Lindosa olhou para elle desconfiada.

-- O mesmo!

-- Quem é considerado por El-rei? Elle. Quem não é? Eu. Quem come e bebe á grande e veste que nem um fidalgo? Elle. Quem anda maltrapilho e passa fome e sêde? -- Com vossa licença D. Maria, que ás vezes me tendes valido -- eu! Elle é o opulento Simão, eu o desditoso Bernardo. Pois sabereis que o patife ainda se não dá por satisfeito e que nos prepara qualquer traição.

-- Será possivel!

Então Fr. Bernardo contou á lindosa a historia muito enfeitada da visita de Simão Peres. E a Lindosa sempre com o olho na porta do quarto da Falcôa! Que receava ella?

Interrompeu elle a narração e perguntou:

-- A Falcôa está doente?

-- Encostou-se um bocadinho. Doía-lhe muito a cabeça. Tantos desgostos...!

-- Sim: a morte da Marota, uma cadelinha tão bonita!... a partida de El-rei, um tão dedicado amante!

Ouviu um rumor no quarto.

-- Tia! disse a voz de Maria da Boa Hora.

E a Lindosa saíu correndo.

Logo o frade pôz o olho na fechadura e viu uma mulher nova, forte, bonita, dando de mamar a uma creancinha, e, de joelhos junto d'esta, Maria da Boa Hora encantada beijando-lhe os pésinhos pequeninos.

O frade susteve uma exclamação.

As tres mulheres fallavam muito baixinho, com grandes gestos. A Falcôa parecia afflicta; a Lindosa socegava-a; a ama batia pancadas leves nas costas do pequeno, como a querer adormecel-o outra vez. A Falcôa punha as mãos como a fazer um pedido de muito interesse e depois fazia signaes de pôr alguem fóra, e a tia dizia-lhe que sim, que socegasse, e repetia os signaes que lhe ella fazia.

-- Agora mesmo saberei tudo! disse o frade comsigo.

Saltou para o meio do quarto sem fazer rumor.

A Lindosa tornou a entrar.

-- A pequena não se sente melhor. Perdoae, mas...

-- Já vos deixo. Vinha pelo interesse que me ambas mereceis. Tempos houve em que o sr. Bernardo foi gente e festejado quando apparecia e amimado por quem precisava d'elle.

-- Que quer V. Mercê dizer?

-- Que hoje ha n'esta casa segredos para o sr. Bernardo, maltratado por uma senhora e pela outra despresado.

-- Ora essa! V. Mercê não está em si!

E como lá dentro o Joanico se puzesse a chorar, a Lindosa começou a rir muito, a fazer muita bulha para que Fr. Bernardo o nao ouvisse.

-- Ah! Ah! Ah!... Mas a quem quero eu n'este mundo... Ah! Ah! Ah!... mais que ao sr. Bernardo?... Minha maior alegria é vêl-o.

E ia empurrando para a porta, e pôz-se a cantar:

-- Tro-la-ró!... la-ró... la-ró!

-- De quem é aquelle pequeno que chora? Lucraes com vossos misterios e cuidaes que não os sei eu com que possa...

A Lindosa estacara, engasgada na cantiga.

-- Adeus, Lindosa! disse o frade.

-- Pelo amor de Deus...

-- Roto, faminto...

-- Sr. Bernardo!

-- Ainda que me visseis a pedir esmola...

-- Esta casa é de V. Mercê!

A velha tremia tanto, que o frade teve de sustel-a para que não caísse pela escada.

-- Mas se a El-rei, que nada quer saber, tudo um dia eu lhe contar...

-- Mas de quanto precisaes?

-- E' tarde agora! Se eu quizesse vender-me...

-- Não!... Não!

-- Esse pequeno...

Os olhos do frade chammejavam. A Lindosa recuou.

-- E' filho de vossa sobrinha?

-- E'.

-- Quer dizer que o sr. Manuel Furtado...

A velha indignou-se. O pequenino continuava chorando. A Lindosa apontou para o quarto.

-- E' o sr. Infante D. João!

O frade desceu a escada de catrapuz. Um filho d'El-rei!... Fôra este pouco generoso, quando lhe elle fora tão dedicado!... Ria contente. Um filho d'El-rei!... Mais generoso seria um dia o Infante D. Pedro.

CAPITULO IV

Em Salvaterra.

Acabavam de saír da sala o Conde de Castel Melhor e o secretario Antonio de Sousa de Macedo.

Não quizera El-rei continuar a ouvil-os, que o enfastiavam.

Ainda poderia perdoar o enfadonho discurso a Antonio de Sousa de Macedo, juiz das justificações, conselheiro da fazenda, secretario da primeira embaixada á Grã-Bretanha e depois embaixador á Hollanda, homem velho, de muito boas letras, que todos diziam cheio de experiencia. Este não sabia o que lhe ía lá dentro n'alma que o mortificava. Mas o Conde... o Conde...! Mandara-os saír, que já não podia toleral-os.

Que tristeza!... Que tristeza!

Era verdade, andára mal mandando atirar sobre D. Luiz de Menezes. Peor andaram os mulatos disparando os bacamartes sobre a carroça de D. Luiz, quando este recolhia alta noite a casa acompanhado por sua mulher e seu irmão. Estupidos Mas ninguem ficára ferido; tinham morrido as mulas. Era lá motivo para tanta demonstração de pezar, como até as fizera o Conde de Castel Melhor!

Queria o Infante na jornada de Salvaterra egualal-o em comitiva. Fôra voto do proprio Conde e do secretario que tal não devia consentir-se. Que má gente o rodeava! Era já sem rebuço que todos passavam ao partido do Infante. Até D. Luiz de Menezes, que julgára tornar-se seu valído e a quem muita vez demonstrára seu agrado, acompanhára os outros! Esquecêra-se de quando, para folgar com todos os fidalgos da sua côrte, formára uma companhia e fizera de D. Luiz seu tenente. Até o Infante se mordêra de inveja, para vir finalmente a alicial-o!

Andára mal talvez querendo a vida do traidor. Mas peor não fizera o Infante -- que era Infante, não era rei -- mandando o mesmo contra o que fôra governador de sua casa? Declarou depois Simão de Vasconcellos que de ninguem suspeitava e o Conde chamou os corregedores e disse-lhes que se não cançassem a buscar os criminosos. Pois bem lhes pagára o Infante a generosidade.

Para que vinham agora molestal-o com essas aguas passadas?... Para quê?

Ah! se pudessem adivinhar o que elle soffria!... Pois não era bastante separarem-o do filho, seu amor unico, e que era desmentido vivo da maior calumnia que o infamava?

E tremeu ao lembrar-se da Rainha. Que miseria!... Que vergonha!

O filho!... Que lindo era! Tinha de guardal-o dos inimigos. Não era socegado com elle em casa de Maria da Boa Hora.

Tivessem-lhe consentido ao menos trazer a Calcanhares.

Saír da terra, isso queria. Céo ou inferno que lhe importavam?

Aquelle irmão!...

Ainda na vespera o que elle o havia humilhado nos festejos feitos na praça do palacio! Haviam-se corrido umas escaramuças e elle com o Infante umas parelhas... Não devia de ter o Pedro consentido. A Rainha estava á janella; para que assim fazer gala da sua gentileza, destreza e garbo?

Zunia-lhe o sangue nos ouvidos; mas ainda percebera o murmurio lisonjeiro dos fidalgos.

E a Rainha applaudia!

A Rainha!... Que vergonha!

Mal se atrevia a fitar os olhos em sua formusura. Olhava-a de longe ás vezes...

Levou as mãos ao peito, onde lhe pareceu que ía estalar-lhe o coração.

A Rainha!... E não ter ali ninguem... para esquecel-a!

Ser amado por uma mulher assim! Merecer um olhar d'aquelles olhos, que o deslumbravam! Outra já não sabia querer, n'outra não sabia pensar. A mulher que Deus lhe déra, nem seu escravo d'ella podia ser! Deslumbravam-o o olhar da Rainha, o porte, a gentileza do andar, o novo perfume que trouxera de França.

Olhou para a janella.

Viu-a ao balcão do seu quarto e ficou-se parado como em frente d'uma apparição. Como a luz da tarde a beijava amorosamente! Poz as mãos, olhou para ella n'um extasis, como a querer adoral-a, astro intangivel num céo a que nao podia chegar sua prece!

Tambem ella, d'olhos baixos, movia os labios sorridentes, como n'um murmurio de oração.

El-rei foi caminhando devagarinho pelo quarto...

Sob as janellas, na praça do Palacio, parado seu cavallo, estava o Infante, com o chapéo debaixo do braço, olhos fitos nos olhos da Rainha.

El-rei recuou abafando um grito.

O Braz, que esperava no corredor, ouviu o baque d'um corpo caíndo no chão desamparadamente.

Acudiu-lhe, gritou. Vieram creados, deitaram sobre a cama El-rei a estrebuxar.

Na praça o Infante e a cunhada sorriam um para o outro.

E El-rei, quando acordou, perguntava a todos que lhe dera e porque tanto lhe doía o coração.

CAPITULO V

Magdalena

Outra vez corriam as coisas mal para Simão Peres, que, havia já tempos, se mostrava muito escandalisado com o Conde de Castel Melhor.

Que importava tivesse El-rei uma amante em cujo collo entornasse as sobras mesquinhas do muito que lhe davam para seu bolsinho? Pobre mancebo, com pouco mais de vinte annos, punha dó n'uma alma christã vêr como elle no paço se aborrecia, emmagrecia, creava olheiras.

Exhaurira Simão Peres a phantasia para, de quando em vez, dar uma folga aos cuidados d'El-rei, acabrunhado sempre ainda mais pelos amigos medrosos que pela audacia dos inimigos.

Haviam-lhe tanto prégado, que nem o homem podia agora espalhar o bofe um bocadinho em casa de Calcanhares. Via-se com ella a occultas e sempre parecia ter medo. Só vinha depois de muito instado. Que tempos!

Nem elle, Simão Peres, parecia o mesmo. Andava outra vez cheio de nodoas, roto, e de algibeira tão murcha que era de fazer chorar as pedras.

Emquanto ía caminhando para a taberna do Antonio, nas trazeiras da casa do Conde de Castel Melhor, ia assim fazendo suas considerações phylosophicas sobre a instabilidade triste da fortuna e sobre o triste officio de reinar.

Quem lhe diria que outra vez havia de beber zurrapa fiada, mendigar um caldo nas portarias dos conventos, quando, farto de atural-o, a Calcanhares o punha fóra? Quem diria aos invejosos das grandezas do mundo que mais lagrimas que pobresinhas lamurientas chorava no paço El-rei D. Affonso?

-- Vejo os horisontes carrancudos, dizia comsigo, dobrando a esquina de S. Roque.

E, vendo por cima dos muros as ramadas do arvoredo na quinta do Duque de Cadaval, abanou a cabeça com um gesto de desapprovação. Fôra a Rainha quem instára com El-rei para dar ordem ao Duque que voltasse a Lisboa de seu desterro na Praça de Almeida, onde valentemente se houvera combatendo os castelhanos.

-- Ora derretido com a Rainha, ora contra ella... faz suar a gente aquelle catavento, que ninguem sabe a que lado aponta! O Duque!... Mais um que a franceza aliciou para o partido do Infante.

Mas o que mais lhe tirára o somno fôra o ultimo accidente com o secretario de estado. Antonio de Sousa de Macedo andara como velho tonto. Nao sómente prestara pouca attençâo aos negocios que lhe havia a Rainha encommendado, mas, quando lhe ella pedira contas, respondêra-lhe que, se quizesse conseguir-lhes andamento, se valesse do Conde de Castel Melhor.

-- Nâo é coisa que se diga a uma Rainha, não é.

Simão Peres dava-lhe razão na colera com que ella respondêra ao atrevido.

Fôra uma bulha suja. El-rei, que dançava como uma titere, fôsse quem fôsse que lhe puxasse os cordeis, vira-se na maior das afflicçoes. De mais a mais, o secretario, quando já a Rainha se retirava voltando-lhe costas, atrevêra-se a pegar-lhe na roupa para detel-a. Fez-se a franceza que nem um pimentão. Reune-se o conselho de estado, manda-se ao secretario saír da côrte, passam dois dias restituem-o a seu antigo logar, colloca-se o Infante ao lado da Rainha... Um inferno! E El-rei, ora d'um parecer, ora d'outro, agora arregalando para D. Maria Francisca o olho apaixonado, logo depois -- já se vê, quando ella ali não estava -- a berrar que pega um dia n'uma faca e põe ao sol as tripas da Brichota!

Ora para casos d'estes é que havia descido do céo a Calcanhares. Que santa paz n'aquella casa! El-rei esquecia aggravos e o Conde ali o tinha macio como veludo para o que d'elle quizesse obter.

Aqui d'el-rei, que era um escandalo!

Custava a Simão Peres conformar-se.

Tinham mandado fechar as portas da casa em S. Francisco e D. Affonso só a occultas lhe era permittido vêr a amante. Mas Simão Peres tomára grandes resoluções, que muito o envaideciam, e por uma porta secreta, que por gente de confiança mandára abrir, já por mais d'uma vez introduzira a Calcanhares no proprio paço.

Fôssem todos como eu sou!... Que ventura n'estes reinos!

Assim monologando chegára á taberna do Antonio em frente da casa que arrendára para que El-rei visse, fóra de toda a commodidade mas com maior segurança, as pessoas que mais estimava.

O Antonio estava á porta gosando a fresca da noite de junho, a sobrinha Magdalena sentada no limiar.

Logo Simão Peres notou que o taberneiro olhava para elle com certo ar malicioso de quem não se deixa enganar. Que teria visto? El-rei n'aquella casa?... Pois melhor. Haveria crescido sua importancia, queria dizer, seu credito. Deu-lhe as boas noites e com dois dedos fez um pequenino signal de adeus á Magdalena que lhe virou as costas. Que teria a rapariga contra elle?

-- Santas noites, disse o Antonio. Outra vez por aqui!

-- Em graves assumptos ando envolvido.

E o outro ria e piscava o olho.

-- Cuidas talvez que é minha vida um mar de rosas!... Sabes lá!...

-- Sei que priva V. Mercê com o que ha de mais alto na côrte.

-- De mais alto ainda é pouco; com o que ha de altissimo na côrte!

-- Pois sei, pois sei... Houve quem visse...

-- O quê? perguntou Simão Peres como assustado.

-- Entrar El-rei n'aquella vossa casa.

Disse-lh'o muito em segredo e pôz-se a rir, muito contente.

-- El-rei!... Mas quem se atreveu...

E Simão Peres, levando mão á espada, fez menção de procurar um traidor occulto.

-- Ah! descançai; quem foi não...

Não abrirá bico, ou caro lhe sairá a inconfidencia.

O taberneiro serenava-o. Só elle sabia do segredo. Não havia duvida.

Simão Peres tirou a mão dos punhos da espada, devagarinho, como hesitante ainda.

-- Confesso. El-rei para mais abertamente conversar commigo... E' porque não sabes que as paredes do paço teem ouvidos! Ora desejando elle consultar-me sobre altos assumptos: a paz, a guerra, o casamento do irmão...

O Antonio interrompeu-o.

-- E tambem para...

Olhou para a sobrinha como receando que ella o ouvisse, e murmurou um segredo ao ouvido de Simão Peres.

-- Até viste a mulher! exclamou este a fingir-se muito espantado.

O taberneiro disse que sim com a cabeça, piscando muito os olhos, sacudindo o enorme bojo nos frouxos de riso.

-- Tanto saber, observou-lhe Simão Peres carrancudo, n'outro que não fosses, seria de arriscar-lhe a vida. E' um segredo real!

O Antonio empallideceu, pôz-se muito serio de repente. Um segredo real!

E o outro muito confidencialmente:

-- E' uma senhora da côrte, por signal muito chegada á Rainha. Já que sabes metade da historia e és de toda a confiança... El-rei andava duvidoso no sitio a escolher; fui eu que lhe disse: -- «Socegue V. Majestade; o Antonio é de toda a confiança; segredo n'elle é como em poço. E El-rei, porque muitas vezes já lhe fallára em ti, respondeu: -- «Bem sei, bem sei.» Ora vai buscar-me um pichelzinho do melhor, que o quero beber á tua saude. Eh! lá!... cachopa!... E á tua tambem, Catharina!

Magdalena olhou para elle com uns olhos cheios de raiva e despreso.

O Antonio coçava a cabeça.

-- E' que...

-- Duvidas de mim?

-- Não é duvidar; mas já me deveis dois cruzados e tanto...

-- Tens razão. O pobre Simão Peres, que tanta vez arriscou a vida para que outros como tu comam, bebam, gosem de socego, que tem a esperar da patria? Ah! mal fiz eu em não attender ás propostas de D. João d'Austria! Estaria agora em Castella tão rodeado de respeitos como o Duque de Aveiro. Quizeste, Simãosinho, o bem do reino e o do povo e agora, quando tens sede, respondem-te: -- «Vai ao chafariz como um cão!» Isto faz-se, sr. Antonio?

E, como o Antonio se não movia e continuava coçando a cabeça, Simão Peres arrancou da espada e bradou-lhe:

-- Salta o vinho ou saco-te o que tens na barriga!

Magdalena erguêra-se, deitou mão ao pulso de Simão Peres, que deixou cair a espada no chão.

-- Rufião nojento, cuidas que pões temor em alguem?

Simão Peres soprava no pulso.

-- Tens modos pouco delicados!

-- Para que saibas.

Mas chegou n'esse instante uma cadeirinha acompanhada pelo Braz e logo Simão Peres pressuroso correu a abrir-lhe a porta.

-- Descei, descei, senhora! Vinde illuminar a choça d'um mendigo!

-- Estás doido! disse-lhe a Calcanhares a rir-se.

-- E' que a rhetorica faz effeito n'esta gente, respondeu-lhe baixinho.

E voltando-se para o taberneiro.

-- Antonio, cumprimenta.

-- Quereis que vá chamar El-rei? perguntou o Braz.

-- Vai n'um pé, volta n'outro..

O aleijado entrou em casa do Castel Melhor pela porta pequena do jardim.

-- Entrai, disse Simão Peres cerimonioso para a Calcanhares, abrindo-lhe a porta de casa.

Ella metteu-lhe na mão uma moeda d'oiro e elle fez signal aos lacaios que se retirassem.

-- Santo par! rosnou a Magdalena.

Simão Peres ergueu alto nos dedos a moeda d'oiro.

-- O vinho!

-- Que belleza de senhora! exclamou o Antonio.

-- O vinho!

-- Que porte!

-- O vinho!

-- Que fidalguia!

-- O vinho!

-- Que generosidade!

-- O vinho, maroto!

-- E' para já!

E saía correndo.

Simão Peres approximou-se de Magdalena.

-- Que resmungas?

-- Que te importa o que resmungo, percevejo que aquentas a pança revolvendo-a nos lençoes immundos da cama dos outros, rufião villissimo?

-- Olhai como falla a borboletinha immaculada! Pois talvez um dia eu te faça frigir as azas!

-- Ora elle aqui vem e do fino! gritou o Antonio entrando a correr com uma enorme caneca a trasbordar.

-- Isto é como quem dá um beijo nos santos evangelhos!

E Simão Peres pôz a caneca á bocca e esteve bebendo por muito tempo, que era velha a sêde.

-- E que tal?

-- Correu como um veludo!

A's ultimas palavras que o rufião lhe dirigira, Magdalena estremecêra. Alguma cilada era elle capaz de preparar-lhe. Era pouco todo o cuidado com covardes d'aquelles.

-- Basta!... Peço-vos, meu tio... disse ella ao taberneiro que puzera o cangirão á bocca .

-- Porquê?

E baixinho:

-- Se elle hoje paga tudo!

-- E' que tenho medo... E' que tenho medo...

-- Pois mais gosto de vêr-te assim medrosa, disse Simão Peres.

O Antonio pôz-se a rir. Passou-lhe o vinho.

-- Educadinha no paço ao lado da Rainha... Santa senhora! Já lá estava em Xabregas, ainda pedia que lhe mandassem a pequena! Agora envergonha-se de servir n'uma taberna!

Pôz outra vez o cangirão á bocca.

-- E's linda! disse Simão Peres a Magdalena. E virtuosa, hein?... Fosse eu mulher linda e virtuosa... vendia-me!

-- Infame!

Elle pôz-se a rir.

-- Com que então, no paço...

-- No paço onde te conheci, alcaiote immundo!

-- Pequenina, brincando com El-rei...

-- Com El-rei que perdeste, com El-rei que me estimava...

-- E de quem tu...

-- Patife!

-- De quem gostas ainda talvez!

-- Porque o conheci bom, porque a mim se chegava quando todos o maltratavam, porque lhe enxuguei muitas lagrimas, tantas quantas depois chorava na minha cama, sósinha!

-- Sósinha!... Coitada!

-- El-rei que tu perdeste!

-- El-rei que tu amavas. Confessaste-o a tempo.

-- Vem gente d'ali, gente armada! avisou o Antonio que subira até ao arco á esquina do pequenino largo.

-- Recolhamo-nos. Apaga a lanterna e escutemos.

Entraram em casa. Fecharam a porta.

Vinham devarinho pela travessa abaixo o Infante e seus validos: o Duque de Cadaval, o Conde da Torre, o Marquez de Cascaes e D. Rodrigo de Menezes. Acompanhava-os um grupo de lacaios e dois mulatos com lanternas que logo apagaram.

Simão Peres abriu a janella baixa que dava para um bêcco e pôz-se á escuta. A' medida que ía reconhecendo as vozes dizia baixinho ao Antonio os nomes dos que fallavam.

-- Favorece-nos a noite, disse o Conde da Torre. Não são mais negras as trevas do inferno.

-- E sabeis ao certo ser aqui a nova casa? perguntou o Infante.

-- Esta mesma, respondeu D. Rodrigo. Dá esta porta para o jardim do Conde.

-- Deixemol-o entrar em casa da amante e com paciencia esperemos que volte. Então, na presença de vós todos, lhe exprobarei seu vicio e lhe direi o mais que me dictar minha consciencia já revoltada contra meu silencio prolongado.

-- Se os valentões o acompanharem, não se me dará de estender meia duzia, bramiu o Conde da Torre. Vigiemos.

Subiu até proximo da porta e pôz-se de ouvido á escuta. Acompanharam-o o Marquez de Cascaes e o Duque de Cadaval.

D. Rodrigo approximou-se do Infante. Quasi ficaram encostados á janella. Disse D. Pedro:

-- Prompto venho para a lucta. Não podia adiar para mais tarde um acto de justiça, tantos foram os aggravos que recebi.

Estava só com D. Rodrigo, emendou a phrase.

-- ...Que recebemos.

-- V. Alteza e...

-- ...E a Rainha. Se visseis como hontem chorou commigo! Foi o som de sua voz queixosa que me deu maior animo. Vi uma lagrima a descer-lhe pela face. Encostára sua cabeça ao meu hombro, e então...

Não via na sombra o rosto de D. Rodrigo. Simão Peres apurava os ouvidos. O Infante continuou muito baixinho:

O que me embriagou foi beber aquella lagrima!

-- Já! exclamou comsigo Simão Peres. E' bom de saber-se.

Olhou para, o Antonio e comsigo mesmo accrescentou:

-- Não me convens no segredo.

Mas já os outros fidalgos vinham apressados ter com o Infante.

-- Eil-o que chega, Disse o Duque de Cadaval. Ouvimos no jardim o saibro a ranger.

-- Deixemol-o entrar, depois...

-- Fica El-rei sem valentões, disse o Conde da Torre.

Retiraram-se para debaixo do arco.

-- Agora eu!

E Simão Peres saltou para a rua, deixando-se ficar occulto á esquina.

A porta do jardim abriu-se e o Braz appareceu adiante, espreitando. Fez um signal e logo entraram El-rei e o Conde de Castel Melhor. Simão Peres chamou-os baixinho. Trazia D. Affonso um manto claro e uma pluma branca no chapeu.

-- Que temos? perguntou o Conde.

-- O sr. Infante com sua gente que ali vos espera.

-- O Pedro! exclamou D. Affonso.

-- São mais de vinte.

-- Seria conhecido El-rei?

-- Um manto claro, uma pluma branca...

-- Na forca os hei-de a todos vêr um dia pendurados! exclamou El-rei accêso em ira.

-- Eu buscarei salvar-vos. Por ali é já impossivel a retirada, disse o Conde. Acompanhe-me.

Entraram em casa da Calcanhares, onde ella os recebeu com grandes expansões de jubilo. Mas enfiou de subito vendo a pallidez de Simão Peres, que lhe disse baixinho:

-- Estamos servidos!

Nem o Conde nem El-rei se lhe dirigiram. Os joelhos de Simão batiam um no outro com violencia.

-- A vossa capa, o vosso chapeu, dai-m'os, disse o Castel Melhor.

-- Que pretendes fazer? perguntou-lhe El-rei.

-- Não sei com que tenções vos esperam nem onde os levará sua audacia, mas confiai em mim. Pora onde deita esta janella?

-- Para um recanto escuro, respondeu Simão Peres; mas sem outra saída que não seja...

-- A porta do meu jardim e o arco decerto estão defendidos...

-- Poderiamos talvez recolher-nos na taberna do Antonio. Mas como atravessarmos por entre elles?... São mais de vinte!

E era tão tremula e abafada a voz do Simão Peres, que a Calcanhares sorriu-se, desdenhosa.

-- Eu lhes distraírei a attenção, continuou o Conde de Castel Melhor. Com este manto claro e este chapeu julgarão que sou El-rei.

-- Conde! exclamou D. Affonso percebendo a quanto elle se queria arriscar. Não consentirei...

-- Senhor, deixai. O perigo que vos ameaçava me obrigou a acompanhar-vos. A mim... que me importa agora? Dar por vós a vida... que vale ao pé do muito mais que em serviço vosso, meu senhor, sacrifiquei? Muito mais que as espadas que me ameaçam agora, me hão ferido vilissimas calumnias. Vêm á procura do escandalo com que o povo ámanhã ponham á sua ilharga d'elles. Não encontrarão quem buscavam. Descançae, senhor, por que a Deus levarei commigo.

Olhou pela janella.

-- Precisava d 'uma corda.

-- Aqui a tenho, disse Simão Peres.

O andar era baixo, a corda chegava. Simão Peres deu-lhe uns nós para que mais facilmente descessem por ella. Esperava ordens; ainda não havia bem percebido o que meditava o Conde.

-- Quando eu saír, disse este para El-rei, decerto me tomarão por V. Majestade, que a noite é muito escura e elles apagaram as lanternas. Dois minutos que lhes dure o engano, aproveitando a densidade das trevas, tereis tempo de vos pôr a salvo na taberna. Preparai a descida.

Ainda El-rei quiz oppôr-se á audaciosa tentativa, mas já o Conde descêra a escada e abrira a porta.

O Infante e seus fidalgos haviam-se outra vez approximado.

Dissera o Duque:

-- Mas qual a tenção de V. Alteza se El-rei resiste ou contra V. Alteza puxa de sua espada?

O Infante sorriu-se.

-- Muita vez joguei as armas com meu irmão, fraco e desageitado em seu manejo. Facil me será desarmal-o. Nem sequer buscarei feril-o ainda que elle, n'um accesso d'ira, tente contra a minha vida. Não esquecerei quem vou encontrar em minha frente; é meu irmão e meu rei. Socegai portanto.

-- Mas se os seus companheiros se atreverem a defendel-o? perguntou o Conde da Torre.

-- Desembainhando contra mim suas espadas?

-- Sim.

-- Tão audaciosos os suppondes?

-- O orgulho do Conde póde tanto havel-o cegado, que o torne capaz de tamanho desacato, observou D. Rodrigo.

-- E' comvosco a vingança! disse o Infante empallidecendo.

-- E' commigo! exclamou o Conde da Torre desembainhando a espada.

-- Aquieta a durindana! disse-lhe o Marquez de Cascaes que até ali estivera calado.

Foi n'esse instante que o Conde abriu a porta e D. Rodrigo, enganado pelos trages que o vestiam, avisou baixinho o infante:

-- El-rei!

-- E só! disse o Duque de Cadaval.

-- Deixai-me com elle, ordenou D. Pedro.

Avançou para o Conde.

-- Alto!

O Conde parou um instante no limiar da porta. Tranquillamente desembainhou a espada e desceu os degraus. Os fidalgos esperavam anciosos.

Atrever-se-ía El- rei sósinho a defrontar-se com tantos?

-- Tendes a certeza de que é El-rei ? perguntou o Duque a D. Rodrigo.

-- Reconheço-o pelo manto e pelo chapeu.

O Infante recuou dois ou tres passos e disse:

-- Recolhei a vossa espada, senhor, que não vos desejo mal.

O Conde da Torre observou com um riso de mofa:

-- E' tamanho o susto que lhe embarga a voz.

O Infante, não obtendo resposta, continuou:

-- Venho, senhor, tão só para dizer-vos a verdade; se é crime, podeis punir-me, senhor. Deus adivinha as tenções com que me atrevo a procurar-vos e só n'Elle confio. Recolhei a vossa espada, que não vos desejo mal.

Avançou um passo o Conde de Castel Melhor e pôz-se em guarda.

-- Temos obra! disse o Marquez de Cascaes.

-- Pois melhor! exclamou o Conde da Torre levando mão á espada.

-- Pois que assim o quizestes... disse o Infante.

Tiniram as laminas d'aço. Os fidalgos esperavam sem temor o resultado da lucta não duvidosa. D. Pedro em dois lanços desarmaria o irmão.

-- E' tempo, disse Simão Peres baixinho a El-rei.

Desceram facilmente pela corda. Elle na frente, depois El-rei, depois o Braz cora a navalha entre os dentes. Occultaram-se á esquina.

O Infante ainda não conseguira desarmar o adversario.

-- Agora! dizia. Assim!

Começavam os amigos a assustar-se com a demora.

-- Fôsse eu!... rosnava o Conde da Torre impaciente.

E o Marquez de Cascaes pensava:

-- Foste buscar lã...

O Infante puxava por todos os seus recursos de jogador de espada.

-- Pois ainda não! exclamou depois d'um bote que julgava certo.

Parou um instante a resfolegar.

-- Algum novo mestre vos ensinou e cuidado houvestes em esconder-m'o. Não vos fazia tão sabio ou deu-vos sciencia o medo? Vamos, em guarda, senhor!

-- Se perde o sangue frio... murmurou D. Rodrigo.

-- Valha-nos Deus! disse o Duque apertando-lhe o braço.

O Infante começou combatendo violentamente, emquanto o Conde se defendia com a maior serenidade.

-- E sempre mudo!... Valha-nos Deus! repetiu o Duque suspeitoso.

-- A lucta vai mais seria, a noite é como breu.

Aproveitemos a occasião, murmurou Simão Peres ao ouvido de El-rei.

O Infante excitado caíra a fundo. Foi-lho desviado o golpe.

-- Demonio! disse.

Os outros já tremiam.

-- E agora!... agora!... Atacae-me tambem! Porque esperaes?

O Infante perdeu todo o sangue frio! disse o Duque de Cadaval.

-- Se lhe acudissemos! accrescentou D. Rodrigo.

O Conde da Torre deu um passo á frente.

-- E' que sinto uns formigueiros...

Mas o Marquez de Cascaes susteve-os.

El-rei atravessára até á taberna sem que o houvessem presentido. Simão Peres empurrou a janella. Estavam salvos.

-- Entrae, senhor, disse em voz baixa. No outro andar alguem vos espera, que vos quer muito bem.

Elle e o Braz entraram atraz de El-rei. Fecharam as janellas cujas portas rangeram.

-- Estão salvos! pensou o Conde.

De cabeça perdida atacava-o o Infante.

-- O inferno te requeime!... Agora!

Caiu outra vez a fundo.

-- Pois agora! disso o Conde desarmando-o.

A espada do Infante voou pelos ares.

-- Acudam-me!... Enganei-me! gritou ao vêr-se desarmado.

O Conde encostou-lhe ao peito a ponta da espada.

-- Se alguem te acode, villão, agora o pagarás com a vida.

E gritou:

-- Luzes!... Luzes!

Logo entraram o Antonio, Simão Peres e Braz com lanternas.

-- O Conde! exclamou D. Pedro.

-- Eu mesmo regicida! respondeu-lhe o Castel Melhor fingindo ainda não havel-o reconhecido.

Mas logo, como as luzes se approximassem, se mostrou admirado e confuso.

-- Pois era V. Alteza!

Abaixou logo a espada.

-- Na forca pagareis o vosso crime horrendo! bramiu o Infante.

-- Senhor! respondeu-lhe o Conde. Lêde em meu rosto meu espanto e minha dôr. Defendi-me contra alguem que o passo me embargou e que eu suppuz me tomava por El-rei. Sei que foi grande o meu engano, senhor Infante, pois, ao golpe que tentei para desarmar-vos, respondestes querendo matar-me.

-- Mentes! exclamou D. Pedro rubro de colera.

-- Senhor! disse o Conde, mal podendo conter-se.

-- Uma forca! Uma forca! exclamava o Conde da Torre.

-- Partamos! aconselhou o Duque de Cadaval.

-- Sim, partamos! repetiu D. Rodrigo.

-- Não! disse D. Pedro. O insulto hei-de eu vingal-o!

Correu e levantou a espada.

-- Amigos meus, a mim!

-- Agora ides vêr quem sou! bradou o Conde da Torre.

Já ao lado do Castel Melhor estava o Braz com a navalha aberta.

O taberneiro queria esconder-se atraz de Simão Peres, mas este com um puxão atirou-o para a frente, defendendo-se com sua barriga enorme.

-- Aqui d'el-rei, patrulha! Aqui d'el-rei! gritou o Antonio vergando as pernas, cheio de susto.

O Marquez de Cascaes corrêra furioso para o Infante, a segurar-lhe o braço.

-- Tantos contra um só!... Nunca, estando eu presente!

-- Marquez! bramiu o Infante no auge da ira.

-- Santo Marquez! disse baixo Simão Peres.

O Antonio continuava gritando. Uma patrulha acudiu correndo.

-- Embuçae-vos depressa, que não vos conheçam, disse baixo o Conde ao Infante.

-- Que temos? Quem nos chamava? perguntou o official.

-- Nada foi, disse o Conde. Um ébrio que, assustado sem motivo, começou gritando aqui d'el-rei. Entre amigos estaes.

-- Aqui tendes quem foi a causa do tumulto, disse Simão Peres empurrando Antonio para o meio dos soldados. Dae-lhe tantas que tão cêdo se não levante.

-- Boa noite, disse o Conde para o official. Boa noite, senhores, accrescentou voltando-se para o Infante e fidalgos que o haviam acompanhado.

Saíram sem que se lhes ouvisse murmurar uma palavra, confusos, humilhados.

Já sob o arco murmurou o Marquez:

-- E' um pulso de gigante!

E todos curvaram mais baixo as cabeças.

-- Que é de El-rei? -- perguntou o Conde a Simão Peres.

-- Ali, respondeu este apontando para a taberna. Deixai-o, que está bem, accrescentou sorrindo.

E comsigo, baixinho:

-- Cedo me pagaste o insulto, immaculada Magdalena.

O Conde dirigiu-se para casa, tão curvado como se o dobrasse o pezo de muitos annos. Agora desconfiava de si mesmo. Não, na lama não se fundava um imperio.

Simão Peres, esfregando as mãos, entrou em casa da Calcanhares. O Braz estirou-se á porta da taberna, d'olho á espreita, ouvido á escuta. Ouviu lá dentro gemer, chorar... Socegou. Não era a voz d'El-rei.

CAPITULO VI

Um milagre da Virgem

Nem quanto a consciencia lhe dizia o consolava. O Conde mergulhára fundo no pantano, mas não lançara mão da perola que buscava.

Que tristes seroes n'aquella casa em que tão alto haviam subido as phantasias! Quantos sonhos côr de rosa haviam padecido queda, quebrando as azas!

Em volta da mesa calavam-se, meditando, a Marqueza e os filhos, a Condessa e a mulher de Simão de Vasconcellos.

Já uns cabellos brancos alvejavam junto ás fontes do primeiro ministro; sombrias olheiras alastravam-se-lhe sob os olhos ainda scintillantes; uma funda prega indelevel cavava-se-lhe entre os sob'rolhos.

A Marqueza soltou um suspiro de maior magua. Todos olharam para ella. Não se conteve e disse:

-- Não te perdoará Deus talvez o tanto haveres perdoado.

A Condessa ergueu para o marido os olhos lindos. Disse-lhe este:

-- Mais tens que perdoar-me, tu que tenho esquecido tanto!

Beijou-a.

Deram onze horas.

O Conde passou para o seu gabinete de trabalho; as senhoras despediram-se e entraram em seus quartos.

Elle ficou só, remexendo em papeis, lendo consultas, respondendo aos ministros nas côrtes estrangeiras, tratando do exercito de que esperava toda salvação, juntando no Alemtejo os officiaes que lhe mereciam maior confiança.

Um sentimento só o animava, o amor da patria, pairando purissimo sobre aquelle immenso lodaçal em que rastejavam venenosas as traições. Ali estava o monte das denuncias em que elle, só com dois dedos, tocava nauseado. Li-as e não as acreditava. Quantos contra elle!... Os primeiros nomes do reino!... O Infante, o Duque de Cadaval, o general de artilharia D. Luiz de Menezes, e até, e esse lhe rasgava o coração, D. Sancho Manoel, Conde de Villa Flôr, o heroe vencedor da batalha do Ameixial e do cerco d'Evora! Quantos mais!

Sacudiu a cabeça, metteu-se ao trabalho.

Era uma noite quente de verão. Iam os relogios vagarosos batendo as horas nas torres das egrejas e o Conde, curvado sobre os papeis, trabalhava com afinco, em frente da grande janella toda aberta.

De quando em quando, erguia a cabeça, via novas estrellas a surgirem no oriente. Porque lhe inspiravam agora tamanha tristeza? Pois já nenhuma luziria para elle?

Deram tres horas.

Entrou um lacaio.

-- Os cavallos estão promptos.

-- Ah! sim; hoje é sabbado.

Approximou-se da varanda. Bebeu com sofreguidão uns haustos de ar fresco. Espraiou a vista pela amplidão do Tejo em que uma luz muito doce do céo mais claro já se reflectia.

Era sabbado de Nossa Senhora.

-- Vou já, disse ao lacaio.

Entrou pé ante pé no quarto da Condessa, apenas illuminado pelo azeite que suavemente bruxuleando ardia em frente do oratorio devoto.

Ajoelhou, encostado ao berço; beijou muito devagarinho a testa do pequeno. Esteve uns minutos enlevado a ouvir-lhe o respirar quietissimo. Parecia-lhe que aquelle socego o penetrava todo e lhe distendia a alma.

Ergueu-se e approximou-se do leito da mulher e outra vez ajoelhou. Approximava mansamente os labios de seus cabellos d'ella, quando se sentiu carinhosamente apertado nos braços lindos.

-- Tão tarde vens!... Deve ser quasi manhã.

-- Trabalhei até agora.

-- Pobre Luiz!... Que mal te pagam!

-- Deus, que lê na minha consciencia, alguma vez, talvez no céo, me premiará por meus esforços.

-- Tanto lhe peço por ti!

E apertava-o mais contra o peito.

-- Ainda não dormiste? perguntou-lhe elle.

-- Não; estou desasocegada. Quando fecho os olhos logo me assusto.

Soergueu-se no leito. Viu-o de espada á cinta.

-- Vais sair?

-- Vou.

A Condessa estremeceu. Elle socegou-a.

-- E' sabbado: vou á minha devoção do costume n'estes dias, á Senhora Madre de Deus.

-- Só com um lacaio, como teu costume!... Tanto me assusta! Espera, ao menos, que seja manhã clara.

O Conde sorriu-se.

-- Que mal queres me aconteça no caminho? Pois não ha-de proteger-me a mãe de Deus?

-- Sim. N'ella confio.

-- Adeus, Guiomar.

-- Luiz!

Apertou-o com mais força. Fel-o inclinar a cabeça até que os labios se tocaram.

-- Nossa Senhora te acompanhe.

O Conde voltou ao gabinete e, emquanto sobre a mesa arrumava os papeis, inscrevendo uns ultimos apontamentos, meditava nas palavras da mulher.

Pela mente alguma vez lhe passára que contra sua vida tentassem. Que muito seria, se o proprio rei se não achava no paço em segurança?

Remexeu outra vez nos papeis que diziam respeito ao exercito do Alemtejo. Confiava n'aquelles homens. Depois riscou uns nomes, outros marcou com uma cruz.

Alastrava a conspiração. Já por entre o povo corriam vozes a favor do Infante e fôra grande a expansão do contentamento em Castella ao saber-se Portugal ameaçado por uma lucta civil.

No momento em que maior energia era requerida contra o monstro, um perdão insensato augmentara-lhe o numero de cabeças. Assim fora com outros perdoado o Duque de Cadaval por intercessão da Rainha.

E outra vez o Conde sentiu o remorso a pungil-o e achou justo o castigo do céo.

A Rainha...!

Se elle fôra o conselheiro d'El-rei n'aquelle casamento! Se, para melhor sustel-o sob seu jugo, continuava sustentando-lhe as amantes!

A Rainha!... Razões havia de sobra para que fôsse contra elle.

Mas se era verdade o que se affirmava? Se não fôra em Salvaterra illusão dos seus olhos o que julgara lêr nos olhos do Infante?

Afastou a ideia horrivel.

Conspirava-se contra o paço; era seu dever com El-rei salvar a patria.

Embrulhou-se na capa, pegou no chapeu.

Ergueu alto a cabeça. Ainda era homem para todos elles.

-- Nossa Senhora vá commigo! disse.

Benzeu-se. Desceu a escada.

Pois era mais adiantada a conspiração de que elle suppunha. N'aquelle mesmo dia o havia de saber.

Ramificara-se por todos as classes. Era o clero quasi todo favoravel á ambição de D. Pedro em que mais confiava para o rapido estabelecimento da paz e o reatar das relações com Roma. Entre o povo eram commentados com ironias crueis os escandalos d'El-rei. No exercito ferviam as ambições a que davam envergadura meias palavras que eram promessas. A maior parte da nobresa revoltava-se contra o mando absoluto d'um homem que se atolára n'um charco para subir os degraus do throno.

Gabava-se o Conde da Torre em casa de D. João d'Almeida de não ter papas na lingua, quando tratava de convencer o cunhado D. Pedro a que o seguisse no caminho que chamava da honra.

Respondia-lhe placidamente D. Pedro que ao Conde de Castel Melhor deviam as armas portuguezas suas melhores victorias e o auxilio que a França e a Inglaterra se mostravam dispostas a conceder ao reino. Furioso, eram taes os improperios com que lhe o Conde respondia, que, muitas vezes, na presença de D. Violante e D. Anna, foi preciso abafar-lhe a voz, quando se elle referia á incapacidade d'El-rei.

Então o Conde fazia-se muito vermelho e desculpava-se.

-- E' que nunca aprendi rhetorica. Sou um soldado grosseiro. Mas a verdade é que...

E as senhoras fugiam e voltava D. Pedro a tapar-lhe a bocca.

-- Podeis voltar, que não dá mais palavra!

D. Anna de Portugal, só ella, deveras, n'aquella casa, sentia por El- rei uma piedade profunda.

A melancholia dos paes calava-os ante a azafama com que os parentes conspiravam contra o valído; mas o que mais assustava D. Anna era que nos olhos do irmão querido já por mais de uma vez lhe parecera vêr accender-se a luz d'uma ambição.

Ella, que tanto se inflammára pelas victorias dos portuguezes, temia vêr por terra o homem denodado qae as havia preparado tão brilhantes.

Sabia D. Anna de Portugal a historia dos amores de Manuel Furtado com Maria da Boa Hora, e como elle, n'um desespero, insultára El-rei, depois de lhe haver salvado a vida e como este em paga, perdoada a injuria, lhe fizera dadiva dos copos da espada partida na refrega.

Tambem ella tudo perdoava a Maria da Boa Hora, pois que pelo que d'esta era dito, conquistara Manuel Furtado a simpathia de André de Albuquerque nas fortificações d' Elvas, e assim -- porque estranho caminho -- viera ella a conhecer quem lhe fizera florescer no luto de seu coração uma primavera nova!

Agora descançava n'aquelle amor e n'esta feliz certeza assentava todo o seu porvir risonho.

No intimo de sua alma agradecia a El-rei os ciumes com que atormentára a Manuel Furtado, ciumes que, não o deixando entregar-se á amante n'um goso pleno e amoroso, no coração lhe deixaram sempre o vasio por onde pôde a nova paixão introduzir-se, assenhorear-se de todo elle.

Ciumes!... Bem soube D. Anna de Portugal que doidos tormentos eram, quando viu Manuel Furtado a expirar porque para a morte corrêra traz da mulher que lhe fugira.

Sim, devia a El-rei a melhor parte da ventura completa de que fruia.

Foi primeiro um sentimento de gratidão, que, pouco e pouco, foi tendo por companheira uma piedade grande pela miseria de seu abandono, talvez até pela miseria de seu vicio. Foi depois um enthusiasmo pela obra do Conde de Castel Melhor, pelo poderoso esforço com que valeu á patria. E El-rei o escolhêra.

Conspirava-se á luz do dia. Fiados na simpathia que julgavam inspirar á Rainha os mais chegados ao Infante fallavam da queda do ministro como de negocio seguro. E, quanto mais descia o Conde na opinião da nobreza, mais alto D. Anna de Portugal o collocava, adivinhando por fino e bondoso instincto quanto, para bem da patria, o ministro sacrificava em sua lucta por sustentar-se.

Por mais d'uma vez lhe custára conter-se ouvindo as sanhudas increpaçoes do Conde da Torre, que, com a mão protectora no hombro de Pero Rolão, o incitava a seguir seu partido, adivinhando-lhe no fundo da alma um misterioso rancôr contra El-rei.

-- Deveis-me a vida; pois muito mais me ficareis devendo!

Já não mostrava o mesmo interesse por Manuel Furtado, dado n'esse tempo ás musas muito mais do que ás armas.

-- Mente ás musas dada, dizia d'elle D. Pedro d'Almeida.

-- Bem sei, dizia o Conde. Assim é que elles se perdem. Prefiro os outros, de quem tambem fala esse tal poeta.

-- Braço ás armas feito, dizia contente Pero Rolão.

-- Isso.

E punha-se a descrever futuras batalhas quixotescas.

-- Estareis vós commigo ? terminava por perguntar.

Se estaria!

No fundo da alma Pero Rolão conservava sempre as atribulações d'uma paixão confusa que lhe dava raiva a dois homens: D. João d'Austria e El-rei D. Affonso. E' que Consuelo Rodriguez e Maria da Boa Hora eram uma só mulher, e essa pairava muito alto por cima do batalhão feminino que o seduzia. Só a amisade muito velha que o ligava a Manuel Furtado fazia com que não o odiasse tambem.

Pelo contrario; vendo-o tão da vida distraído em seus amores, sonhava ser quem ao amigo lhe abrisse o caminho d'uma posição altissima.

Via-o desfiando as horas n'um encantamento, descuidado de quanto passava. Se a guerra continuasse, dar-lhe-hiam talvez um terço para seu commando, conforme promessa do Conde de Villa Flôr, e Manuel Furtado havia de assignalar-se. O olhar protector e desvelado de D. Violante promettia-lhe para essa época de glorias a concessão, que lhe parecia milagrosa, da maior ventura no mundo. Já alguma vez, em maior intimidade, a nobre senhora lhe chamara filho, e o nome querido penetrára em sua alma como luz santissima a desfazer-lhe algum ultimo farrapo de nuvem que ainda por ella volteasse.

Esquecêra o passado, vivia no presente em felicidade immaculada, sorria-lhe o porvir.

-- Tudo a El-rei lhe perdoaste? perguntou-lhe Anninhas uma tarde.

-- Se perdoei! respondeu Manuel Furtado sorrindo, adivinhando muito amor nos olhos da noiva.

Era na quinta de D. João d'Almeida em Loures, sob os cedros copados, á hora em que vinham recolhendo as andorinhas.

O Conde da Torre andára passeando sob as alamedas, fallando baixo com Pero Rolão, e ambos muito cedo haviam abalado para Lisboa, com ares misteriosos que assustaram D. Violante.

-- Alguma coisa andam tramando, dissera comsigo. Coitadinha da Marqueza que já tanto soffreu!

Afastou-se conversando com D. Margarida, emquanto D. Pedro e D. João experimentavam no picadeiro os cavallos n'esse dia chegados do Alemtejo.

D. Anna sentára-se ao lado de Manuel. Falando baixo ninguem os ouviria.

Disse-lhe elle.

-- Porque me perguntastes se tudo perdoei ao desgraçado?

-- E' que, ás vezes...

-- Ciumes ainda dos ciumes que eu tive?

-- Ciumes, respondeu ella a sorrir com uma expressão de tão delicioso enlevo que Manuel Furtado sentiu desejo de ajoelhar a seus pés, de lh'os beijar como a uma santinha devota do altar.

E disse-lhe:

-- Enchestes os meus dias de tanta luz, que desde então, encadeado, nada vejo para lá de seu começo rutilante. Vejo-vos, e a vossa imagem enche a minh'alma; até longe de vós, tenho-vos sempre commigo. Basta-me respirar o vosso halito para que vosso perfume commigo fique e me perfume o sonhar. Amo o que vós amais, pois que vos tenho no coração.

Anninhas ouvia-o n'um contentamento de todo seu ser. Aquella tarde recordava-lhe outra em Evora, quando ella, audaciosa, corrêra ao logar em que o deixara só e, tremula, recebêra d'elle o primeiro beijo, casto e apaixonado, em seus cabellos.

-- Não, não tenho ciumes, disse-lhe.

Apontou-lhe para a ramagem negra dos cedros velhos, por entre a qual se viam reluzir os carbunculos do poente.

-- Vêde como o céo resplandece. Assim phantasio os meus dias futuros, junto de vós. A' noite vai apagar a luz do céo, a minha só poderia apagal-a uma traição vossa mais negra do que a noite. Não é verdade, Manuel, que tal não fareis? Pois era muito se, ao mesmo tempo, me roubasseis vosso amor e a minha vida!

-- Como vol-o-hei de provar, Anninhas, que á vossa vida mais que a tudo quero no mundo e que vos daria a minha por este amor?

-- Ouvir-vos me basta.

Mas poz-se de repente muito séria.

-- E se, um dia, Manuel, o desgraçado, como lhe chamastes, precisar de vosso soccorro?

-- Lembrar-me-hei de que já uma vez a vida me ficou devendo, não sabendo eu a quem a salvava. Lembrar-me-hei de vós, Anninhas.

Deram ave-marias.

Vinham-se approximando D. João e D. Pedro.

Os homens descobriram-se. Todos resavam baixinho.

-- Juraes? perguntou D. Anua entre o murmurio da oração.

-- Juro, respondeu Manuel Furtado benzendo-se.

E sentiu um grande allivio.

Quanta vez a ambição de gloria, de uma posição mais rendosa no exercito, o tentára para que se puzesse á ilharga da melhor parte da nobreza com quem mais convivia! Que lhe faltava para tão alto como os outros subir? Pois outro mostrára maior esforço e valentia? Seu denodo tinha fama entre os capitães portuguezes e na propria Castella. Desde as linhas d' Elvas não deixára de lhe ser favoravel a Fortuna, que tanto prefere os campos de batalha para distribuir suas riquezas.

Mas já na alma se lhe haviam calado as ambições e até por vezes se espantára de lêr no rosto de D. Pedro d' Almeida certa hesitação sobre o partido a que havia de offerecer o valor de seu braço.

Caminhava estrada fóra tão devagarinho, tão embebido em seu meditar, que a noite caíu de todo sem que elle mais sentisse do que uma maior doçura a penetral-o. Estava em pleno campo, e nos casaes já uma ou outra luz se ía apagando; o socego do somno, depois do cançado trabalho. Avistou, como mancha negra no céo estrellado, os altos da cidade e sentiu preguiça de entrar n'ella tão cedo. Metteu por uma azinhaga que lhe alongaria a volta. Que doce lhe era pensar em sua ventura! Nada mais queria na vida do que o amor de Anninhas, alvo unico de suas ambições. Sentia a alma tão leve que lhe parecia poder voar. Era talvez da promessa que fizera. Ia assim mais socegado.

O cavallo caminhava a passo lento, de pescoço muito estendido, Manuel Furtado soltara-lhe as redeas e, de braços cruzados, sob o céo estrellado para onde erguia os olhos, começou compondo as voltas d'um mote que na vespera fizera á noiva.

O cavallo parou na estrada de Sacavem, como duvidoso de qual o caminho que seguiria. Manuel Furtado chegou-lhe as pernas. Continuou pela azinhaga que, passando junto de Chellas, o levaria á beira do Tejo proximo ao Grillo.

Estava contente com a sua obra. Recitava-a com enthusiasmo, quando reparou n'um verso errado, medonho... Emendou-o. Se assim houvesse enviado as voltas a Anninhas!... Viu depois que rimára virgem com origem e, furioso com o erro, acordou de sua distracção.

Estava em frente das casas onde morrêra a Rainha D. Luiza.

-- Dai-lhe, Senhor, o descango eterno disse.

E logo:

-- Pobre Lourença, que ha tanto me espera!

Metteu esporas ao cavallo e, passados minutos, avistou ao longe, na estrada, tres vultos embuçados e os canos de tres arcabuzes scintillando á luz das estrellas.

-- Mau encontro! disse comsigo.

Engatilhou as pistolas que trazia nos coldres.

Ainda os viu arrimando uma escada ao muro, saltarem-o á pressa.

Passou sem novidade, caminhando a passo, d'olho attento para qualquer cabeça que espreitasse.

-- Melhor! pensou. Nada quizeram commigo. Os tempos não correm propicios para quem se arrisca a deshoras pelas estradas. São quadrilhas de ladroes, são os bandos d'El-rei, são os bandos do Infante...

Chegára finalmente a casa. Recolheu o cavallo na cavallariça. Bateu á porta.

Logo a Lourença lh'a veio abrir, muito assustada, já não costumada ás noitadas do amo.

Levou a mão ao peito que um suspiro muito fundo aliviou.

-- Agora chegaes de Loures!... Pois olhai que não tarda a madrugada.

-- Andei a fazer versos, Lourença.

Disse-lh'o com tão alegre tom, que logo o rosto da velha se lhe desannuviou.

-- Antes assim.

Mas não pôde deixar de ralhar.

-- Nâo sabe V. Mercê em que tempos vivemos, que, d'onde menos se espera, nos assalta o perigo?... Andou a fazer versos!... E eu aqui mortinha de medo! Versos á sr.ª D. Anna?

-- Pois a quem?

-- Tonto!... Tonto!... E, vamos a saber, trazeis fominha?

-- Espera, deixa-me pensar, ouvir o estomago. Trago uma fome de seiscentos diabos!

-- Que modos de fallar!... Aposto que em casa do sr. D. João d'Almeida não diz d'esses disparates. Pois ainda bem! Comprei um anho e fiz um ensopadinho que é só aquecel-o.

Ia a entrar na cozinha murmurando:

-- A fazer versos por descampados, n'um tempo d'estes!

Voltou e disse muito baixinho ao ouvido de Manuel Furtado:

-- O sr. Pero Rolão ainda não se deitou. Anda no quarto a passear. Aquillo que será?

-- Paixão, Lourença, paixão. Quando vires um homem sandeu, a culpa é sempre d'uma mulher. Dize-lhe que venha ao ensopado, que dar aos queixos allivia os namorados tristes.

Saíu a Lourença com o recado e logo Pero Rolão entrou, descomposto no trage, pallido, desgrenhado, com as melenas suadas caídas sobre os olhos parados.

Havia grande novidade por força. Amores decerto.

-- Que tens? perguntou-lhe Manuel Furtado. Estás doente?

-- Não.

-- Foste pouco fortunoso em novos amores? Traíu-te a mulher? Desviou de ti seus olhos que eram luz da tua vida?

-- Nao.

-- Vamos, desembuxa ou queres que tambem me ponha de farripas nos olhos, beiço caído, olhar apavorado?

-- Ris-te?... Pois olha que melhor dormia em vesperas de batalha do que d'hoje em deante...

-- Já sei! exclamou Manuel Furtado. Ignoras o nome do teu rival!

Entrou n'este momento a Lourença e pelo quarto espalhou-se um cheiro delicioso.

-- Come e bebe, desgraçado. Para ti matámos este cordeirinho innocente. Aqui tens o fumoso licôr de Bacco e Ceres aqui te offerece estas negras azeitonas. Deixa Venus no Olimpo descançada e bebe e come!

O caso devia de ser serio, porque Pero Rolão nem uma aza do nariz se lhe abriu ao cheiro do refogado. Deixou-se caír na cadeira e os braços inertes penderam-lhe para o chão. Olhava para Manuel Furtado com tão revirados olhos, que este assustou-se.

Acudiu-lhe uma lembrança repentina e, caminhando para o amigo, sacudindo-o, perguntou-lhe, ancioso:

-- Fala!... Fala!... Porque tâo cedo saíste com o Conde da Torre?

Pero Rolão gaguejava.

A Lourença pasmada tremia, encostada á mesa. Nunca assim vira S. Mercê dirigir-se ao companheiro.

-- Fala, por Deus!... Que tramastes?

Levou-o, empurrou-o até o canto do quarto.

Pero Rolão disse baixo:

-- Era preciso, bem vês... Alguem foi condemnado á morte pelos fidalgos. Não tem meia hora de vida.

-- El-rei?

-- El-rei que importa?... El-rei... basta depois um sopro para desfazel-o.

-- O Conde? exclamou Manuel Furtado, apavorado, recuando.

-- Eu não disse...

-- O Conde!... O Conde!... Que mais sabes?

-- Nada mais!

-- Onde o esperam?

-- Não sei.

-- Meu Deus!... Meu Deus!

Lembrou-se de repente dos homens que vira para cá de Xabregas.

O juramento que fizera ía cumpril-o.

Pero Rolão, de pé, ao canto do quarto, balbuciava :

-- Era preciso... Era preciso...

Manuel Furtado já descia a escada. Ainda ouviu Pero Rolão a chamal-o:

-- Manuel!... Era para teu bem!

Montou a cavallo, caminhou a galope até ao Tejo.

Hesitou um momento. Qual o caminho a tomar? Se o Conde já houvesse passado!... Mas se outro fôsse o perigo? Não seria mais prudente procural-o no paço?

-- Nossa Senhora nos valha!

Metteu á esquerda, para os lados de Xabregas, a toda a brida.

Comtanto que ainda chegasse a horas...

Avistou ao longe um cavalleiro seguido por um lacaio.

Esporeou o cavallo.

Os outros metteram a galope.

-- Doidos!... doidos! dizia comsigo Manuel Furtado sem saber o que dizia.

Ainda havia no céo umas ultimas estrellas e era quasi deserta a estrada.

Já reconhecêra o Conde. Chamou-o com um grito vibrante. A bulha do galope abafou-lhe a voz.

-- Doidos!... doidos! repetiu.

Lá ao longe a estrada formava um cotovêllo. Ali, cem passos mais longe, eram occultos os assassinos. Se antes o Conde não recebesse aviso, era homem morto.

-- Alto!... Alto!... gritou Manuel Furtado a toda a voz, acenando com o lenço.

Não o viram nem o ouviram. Lembrou-se das pistollas e descarregou-as para o ar.

Iam o Conde e o lacaio quasi a chegar á curva da estrada.

-- Dois tiros! gritou este.

Pararam, arripiaram a carreira, correram a todo o galope sobre Manuel Furtado. O lacaio apontava para elle as pistolas.

-- Senhor Conde! gritou o capitão.

Parára o cavallo. Tirára o chapéu.

Ao lusco-fusco da manhã, o Conde reconheceu-o.

-- Manuel Furtado! exclamou.

-- Perdôe V. Ex.ª a maneira por que chamei sua attenção. Não sei quem guiou meus passos, mas só que a morte vos esperava ali, senhor a pouco mais d' um tiro de arcabuz.

-- A morte! exclamou o Conde. Mas como vos foi dado...

-- Ha pouco mais d'uma hora, o acaso me trouxe por esta estrada e vi tres homens armados de arcabuzes escondendo-se por detraz d'aquelle muro.

-- Mas como soubestes que contra mim...

Manuel Furtado não respondeu.

-- Nao quereis ser denunciante, disse-lhe o Conde estendendo-lhe a mão. Obrigado, acrescentou.

Voltou ao paço devagarinho.

Já as ruas se animavam e elle, com a cabeça pendida sobre o peito e duas lagrimas nos olhos, meditava no muito que já soffrêra, no quanto havia de soffrer ainda. Já lhe queriam a morte!

Entrou no quarto quando vinha o sol a nascer. O filhinho acordára o ria n'uma alegria doida para a restea de luz que lhe vinha doirar os cortinados do leito. O Conde agarrou-se a elle, beijando-o muito. Queria viver para o filho, para a mulher que lhe estendia os braços. Gostou de estar vivo.

Ajoelhou diante do oratorio e disse para a Condessa:

-- Resa commigo; a Virgem Madre de Deus fez-me hoje um milagre.

CAPITULO VII

Arma-se o Paço

El-rei dormia descançado. Nem sequer se lembrava do que tentára contra elle o Infante. Tudo esquecera ante as lagrimas de Magdalena, que tanto o haviam commovido, ante aquelle virginal amor.

N'aquella manhã mesma teve o Conde de Castel Melhor por seus agentes noticia confusa do movimento preparado pelo Infante e das reuniões que se haviam effectuado na côrte Real onde concorrêra a principal nobreza. Achava-se occulto em casa de D. João da Silva o general de artilharia, D. Luiz de Menezes, que com grande diligencia viera de Santarem a Lisboa, fugido de seu desterro, para tomar parte na conspiração. Contava o Infante com o Duque de Cadaval, dos primeiros na côrte, a quem, por instancias da Rainha, El-rei concedêra o indulto.

Que se tramava contra elle e contra El-rei? Tinha ali, sobre a mesa de trabalho, os nomes mais illustres de Portugal, manchados pela nota de rebeldes a seu rei legitimo. Se algum d'elles seria mandatario dos assassinos? Custava-lhe a crer em tal infamia, embora muitos os tivesse por inimigos.

Luctaria! Luctaria, que valia mais que todos... até que novas forças achassem.

Avisou El-rei que desejava ir beijar-lhe a mão. Encontrou-o no quarto, conversando com Simão Peres, familiarmente, emquanto se vestia.

-- Santos dias, Conde, disse-lhe em tom alegre.

Simão Peres recuára até á porta. El-rei fez-lhe signal que saísse.

-- Ha males que vêm por bem, continuou. Nem tu sabes como a recordação d'aquella noite me tem enchido os meus dias!... Tomára que tudo isto voltasse ao antigo socego... Minha querida Magdalena!... Tanto gostaria de tornar a vêl-a!

Chegou-se mais ao Conde e disse-lhe confidencialmente:

-- Encarreguei o Simão de m'a trazer ao paço. Veremos se tem artes de conseguil-o. Não conheces a visinha de tua casa? A's vezes até me parece que devo gratidão ao Infante pela cilada que me armou!

E riu -se.

-- Melhor foi a rainha noite que a d'elle, por certo.

Viu o masso de papeis que o Conde trazia sobraçado. Fez um gesto de aborrecimento. Afastou-o, cheio de preguiça.

-- Hoje nao.

-- Senhor, disse o Conde, um aviso que do céo tive permittiu que ainda hoje eu pudesse beijar a mão de V. Majestade.

El-rei, pasmado, olhou para elle.

-- Quizeram matar-te?

-- Sabe V. Majestade quão pouco valho junto de seu throno; illudidos, foi para derribar o throno de V. Majestade que mandaram a tres assassinos que me esperassem.

-- Quem?

-- Ignoro-o, senhor, por emquanto. Mas os gentis-homens da camara do Infante, seu mestre Francisco Correia, seu secretario João de Roxas, hão tido ultimamente conferencias com o Duque de Cadaval, o Conde de Sarzedas, Miguel Carlos de Tavora, Luiz de Mendonça Furtado, D. João da Silva e muito mais, parentes, amigos... e até...

Custou-lhe a pronunciar os nomes.

-- Quem mais? perguntou El-rei como assustado.

-- O marquez de Marialva e o Conde de Villa Flôr.

-- E que julgas?

-- Que se conspira contra V. Majestade.

El-rei empallideceu.

-- Não póde o Infante conferenciar com seus amigos para bem do reino e do throno?

-- Não, quando secretamente se corresponde e manda vir a sua casa aquelles que fôram desterrados por V. Majestade.

-- D. Luiz de Menezes?

-- Deve a estas horas tel-o recolhido em casa D. João da Silva. Não tão a occultas fizeram suas disposições que não me viessem ao conhecimento, não tão a occultas que não o soubessem os presos no castello que se regosijaram e a côrte de Madrid que outra vez sonha com a conquista da corôa portugueza.

El- rei passou a mão pela testa.

-- O Pedrinho!... O meu Pedrinho! Dá-me ás vezes cuidado. Procurar-me assim de noite com as suas patrulhas, quando eu buscava um momento de descanço!... Agora excitar contra meu socego os fidalgos, que ahi não tardam com suas queixas!... Mas tu exageras, Conde, exageras. Bem sei que o Pedro tem más ilhargas; mas... é meu irmão, Conde, é meu irmão, incapaz de tentar contra meu poder!... Coitado do Pedro! Tenho pena que, hoje de manhã, me viesses com tão má nova. Estava tão contente!... A Magdalena, pura como uma pomba... mais ainda como uma estrella do céo!... Adorava-me desde pequenina! Deixa-me pensar n'ella. Pudera a sua recordação apagar nos meus delirios outra imagem, outra...

Murmurou o resto da phrase tão em voz baixa que não lh'a pôde o Conde ouvir. Mas adivinhou-a e estremeceu.

-- Olha, faze o que entenderes; dá as tuas ordens, dize que sao as minhas. Para que me acordaram hoje?... Dormia tão bem! Sonhava...

No dia seguinte armava-se o paço com todas as patrulhas de El-rei, dobravam-se as guardas, dava-se ordem á cavallaria para que ficasse prevenida nos quarteis, e á esquadra, que andava fóra da barra, para que recolhesse ao porto.

Foi pelo Infante recebida com surpresa aquella manifestação. Soubera da gorada tentativa contra a vida do Conde.

Havel-o-hiam prevenido? Haveria entre elles algum traidor?... Quando mal começava sua obra contra o ministro poderoso, assim o paço se defendia?

Chamou os seus fidalgos, consultou-os e, por conselho de D. Rodrigo, escreveu a El-rei expondo-lhe seu sentimento. Varias advertencias tivera para se resguardar dos perigos que lhe ameaçavam a vida, mas o presente excesso lhe serviria de cautela, reconhecendo que aquelles que o deviam respeitar como primeiro defensor da immunidade do paço, resolvendo-se a armal-o sem lhe dar conta, o publicavam por inimigo da conservação da monarchia.

E terminava o papel pelas seguintes palavras dictadas por D. Rodrigo de Menezes com a approvação de todos os mais:

«Prostrado aos pés de V. Majestade a quem venero como rei e a quem amo como irmão, peço-lhe, Senhor, queira apartar da sua assistencia o Conde de Castel Melhor, a quem como primeiro ministro devo attribuir movimento tão desusado, e executar n'elle tão exemplar castigo que fique satisfeita a grande culpa a meu respeito commettida. Espero que V. Majestade deferirá minha justa pretensão ou ser-me-ha preciso tomar a resolução de passar a reinos estranhos a buscar na distancia de minha patria o desafogo de meu sentimento.»

-- O que tu fizeste!... O que tu fizeste! dizia de cabeça perdida El-rei ao Conde de Castel Melhor.

Eram nove horas da noite quando o conselho de estado se reunia para examinar a proposta do Infante.

Assistiram El-rei e a Rainha, e ella tão calada, que assustava a muitos. Durou até alta noite a conferencia e ficou decidido que, no dia seguinte de manhã cedo, dissesse o Marquez de Marialva ao Infante, da parte de El-rei, que por justas razões e cautelas relevantes mandára armar o paço e dobrar as guardas; que, se o consentisse o Infante, iria o Conde de Castel Melhor beijar-lhe a mão e deitar-se-lhe aos pés.

Ergueu-se a Rainha e caminhou para seus quartos sem haver descerrado os labios.

Não admittiu D. Pedro a satisfação que lhe queriam dar e novamente mandou pedir a El-rei resposta cathegorica do papel que lhe remettêra.

Alterava-se a côrte mais em cada dia. Vieram assistir o Infante os Condes de Palma e de Villa Verde, aos quaes se uniram em breve Pedro Jacques de Magalhães, Gil Vaz Lobo, Pedro Vieira da Silva, e muitos fidalgos. A' obediencia do Infante estavam no Porto o Conde de Miranda, em Traz-os-Montes o Conde de J. João.

Tão sómente em si confiava o Conde de Castel Melhor.

CAPITULO VIII

O cometa

Teve El-rei por esse tempo um grande desgosto: Simão Peres não soube dar conta do recado que lhe elle encommendára. Magdalena não viera ao paço. O pobre do taberneiro tanta pancada levára dos homens da ronda que, por muito que El-rei o recommendasse a seus physicos, pagou com a morte o haver gritado aqui d' el-rei.

El-rei passeava no eirado e Simão Peres cabisbaixo ouvia-lhe a admoestação. Desculpava-se. Era preciso que o Antonio não voltasse a casa n'aquella noite; os soldados é que tinham, em demazia zelosos, abusado das ordens. Já estava costumado a que lhe levassem a mal o que fazia muito por bem.

Henrique Henriques pudéra conversar com Magdalena inconsolavel. Promettêra-lhe em nome d' El-rei um dotesinho com que entrasse no convento da Esperança, pois queria levar os dias, que ainda tivesse de viver, na penitencia e na oração.

-- Eu lh'o pagarei, disse D. Affonso. Seja em desconto de meus peccados! Mandarei dizer dez missas por alma do Antonio.

Olhou para o céo, viu o cometa.

Continuou:

-- A's vezes tenho medo que os mortos me appareçam. Mandarás dizer trinta missas.

E continuou passeando.

-- Magdalena! dizia comsigo. Só levas para a tua cella o remorso do teu amor, o remorso da vontade com que te entregaste á minha fraqueza. Mas tu, sim, tu amaste-me... E eu perdi-te para sempre!

E tinha d'aquella mulher, encontrada n'uma taberna, uma saudade profunda. E' que, pobresinha como era, o tinha amado pobresinho.

Sentia-se triste.

Julgára que o pequenino o consolasse, e fôra dar-lhe um beijo. Tinha a testinha tão quente, os olhos tão amortecidos! Que teria o pequenino? Havia quinze dias que andava tossindo... Como se parecia com a Falcôa!

Que alegrias elle tivera com essa mulher e que horas -- agora de tanta saudade -- passara a seus pés, ouvindo-a chilrear muito alegre, cantar umas cantigas de que ainda hoje não sabia recordar-se que nao lhe désse uma tristeza. E' que ella mudára muito e elle ás vezes horrorisava-se lendo piedade nos olhos d'ella, resignação em seu sorriso. Bem lhe via má vontade nas caricias que lhe acceitava, e, quando d'elle se esquecia e seus olhos formosos se distraíam n'uma contemplação saudosa, a humildade que lhes dava brilho matava-o de ciumes. E elle sem querer saber do seu passado d'ella e a rogar-lhe de sua misericordia um minuto de esquecimento para a propria miseria! Já ella lh'o não podia dar, que a miseria era muita.

Se ao menos a Calcanhares o viesse ás vezes distrair! Mas nem elle se atrevia a saír agora do Paço, nem era prudente chamal-a, cercados como estavam. Pediu noticias a Simão Peres.

-- Como ha de ella estar? Chorosa de saudades, é claro, respondeu elle muito compungido. De mais a mais, não lhe pude esconder que V. Majestade tinha passado a noite na taberna... Arrancou-me os cabellos, arranhou-me... Aquillo sempre gosta muito de V. Majestade!

Não se moveu um pêllo no rosto de Henrique Henriques, mas, como El-rei continuava a passear, vendo-o virar costas, disse a Simão Peres, baixo:

-- Estupido!

Aquella Calcanhares, em que Henrique Henriques tanto confiara para distraír El-rei d'um amor perigoso, detestava vel-a composta pelo rufião, embellezada a seu gosto.

Como era possivel viver assim sem um carinho! El-rei de Portugal arrastava a vida mais amargurada que muitos escravos. Chamára por uma carta o irmão, para a sós falar com elle, para se lhe deitar nos braços, para lhe pedir que mais o não atormentasse; e elle não viera, e elle não lhe respondêra! De que lhe servia o ser irmão?

Tinha uma esposa tambem. Ah! se um dia ella a si o chamasse e com um bocadinho de ternura, baixasse o seu olhar sobre o seu amor d'elle, medroso, talvez a neve se desfizesse em que morria de frio! Talvez... Talvez... Ai, quantas horas levara n'aquelle pensamento, seduzido por tanta graça que a rodeava, por tanta luz que parecia de si mesma irradiar, pelo perfume trepador que deixava em seu rastro de estrella a vaguear pela terra!

Ella e o irmão, unidos a elle, que vida podiam levar de que os anjos teriam inveja! Que doce tranquilidade!...

Fôra preciso um milagre!

Mas que dôr era aquella que sempre o vinha ferir, quando ao nome do irmão unia o da Rainha? Que pesadelo lhe vinha accordar?

Cerrava mais os punhos e corria como doido pelo eirado. Não se lembrava... Não se lembrava!

O cometa ia subindo no céo entre as mais estrellas, luminoso, agoirento, prenhe de mysteriosas ameaças.

Parou a contemplal-o, e, atravez da cauda muito tenue, pôz-se a contar quantas estrellas ainda via. Se alguma d'ellas seria a sua, que não se apagava de todo?

O Antonio morrêra. Magdalena queria entrar n'um convento. Deu-lhe de repente o pavor da colera de Deus.

-- Simão Peres!... Henrique Henriques! gritou.

Correram ambos.

-- Nao vos esqueçaes: eu pago o dote de Magdalena o quero trinta missas por alma do desgraçado.

Continuou passeando, a rosar baixinho, olhando de revez para o céo.

Ouviu ao longe umas gargalhadas, que vinham lá dos lados das cavallariças; eram gritos, eram bramidos, eram uivos.

-- Algum que amofinam, disse D. Affonso comsigo.

Irou-se.

-- Simão! chamou. Quero saber de que se riem. Pois não vêem o que eu soffro?

Simão Peres saíu correndo. El-rei approximou-se de Henrique Henriques, sempre de pé, firme como uma sentinella ao pé da porta.

-- Uma d'estas noites, seja qual fôr o perigo, quero vêr a Calcanhares.

Simão Peres voltou. Vinha a rir tambem.

-- Era o doido do Fr. Gregorio que andava pelos pateos a cantar babuseiras!

-- O sebastianista! Que venha, que venha! disse El-rei contente. Talvez elle saiba explicar-me... Chama-o... Chama-o!

E com gestos ainda mais desordenados ficou passeando á espera do frade.

-- Talvez elle saiba... talvez elle saiba... dizia comsigo.

Atirou fóra o cbapeu, passou pelos cabellos as mãos convulsas. Approximou-se de Henrique Henriques.

-- Apalpa-me a testa. Vê se tenho febre.

O frade entrou muito curvado, todo a tremer, empurrado por Simão Peres. Trazia a sacola ao hombro. Ajoelhou deante d'El-rei, a quem beijou a mão.

-- Que mal te faziam? perguntou-lhe D. Affonso.

O frade quiz sorrir-se.

-- Riam, brincavam...

-- Bateram-te?

-- Mantearam-me, senhor.

Todo elle estremecia. Corria-lhe o suor em fortes bagas pelas pregas do rosto.

Quiz desculpal-os.

-- São rapazes, meu senhor.

-- Que lhes havias dito? perguntou-lhe El-rei.

Fr. Gregorio ergueu para elle os olhos, que exprimiam um doido terror. Olhou depois para o céo, apontou para o cometa.

-- São peccadores!... São peccadores! E não querem ver os signaes extraordinarios de Deus irado! São peccadores...

E, apontando para El-rei, com o dedo tremulo com que apontára para o céo, recuando como espavorido por um mysterio que desvendasse, disse-lhe:

-- Sois peccador!

E caiu do joelhos.

-- Dai esmola aos pobresinhos, se ainda tendes coração. Apagae no céo os signaes de Deus!... Senhor! Senhor!

Deu com a cabeça nas lages.

El-rei esfriára.

-- Doido, ergue-te! disse-lhe com voz vibrante. Quem te mandou falar?

Frei Gregorio ergueu a cabeça, mas continuou de joelhos. Bateu nos peitos.

-- Mea culpa! Mea culpa! A que vim? A que vim?... Vox clamanlis in deserto, ninguem me escuta, ninguem! Não me escuteis que sou doido, doido!... Mettei mais um boccadinho de pão na minha sacola e Deus vos perdoará. Dizei commigo, dizei: Mea culpa!... Mea culpa!

E, batendo muito no peito com ambas as mãos, pôz-se a murmurar a fio, a fio:

-- Mea culpa!... Mea culpa!

-- Mea culpa!... Mea culpa!... repetiu D. Affonso a imitar-lhe os gestos. A culpa é d'elles! gritou furioso. Elles com o demonio tramaram contra mim! Elles se uniram nas trevas e vieram como serpentes rastejando entre as plantas negras que bebem a peçonha dos pantanos! São elles que fizeram pacto com o inferno!... O signal é para elles!

-- O signal é para os reis!... O signal é para o throno!... O signal é para vós!

O frade sentára-se sobre os calcanhares. De braços caídos, mãos espalmadas, olhou para D. Affonso implorando piedade:

-- Miserere mei!... Miserere mei! Sou doido!... Sou doido!

Foi- se erguendo, approximando-se d'elle, diligenciando o rosto contraído pelo pavor obrigal-o a um sorriso complacente.

El-rei empurrou-o.

-- Quem te mandou? Quem te mandou?

-- Foi Deus! disse o frade erguendo a mão ao céo. Não queria vêr-vos, não queria, desobedecia a Deus!... Vós me chamastes!

-- Só o inferno é commigo, respondeu-lhe El-rei, e desde pequenino me atormenta com fome e sêde. E' que nao sabes, não sabes...

Caminhava com os olhos a scintillarem sobre Fr. Gregorio que recuava medroso:

-- Miserere mei!... Miserere mei!

-- Não sabes, frade estupido, que passas teus dias a cuidar de teu ventre, o que é isto que eu soffro, o anceio que me devora e em que se gasta a minha força! Desejar, desejar sempre... Tu sabes lá o que é desejar sempre, não poder nunca!...

-- Terram diligis, terra eris! Porque desejaes os bens da terra?

-- Não é para mim que Deus pôz signaes no céo, entendes? Ou foi o diabo quem de tal se lembrou.

-- Senhor!... que blasphemais! disse Fr. Gregorio, juntando as mãos, apavorado, não caísse o cometa do céo, incendiando a cidade.

-- Simão Peres, as minhas pistolas!

O frade atirou-se outra vez ao chão com os braços estendidos.

-- Perdoai-me, senhor, perdoai-me.

E, emquanto El-rei falava, ia baixinho rezando o acto de contricçao.

-- Sou novo, dizia El-rei; não se morre na minha edade. Sou rei por ora; quem manda por ora sou eu!

O frade murmurou, que mal se ouvia:

-- Vigilate, quia nescitis diem neque horam.

Simão Peres voltava com as pistolas.

-- Que ides fazer, senhor? perguntou Henrique Henriques a El-rei, assustado, disposto a suster-lhe o braço.

-- Mostrar a este sandeu o caso que merecem suas palavras.

Engatilhou uma das pistolas. Ergueu os olhos para o cometa, encheu-o de insultos. O frade foi-se pouco a pouco encolhendo; levantando a cabeça, soerguendo-se nos braços, assombrado do que ouvia, d'aquelle desafio ao céo.

-- Senhor!... gritou ainda uma vez. E' um signal de Deus!

-- Pois, se o céo me ameaça, eu desafio o céo!

E apontando a pistola para o cometa, El-rei disparou o tiro.

-- Miseremini!... Miseremini!...

E o frade caíu outra vez de borco, desmaiado.

CAPITULO IX

A accusação

Como parecia socegada a Rainha, recolhida quasi sempre nos seus quartos, com seu ar melancholico, mansa deslisando pelos corredores até á capella, alheia parecendo a quanto se forjava contra o throno em que se ella sentava ao lado d'El-rei de Portugal!

Por ella temia o Conde de Castel Melhor viesse a caír sobre o reino a colera de Deus. A victima podia alguma vez transformar-se em algoz.

Nunca junto d'El-rei lhe falava em D. Maria Francisca de Saboia, cuja vida no paço era como de religiosa em seu convento. Nas raras vezes que a avistava, admirava-lhe o ar sereno e perguntava a si mesmo d'onde lhe viria tanta conformidade, se d'um coração disposto pouco e pouco ao martyrio, se d'uma esperança occulta de vingança proxima. Os espias devotados, que espalhados por sua ordem enchiam o paço, a capital e a provincia, nenhum podia dizer-lhe o segredo d'aquella alma.

A lucta continuava cada vez mais accesa contra o escrivão da puridade.

Deliberou o Infante dar conta aos tribunaes, senado da camara e casa dos vinte e quatro das razões de sua queixa. No mesmo dia mandou recado aos conselheiros de estado e nobreza da côrte que lhe viessem falar á Côrte Real. Só desejava, disse-lhes, uma boa direcção do governo e o socego publico; mas tinha do expôr seu sentimento vendo armár-se o paço, formadas as tropas da côrte, sem que lhe fôsse dado saber a causa de tal movimento.

A maior parte dos que o ouviam inclinavam a cabeça ás razoes do Infante, applaudindo seu procedeer sua inflammada eloquencia.

Ia do menos para o mais, e terminou dizendo:

-- Tamanha é minha dôr que me obriga a desprezar avisos que me fizeram para resguardar minha pessoa do perigo de morte. E' que mais estimo a immortalidade da opinião que a da vida temporal e caduca.

Já não podia El-rei com tantas queixas, tamanho desasocego. As noites que passava...! Parecia-lhe ás vezes que endoidecia. Mais lhe valêra. Queria ser como uma criancinha pequena e que se põe a olhar para uma flôr de serralha que o vento leva para um lado, para o outro, que sobe, desce... e a criança a rir, a olhar para a flôr...

Ah! que tormentos soffria! Endoidecer... Esquecer... Quem lhe dera esquecer!

Sentia-se quebrado de forças. Não tinha ninguem que lhe valesse!

Mas quando soube do caminho tomado pelo Infante, acordou do marasmo.

Chamou o Marquez de Marialva. Queria que o irmão lhe dissesse immediatamente de quem soubera que contra sua vida se conspirava, que logo mandaria castigar o delinquente convencido ou o delator falsario.

Respondeu o Infante que materias tão graves não eram de tratar subsistindo no poder o Conde de Castel Melhor, absoluto primeiro ministro, dependentes como estavam de seu favor os que houvessem de ser juizes.

Que dias fôram aquelles para El-rei!... Endoidecer!... Antes queria endoidecer. Lembrou-se do cometa e teve medo.

Queriam separal-o do Conde, bem via. Mas quem lhe havia então de acudir? A que braço pedir arrimo?

Não!... Não podia ser!

Chamou a congresso os conselheiros de estado, o chanceller-mór, os desembargadores do paço e os dos aggravos, os juizes e procuradôres da corôa, os procuradores da fazenda o dois ministros de cada tribunal. Leu o secretario de estado o papel que o Conde do Castel Melhor lhe entregára e todos ouviram attentos:

«Com a occasião de S. Majestade mandar dobrar as guardas do paço pelas razoes que para isso teve, escreveu o senhor Infante a S. Majestade uma carta, fazendo-lhe presente o sentimento com que se achava d'aquella demonstração e pedindo-lhe que, pela culpa d'ella e porque o Conde de Castel Melhor havia maquinado contra a sua vida, S. Majestade o excluisse de seu serviço.»

Demais sabiam quantos estavam ouvindo a leitura, a que o secretario procedia lentamente, que o Conde de Castel Melhor contava votassem todos, ou quasi todos, a favor do seu intento; demais sabiam que elle assim procurava justificar-se com o mundo para não usar de meios violentos contra a pessoa do Infante.

O secretario continuava lendo, contando o que entre El-rei e D. Pedro se passára e de como S. Majestade estava prompto a castigar o reu de tão detestavel crime, com tanto que prova precedesse para maior justiça. Queria S. Majestade saber se, conforme o direito, bastava a queixa do senhor Infante para proceder ao desterro do Conde e suspensão de exercicio de seu logar. Esperava do zelo dos ministros chamados a votar n'esta materia o fariam com a attenção devida a seu serviço, ao bem e socego publico, á administração da justiça e á reputação da corôa.

O secretario, erguendo de quando em quando os olhos de sobre o papel, via os juizes, a quem era submettida a decisão da causa, meneando gravemente a cabeça, como ponderando as razões apresentadas com grande cópia.

Só El-rei se distraíra. Parecia que seu espirito vogava por muito longe. Animava-lhe a bocca um sorriso, nos olhos melancholicos luzia-lhe uma esperança. Era que, n'essa manhã, a Rainha, passando junto d'elle ao sair da missa, dera-lhe os bons dias com uma graça particular, envolvêra-o n'um olhar de seus olhos negros que o abafára com a ternura d'uma caricia.

Mal deu attenção ao que disseram Martin Affonso de Mello, João de Roxas e Pedro Fernandes Monteiro, sendo de parecer que El-rei devia mandar que o Conde se ausentasse da côrte, pois que o seu absoluto poder se oppunha a que livremente se tirasse a devassa de seu procedimento. Todos os mais votaram a favor da justificação do escrivão da puridade, dizendo que o Infante não era principe supremo, por cuja causa sua asserção não fazia plenaria prova.

E pensava El-rei:

-- Quem moveria o animo da Rainha? Ou seria a intensidade do meu desejo a encantar meus olhos acordados?

Chamou os seus gentis homens da camara, nobreza e prelados, o juiz o escrivão do povo, e a todos declarou que, aconselhado pelos ministros mais auctorisados, havia resolvido não separar de si o Conde de Castel Melhor.

Despachou proprios a todos os governadores das armas declarando sua resolução, e muito especialmente ao Conde de S. João mandou que não saísse de Traz-os-Montes nem deixasse saír pessoa alguma sem expressa ordem sua. Da armada que recolhêra ao rio ninguem da gente de mar e guerra desembarcava.

Quando, no dia seguinte de manhã, El-rei recebeu o papel do Infante em resposta á resolução que lhe mandára intimar, vestia-se á pressa; queria outra vez com a Rainha encontrar-se no corredor da capella; queria verificar se fôra para elle aquelle sorriso de vespera, queria conchegar sua alma fria ao lume dos olhos negros que, um instante delicioso, haviam pousado nos seus.

E o Conde tremia de raiva ao lêr as phrases do Infante que o accusavam, ao perceber com que ingratidão lhe pagavam o que havia trabalhado por consolidar o throno do rei natural.

Dizia D. Pedro ao terminar sua carta:

«E por conclusão torno com todo o devido respeito a segurar a V. Majestade que, se V. Majestade fôr servido que se me negue o que tenho proposto, sem falta alguma buscarei em domicilio alheio a egualdade da justiça que me falta na patria propria, onde, ao menos, terei segura a minha vida, a dos meus criados e a das mais pessoas que generosamente pretendem acompanhar-me, e terei por premio desembaraçar o reino e vassallos de V. Majestade da perturbação que padecem.»

-- Querem assustar-me com a guerra civil, disse o Conde. Pois nem por tamanho perigo me affastarei do meu caminho.

Entretanto o Infante combinava com os Condes de Sarzedas, da Torre e de Villar Maior partir para a provincia de Traz-os-Montes, onde poderia contar com o auxilio do conde de S. João e de seus irmãos, que o acompanhariam até os ultimos perigos. Egual offerta lhe haviam feito o Conde de Miranda e seu irmão, pedindo-lhe aquelle licença para se desobrigar da homenagem dada a El-rei do governo do Porto.

Alteraram-se a côrte e o povo ao saberem das resoluções do Infante. Já na côrte de Madrid se não falava na tão desejada paz com Portugal, tanto haviam crescido esperanças na Rainha de Castella de, com pouco esforço, recuperar a perdida corôa.

E El-rei distraído vivia n'um sonho. A Rainha falava-lhe, a Rainha mostrára-se triste de tantas discordias. Deixava que elle lhe beijasse a mão, segurava-a um instante entre as suas.

-- Não me quereis bem, dissera-lhe.

Se não lhe queria bem!

Que lhe quizera ella dizer? Pois que não faria elle para resgatar-se de todas suas culpas, de toda sua vergonha? Se lhe mostraria ella em tão poucas palavras ter adivinhado o seu desejo de paz e de tranquillidade?... Os tres, elle, a mulher, o irmão, todos juntos n'aquelle paço, respirando uma atmosphera por que elle anciava, carinhosa, perfumada...

Ah! se ella quizesse!... Tanto elle pediria ao céo um milagre, que lh'o havia de conceder.

Aquella mulher!... Como lhe elle queria com anceio! Como, trémulo e de longe, a adorava!

Os tres!

Passou a mão pelos olhos. Sempre aquella visão mal definida!

Chamou Henrique Henriques e dictou-lhe uma carta para o Infante, cheia de expressões muito meigas, pedindo-lho que voltasse ao paço, que não o abandonasse quando talvez tanto precisaria de seu conselho e de sentir seu coração fraterno bater junto do seu.

Lembrava-lhe quanta vez o afagára e se mostrára contente de o ter á sua ilharga. Chamava-lhe ternamente Pedrinho, irmão querido da sua alma.

Pediu segredo a Henrique Henriques, que pelo amor de Deus, nada revelasse ao Conde d'aquella sua resolução.

Mandou a carta á noite e dormiu descançado. No dia seguinte contaria á Rainha o que resolvêra e um sorriso meigo, um novo aperto de mão, mais terno, mais demorado, o pagaria de sua acção generosa.

Que somno suave teve e como acordou descançado! Ainda no entre-sonho lhe parecia respirar n'um jardim cheio de rosas e de violas orvalhadas por madrugada de primavera.

O Conde veio a seu quarto muito cedo. Trazia má nova por certo. Leu-lh'a no rosto. Era o pequenino que estava peor, com maior febre.

-- Em perigo? perguntou El-rei.

-- Não, por emquanto.

D. Affonso respirou. O Conde calava-se. Henrique Henriques faltára ao promettido a El-rei e contára-lhe, quasi palavra a palavra, o conteudo da carta. Não tardou a resposta. El-rei fez um movimento de alegria.

O Infante desenganava-o de todo. Era firme em seu proposito de partir.

-- Mas que mais quer elle?... Que mais quer de mim? gritou El-rei soluçando. Ouve, disse approximando-se do Conde de Castel Melhor e segurando-lhe os braços com força. Escrevi ao Pedro, puz em minhas palavras quanto achei de meiguice em meu coração para aquelle ingrato; tudo lhe perdoava e pedia-lhe, como se pede a um filho, que me não abandonasse. Lê, lê o que me responde!

-- Sei, meu senhor. E' natural que S. Alteza teime em sua resolução. E' o herdeiro do throno, meu senhor.

-- Não, não! exclamou D. Affonso exaltado. Não é, não quero que o seja. Se eu morrer... Ah! elle quer, ambicioso, erguer alto a cabeça!... O herdeiro do throno é aquelle que lá tens comtigo, é meu filho!

-- Não o quer Deus! disse comsigo o Conde de Castel Melhor.

El-rei vestia-se á pressa, atabalhoadamente. Iria contar tudo á Rainha, dizer-lhe o que julgava haver lido em seus olhos, ter-lhe sido ordenado pela queixa apenas expressa por um movimento de seus labios. O Infante é que não quizera, elle é que se mostrava revoltado contra seu rei e seu irmão.

O Conde nada dizia; mas com um olhar fito e doloroso parecia querer prescrutar o segredo que El-rei escondia no peito.

O sino tocou.

-- São horas, disse D. Affonso.

Esperou pela Rainha. Começou a inquietar-se. O padre subiu ao altar: decerto receberia ordem. Porque faltaria ella? Ajoelhou inquieto.

Tanto desejára aquella hora! Vivêra todo um dia, uma inteira noite, anciando por aquelle minuto em que devia approximar-se d'ella no corredor silencioso onde a luz mal penetrava, ouvir-lhe a voz doce para pronunciar uma phrase que o fizesse scismar outro dia inteiro e outra vez sonhar toda uma noite.

Porque faltaria? Quantas horas iria elle passar sem vêl-a?

Que maquinaria o Infante?

Deus o ajudasse.

Quiz dar attenção á missa que o padre velho ía rosando lentamente. Um rumor de gente a levantar-se indicou-lhe em que ponto estavam. Era no Evangelho. Ergueu-se tambem. Persignou-se.

Era sua legitima esposa a Rainha, a mulher que mais no mundo desejava agora, mas em quem só de longe se atrevia a pensar. Escondia aos mais o soffrimento que de noite, no leito, o estorcia, quando mordia os punhos, de raiva impotente e de vergonha. Nunca se approximára d'ella, era ella agora quem d'elle queria approximar-se!... Não seria um principio de milagre?

-- Dominus vobiscum, disse o padre voltando-se no altar.

-- O Senhor seja commigo, disse El-rei baixinho.

Agora, sim, podia imploral-o. Era a mulher que adorava sua esposa legitima.

Em que torpezas andára! Fôra talvez castigo do céo contra elle tantas vergonhas passadas ao pé do que mais abjecto havia nas ruas negras de Lisboa, onde o arrastára seu vicio. Passou-lhe pela mente a Calcanhares em cujos olhos ás vezes temêra vêr um sorriso de mofa e de desprezo logo disfarçado. E para que ella se calasse, entornava-lhe oiro no regaço e diligenciava illudir-se quando lhe ouvia phrases de amor. Mas, quando ella era só com Simão Peres, que diriam os dois?

Sentiu o sangue subir-lhe ao rosto.

-- Orate, fratres, disse o padre.

E El-rei ajoelhou outra vez sobre a almofada de velludo e tentou orar.

Febril o pensamento não o deixava recolher em sua prece. Revia ante seus olhos os olhos chorosos de Magdalena. Era agora no claustro da Esperança. Phantasiava-a toda vestida de branco, deslisando de mansinho pelas arcadas, a emmagrecer, a estiolar-se, a definhar-se em seus remorsos. Ella, sim, tinha-lhe amor, amor feito de compaixão, de enternecimento, de saudades infantis. Virgem lhe caíra nos braços, virgem entrára no convento, mas com suas vestes brancas ennodoadas.

Era o momento de se coramemorarem os defunctos; resou pelo Antonio, resou por ella que não tornaria a vêr, e estremeceu com aquelle agoiro.

Queria resar e não podia. Toda a lembrança se envolvia em roupas negras de pesadello. Tinha mêdo do castigo.

O padre commungára; mas El-rei não deu pelo rumor dos fieis a levantarem-se. Continuou de joelhos, com os cotovellos sobre o parapeito do côro, a cabeça entre as mãos.

Era Maria da Boa Hora quem n'aquelle instante lhe lembrava. Uma só vez a tivera nos braços a sentir-se feliz, uma só vez quando dos braços de outro chegava, cheia de lagrimas de dolorosa saudade, que lhe haviam, durante seus beijos, amargado na bocca.

Que lhe dissera o Conde do filho? Que estava peor, não fôra? Quereria Deus castigal-o em seu filho?

Tinha mêdo da justiça de Deus, tinha mêdo!... Queria rezar e não podia.

Sentiu correr-lhe pelas costas um suor frio.

A missa acabára. Ergueu-se.

Porque não viria a Rainha?

Saiu da capella, mandou logo informar-se.

S. Majestade não passára bem a noite. Não devia de ser coisa de maior, pois nem chamára Martim dos Reis.

El-rei socegou. Entrou no quarto, approximou a cadeira da janella aberta sobre o Tejo, quiz ficar só e quedou-se a meditar.

Entretanto a Rainha em seu quarto conversava com o Duque de Cadaval, a quem mandára recado logo de manhã.

Era de todos os fidalgos portuguezes aquelle a quem demonstrava maior affecto. Estimava-o pela sua mocidade expansiva, maior nobreza, maneiras mais cortesãs. O Duque falava francez e ella tinha tanto que dizer que lhe custaria ter de estar a procurar palavras.

Perguntou-lhe pelo Infante, quiz saber os fundamentos de sua queixa; mostrou-se tambem muito offendida contra o Conde que lhe cerceara todo o poder que havia de ter junto do marido. A causa do Infante interessava-a muito, porque era a causa do reino tambem.

-- Pobre Portugal! dizia. Ameio-o muito, antes ainda de conhecel-o, pelo que sabia de sua gloriosa lucta contra a poderosa Hespanha, pelo que havia lido de suas façanhas em todas as épocas. Quando entrei no Tejo, o céo só me falava de felicidade. Sentia-me orgulhosa de ser Rainha dos portuguezes.

-- Todos aqui vos amam e vos respeitam, minha senhora, disse o Duque curvando-se.

-- Todos? perguntou ella com um sorriso entre desdenhoso e triste. O reino, sim deve ser-me grato. Respeita-me a melhor parte da nobreza, estima-me o povo, creio eu. Não queria deixar o reino, sem lhe haver dado uma prova de meu amor.

-- Deixar o reino! exclamou o Duque tão em voz baixa, como suffocada pela surpreza, que a Rainha sorriu de sua innocencia.

-- E' que não sabeis o que hei padecido durante este anno tão longo, o quanto ha pesado em minha consciencia de mulher educada christãmente a mentira em que tenho vivido n 'estes paços. Chamam-me Rainha, dão-me de Majestade o tratamento. Rainha não sou e Majestade não tenho, que só pertence á esposa de El-rei.

-- Mas... disse o Duque atrevendo-se a interrompel-a.

A Rainha calou-se um instante e disse por fim separando bem as syllabas, para que nitidamente o Duque as percebesse, sem uma duvida.

-- E' nullo o meu casamento.

Olhou para o Duque, mas não lêu em seu olhar surpreza.

-- E todos o sabiam e assim me enganaram! disse D. Izabel de Saboya vermelha de colera.

-- Culpa foi dos mais chegados a El-rei, só d'elles, observou o Duque.

-- Não devia saber o Conde a que vergonha me expunha? Porque andou assim criminosamente? Para que me foi arrancar a minha familia por quem choro dias e noites lagrimas de saudade que me correm as faces?... Monstro! monstro!... Queria com a ajuda de França vencer por uma vez Castella, e que lhe importava a desgraça d'uma innocente creanca duramente sacrificada á sua vaidade? Conto comvosco, Duque para que sejaes meu procurador em meu processo.

O Duque inclinou-se.

Não lhe permittia o pouco que do mundo por sua pouca edade conhecia lêr no rosto da Rainha o relampejar do triumpho.

Ella continuou:

-- E' uma estrangeira quem longe dos seus vos implora, dos seus para cujo lar quer voltar, onde chore eternamente a ruina de suas illusões. Para ruim cargo vos escolho, perdoae-me. Sei que a muitos perigos ides expor-vos, mas conheço a tempera de vossa alma.

-- Mais que a vida não arriscarei, senhora, e de bom grado a daria por vós.

-- Trouxe commigo o meu dote, que os preparos de guerra me levaram, e de bom grado o entreguei para que mais cêdo Portugal conquistasse a paz e melhor se assegurasse o throno do senhor Rei D. Affonso.

-- Como pagar-lhe o dote? scismava o Duque.

Ella continuou com a maior serenidade.

-- Sabeis que haveis de exigir o meu dote?

-- Cumprirei, senhora.

Minha consciencia, Duque, não permitte que eu viva por mais tempo n'este paço. Meu remorso de mulher christã punge-me tão cruelmente que, de manhã, vejo encharcada por minhas lagrimas a roupa da minha cama. Acudi-me, Duque.

E verdadeiras lagrimas corriam-lhe pela cara.

O Duque, d'olhos no chão, scismava,

Ella perguntou-lhe:

-- Duque, porque não me respondeis? Pois não será justo o meu pedido?

-- Senhora, sem duvida.

-- Algum inimigo temeis, poderoso?

-- Sim.

-- E julgaes vós que não terei por mim a minha patria? Cuidaes que El-rei de França, Luiz XIV, não tomará partido por sua prima vilipendiada injustamente?

O Duque, perante a ameaça, sentiu confranger-se-lhe o coração. Fez-se córado, e logo depois empallideceu.

-- El-rei Luiz XIV tem mais do que a esquadra com que mandou acompanhar-me, sabeil-o decerto.

Mas sorriu-se.

-- Não será precisa, descançae, Duque. O que eu scismei hei-de cumpril-o e não me será força ir buscal-a mais longe do que em mim mesma. Basta por hoje. Quando de vós precisar, vos avisarei.

O Duque curvou-se, beijou-lhe a mão. Ia a saír recuando, pasmado de como aquelles olhos luziam. Quasi á porta tornou ella a chamal-o.

-- Escutae. Houve hoje alguma novidade entre El-rei e seu irmão?

O Duque contou-lhe a carta que o Infante recebêra e a resposta que enviára.

-- Era digno o Infante de ser rei de Portugal. Dizei-lhe da minha parte que esta noite conversarei com El-rei e que ámanhã o Conde de Castel Melhor deixára o poder. Ide.

O Duque ao saír cumprimentou a camareira-mór que esperava na ante-camara.

A Marqueza entrou no quarto da Rainha. Beijou-lhe a mão. Deu-lhe o recado de El-rei. Viu-a tão serena, que socegou.

Ainda não é para tão cêdo, disse comsigo.

E a Rainha pensava:

-- Rainha sou de Portugal; rainha ficarei.

CAPITULO X

Condemnado

Nos quartos d'El-rei conversavam o Conde de Castel Melhor e Antonio de Macedo.

-- Senhor, não póde ser, dizia o velho secretario. Já não tenho forças, não tenho, e tudo me põe mêdo. Porque haveis assim de abandonar o cargo?... Pois não mereceis a confiança d'El-rei?

-- Culpas tive e grandes, disse o Conde tristemente. Devia de ter ouvido os conselhos de minha mãe, colher algum fructo da morte de meu pae, que, por demais se mostrar fraco perdoando e querer conciliar o que era inconciliavel, não viu proveito a muitos sacrificios e morreu pelos desgostos ralado.

-- Vosso pae vos foi exemplo de quanto bem fizestes.

-- D'elle herdei o amor á nossa terra. Mas de que valeram meus esforços?

-- Erguestes Portugal, que tão baixo caíra.

-- Não me deram tempo a consolidar minha obra; hão de ser contra mim quantos choraram tantos mil mortos na campanha. Soldados, e muito bons, encontrei em verdade; eram já gloria de Portugal os homens de Montijo e das linhas d'Elvas; mas quantas vidas haviam custado essas batalhas e como outra vez ameaçava ruina o throno do sr. D. Affonso! Comprámos com um dote louco, entregue á Infanta D. Catharina, o auxilio do Inglaterra; o commercio expirava; por todos os lados novos inimigos nos surgiam. El-rei chamou-me para seu lado, e eu, rodeado de traidores, ergui alto a cabeça e soube defender o reino.

-- Cumpristes vosso dever, disse Antonio de Macedo, erguendo-se.

-- Não, não cumpri, continuou o Conde, estreitando a mão que se lhe estendia affectuosamente. Faltou-me ter animo para castigar a traição e com minha fraqueza animei a vibora que se escondia. Vejo-lhe os dentes agora, conheço-lhe a peçonha.

-- Tem-vos muito amor El-rei; falae-lhe claro, mostrae-lhe os perigos; ha de attender-vos.

-- Demais o sacudi do somno em que o lamentava mergulhado.

-- Pois nem vendo como inquieto se mostra o reino inteiro dará ouvidos a vossas razões?

-- Furias que lhe duram um quarto d'hora, ameaças vãs, promessas de castigos nefandos, com tão pouco se desaltera seu espirito voluvel. Uma creança! Quanta vez, dolorosamente, acatei sua vaidade, e -- mal andei -- protegi seus vicios! Ah! meu amigo, que não sei como as faces me não cáem de vergonha! Era com lama vil que eu cimentava meu poder! O meu sonho abafava os meus remorsos; era o sonho lindo de vêr Portugal impondo as condições d'uma paz gloriosa! Tudo se evaporou, tudo, quando eu começava a vêr luzir a aurora!

Eram profundamente tristes suas palavras; Antonio de Macedo ouvia-lh'as e com um gesto das mãos trémulas protestava.

-- Cobardes! cobardes! exclamou o Conde n'um tom de voz mais alto.

-- Era bello o sonho!... se era! disse Antonio de Macedo sacudindo a cabeça toda branca. Mas porque falaes agora assim? Quem vol-o desfez contra vossa poderosa vontade?

-- Tem de ser, respondeu o Conde em voz sumida. Diz-me o coração que tem de ser. Um só inimigo temía; esse agora me surgiu. Luctei contra as forças de Castella e venci-as; não eram o Infante e seus sequazes que me haviam de pôr mêdo.

E, muito mais baixo ainda, acrescentou:

-- Tremo d'ella sómente.

-- D'ella?... disse Macedo, sem querer perceber, mas receoso da verdade.

-- Sim, da Rainha. Anda aquelle homem atraz de toda a luz e não ha sustel-o n'um mesmo amor. Deu-se o que eu mais receava agora para mal d'El-rei, o mesmo que eu já tanto anhelara para seu bem. Determinou a Rainha falar esta noite com elle...

-- E que vêdes de tão perigoso...

-- Vejo na sombra dois montros, combinando a morte do desgraçado Affonso, o victorioso. Chama-se um d'elles o adulterio...

-- Senhor Conde!

-- Escutae o nome do outro para que se vos arripiem as carnes. Chama-se o incesto.

Antonio de Macedo recuou de pasmo.

-- Mas como...

Não terminou a pergunta. Abafou-lh'a na garganta a entrada de El -rei.

O Braz acompanhava-o com um pequenino cofre nas mãos.

-- Dois amigos encontro, disse, approximando-se e dando a mão a beijar a Antonio de Macedo. Folgo em vêr-vos. Tenho andado triste estes dias, como se o coração me adivinhasse desgraça.

-- Nada temais, observou-lhe o Conde. A cada porta vigia um soldado.

-- Sim, que me impede o saír e deixa penetrar o tedio que me opprime. Lá fóra, meu irmão, o culpado, respira á farta o ar livre.

-- Se me daes, senhor, a força que não tenho...

-- Bem sei, e o ar livre para mim e a prisão para o Pedro. Antes como rei eu perdoe do que puna um irmão. Mas socega, vae acabar quanto me ha tirado o somno e feito invejar a sorte dos mendigos, que andam por onde querem, de sacola ao hombro, encontrando sempre um bocadinho de pão pelo amor de Deus. A'manhã eu te direi onde a paz me aguardava.

Sorriu-se. Chamou o Braz. Mostrou ao Conde e a Antonio de Macedo o cofre de tartaruga e prata.

-- E' um diadema precioso que deve ser lindo nos cabellos negros da Rainha. Não tarda. Espero-lhe a visita.

-- Esta mesma noite? perguntou o Conde ancioso.

-- Agora mesmo. Nem tu sabes que doce esperança luz na minh'alma!

E, muito alegre, voltando-se para o Braz, perguntou-lhe:

-- Braz amigo, como vão os meus cães?

-- O Barbaças está peor e a Diana muito mal com tanta carraça, mas os mais vão bem, obrigado.

-- Ah! quem me déra já vêr-me em Salvaterra, com o meu Pedro, correndo um gamo!

De repente obscureceu-se-lhe o olhar.

-- Sabes se já disseram as missas que mandei por alma do Antonio? perguntou ao Castel Melhor.

-- Henrique Henriques transmittiu as ordens de V. Majestade.

El-rei ficou-se parado, com os olhos scismadores postos no espaço:

-- Pobre Magdalena, disse.

Esvoaçava-lhe pelos labios um sorriso quando a Rainha entrou.

-- Senhor, em quem pensaveis?

Elle estremeceu. llluminou-lhe o rosto uma expressão de encanto.

-- Em vós, senhora!

Logo voltando-se para o Conde e Antonio de Macedo:

-- Boas noites.

E baixo ao Conde accrescentou:

-- Espera-me ali fóra. E tu, Braz, tambem.

Que expressão de alegria tinha no rosto!

-- Esperaveis-me? perguntou-lhe a Rainha.

-- Ancioso como um noivo.

Sorriu-se ella, agradecendo o galanteio com um gesto levesinho de cabeça.

-- Nao vos causou espanto o meu pedido? Vivo tão triste e só! Ha tanta gente que parece ter jurado que vos havia de afastar de mim!... Porquê?

Era tão meiga a sua voz, tanto ao mais intimo da alma lhe descia, que custou a El-rei responder.

-- Queria que a vida me faltasse agora no sonho que estou sonhando! Queria sor vosso escravo, levar a vida obedecendo ao vosso menor desejo. Porque andaes triste, dizei, que eu vos juro, janto de vós como escravo e dos outros como rei, saberei de novo abrir um riso em vossos labios.

-- Pois não adivinhaes quanta exclamação de dôr, com mais dôr ainda, abafo a cada momento na garganta? Que me havieis vós promettido quando á patria, onde me queriam tanto, mandastes buscar-me? Eu voei como avesinha curiosa para as scintillações que me tentavam; logrei vêr-vos e foi esse o melhor instante da minha vida, o mais feliz, o ultimo!

-- Izabel! murmurou D. Affonso.

Queria desculpar-se, mas nem sabia o que dizer.

Ella mudou de rumo ao dia logo.

-- Como é triste a vossa côrte! disse. Os homens andam todos vestidos de negro; as damas são como ciprestes. Um riso nunca chega a assomar aos labios; gela em caminho. Aqui tendes a minha vida: sósinha, enregelada, pedindo á saudade que me aqueça!... Porquê?

-- Escutae-me. Vai lindo o outomno, disse El-rei. Vamos mais cêdo, se quizerdes, para Salvaterra. O ar é lá muito mais puro, mais luminosa a manhã.

-- Não me percebeis! disse a Rainha com um suspiro.

Apertou-lhe as mãos, puxou-o a si, obrigou-o a sentar-se a seu lado.

-- Porque hei de a meus pezares ir tão longe buscar lenitivo?

Poz nos olhos d'elle seus olhos carinhosos. Disse-lhe muito baixinho:

-- Vivamos muito juntos, sim?

E, com um suspiro queixoso, murmurou-lhe o nome:

-- Affonso!

Nunca El-rei sentira n'alma tamanha perturbação. A Rainha ao lado d'elle, segurando-lhe as mãos tremulas em suas mãos pequeninas, envolvia-o todo n'uma nuvem subtil de perfumes, em que lhe parecia poder morrer n'um extasis delicioso, entrar em regiões para elle desconhecidas.

Suffocava. Mal pôde articular:

-- Nunca assim me falastes!

E desculpou-se.

-- Julgaes-me avaro, mas sou um pobresinho. Que desejaes de mim?

Ella deixou caír a cabeça formosa sobre o hombro d'elle e, escondendo o rosto, como envergonhada, murmurou muito baixinho:

-- O teu amor!

El-rel estremeceu.

-- O meu amor!

Ella levantou devagarinho a cabeça, largou-lhe as mãos, affastou-se d'elle; e elle ergueu-se, afflicto, deu uns passos pela sala.

Se vira n'esse instante o olhar da mulher! Se em olhos de mulher soubesse lêr!... Foi como um relampago.

Logo ella veio ter com elle e, de pé, com as suas mãos cruzadas pesando dôcemente sobre o hombro do esposo, roçava-Ihe os cabellos pelo rosto, embriagava-o com a frescura de seu halito.

-- Ouvi-me. Porque levamos nossa vida assim? Não nasci para freira, senhor, e vós não sois um monge. Comvosco sonhei noites e noites antes de conhecer-vos; conheci-vos e não sei que filtro me destes a beber em vosso olhar severo. Porque assim me trataes, se meu coração, que eu não soube esconder-vos, conhecestes logo? Achastes que era pouco ainda o meu amor e usastes o ardil cruel de me matardes com vossa frieza? Mau caminho seguistes, que breve me vereis cadaver.

Passou-lhe o braço pelo pescoço.

-- Affonso!... São tão faceis os milagres!... Um verieis... se me amasseis!

O milagre que elle tanto pedia!... Era a Rainha quem lhe falava no milagre!

-- Se eu te amasse, Izabel!... disse n'um impeto em que poz toda sua alma. Um milagre!... Um milagre!... Fundir ao lume dos teus olhos a neve d'este meu corpo!

EUa apertou-o mais ao seio. Sorriam-lhe os olhos tão junto aos d'elle, que El-rei cerrou as palpebras e respirou n'um encanto o delicioso aroma dos labios que lhe falavam.

-- Quem de vós me aparta? Porque assim viveis longe de mim, de vosso irmão, de quem mais vos adora?... O paço armado contra a vossa familia, o reino todo inquieto... Porque?... Ah! se vós quizesseis...

Estava em frente d'elle; segurou-lhe na cabeça meigamente.

-- Porque andaes triste? Porque não buscaes a meu lado o conchego que tanto minh'alma procuraria dar-vos, meu Affonso, meu rei, esposo da minh'alma?

-- Dormirei no teu seio, sonharei comtigo!... Nunca mais, Izabel, me acordes!

-- Sim!... Com os meus beijos!

-- Como crêr-te?... Como crêr-te, se apenas sou um desgraçado, o mais rasteiro dos vermes?...

Mentes!... Mentes!... Mas que dôce esmola ouvir-te!

Então ella, com o peito a arfar, os olhos a scintillarem, murmurou:

-- Alguem nos quer mal, alguem te separou de mim, alguem ámanha virá afastar-te do trilho da nossa ventura!

E levou a mão aos olhos, como a limpar uma lagrima.

-- Não, ninguem virá, juro-te.

Foi buscar o cofre que o Braz deixára sobre a mesa.

-- Olhae. Foi para vós que hoje o mandei buscar. Que formosos ficarão vossos cabellos negros sob as scintillações das perolas e dos brilhantes !

A Rainha mostrou-se encantada.

-- Brilha assim o meu amor, disse-lhe. Como soubeste, cruel, achar o caminho do meu coração! Ah! fôra-me dado assim penetrar no teu!... Mas como?... como?. . . Se tanto m'o escondes, perverso!

-- Sou teu servo, manda-me!... Sou teu escravo!

Tão vencido te mostras, que ainda mais me venceste!

-- Dize, dize... Que queres de mim?

Respirava offegante; olhava para a mulher com uns olhos doidos; a vida que lhe ella pedisse, a vida lhe daria.

-- Quero a paz, quero a ventura comtigo. Quero o teu amor!

-- A paz, a ventura, o meu amor, Izabel!

E uns olhos cada vez mais deslumbrados interrogavam-a ainda, perguntavam-lhe porque preço.

-- Se alguem se oppuzer... disse ella.

-- O Conde? perguntou El-rei.

Ella baixou a cabeça.

-- O Conde!

E como Izabel de Saboia o fascinasse com o olhar cada vez mais tentador, mais cheio de promessas, exclamou:

-- Afoga-me em teus braços, abraza-me em teu lume! Venha um inferno depois engulir-me, que me importa? Izabel!... Izabel, dá-me uma hora das que o teu olhar me promettem!

-- Assim, assim é que eu te amo, ó meu esposo, que por tão longos mezes afastaram de mim!... Assim... assim...

E cerrava os olhos, e obrigou D. Affonso a que a amparasse.

-- Findou meu tormento! exclamou elle.

-- Hoje mesmo?

-- Juro!

Então ella apertou-o muito ao seio. Seu rosto parecia todo illuminado e nos labios um sorriso de victoria descobria-lhe os dentes como perolas.

-- Ouve ainda, disse-lhe.

Que musica suave a d'aquella voz que lhe permettia o sonhado milagre! D. Affonso sentia crescerem-lhe azas, voava dôcemente n'um reino muito longe de todos os miasmas da terra.

-- Ouve, Affonso, meu esposo. Hei de logo pagar-te, pelo silencio da noite, a dadiva do teu diadema. Da minha fronte lias de arrancar uma grinalda branca. Desfolha-a, porque é tua. Cada flôr que voar te dirá o que eu calava, quando do teus olhos desviava os meus.

Colou sous labios aos labios d'El-rei e deu-lhe um beijo demorado.

Quando D. Affonso abriu os olhos a Rainha desapparecera.

-- Izabel! gritou.

Seria realidade o que se passára? Seria um sonho d'uma hora febril? Olhou em volta, reconheceu onde estava. Ainda sentia nos labios o beijo da Rainha. Recordou-se do que lhe promettêra. E logo, logo, n'aquelle quarto, onde nunca se atrevêra a entrar...

Correu para a porta por onde o Conde de Castel Melhor saíra...

-- Conde!... Braz! Chamou.

Os dois entraram e disse El-rei:

-- Sinto n'alma um balsamo celeste!

-- Deixei de ser ministro, concluiu o Conde da expansiva alegria com que o recebia El-rei.

-- Sim! respondeu este.

E pasmadissimo:

-- Como o soubeste?... Ouviste?

-- Tinha de ser, disse o Conde com profunda melancolia. Castigou-me Deus com a mesma arma que forjei, culpado. Tinha de ser.

-- Sim.

E El-rei quiz desculpar-se.

-- Bem sabes em que inferno vivia. Atormentavam-me phantasmas.

-- Preferistes a verdade. Curem-se as feridas da phantasia, gangrene-se o coração.

-- Não te percebo.

-- Como eram differentes os nossos anceios! E do meu sonho hei de eu dar cabo, todo elle feito de eterea luz, para que mais dois dias brilhe o fogo fatuo que vos attrae á porta do cemiterio!

-- Não te percebo, repetiu El-rei, sentindo correr-lhe pela espinha um sopro algido.

-- Ah! quanto foi minha obra, tudo se alue, quanto soffri baldado foi! Transformei em lanças os ferros das charruas, de cada portuguez fiz um soldado e chegaram até Deus os gritos das mães e das esposas amaldiçoando-me! Recuaram a um gesto meu os exercitos castelhanos e o vosso throno, senhor, ergui-o eu nos braços; para consolidal-o no chão da patria um só esforço mais bastava, vós o não quizestes. Tanto peor para vós.

-- Mais vale a paz interna, disse El-rei soturnamente, contradizendo no tom da voz a doçura das palavras.

-- E ainda mais vale a morte, que é paz sem fim. Bradareis afflicto quando ella do vós se approximar, e ninguem haveis de achar para correr em auxilio vosso. Lembrae-vos, lembrae-vos de quanta vez vos soccorrestes de meu braço, dizei-me quanta vez elle vos negou seu soccorro. Choraveis, corrieis para mim, espavorido; mal me pagaes agora o ter exposto meu peito á ponta da espada que ao vosso se dirigia.

-- Conde!

O tom offendido de El-rei augmentou a colera do Conde de Castel Melhor.

-- Não bastava, que ainda achaveis pouco. Desci comvosco onde homem de bem nunca baixou, e fiz da minha deshonra a vossa gloria, da minha lama o oiro da vossa corôa.

-- Conde!... Ainda sou rei por emquanto! disse El-rei irado, oppondo-se com um gesto a que o Conde continuasse.

Este recuou dois passos.

-- Não sois rei para mim! disse-lhe com voz firme.

Eram suas palavras aguçadas como punhaes; procuravam o coração de El-rei.

-- Vêde, vêde onde fui buscar-vos a corôa e o sceptro, por onde andava rastejando a sêda do vosso manto. Atolei-me até o pescoço, agora com o tacão da vossa bota afogae-me na lama. Vereis depois que matilha ha de acossar-vos, vereis quem vos acode, quando como doido vos puzerdes aos gritos. Olhaes sorrindo para a caterva, mal cuidando contra quem uiva. Vereis, quando ella, faminta, vos deitar os dentes, em que mil farrapos o manto vos despedaça. E vós sorrindo, e vós sonhando! Quando em socego dormirdes, alguem subirá mansinho os degraus do throno. A musica linda que vos extasia bate-lhe o compasso um martello a pregar os pregos d'um caixão.

El-rei, d'olhos muito espantados, olhava para o Conde, cuja vista scintillava.

-- Nada percebeis, nada, desgraçado ! Pois ahi fóra, por detraz d'alguma d'essas portas, alguem me escuta que me percebe. O céo castigou-me, porque demais vos amei; o céo vos castiga porque faltastes á minha amizade! Ide, ide, leva-vos o diabo pela mão a, basear a peçonha n'um beijo, a paz n'um sepulchro.

-- Conde!... Conde!...

El-rei tremia todo. Que queriam dizer aquellas palavras? Que suspeitas lhe creavam no coração?

-- Conde... perdôa... Morro de mêdo... Salva-me!

-- Mêdo!... Agora tendes mêdo quando a força d'um atleta era precisa! A mim m'a vindes pedir!... E' tarde demais, não posso já incutir valor n'esse animo cobarde.

-- Conde! disse ainda El-rei com voz abafada e supplicante.

Sentiu o Castel Melhor apertar-se-lhe o coração.

-- Não posso... E' tarde...

A voz esmoreceu-lhe.

-- Deus seja comvosco!

Saíu.

-- Castel Melhor! disse ainda El-rei n'um brado cheio de angustia.

E a Rainha, que escutava á porta, disse comsigo:

-- Não voltará.

Até que emfim dormiria aquella noite socegada. Retirou-se devagarinho. Deu ordem á açafata que ninguem lhe entrasse no quarto. Sentia-se adoentada, carecia de socego. Desapparecêra para sempre o pesadello. Era livre o caminho para seus amôres e ambições.

Nem El-rei já se lembrava do que lhe ella promettêra.

-- Castel Melhor! repetia baixinho, caído n'uma cadeira, como se elle, já longe, ainda pudesse ouvir-lhe os suspiros do coração.

E repetia:

-- Mas porque?... Mas porque?

Queixava-se outra vez da má sorte que o perseguia desde pequeno.

-- Quem tenho, quem tenho no mundo que me valha, que me queira?

-- A mim, senhor!...

Era o Braz que ajoelhava a seu lado e lhe beijava a mão.

-- A ti, meu Braz!

Passou-lhe as mãos pela cabelleira emmaranhada e lembrou-se de como o conhecêra. Fôra n'aquella noite em que um desconhecido o salvára. Quem seria esse homem? Que seria feito d'elle? Se tambem aquella espada, de que tão mau uso haviam feito as mãos reaes, o havia algum dia de affrontar? E o pobre maluco, desde essa noite, fôra seu companheiro dedicado. Porque? Porque lhe dera para dormir as palhas d'uma cocheira, para comer os sobejos d'um cão!... Deus do céo! Por tão pouco aquelle lhe beijava as mãos a chorar. E elle tinha tão grande amor em seu peito, porque lh'o não pagariam?

-- Meu Braz!... Maluco!... Meu irmão!

Então a porta secreta abriu-se muito devagarinho e a ella appareceu medrosamente espreitando a cabeça muito loira da Calcanhares.

-- Daes licença?

El-rei estremeceu, como se o acordassem repentinamente.

-- Quem é?

E logo com alegre surpreza.

-- Tu, minha Calcanhares!

Entrou Simão Peres muito prazenteiro, com um grande cesto debaixo do braço.

-- Boa noite, meu senhor.

Beijou a mão d'El-rei.

Recebi o recado do snr. Henrique Henriques e disse para a Calcanhares: -- «Ha de ser hoje.» O paço não se armou contra os amigos.

-- E viemos... disse a Calcanhares.

-- Arriscando a pelle, meu senhor, concluiu Simão Peres.

-- Tão contentes!

Mas El-rei lembrou-se da promessa da Rainha.

-- Hoje então vens! disse para a amante.

-- Eram tantas as minhas saudades!

-- Hoje que eu não posso!

E alegrou-se, e não se conteve que não dissesse vaidoso:

-- Prometti á Rainha...

Viu Simão Peres de bocca muito aberta. Não o quiz na confidencia. Foi era segredo que murmurou á Calcanhares:

-- Tenho hoje de cumprir meus deveres de marido.

-- Que dizeis!

-- Duvidas?

Fez-lhe signal para que se afastassem.

-- Não vos veja a açafata... Adeus, minha bella. Adeus, Simão. Logo hoje... Mas que pena!

Pegou no cofre. Bateu á porta.

-- Vae aos quartos da Rainha, disse baixo a Calcanhares a Simão Peres.

-- Muita volta dá o mundo! respondeu elle. Mas esta agora...

Entrára a açafata, que revelou no olhar a raaior surpreza.

-- A Rainha? perguntou D. Affonso.

-- S. Majestade já se recolheu, respondeu a dama. Sentia-se adoentada e ordenou que ninguem lá fosse.

-- Ah!... Bem... Estimo as melhoras.

Fez-lhe um gesto para que se retirasse.

-- Tanto melhor ! gritou, assim que a açafata fechou a porta.

Aliviado, veio ter com a Calcanhares a quem abraçou.

-- Depressa, Simão, deita-me vinho! Enche o copo maior!

Já Simão Peres, atarefadamente, dispunha a meza, citando com grande emphase os pratos que ía tirando do cesto.

-- Que noite!... Que noite!

El-rei galanteava a Calcanhares em voz baixa, dizendo-lhe finezas, procurando nos beijos d'ella apagar nos labios o beijo da Rainha.

-- Beija-me ainda!... Beija-me ainda! dizia-lhe, com doloroso prazer.

Simão Peres enchêra de vinho o copo; trouxe-o a El-rei que o despejou de um trago.

-- E que tal?... E' do Lavradio. Lá de vinhos sei eu.

E correndo para a mesa:

-- Ajuda-me, Calcanhares!

El-rei excitado passeava pela sala.

-- Quero ouvir rir! Quero ouvir cantar!

Passou a mão pela testa.

-- Cá estou outra vez com febre!

A Calcanhares bateu as palmas, muito alegre.

-- A ceia está na mesa!

-- Quero o vinho aqui a meu lado, bem perto!

-- Que tem elle hoje? pensava Simão Peres.

E a Calcanhares pensava:

-- Que tem elle hoje?

Mas que lhes importava afinal? Ainda era rei; era aproveitar.

-- Aqui, disse elle para a Calcanhares, á minha esquerda, do lado do meu coração. E tu aqui, meu Braz.

-- Senhor!... disse medroso o homem dos cães.

-- Quero-te aqui, ao pé de mim, ao pé de mim sempre! Aqui.

Obrigou-o a sentar-se.

-- Comeremos juntos este frango. Ha de saber-te melhor que o pão negro da matilha.

E para Simão Peres, fingindo uma alegria esturdia:

-- Vinho!... Vinho!

Beijou os cabellos da Calcanhares.

-- Que linda vens, minha filha!

Simão Peres sentára-se no topo da mesa, traçára a perna, falava com ares importantes.

-- Grandes ideias tenho, mas a melhor foi ter mandado abrir esta porta secreta. Que tal o frangainho?

-- Quando te deu Henrique Henriques o recado? perguntou El-rei á Calcanhares.

-- Hoje.

-- Malvado!... Ha tantos dias que lh'o encommendei!

-- Que noites tenho passado!

E a Calcanhares levou á bocca d'El-rei o copo por onde bebêra.

-- E de politica, que temos? perguntou Simão Peres. Que é feito do nosso Conde?

El-rei respondeu seccamente:

-- Desagradou-me; deixou de ser ministro.

-- Ah! exclamou Simão Peres, largando o bocado que levava á bocca.

A Calcanhares esbogalhava os olhos.

-- Deixou de ser ministro!

-- Que motiva o espanto? perguntou D. Affonso.

Simão Peres apurava o ouvido para os lados do Tejo e disse piscando o olho á mulher:

-- Mudou-se o vento. Ih! como sopra da barra.

Ella percebeu-o. Era aproveitar as ultimas horas que lhe restavam de tão alta posição.

-- Vinho! vinho! gritou El-rei. Porque me deixas morrer de sêde? disse olhando ternamente para a Calcanhares.

Simão Peres erguêra-se imponente.

-- A' saúde de El-rei!

Puzeram-se todos de pé e beberam.

Desde que El-rei se dirigira para os quartos da Rainha, não desfitára a Calcanhares seus olhos do cofre de tartaruga.

-- Que tendes n'este lindo cofre? perguntou.

Mas El-rei tirou-lh'o das mãos.

-- Curiosa! disse brincando.

-- Não m'o deixaes vêr! continuou ella, deitando-lhe os braços ao pescoço.

-- Não.

-- São joias?

-- Talvez.

-- Porque não quereis mostrar-m'as?

-- Porquê?...

Affligiu-se.

-- Estas não, não posso...

-- Só vêr... disse ella muito carinhosa, encostando seu rosto ao d'elle. São lindas?... Não as mereço então... Já não me tendes amor...

Elle abriu o cofre.

-- Vê!

Como scintillavam os diamantes! Como se iriavam as perolas!

-- Um diadema! gritou ella.

E correu para defronte do espelho. Era a ultima dadiva de El-rei, o brinde da despedida!

Elle cambaleava no meio da sala.

-- Vinho, Simão!

Simão Peres encheu-lhe o copo e avisou-o:

-- Veja lá V. Majestade; melhor será ir mais devagarinho.

A Calcanhares voltou com o diadema na cabeça.

-- Olhae, vêde se me fica bem.

-- Se és linda!

O que elle soffria! O diadema que déra á Rainha, no qual fundára tantas esperanças, que lhe abriria caminho para o milagre pedido!... Era aquelle cujos fogos scintillavam nos cabellos da Calcanhares!

-- Se és linda! repetiu. Diademas assim fizeram-se para os cabellos loiros!

Levou as mãos ao peito com um gesto de angustia.

Acudiu-lhe o Braz, cheio de cuidado.

-- Soffreis, senhor?

Mas D. Affonso empurrou-o.

-- Quem fala de soffrimento nos paços reaes?... Vinho!... Quero vinho!... Quero rir ainda uma vez, que tenho a morte á espreita!

Bebeu. Pallido como a morte em que faláva, com as olheiras fundamente cavadas nas faces, deitou os braços ao Braz e á Calcanhares que o sustiveram, não caísse. Queria que Simão Peres cantasse e dizia ao Braz que fôsse buscar a viola.

O outro, já falto de pachorra, desculpava-se; não sabia senão cantigas de tabernas e lupanares.

-- Melhor!... Pois tanto melhor!... gritou El-rei.

Foi bater á porta que levava aos quartos da Rainha.

-- E' musica para ti!... Acorda, Brichota, ó minha bella, ó minha ingrata!

Mas assaltou-o um terror repentino. Recuou com os olhos a saírem-lhe das orbitas.

-- Não!... Não!... Calae-vos, que hoje é dia de finados!... Bateram á porta... Ninguem abra, ninguem abra, que entra a morte!... Soccorro!... Soccorro!... Conde...!

O Braz amparou-o na queda, arrastou-o até o canapé onde o deitou; pôz-lhe sob a cabeça uma almofada.

Simão Peres mal se sustinha nas pernas.

-- Querem beber ao lado da gente...!

O Braz muito carinhoso observava El-rei,

-- Dorme, disse.

-- Pois é deixal-o dormir. Vem commigo, Calcanhares, que temos muito que conversar, disse Simão Peres accondendo a lanterna. O grande caso é saber um homem de que lado sopra o vento.

Ella ía radiante com seu diadema, um lindo ponto final.

Saíram.

O Braz fechou as portas, com a propria capa abafou El-rei, apagou as luzes, e nos bicos dos pés correu a sala, cuidadoso, não surgisse de noite algum perigo. D'onde mais temel-o? Dizia-lhe o instincto que d'ali, do lado dos quartos da Rainha. Enrolou-se como um cão, deitou-se, atravessado á porta.

E El-rei sonhava. Sonhava que entrára no quarto da Rainha e que esta aos labios d'elle offerecia outra vez seus labios perfumados.

O Braz ainda o ouviu murmurando:

-- Adoro-te, Izabel!

CAPITULO XI

Enredos

Era tarde quando El-rei acordou no dia seguinte, com uma grande dôr no braço esquerdo, sobre que estivera deitado toda a noite. Doía-lhe a cabeça, doía-lhe o coração. Custava-lhe a respirar.

Sentia uma sêde que o abrasava. Estendeu a mão á procura do copo; não o achou. Quiz erguer um nadinha o corpo; não pôde, cheio de dôres.

Abriu os olhos. Tudo era escuro.

Sabia confusamente que alguma coisa passára, porque logo o coração começou a bater-lhe desordenadamente.

Mas não podia coordenar as ideias. Que era o que sentia? Que era o que assim o mortificava?

Que sêde tinha! Eram da febre com certeza aquella sêde e a confusão das ideias.

Gemendo, conseguiu sentar-se. Reconheceu que não estava no leito. Apalpou com as mãos tremulas o estofo aspero da capa do Braz, em que dormira embrulhado. Estaria ainda sonhando? Um pesadêllo havia tido, mas tão confuso que não achava meio agora para deslindal-o.

Ouviu então uma voz ao pé d'elle.

Acordastes, senhor?

O Braz!

A voz era meiga, fez-lhe bem, serenou-o. Tinha um amigo ao lado.

-- Onde estou? perguntou.

Ouviu os passos d'elle rastejando e ranger o fecho da janella. O sol entrou em jorros pelo quarto. Viu El-rei onde estava e, cerrando com força as palpebras, fez um derradeiro esforço para chamar a lembrança de tudo o que passára.

O queixo tremia-lhe; batiam-lhe as arterias.

Viu sobre a mesa em desordem uns restos da ceia... Lembrou-se do cofre de tartaruga, procurou-o com a vista, recordou-se do diadema a scintillar nos cabellos d'oiro da Calcanhares.

E, de repente, soltou um berro em que o Braz cuidou se lhe despedaçava o peito.

-- Perfida!... Perfida! gritou, atirando o punho cerrado para os lados do quarto da Rainha.

Voltou-se para o homem dos cães e perguntou-lhe a mêdo:

-- O Conde?

Mas logo se recordou de que a este lhe ouvira e das ameaças com que lhe introduzira na alma o pavor da morte.

-- Deixou-me!... Deixou-me!... Agora?... Depressa, Braz, depressa!... Henrique Henriques venha já ter commigo... Depressa... Corre!

E com os olhos cheios de lagrimas, murmurava:

-- O Conde!... o Conde!

Foi á janella. O sol ia alto. Onde iria o Conde áquellas horas! Passeavam pelo Terreiro os militares encarregados de vigiar o paço. Queria El-rei em seus gestos adivinhar o que diriam.

-- Traidores!... Traidores!... Tudo são traidores!... Traidor meu irmão, traidora minha mulher!

E pôz-se a soluçar de rijo.

Voltou o Braz. Vinha com elle um escudeiro.

Henrique Henriques adoecêra gravemente. Havia poucas esperanças de salval-o.

Mas El-rei não tinha tempo para cuidar do amigo; viu-se ainda mais só mais desamparado.

-- Mas quem é contra mim? O céo ou o inferno?

Quasi teve odio a Henrique Henriques por haver adoecido.

Quem lhe havia de valer?... Só Antonio de Sousa de Macedo... Um velho de pés para a cova!... Deixal-o. Odiavam-o a Rainha e o Infante; era uma razão para que o chamasse. Sentia agora o desejo de luctar. Tinha que vingar uma affronta, a maior de todas... Ah! como aquella mulher o enganára!

Deu com a vista n'um pente d'oiro caído entre as almofadas de sêda a que a Rainha se encostára. Pegou n'ello, beijou-o muito, beijou-o como doido, e murmurava:

-- Pérfida!... Pérfida!

Vingar-se!... Vingar-se!... Se Antonio de Macedo tivesse uma ideia... Quem lhe déra deitar mãos á garganta da Rainha e vêl-a estorcendo-se sob seu joelho a carregar-lhe no peito!... E beijava o pente d'oiro em que procurava uma lembrança do perfume de seus cabellos. Só!... só, sem ninguem que o ajudasse na vingança! O Conde era um ingrato, abandonara-o!

Deu-lhe um remorso. E elle?... Não fôra com amigos ingrato?... Amigos!...

Parou-lhe de repente o olhar. Assomou-lhe aos labios um sorriso... Quem sabe...?

-- Simão Peres!... Parte a correr, Braz; galga n'um pulo até casa da Calcanhares; dize a esse bebado que venha a toda a pressa, já, já. Passa depois pela cavallariça, que aparelhem o melhor cavallo.

Mandou saír o escudeiro; ficou só.

Poz-se a procurar no chão, se mais algum signal a Rainha deixaria de sua passagem; examinou o fato, se n'elle ficaria preso algum cabello. Fazia gestos de ameaça e de contentamento. Como não lhe occorrêra mais cêdo a ideia d'aquella vingança!

-- Tambem tu, minha mãe, m'o vaes pagar agora!

E sentiu no peito uma tal oppressão, um terror tal, que se pôz a resar por alma da mãe.

Estava ainda de mãos postas, quando Simão Peres entrou com os olhos por lavar, cheio de somno.

-- Simão, monta immediatamente a cavallo, corre a Oeiras, procura Antonio Conti. Que esta noite lhe quero falar sem falta. Dize-lhe que me espere na praia da Cruz Quebrada, junto á foz do Jamor. Sendo meia noite, estarei com elle. Depressa!

Era esse o plano com que El-rei queria dar começo ao castigo de toda a côrte.

Simão Peres parecia que o tinham atarrachado ao chão; doíam-lhe os queixos paralisados e não podia fechar a bocca; a custo exclamou:

-- Antonio Conti!

O homem que o esbofeteára, o homem que elle cuidava posto fóra para sempre de junto do throno!

-- Corre! ordenou-lhe D. Affonso. Vae no Gafanhoto que tem mais pernas.

Simão Peres saíu; mas quedou-se a scismar á porta do quarto. Todo o antigo rancor contra o italiano começou a referver-lhe no peito. Como vêl-o outra vez n'aquelle paço, mais vaidoso ainda, com maior poder junto d'El-rei, senhor do sceptro? Não... não... Lembrava-se da bofetada que levára, rangia os dentes...

Cumpriria o recado d'El-rei; depois... Hesitava, não sabia que vingança escolher; mas havia de vingar-se. Se era certo que o Conde saíra do paço e abandonára El-rei, não era o amante da Calcanhares firme no throno por muito tempo. Começou a tental-o uma traiçãosinha. Não teria pressa.

Depois envaideceu-se. Por emquanto era homem da confiança d'El-rei. Conforme as coisas corressem iria bordejando. Entretanto molhava a vela.

Subiu ao quarto de Fr. Bernardo, para examinar-lhe a cara mortificada, pregar-lhe umas petas.

O frade nada sabia. Saíra pela manhãsinha a dar um giro pelo Terreiro; nada lhe haviam dito da desgraça do Conde.

-- Sim, o caso por ora ó secreto. El-rei mandou chamar-me, porque desejava meu conselho. Ah! meu amigo, fôra eu ambicioso...

-- E El-rei mesmo vos disse...

-- E as razões que tinha. Era impossível conservar o Conde no poder.

-- Mas...

-- Perguntareis talvez quem vae El-rei chamar...

-- Não é facil...

-- Nem tão difficil como á primeira vista vos parece.

O frade estava assombrado do que ouvia. Como Simão Peres inchado passeava pelo quarto! Pois estaria elle senhor do segredo?

Parece que o outro lhe adivinhou o pensamento.

-- E' um segredo de estado, disse, que El-rei me confiou. Vae ser de morrer a gente de riso o pasmo de toda a côrte, do exercito, do reino e do mundo inteiro!

Fr. Bernardo mordia-se de inveja. Como aquelle homem trepára com a ajuda da Calcanhares! Disse a custo:

-- Estimo vêr-vos assim satisfeito.

O rosto do frade era tão contraído que Simão Peres mais folgou de sua victoria.

-- Isto só me trazia, dar-vos os bons dias e dizer-vos que continuo ao vosso dispôr.

Estendeu-lhe a mão.

Mas Fr. Bernardo ainda não o deixou saír. Abandonado como vivia em seu quarto junto dos telhados, quantas horas amargas passára, invejando o regabofe do companheiro no ninho quente em que soubera conchegar-se em casa da Calcanhares! Aquelles ares com que o tratava muito d'alto para baixo irritavam-o ainda mais, porque não se sentia assaz firme em seu valimento para responder-lhe em egual afinação. Mas queria saber mais alguma coisa, com que desse ponto com nó.

-- Esperae. Que pressa tendes?

-- A maior. Estou de jornada.

-- Longa?

-- Pequenina.

-- Aonde ides?

-- E' segredo.

-- Nunca os tive para vós.

-- Nem eu o guardaria para comvosco, se não fôsse d'El-rei.

-- Assim vos governaes.

-- Chego a braza á minha sardinha, confesso.

-- E andaes bem. A sorte bafejou-vos, Simão Peres.

-- Nem todos a mereceriam como eu, servidor de El-rei e dos mais dedicados. Adeus, Bernardo...

O frade encolhia-se todo, mas já mal dominava a raiva.

-- Adeus, Simão.

Entrou o Braz. El-rei mandava chamar Fr. Bernardo, cujos olhos fulgiram de satisfação.

-- Iria El-rei mettel-o no segredo? pensou Simão Peres empallidecendo.

-- Vou já, disse o frade pegando nas muletas.

-- Gostava de saber... murmurou Simão.

-- Algum segredo de estado talvez, disse Fr. Bernardo já no corredor.

Simão Peres desesperado metteu esporas ao Gafanhoto e marchou para Oeiras a toda a brida.

Fr. Bernardo ía pensando:

-- Se El-rei me dér um trumpho, hei de cortar-te a vasa, Simão Peres.

Era declarada a lucta entre os dois rivaes. O tom ironico da ultima phrase do frade ferira fundamente a vaidade do velho companheiro de aventuras. Andára mal talvez na declaração de guerra. Mais valêra inspirar-lhe confiança até final e n'uma boa occasião torcer-lhe o pescoço.

Que lhe quereria El-rei? Algum recado para Maria da Boa Hora.

Entrou na sala onde o encontrou a passear agitadissimo e, durante minutos, lhe não falou, como se hesitasse em fiar-se d'elle.

-- Tens visto a Falcôa? perguntou-lhe por fim.

-- Senhor, não. A ingrata...

Mas El-rei virára-lhe costas. Continuava em seu passeio.

Era de Maria da Boa Hora que elle queria falar ao frade. Se ella quizesse, aonde iria parar a Calcanhares!... Uma mulher que o havia tido prostrado a seus pés e que, depois de mil baldões, havia recebido, encantado como da primeira vez em que lhe elle a entregára pura, pura como flôr de laranjeira!

Fr. Bernardo esperou que El-rei outra vez lhe dirigisse a palavra.

-- Sabes que me deixou o Conde de Castel Melhor?

-- Senhor, sei; disse-m'o Simão Peres, respondeu o frade avaliando que a indiscripção do escudeiro seria desagradavel a El-rei.

-- Patife!... Em vez de correr a Oeiras como lh'o eu ordenára!

A Oeiras!... De quem se trataria?... De Antonio Conti?

O frade abria os olhos, apurava os ouvidos.

El-rei poz-se outra vez a passear.

-- Tenho sêde, disse. Braz! Agua! Dá-me o moringue.

Poz o gargalo á bocca; bebeu soffregamente.

-- Só tu, o Conde e poucos mais, sabieis que reatara meus amôres com a Faloôa. Vae dizer-lhe que o Conde me abandonou, que provavelmente a Marqueza saírá do paço... Quero que ella tome conta da creança, que logo lhe enviarei...

A creança!... Fr. Bernardo disse immediatamente:

-- Confie-me V. Majestade o principezinho, que eu o levarei a sua mãe.

-- Contou-te a Lindosa...?

-- Olhos vigilantes... O muito amor e respeito que tenho a V. Majestade revelaram-me... Basta olhar para o pequenino... Os olhinhos são mesmo um retrato...

-- Sabes que está doente... Leva-o n'uma cadeirinha... Nem tu sabes que esperanças fundo n'essa creança! Vae avisar a Falcôa.

Tornou a chamal-o.

-- Dize-lhe que tome bem conta n'elle, que está doente... Ao pé da mãe tenho-o mais seguro que no paço... Não era o primeiro bastardo que...

Atirou os braços para o ar como a praguejar contra o céo.

Dizia o frade comsigo:

-- O primeiro bastardo que sóbe ao throno de Portugal!... E para isso chamas Antonio Conti!

Riu-se lá no seu intimo.

-- Direi á Marqueza que leve a creança para o seu palacio da Gloria. Logo lá o irás buscar.

E El-rei que, havia um instante, ameaçára o céo, poz-se a rezar baixinho. Deus lhe conservasse a vida de seu filho!

Era quasi noite quando Fr. Bernardo bateu á porta de Maria da Boa Hora.

Na cadeirinha, com o pequenino no collo, vendo-o tão enfesadinho, d'olhar tão amortecido, ía pensando:

-- Coitado de ti! Foste gerado uma noite em que o diabo estava de bom humor! Só assim se explica... A não ser que Manuel Furtado haja, uma vez por outra, posto uns pontinhos a seus monotonos devaneios. Filho da Falcôa és tu, e quer ella pôr uma coroa de rei na tua moleirinha!

O pequenino olhava para o frade e chorava.

-- Não chore V. Alteza, não chore, que basta vêr-lhe a carinha chapada, as olheiras de seus olhinhos, essa boquinha, duas folhinhas de rosa branca, para saber que Nosso Senhor quer lá no céo mais um anjinho, para lhe resar pelo tio Pedro, um amigo muito bom do senhor seu pae e de V. Alteza, se lhe sabe da existencia.

Chegaram á porta da Falcôa. Fr. Bernardo apeou-se, embrulhou na capa o pequenino que esperneava e deu, batendo as argoladas, o signal ajustado.

-- Veremos, amigo Simão Peres, qual de nós teve hoje mais sorte.

Foi a Lindosa quem veio abrir com os costumados gritos de espanto:

-- O sr. Bernardo!... Que vento bom o trouxe por esta casa?

-- Um caso serio.

Poz-se o pequenino a chorar.

-- Quem me trazeis ahi? perguntou a velha.

-- Schiu!... disse o frade com ar mysterioso. Quizestes-me vós guardar segredo, mas mereci a confiança d'El-rei. Fechemos primeiro a porta. Tenho muito para contar-vos. A Falcôa?

-- Está lá em cima. Não parece a mesma, que d'aqui me levou esse malvado Manuel Furtado, que o inferno engula! Sempre calada, mal resmunga que não seja... coisa que me faça chorar!

-- Não ha vêr-lhe uma alegria no rosto? Tomae lá o principe, e conversaremos.

-- Senhor! Senhor! Seja em desconto dos meus peccados! ía a velha resmungando, emquanto com o pequeno ao collo subia a escada. Far-lhe-ha bem ver o infantesinho, de quem fala dia e noite. Mas porque nol-o trouxestes?

Entrou no quarto.

-- Vêde se o calaes, disse-lhe o frade. Gostaria de conversar um instante comvosco sem que vossa sobrinha nos viesse interromper.

E a velha poz-se a cantar baixinho, muito desafinada:

-- Ai, ó papão, vae-te embora

De cima d'esse telhado.

Deixa dormir o menino

O seu somno descançado.

-- Pois sabereis, D. Maria, que o Conde de Castel Melhor...

A cantiga começou a ornar-se d'uns tremulos taes, tão esganisados, que a creança a espernear desatou em berros angustiosos.

-- Não quer saber do menino? perguntou a Lindosa.

-- Peor, D. Maria; deixou o poder!

O berro de espanto que a Lindosa ía soltar foi abafado pelo grito de Maria da Boa Hora, que entrou na sala, correndo.

-- Filho!

Arrancou-o dos braços da Lindosa, apertou-o ao seio, encheu-o de beijos.

-- Filho! meu filho! dizia.

Deu com os olhos em Fr. Bernardo. Recuou.

-- Tu m'o trouxeste!

-- Eu, disse elle. Pois quem te quer bem? Quem, vendo o Conde expulso do paço e El-rei á mercê de seus inimigos, havia de lembrar-se de ti e de teu filho que perigava?

-- Mas sabias...

O frade riu-se.

-- Continuas innocente e por isso na cêpa torta.

-- E' o que eu lhe digo, sr. Bernardo; é o que eu lhe digo; não quer aprender esta pequena! disse a Lindosa com ar maguado.

-- E nós que por ella nos sacrifiquemos. Andas mal, Falcôa, e como amigo te digo a verdade. Ora escuta, ainda que te dôa. Deves pensar em ti, no teu filho...

-- Na tia... continuou a Lindosa.

-- E em mim, concluiu o frade. O Conde de Castel Melhor saiu do paço e... Adivinhai lá quem vai El-rei chamar.

E baixinho, olhando em volta, com ar de grande mysterio:

-- Que isto sei eu, porque não ignoraes como El-rei é commigo: não tem segredos para o servo dedicado.

-- Quem? perguntou a velha curiosa.

-- Antonio Conti!

-- Conti! exclamaram as duas em tom differente.

Ambas se lembraram do recado que uma vez Simão Peres lhe trouxera, a Lindosa com uma esperança, Maria da Boa Hora sentindo renovar-se com maior intensidade sua antiga revolta.

-- Pasmais! continuou o frade, contente pelo effeito que a nova produzira. Pasmais, mas que dizeis?

Maria da Boa Hora aconchegava ao seio o filho, quo por fim se calára, que a reconhecêra, que lhe sorria.

-- João!... João!

Que novos transes adivinhava de grandes amarguras!

A Lindosa meneava a cabeça, onde lhe volitava um pensamento incerto. Chegára á maior desconfiança sobre sua influencia na sobrinha. Como tudo se podia combinar para bem de todos! Só faltava domar aquella vontade, que cada dia mais lhe parecia fngir-lhe á sua auctoridade de tia, de quasi mãe, como ella dizia ás vezes, em suas expansões sentimentaes.

Fr. Bernardo esperava que ella lhe désse seu parecer sobre a inesperada novidade.

-- Respondei, D. Maria. Approvaes o audacioso passo d'El-rei?

-- O sr. Antonio Conti vi-o sempre com bons olhos. Moço gentil, generoso, dedicado á causa d'El-rei, onde quer que me visse, me cumprimentava. Folgaria de sabel-o outra vez junto do amigo a quem fez a maior falta. Quando elle vinha a esta casa...

Olhou para a sobrinha, sorrindo.

-- Lembras-te, Boa Hora?

-- Entre os amigos traidores, nenhum o foi mais ao sr. D. Affonso, respondeu ella.

-- Traidor!... Ora, porque...

Não quiz descoser-se ante Fr. Bernardo. Bastava que no segredo, a exploral-o, tivesse já a Simão Peres. Disse-lhe baixinho, apontando para a sobrinha:

-- Está hoje com os seus azeites. E' deixal-a.

-- Que talvez tenha razão.

Lembrou-se dos ares com que Simão Peres lhe falara de manha e imitou-os para convencer a Lindosa de seu novo valimento.

-- El-rei pediu meu conselho. Muito lhe poderia ter observado sobre sua escolha; naas, muita vez, nós os validos temos, como os diplomatas, de nos valer de meias palavras, em que uma ambiguidade abra porta para mais tarde nos escapulirmos...

-- Antes nos digas porque me trouxeste o meu filho, disse Maria da Boa Hora impaciente. O meu filho!... repetiu com expressão indefinivel de meiguice, apertando-o nos braços, com um movimento de susto.

-- Se eu te digo que o Conde saíu do paço, fugiu, desappareceu!... Onde guardar o filho melhor que nos braços da mãe?

-- Fugir!... Desapparecer!... dizia Maria da Boa Hora comsigo.

-- E ora aqui tens porque te manda El-rei o principe, que talvez pouco seguro se achasse no paço.

-- O meu filho! bradou ella com os olhos doidos de pavor.

-- Ha de haver, bem vês, quem lhe queira mal, e mal andarás não te fiando n'aquelles que te querem bem. Amicus certus in re incerta cernitur, não é verdade, D. Maria?

A Lindosa approvou com a cabeça o latinorio, mas mostrava-se afflicta, muito agoniada.

-- Dizei-me, sr. Bernardo, que julgaes do que passa? Em que tempos vivemos! Valha-me Nossa Senhora!

-- E' nuvem que deve desfazer-se. O sr. Antonio Conti breve tudo collocará em seus devidos eixos.Quanto á creança, se El-rei a quizer outra vez comsigo, o novo escrivão da puridade e eu lá estaremos para tomar conta d'ella.

Maria da Boa Hora poz-se de pé, mais branca do que cêra, com os labios pallidos a tremerem-lhe de colera.

-- Não! exclamou. Não, canalha!

Fr. Bernardo procurou sorrir-se desdenhosamente, mas o coração batia-lhe. Se lhe aquella mulher fugisse de vez, que mais tinha no mundo de que lançar mão para conquistar a protecção d'El-rei? Tentou intimidal-a.

-- Vê como falas, doida. Duas vezes de mim te valeste para...

-- Para minha deshonra! disse ella atalhando-o.

-- Para tua deshonra! Como se por teus lindos pés nao fôsses ter com ella! O que El-rei ainda ignora posso-lh'o eu contar, que te sei de toda a vida.

-- E que me importa? que me importa? Farta de embustes ando eu e de mentir para engordar-te, infame!

-- Falcôa! disse o frade ameaçador.

-- Não me põem mêdo tuas ameaças! replicou-lhe Maria da Boa Hora, caminhando para elle. Julgas que me importa a miseria? Viste como sei soffrel-a. Cuidas que me importa a morte? E' fim de tormentos, seja bemdita!

O frade ía recuando.

-- Falcôa! repetiu. Minha vingança póde ir mais longe.

-- Até onde?

Desafiava-o, com os olhos junto aos olhos d'elle, como se lh'os quizesse queimar com seus fulgores.

-- Cobarde! Um dia, a esta minha porta, eu te vi esperando que um desconhecido prostrasse em terra os bebados que atacaram El-rei, para depois sem perigo, atraz de todos, acudires aos gritos de soccorro, que soltava Antonio Conti! Cobarde outra vez foste, um dia que em Evora me viste desmaiada! Cobarde és agora, porque me ameaças com meu segredo!

-- Com mais te ameaço, que me lembraste o que mais me esquecêra. Ameaço-te com a sorte de Manuel Furtado!

-- Elle saberá deffender-se.

-- Ameaço-te com a sorte de teu filho!

-- Infame! gritou ella.

Mas já Fr. Bernardo, que, pouco e pouco se approximára da porta, descia a escada, entrava na cadeirinha, mandava aos homens que corressem para o paço.

Ia remoendo comsigo seus projectos de vingança.

Havia Simão Peres de continuar portanto a esmagal-o com seu valimento, a humilhal-o com sua protecção!... Aquella Falcôa...! Se não fôsse o perigo de, matando-a, suicidar-se, como lhe seria facil com dois dedos torcer-lhe o pescoço franzino!

Atravessou-lhe rapido o pensamento que era tudo castigo de Deus. Que lhe importava? No inferno estava elle; que valia mais palmo ou menos palmo de chammas em que mergulhasse?... Manuel Furtado...! Se esse fôra o desconhecido que, depois de salvar a vida d'El-rei, o insultára num d'aquelles bêcos?... Intrigal-o com El-rei era virgar-se da Falcôa.

Vingar-se!... Vingar-se!

Quando chegou ao paço, El-rei conversava com alguns de seus fidalgos, a cujos conselhos prestava ouvido desattento, firme em seu proposito secreto de encontrar-se com Antonio Conti. Simão Peres ainda não voltára; esperava-o impaciente.

Fr. Bernardo subiu para o quarto. A vida que levava!... Era castigo de Deus. Mas um goso lhenão tiraria: vingar-se!

E, emquanto ia urdindo sua trama contra Maria da Boa Hora, meditava esta, apavorada, nas bravatas que lhe ouvira e pensava ella tambem, na mão de Deus que tão dura se lhe mostrava em seu castigo.

O que havia mentido em sua vida!... O que ainda pelo filho mentia!... O filho!... Pela ventura d'elle tremia agora.

Meu Deus!... Meu Deus! dizia.

E empurrou brutalmente a Lindosa que se approximava d'ella para aconselhal-a no transe difficil.

Fugir!... Desapparecer!... Mas o pequenino?

Era preciso avisar Manuel Furtado. Perdida a esperança em seu soccorro d'ella para manter-lhe os vicios, Fr. Bernardo -- bem o ella conhecia -- havia de procurar feril-a no que melhor conservava ainda em sua alma, seu amor de mãe, suas lembranças de amor.

E El-rei!... Não era tambem dever seu avisar El-rei?... Que piedade tinha do desgraçado!... Era pagar-lhe com algum bem o bem que lhe elle fizera, era resarcir com uma boa acção tanta criminosa mentira em que o envolvêra por sua vaidade, em que o fizera soffrer por sua traição, em que o mantivera, cheia de escrupulos, pelo amor de seu filho.

Mas como?

Approximou-se da janella e avistou Pantaleão Gonçalves. Era noite. Mas aquelle vulto devia de ser o do pintor, que havia muito lhe rondava a casa, apaixonado, olhando para as janellas, por traz de cujas rotulas Maria da Boa Hora saudosa quanta vez o estivera observando!

-- Tia! descei depressa, disse á Lindosa. Pantaleão Gonçalves que suba, que venha já fallar-me.

A Lindosa ainda quiz fazer uma observação.

-- Já! disse-lhe Maria da Boa Hora com intimativa.

A velha benzeu-se e desceu a escada, resando a todos os sautos e santas da côrte do céo. Lá se lhe íam agua abaixo outra vez tantos sacrificios que fizera para dar á sobrinha uma educação de princeza!

-- Vem, vem, meu amigo, disse Maria da Boa Hora a Pantaleão, quando este assomou á porta, hesitante, envergonhado, feliz, com os olhos cheios de lagrimas. Entra, que outra vez preciso de ti!

Lembrou-se de quando o encarregára de levar o retrato a Manuel Furtado, de toda a lua de mel de seus amores, de toda sua posterior desgraça, Abraçou-se ao pintor.

-- Ah! que recordações me trazes!

Pantaleão Gonçalves soluçava como uma creança.

-- Porque não me chamastes mais cedo, se andaveis triste?

Cheirava a vinho.. Maria da Boa Hora receou abrir-se com elle. Mas que remedio!... Cada hora que passava augmentava o perigo.

-- Deixae-nos, disse á Lindosa.

E a velha, muito humilde, retirou-se.

-- Vês esta creança? disse então ao pintor. E' meu filho. Dei-o cá luz entre gritos horrorosos de meus remorsos que nem me deixaram sentir as minhas dôres. Não sei se m'o querem roubar, se m'o querem matar não sei. Não sei que se passa na terra; tudo me parece effeito da colera de Deus contra mim, que a desafiei, que a desafiei porque amava o meu filho. Vae ter com Manuel Furtado, dize-lhe que tambem elle corre perigo, que me perdôe, que em mais ninguem confio senão -- ai de mim! -- n'elle só, cujo coração conheço, despedaçado por mim ainda antes que elle houvesse despedaçado o meu! Dize-lhe que tenho um filho que adoro, mais, muitas mil vezes mais do que o adorei a elle, que me salve, que salve o meu filho. Ameaçados somos todos, porque eu quiz acabar por uma vez com a desgraçada vida de enredadas mentiras a que me arrastavam minha má vida, minha má sorte. E' que não posso mais!... não posso mais!

E, sentada no chão, abraçada ao filho, com os lindos cabellos cheios de brancas, desgrenhados, caídos sobre o rosto, soluçava convulsamente.

Pantaleão Gonçalves contemplava-a, mudo de pasmo.

Era aquella a Falcôa d'Elrei, a mais formosa mulher que havia retratado, coroada por um diadema de perolas e brilhantes que menos brilhavam que a luz de seu rosto!

Enternecido, caminliou para ella; tres vezes esboçou um gesto para falar, mas nem uma palavra lhe acudiu aos labios.

Ella limpou os olhos aos cabellos, com um gesto rapido deitou para a nuca as lindas tranças, estendeu a mão a Pantaleão Gonçalves, que ajoelhou para beijal-a.

-- E que mais direi a Manuel Furtado? perguntou elle.

-- Conta-lhe o que eu te disse. Já não soffrerá de t'o ouvir, que ha muito me esqueceu. Dize-lhe que o meu filho era, por ordem d'El-rei, creado em casa do Conde de Castel Melhor, o qual hoje deixou seu logar no paço; que El-rei chama de novo para seu lado Antonio Conti e que eu tremo pela sorte de meu filho. Dize-lhe isto sómente e que ninguem tenho a quem recorrer, se elle me não acode a salvar-me de quem me quer tão mal. Supplica-lh'o por mim, tu que eras meu amigo d' antes, tu que ainda choras commigo.

Pantaleão Gonçalves erguêra-se.

-- Hoje mesmo virei trazer-vos a resposta. Socegae.

A' porta encontrou-se com a Lindosa, que lhe perguntou:

-- Aonde ides?

-- A casa de Manuel Furtado.

E ella viu Maria da Boa Hora em frente do espelho, mas não adivinhou o que pensaria quando passava as mãos pelos cabellos brancos, e via signaes no rosto de muitas rugas e os olhos sem brilho e a bocca descaída n'um triste geito.

Pensava Maria da Boa Hora:

-- Descançada irei ter com elle, que não póde acompanhar-me receio de turvar-lhe a felicidade!

Mas ia pensando Pantaleão Gonçalves:

-- Como ainda é linda! como é linda a Falcôa!

Choviscava. Apressou o passo.

Nunca mais, depois do cêrco d'Evora, se atrevêra a procurar Manuel Furtado. Sabia, porém, de seus novos amores. Como falar-lhe agora d'aquella desgraçada? Como seria recebido?... Pois para o que fôsse preciso, não podia Maria da Boa Hora contar com elle, que tão contente por ella daria a vida?

Conforme o costume, quando havia bebido uma pinga a mais, ia falando a meia voz.

-- A minha vida!... Mas afinal de que lhe servia a minha vida?... Se ella não não tem confiança em mim, é porque sou um bebado!

E batendo tres argoladas á porta de Manuel Furtado, ia repetindo:

-- Um bebado!... Um bebado!... Um bebado!

Corriam tão desasocegados os tempos que a Lourença não abriu sem primeiro perguntar:

-- Quem é?

-- Pantaleão! respondeu elle.

Ella entrebriu o postigo gradeado.

-- O sr. Pantaleão Gonçalves! disse com alegria.

Mas logo se mostrou assustada.

-- Não vindes trazer novas...

O pintor assumira uns modos tão graves, tão severos, tão de caso, que a Lourença, sem mais cerimonias lhe declarou:

-- Olhae, se vindes da parte da sr.ª Maria da Boa Hora, não vos deixo entrar, que, se vi meu amo perdido e resuscitar depois, o milagre foi d'outra.

-- Trata-se de El-rei, disse Pantaleão, inchando-se.

E a Lourença affastou-se e elle subiu a escada estreita, encostando-se ás paredes.

-- Vós! exclamou Manuel Furtado. Entrae e dizei porque assim esquecestes amigos velhos.

Abraçava-o.

Os olhos de Lourença brilhavam, cheios de curiosidade.

Pantaleão Gonçalves disse em segredo ao capitão, olhando de revez para a mulher:

-- Preciso de ficar só comvosco.

A Lourença percebeu-o e saíu discretamente.

-- Que temos então? perguntou Manuel Furtado, sorrindo dos modos mysteriosos do amigo.

-- O Conde de Castel Melhor deixou o paço.

-- Sei. Destes agora em politico?

-- O caso é grave.

-- Deve sel-o, visto que tanto vos commove.

-- E a vós?

-- Nem por isso. Diligenciei vêr hoje pouca gente para não me irritar com o que ouviria. E' minha posição muito humilde para poder acudir a desgraças. Recolhi-me cedo e já me puzera a sonhar quando batestes á porta. E' hoje assim a minha vida, e lá diz o rifão: Quem está bem não se muda.

-- Pois o Conde saíu do paço e El-rei mais dia menos dia, ha-de saír tambem.

-- Vêdes tudo côr da noite, Pantaleão.

-- Eu e aquelles com quem falei.

Manuel Furtado, com grande espanto do pintor, continuava a rir.

-- O Marquez de Sande, o padre Antonio Vieira...

Vejo que sois relacionado coin os grandes homens da

diplomacia portugueza.

E o capitão pensava:

-- Para que lhe havia de dar o vinho!

Pantaleão estirou-se por sobre a mesa, para falar mais perto de Manuel Furtado.

-- E, quando El-rei se fôr, que será feito de Maria da Boa Hora e de seu filho?

-- Que dizeis...!

Manuel Furtado erguêra-se. Caíra a cadeira.

Lourença appareceu logo, muito inquieta.

-- Que foi?

-- Nada, Lourença, nada, disse para socegal-a, e elle mesmo procurando socegar.

-- Ouvi vossa voz tão alterada...

-- Nada foi, boa velhinha. Foi um grito de espanto...

-- De dôr me pareceu.

Olhava desconfiada para o pintor, que, d'olhos baixos, meditava na inconstancia da Fortuna.

A Lourença suspirou. Tornou a retirar-se

-- Santa creatura! disse Manuel Furtado comsigo. Adivinhou-lhe o coração que perigo me ameaçava.

Subiu seu pensamento a D. Anna de Portugal, lembrou-se do juramento que lhe fizéra; na força de seu amor, no cumprimento d'um dever achou a serenidade.

-- Conta-me tudo, disse a Pantaleao com voz já firme.

Então o pintor disse como Maria da Boa Hora o chamára e o que elle vira; como ella apertava ao seio o filho e como do perigo em que se achava só para salvamento punha confiança em Manuel Furtado.

E, narrando toda a historia, com muitos commentarios seus, as lagrimas avinhadas corriam-lhe pelas faces.

-- Um filho!... Um filho! dizia Manuel Furtado sem que o outro pudésse perceber com que expressão elle pronunciava aquellas duas palavras. Voltou para os braços d'El-rei e tem d'elle um filho!

Era o espanto, era sobretudo o ciume, um ciume absurdo mas despotico, que lhe arrancavam a exclamação.

Dominou-se.

-- Vae ter com ella. Farei quanto possa para salval-a... e ao filho, pois que é seu.

-- O Senhor dos Passos nos acuda! disse a Lourença ao vêr saír o Pantaleão Gonçalves.

A cem passos da porta cruzou-se o pintor com Pero Rolão, que se encaminhava para casa e o saudou com um olá familiar, por um instante aclarando-lhe o rosto meditativo.

-- Deus vos salve! respondeu Pantaleão sem reconhecel-o e continuando seu caminho.

-- Deixa-te ir! disse comsigo o tenente, que não tinha tempo a perder.

Quem soubesse lêr-lhe no rosto descobriria que um intimo contentamento enchia de pontinhos luminosos a profundidade grave de seu meditar.

E' que n'um mesmo dia, n'uma mesma hora, realisára dois sonhos deslumbrantes: tivera nos braços, rendida, uma das mais formosas mulheres de Portugal, e preparara, por seu ingenho, com seus, amigos, a victoria breve da causa que defendia.

Chamára-o um bilhetinho perfumado da Calcanhares, quando elle, em seu fadario de apaixonado, andava para as janellas de sua formusura arregalando o olho terno, medrosamente. Variadas paixões enfileirava ás vezes e pesava-as e comparava-as e sempre a do ultimo dia lhe parecia a maior. Aquella mulher deslumbrava-o com seus cabellos loiros, sua alta e airosa estatura, como um ente d'outras espheras. O olhar de seus olhos piscos era uma tentação, tinha feitiçaria. E era a amante d'El-rei!... Que sonho para um tenente!

Dizia o boccadinho de papel: «Vinde». E elle foi, ainda que tremendo muito mais do que pelas charnecas do Alemtejo no encalço de D. João d'Austria.

Que meia hora passára!... Como de ali voou á Côrte Real, a procurar D. Rodrigo de Menezes!... Que amor lhe tinha aquella mulher e como elle pudéra milagrosamente servir ao mesmo tempo seus amores e a causa do Infante!

O olhar pasmado de Pero Rolão, a bocca por costume entreaberta sob o bigode loiro muito arripiado, haviam inspirado confiança á Calcanhares, ao precisar d'um innocente que se deixasse prender na armadilha. O tenente caíra coiu o maior jubilo na rêdesinha doirada.

Quando Simão Peres voltara de Oeiras, furioso, antes de ir ao paço dar conta de seu recado, quiz desabafar com a amante d'El-rei e, como em todos os casos difficeis de sua vida, ouvir-lhe o bom conselho.

Já ella sabia da ausencia do Conde, que, com uma boa escolta, marchára, dizia-se, para um convento de arrabidos junto ao logar de Torres Vedras.

-- Mas não sabes o melhor nem d'onde venho, disse-lhe Simão Peres, cujo ar tetrico predizia desgraça.

-- D'onde? perguntou ella curiosa.

-- De Oeiras.

-- De..?

-- De falar com Antonio Conti.

-- Mentes!

-- Mentes! repetiu elle escandalisado. Talvez supponhas que ainda estou para graças!

-- Antonio Conti! repetiu a Calcanhares córando de raiva, lembrando-se do despreso que elle por ella manifestára quando Simão Peres fôra esbofeteado por oíferecer ao valído sua mediação para conquistal-a.

-- Fui ter com elle da parte d'El-rei, ordenar-lhe que hoje, á meia noite, o esperasse á foz do Jamor na Cruz Quebrada.

-- Ministro o Antonio Conti! dizia ella, com seus lindos olhos tão pasmados, que Simão Peres impaciente deu um sôcco sobre a mesa.

-- E pasmas e não tens uma ideia e havemos de aqui ficar como um paz d'alma a vêr a trovoada estalar!

-- E elle que te respondeu?

-- Coisa pouca: que obedeceria ás ordens d'El-rei.

-- Não te fez perguntas?

-- Não me deu confiança.

-- E como esportula pela boa nova?

-- Consentiu que lhe beijasse a mão.

-- Patife!

-- Dos maiores!

-- Ah! quem foi pelo Conde...

-- Póde contar com boa cama.

-- E' preciso que tal encontro d'El-rei com elle se não realise.

-- Mas como?

-- E' comigo.

-- Posso fiar-me em ti?

-- Tolo!... Não vês que somos parceiros?

Simão Peres olhou para ella com encantada admiração.

-- Que vaes fazer?

-- Entrar na lucta com minhas armas de mulher bonita.

-- N'esse caso a victoria é nossa.

Tornou a montar no Gafanhoto, galopou para o paço.

A Calcanhares chamou a Luzia.

-- Sabes d'um tenente que todas as tardes me anda por aqui rondando a casa, atirando-me para as janellas uns olhos de carneiro mal morto?

-- Sei, minha senhora. E' o sr. Pero Rolão.

-- Quando elle ahi passar entreguem-lhe este bilhete. Dá ordem que o deixem subir.

E meia hora depois, Pero Rolão ao lado da Calcanhares jurava-lhe amor por toda a eternidade, entre chammas do inferno que fosse! Lá pagaria a delicia sobre-humana que lhe era dado gosar na terra, de joelhos a tão lindos pés, dizendo a paixão da sua alma.

Ella afagava-lhe a cabeça e contava-lhe como elle se fizera senhor de todo seu coração, pelo que ella ouvira de seu valor na guerra, pela côrte respeitosa que lhe fizera, pela doçura de seus olhos azues, por seu ar marcial. Elle tentava gaguejar umas phrases amaveis, mas o pasmo era tamanho de se vêr n'aquelle salão, respirando aquelles perfumes trepadores, que se lhe moviam as bochechas sem que em seus labios uma só palavra se formasse. Mas a Calcanhares fingia percebel-o e mais enthusiasmar-se com seu embaraço.

-- Não vos sabia poeta, disse-lhe.

Que timbre o de sua voz!... Era a amante de El-rei que se mostrava rendida!

Então ella começou a queixar-se da vida que levava, da soledade em que vivia, do muito que de noite sonhava com o gentil mancebo cuja passagem, tanta vez, horas e horas, esperava por detraz d'aquellas rotulas.

-- Amae-me sempre, sim? murmurou supplicante. Não leveis á má parte o eu vos ter escripto, que a audacia nas mulheres é signal de amor... como a timidez nos homens, accrescentou sorrindo.

Elle segurou-lhe nas mãos e ella continuou:

-- Vivo aqui tão triste! E hoje a nova de que deixára o Conde de ser ministro assustou-me tanto!

-- Que vos importa, se meu amor vos subirá a um throno ainda mais opulento? disse finalmente Pero Rolão satisfeito, porque a phrase lhe andava havia um quarto d'hora na cabeça sem que elle a soubesse formular.

Ella sorriu-se. El-rei era tão seu amigo d'ella! Não era decerto amante de que outro pudesse ter ciumes; mas, deixal-o, isso não!

E Pero Rolão admirava o coração compassivo d'aquella mulher, que pela gratidão por uma amizade domava os impetos de seu amor.

O que ella mais temia era que El-rei novamente se deixasse dominar pelo Conti. Era desgraça para todos.

-- Pois cuidaes...? interrogou Pero Rolão.

E ella contou-lhe o que sabia e do encontro que El-rei n'essa mesma noite devia de ter com o italiano. E tão perfeitamente o soube dizer, que nem uma desconfiança fez pestanejar o tenente, parecendo que tão sómente o acaso encaminhára o dialogo para aquelle assumpto.

-- Eu o impedirei! disse Pero Rolão marcialmente, pondo-se de pé.

-- Vós ! exclamou ella fingindo-se muito assustada.

-- Eu!

-- Mas a que riscos vos expondes, não sabeis?

-- Que me importa?... Sou Pero Rolão!

-- Nunca! Nunca...! Luzia! gritou. Fechae todas as portas!

Deitou-lhe os braços ao pescoço.

-- Pois não sabeis contra que poder por mim, por meu amor, ieis arriscar a liberdade e talvez a vida?

-- Mulher, não me conheceis! respondeu elle.

-- Hoje vos conheci para maior alegria da minha alma, não vos quero já hoje perder. Demais sei de quanto é capaz esse Antonio Conti villão e, porque tremo de seu odio, não quero que a elle vos arrisqueis.

E segurava-o com força.

-- Pero!... Pero!

Então elle empurrou-a com brutalidade e ella caíu sobre uma cadeira.

-- O que eu fiz!... O que eu fiz!

-- Escutae, disse elle. Esse homem vós o condemnastes. Juro-vos que deixarei a vida n'este lance ou ámanhã vos trarei vosso socego.

E ella de mãos postas, com voz chorosa dizia:

-- Pero!... Pero!

Elle ajoelhou-lhe aos pés, pediu-lhe que lhe desse a mão a beijar e só se admirou de lhe não vêr lagrimas nos olhos.

-- E' pois certo que não te impede meu amor de correres para a morte? perguntou a Calcanhares com voz tão meiga que seria de enternecer um coração menos resoluto que o do tenente.

-- E' certo que vencerei! respondeu elle com altivez.

Seu plano era traçado. Saíu.

Aquelles olhos arremelgados, aquella bocca sempre aberta... A Calcanhares não se enganára.

-- Luzia! chamou alegremente.

Veio a creada a correr.

-- Depressa o jantar, que tenho fome!

E Pero Rolão foi direito á Côrte Real, onde encontrou D. Rodrigo de Menezes em palestra com o Duque de Cadaval e o Conde da Torre.

O Conde apresentou Pero Rolão, um mancebo de toda a confiança, a quem por tres vezes salvára a vida.

Pero Rolão cumprimentou os fidalgos.

A todos a alegria animava o rosto. Acabavam de conversar sobre a feliz nova que, espalhada logo de manhã na cidade, fora recebida pelo povo com manifestações de regosijo. Era uma data para marcar-se com pedra branca na historia do reino. Muito valêra para a rapida resolução de El-rei a intercessão da Rainha, a quem devia Portugal tamanho beneficio.

Continuavam dissertando sobre o mesmo assumpto, quando Pero Rolão os interrompeu, communicando o que sabia sobre a provavel subida ao poder do antigo valido, de todos aquelles fidalgos odiado.

Unisono soltaram um grito de espanto.

-- Antonio Conti!

O homem que a Rainha mãe expulsára do paço, que o Duque arrastára pelos cabellos, que D. Rodrigo accusára das mais baixas infamias! Era lá possivel!

Um instante só que elle tivesse o poder nas mãos, seria crudelissima sua vingança.

Não, não acreditavam.

Perguntaram a Pero Rolão como o soubera, mas elle esquivava-se a responder.

-- Rogo a V. Ex.as me acreditem, sem me obrigar a dizer o que não devo.

-- E sabe V. Mercê, sr. Pero Rolão, observou o Duque, a que desaire se expõe e nos expõe se, mal informado, nos obriga a um passo risivel?

-- Sei o que me disseram.

-- E affirmaes que vos merece toda a fé quem vos avisou?

-- Merece-me toda a fé. Nem suppunha qual o caminho que eu seguiria para atalhar o damno tanto do reino como da queixosa.

-- Era pois uma mulher! disse D. Rodrigo.

Pero Rolão córou um bocadinho por acanhamento, um bocadinho por satisfação.

-- Estes diabos novos...! exclamou o Conde. Fazem seu caminho pelas mulheres ainda melhor do que pelas armas!

Mas D. Rodrigo, como velho, duvidava.

-- E que interesse tinha a vossa dama em evitar a vinda de Antonio Conti para junto d'El-rei?

-- Precaver-se contra o mal que esse homem lhe quer.

-- E por isso vos avisou?

-- Não me avisou; queixou-se-me de sua desgraça.

-- Era alguem muito de El-rei?

-- Senhor...

Não sabia Pero Rolão se devia responder.

-- Talvez a Calcanhares?

O tenente, confuso mas afinal contente por dar a conhecer sua fortuna, baixou a cabeça.

-- Maroto! disse o Conde da Torre.

Mas o Duque ponderou:

-- Toda a cautella é pouca com mulheres d'essa laia. Alguma traição talvez nos preparava.

Então Pero Rolão contou, com muitos pormenores, todas as instancias que a Calcanhares fizera para que elle se não mettesse na aventura, que a tamanhos perigos o exporiam no futuro; que mandára fechar as portas, que se lhe lançára aos pés lavadinha em lagrimas, que tivera de a empurrar brutalmente e que a deixára desmaiada, caída redondamente no chão.

E, muito contente por vêr-se emfim acreditado, com ar compungindo limpava uma lagrima que, muito mais verdadeira que as de Calcanhares, lhe vinha com effeito a deslisar pela face.

Houve um momento de silencio, que o Conde interrompeu.

-- Vou eu lá com o Pero Rolão e dois creados eacaba a historia do italiano!

D. Rodrigo puxava a pêra devagarinho e o Duque observou que nenhuma resolução deveria tomar-se antes de haver-se consultado S. Alteza.

-- Obrigado, disse a Pero Rolão. Espero-vos aqui ás nove horas e meia.

-- Se encontrades Manuel Furtado, disse o Conde, convidai-o para uma caçada a um pardal; talvez elle goste.

Com que alegria Pero Rolão caminhava para casa do amigo!

Havia de tenteal-o, e, se o achasse de molde para a aventura, convidal-o da parte do Conde da Torre para cercar o innocente pardalinho, caído na ariosca que o proprio rei lhe armára.

E deu-lhe então um certo remorso. Seria proceder como homem de bem roubar-lhe a amante e prender-lhe o amigo? Não seriam duas traições? Mas foi nuvem que breve se desfez ao clarão subito da imagem da Calcanhares invocada. Ah! quando elle novamente entrasse n'aquella sala e triumphante lhe dissesse: -- «Teu escravo cumpriu os teus desejos!» Quem lhe déra que Antonio Conti se defendesse e o ferisse com uma bala de que mostrasse para sempre a cicatriz!... Como a Calcanhares o amaria!

Tomaria cuidado no que ía revelar a Manuel Furtado, que fôra decerto quem da outra vez levára aviso ao Conde de Castel Melhor. Entraria agora no assumpto com pés de lã, prompto a recuar quando um simples olhar suspeito do amigo, um só franzir de sobr'olho lhe indicassem suas más disposições.

Mas que ventura, que grande gloria seria para elle arrastar comsigo o capitão, ser quem lhe indicasse o caminho para o fastigio, pagar-lhe assim o que lhe devia, seu posto de tenente, sua entrada nas casas mais fidalgas de Lisboa!

Manuel Furtado conversava com a Lourença, quando Pero Rolão entrou e logo deu pelo ar transtornado do amigo.

-- Que houve? perguntou inquieto.

A Lourença benzia-se, Manuel Furtado não lhe respondeu.

-- Moiro na costa!... Toma tento. Pero Rolão! disse este comsigo.

E, como nenhum lhe falasse, e para estar prompto e de volta ás nove e meia na côrte real lhe não sobejasse tempo, começou dizendo:

-- O que por ahi vae com a saída do Conde!

-- Por ahi? disse a Lourença? por aqui deveis dizer.

-- Como?

E Manuel Furtado calava-se!

Perguntou-lhe Pero Rolão:

-- Pois tão de amigo eram com o Conde tuas relações, que assim te prostra o que a toda a cidade regosija?

Manuel Furtado fez um gesto de impaciencia.

-- Se soubesseis!... disse a Lourença.

-- Mas que houve? tornou Pero Rolão a perguntar, já com maior cuidado. Um soldado não tem politica.

-- Um soldado tem amores, disse a velha.

O tenente meneou a cabeça com ar intendido. Seria algum arrufo de namorados. Perguntou baixinho á Lourença:

-- D. Anna de Portugal?...

-- Queira o céo que ella não saiba... Meu maior tormento é esse!

E o outro sem dar palavra, com os cotovelos sobre a mesa, as mãos a erguerem-lhe a face, os cabellos caídos sobre a testa!... Que teria havido?

-- Vamos!... Explica-te!

-- Deixa-me Lourença, disse Manuel Furtado. E tu nada me perguntes, que breve saberás o que vae muito espantar-te.

Lourença saiu limpando os olhos, vendo a ameaçar ruina o castello resplandescente de oiro e pedrarias, que já via habitado por seu Manuel e pela filha de D. João d'Almeida. Voltava aquella mulher com seu peccado!... Mal empregada piedade que d'ella tivera um dia!

Pero Rolão estava sobre brazas. Não havia maneira de entrar no assumpto que ali o trouxera. Ainda outra vez tentou para elle encaminhar a conversação.

-- Que póde assim, Manuel, quando uns se sentem reviver e outros temem o caír da espada que sobre sua cabeça suspenderam, quando todos se dispõem, seja qual fôr seu partido, a entrar na lucta, que póde assim pôr-te de braços inertes e d'olhos tão pensativos e dolorosos?

Manuel Furtado ergueu para elle um rosto com tão funda tristeza desenhada que, pela terceira vez, Pero Rolão perguntou:

-- Mas que houve?... Por Deus!... que houve? Que até me esqueço do que me trazia, ao vêr-te assim maguado e silencioso! Fala ou não crês em mim?

-- Creio que um genio mau presidiu ao meu nascimento. Tu já amaste, Pero Rolão?

-- Hoje me apaixonei como um perdido!

-- Não falo de paixões como as tuas.

Pero Rolão escandalisou-se.

-- E' que não sabes...

E accrescentou ironico:

-- Talvez queiras acredite que uma só mulher amaste na vida!

-- Não... infelizmente!

-- Ao mesmo tempo te vi por duas apaixonado!

-- Ao mesmo tempo... é verdade!

-- O que prova...

-- Prova?... perguntou Manuel Furtado, como se Pero Rolão lhe soubesse dar explicação d'aquelle enygma da sua alma, que era seu maior martyrio.

-- Que não sou eu só, disse o tenente, muito fóra da conclusão que o outro esperava. Ouve, rapaz, continuou. Deixa-te de paixões, e lembra-te de que melhores postos, mais rapidos, pódes agora conquistar na campanha que principia e onde maiores surprezas nos esperam que nas linhas d'Elvas, no Ameixial ou Montes Claros. Olha para mim sem esse olhar pateta, ouve, se me queres ouvir, e, quando fôres mestre de campo, cêdo-te metade das mulheres de Lisboa onde escolherás á vontade.

Manuel Furtado não se moveu.

-- Foi o ciume!... Foi o ciume maldito a soprar nas cinzas que geladas me pareciam!... Se até da memoria do passado se me havia varrido a imagem d'ella!... Um filho!... tem um filho!...

-- Quem? perguntou Pero Rolão embasbacado.

-- Sinto dentro em mim renovar-se, crescer como uma labareda o odio contra aquelle homem!

Falaria de Maria da Boa Hora?... Aquelle homem seria El-rei?... O tenente sentiu alegrar-se-lhe o coração.

-- Falas d'El-rei? perguntou.

-- Pois de quem? exclamou Manuel Furtado erguendo-se, convulso enrolando a pêra entre os dedos.

-- Vem commigo... Hoje mesmo te vingarás!... Agora!

Bateram á porta. Manuel Furtado empallideceu. Sentiu os passos da Lourença descendo, e, instantes depois, Pero Rolão pasmado viu entrar Pantaleão Gonçalves, seguido por Maria da Boa Hora com o filhinho ao collo.

-- Manuel ! exclamou ella com um grito doloroso em que lhe ía toda a alma.

E elle mudo, suffocado pelo espanto, immovel, contemplava os cabellos brancos da cabeça que fôra formosissima, as rugas fundas que sulcavam aquelle rosto, o mortiço dos olhos, a pallidez das faces, tudo a contar-lhe mezes e mezes de muito soffrimento. Deu-lhe uma piedade funda e gritou:

-- Maria da Boa Hora!

Ella correu-lhe para os braços. Abraçaram-se com o pequenino entre elles, no mesmo abraço apertado.

-- Salva-me!... Salva-me!... Em ti só confio. Perdôa-me... e salva-me!... Salva o meu filho!

Ajoelhára. Beijava-lhe as mãos.

Resarei por ti, pela tua noiva, dizia, enchendo-lh'as de lagrimas.

E, á porta, a Lourença limpava os olhos, Pantaleão na sala pôz-se a soluçar, e Pero Rolão, sem saber porquê, começava a sentir-se commovido e a pedir a Deus que nunca assim por elle a Calcanhares se apaixonasse.

Manuel Furtado ergueu a que fôra sua amante; no encontro dos olhares reluziu um antigo desejo de subito apagado.

A Lourença compadecida approximou-se d'ella.

-- Vamos, Boa Hora, socega. Estás em casa onde todos te querem bem. Ainda me não déste um beijo.

E com a piedosa mentira de seu coração, levou um bocadinho de côr ao rosto da desgraçada.

Com os olhos muito abertos relanceou devagarinho a vista por todo o quarto pequenino, era que passára momentos de tanta felicidade.

A casa onde todos lhe queriam bem!

Deu com os olhos em Pero Rolão. Reconheceu-o. Voltou-lhe a recordação de seus mais tormentosos dias.

-- Salva-me Manuel, ainda que nada te mereça!... Salva-me pelo meu filho!

Amparada por Manuel Furtado e pela Lourença, sentou-se na velha cadeira de tabua.

-- Descança um instante, filha, disse-lhe a boa velha. Depois nos contarás o que te afflige e todos vamos procurar algum remedio a teu mal.

Maria da Boa Hora fechou os olhos e um sorriso mal definido esvoaçou-lhe pelo canto dos labios. Gostava de ouvir aquella voz dizendo-lhe palavras meigas, de respirar o ar d'aquelle quarto, de sentir aquelle coração no peito em que repousára a cabeça.

Pero Rolão repetiu a phrase de Lourença:

-- Todos vamos procurar algum remedio a vosso mal.

E como estava em maré de venturas, acrescentou:

-- Seja a que preço fôr !

Enternecia-se agora. Tantos signaes de desgraça não haviam n'aquelle rosto de todo apagado os traços da antiga belleza. E o tenente recordou-se de quão doido andára por Consuelo Rodriguez, da noite que passára em Evora a contemplar o retrato de Maria da Boa Hora, que parecia o da amante de D. João d'Austria, de como a deixára na choupana muito pobresinha no caminho d'Elvas a Arronches, e de quanto odiára D. Affonso VI e de quanto odiaria Manuel Furtado, se elle não fôra Manuel Furtado.

E este calava-se e Pero Rolão não saberia lêr o que diziam seus olhos turvos.

-- Meu Deus!... Meu Deus!... O que hei soffrido! disse ella.

Os olhos com que olhou para Manuel Furtado imploravam compaixão. Que leriam nos d'elle que logo acrescentou:

-- Bemdito seja Deus, que o mal que fiz me perdoaram!

Elle ajoelhou junto d'ella, pegou-lhe na mão e disse-lhe em tom compassivo:

-- Desabafa, se tão desgraçada vens ter commigo.

Maria da Boa Hora olhou em volta como assustada.

-- Só vês amigos. Conta.

E ella então contou:

-- Não era feliz, não. Quem póde ter uma só hora de ventura mentindo sempre e com o coração despedaçado pela saudade e -- peor ainda -- pelo remorso?... Ah! nada me pergunteis; dae-me vosso perdão sem me obrigardes a confessar meu crime, porque então me despresarieis, e não quero que me abandoneis. Aonde iria eu com o meu filho?... Não sei o que foram os primeiros mezes depois que voltei a Lisboa; não guardei memoria d'elles. Era cheio de phantasmas o meu delirio e D. Affonso a meus pés, compadecido de mim, falava-me de perdão e nada me perguntava de meu tormento. Sêde como elle foi, porque bom se mostrou commigo. O primeiro vagido de meu filho acordou-me para a vida. Mandou El-rei que o Conde de Castel Melhor tomasse conta d'elle, e eu deixei... deixei... que vergonha!

-- E quando nasceu teu filho? perguntou Manuel Furtado anciosamente.

Ella sacudiu a cabeça, como se lhe adivinhasse o pensamento:

-- Fez dois annos em abril.

A Lourença olhou para o pequenino, cheia de commiseração. Ia em tres annos aquelle enfezadinho!

Maria da Boa Hora continuou:

-- O Conde fugiu. El-rei mandou-me hoje para casa o meu filho. E agora... agora...

Que espinhos agudissimos trespassavam a alma de Manuel Furtado! Jurára a si mesmo conter-se.

Disse:

-- Conta commigo; eu o salvarei.

Elle ergueu os olhos ao céo, pôz as mãos.

-- Sim, tu nos salvarás, porque é teu coração apaixonado, e teu coração apaixonado sei -- por mim o sei -- que virtudes te inspira! Hoje me ameaçaram que na creança pobresinha tomariam vingança de mim. Toma tambem conta comtigo, Manuel. Vae entrar outra vez no paço um homem que me põe mêdo. O Conde de Castel Melhor protegeu-me; este ha-de perseguir-me, que deve odiar-me.

-- Quem? perguntou Manuel Furtado.

-- Antonio Conti.

Pero Rolão, que já quasi esquecêra o que ali o trouxera, soltou rapidamente uma ruidosa exclamação:

-- Não!... Nunca!

Olharam todos para elle.

-- Hoje mesmo Antonio Conti pagará caro sua audacia!... Nem pela liberdade de El-rei responder-vos posso!

-- De El-rei!... Por Deus!... exclamou Maria da Boa Hora. De El-rei, que me perdoou e que eu traí!...

Então Pero Rolão contou o que sabia e como, á meia noite, no Jamor, devia, ajudado pela gente do Infante, lançar mão de Antonio Conti e de El-rei ao mesmo tempo.

Falava com desafogo. Pois não era certo que podia contar agora com Manuel Furtado á sua ilharga?

-- Não!... não! dizia Maria da Boa Hora. Salvae El-rei que me perdoou!... Salvae El-rei que eu traí!

E já Pero Rolão tremia com a suspeita de haver outra vez commettido uma parvoice com seus rompantes.

Manuel Furtado n'aquella hora lembrou-se do juramento que fizera a D. Anna de Portugal. Era preciso avisar immediatamente El-rei para que não fosse ao encontro combinado.

-- Manuel!... Manuel!... suspirou Maria da Boa Hora.

E, deixando caír para traz a cabeça, desmaiou na cadeira. A Lourença correu, amparou a creança, pegou-lhe ao collo; e ella deitou-lhe os bracinhos ao pescoço, adormeceu sobre seu hombro.

-- Ouve, Pero Rolão, disse Manuel Furtado. E' força que já, já, seja prevenido o sr. D. Affonso. Ouviste essa mulher... Ah! meu juramento!... Mas como penetrar até junto d'elle?... Como?

Passeava pelo quarto excitado. Pero Rolão arrancava os cabellos.

-- Sandeu!... Sandeu! dizia, dando murros na cabeça.

Maria da Boa Hora continuava desmaiada.

-- Não posso deixar esta mulher... não posso! Como mandar um recado a El-rei?

Olhou para Pantaleão Gonçalves, que piscava muito os olhinhos. Estava bebado!

-- Pero Rolão, vae tu. El-rei que não saia hoje do paço. Deve ser tarde, corre depressa. Manda-lhe como aviso, que te facilitará o chegares ao pé de elle, os copos d'esta espada.

Era a que El-rei, havia annos, lhe entregára.

-- Deus te pagará, meu amigo.

Pero Rolão saíu correndo.

A Lourença, com os olhos cheios de lagrimas, contemplava a creancinha.

-- Tristes e poucos dias tens para viver, anjinho!

Manuel Furtado, aos joelhos de Maria da Boa Hora, chamava por ella.

-- Boa Hora!... Boa Hora!

Pantaleão Gonçalves encostára-se á parede, resmungando phrases sem nexo.

E Pero Rolão continuava correndo, correndo...

Quem o mandára falar?... Quem lhe cortasse a lingua!... Que havia depois de dizer a D. Rodrigo de Menezes, ao Duque de Cadaval e ao Conde da Torre?

Manuel Furtado, cujos odios contra El- rei eram d'antes tão notorios e se expandiam em azedas phrases, que filtro lhe haviam dado a beber? D'uma vez salvára o Conde, mandava agora salvar o proprio rei!

Mas pouco discutia; corria sempre; fiava-se em que o padre Ventura, desde havia um mez dizendo missa na capella do paço, seria homem que lhe desse entrada áquella hora e em dia tão desasocegado. Fôra D. Pedro d'Almeida quem por elle se interessára. O padre resolveria o problema, sem que fôsse preciso dar maiores explicações. Ao que o obrigava a amizade a Manuel Furtado!... E pensava na Calcanhares e em Maria da Boa Hora, e tanto correu que chegou estafado. Passava das nove.

El-rei estava no quarto.

Aborreciam-o os fidalgos, todos fazendo jogo para assaltarem a cadeira que o Conde de Castel Melhor deixára; mas, confusos com a mudez de El-rei, só por timidas palavras, de que logo se arrependiam, se referiam ao escrivão da puridade. E os meios elogios e as meias censuras, uns e outras cautelosamente avançando para retirarem ao primeiro toque, tinham irritado El-rei de maneira, que desde as ave-marias se achava só com Simão Peres, de quem procurava saber os minimos pormenores de seu dialogo com Antonio Conti.

Mas o rufião, duvidoso como os fidalgos, tambem não sabia se havia de mentir demais ou se moderadamente seria bastante.

El-rei decidira, para maior segredo, dirigir-se no bergantim á Cruz Quebrada, e espreitava a todo o momento para o céo, onde nuvens grossas se iam accumulando. Estava quebrado de forças. Depois d'uma noite mal dormida e em que o tinham perseguido terriveis pesadellos, um dia cheio de cuidados!

Fr. Bernardo esperava na ante-camara que El-rei o mandasse entrar, e, a cada instante, crescia-lhe no coração o odio contra Simão Peres, que, talvez de proposito, para humilhal-o, entretinha o régio amo. Elle lhe demonstraria se ainda tinha valor ou não. Encheria de ciumes e de suspeitas o coração de El-rei, que nunca mais poderia passar sem ouvil-o, pondo dependentes de sua opinião, de seu conselho, as horas boas ou más que houvesse de viver em sua curta vida.

-- Bem, disse El-rei a Simão Peres; manda apromptar o bergantim, espera-me n'elle, e Fr. Bernardo que entre.

Os dois rufiões encontraram-se á porta.

-- Boa noite!

-- Boa noite!

Os olhares que trocaram tinham pontas e gumes de punhaes.

Fr. Bernardo veio beijar a mão de El-rei.

-- Então? perguntou D. Affonso.

-- Lá deixei o principesinho entregue aos cuidados de sua mãe.

-- Deus o ampare.

-- Tambem eu disse. Deus o ampare, que bem precisa.

-- Onde mais seguro o podia ter agora? N'este paço, atraz de cada porta, a surgir-me de cada recanto, um inimigo temo.

-- Com alguns vassallos dedicados conta V. Majestade.

-- Com quem ?

Fr. Bernardo curvou-se muito humildemente sobre as muletas e, modestamente, não respondeu.

-- Como ía o pequeno?

-- Pareceu-me muito fraquinho. Não admira; a mãe soffreu tanto!

Fr. Bernardo suspirou.

-- Mulheres!... Mulheres!

-- Fraco, sim. O Conde tinha n'elle o maior cuidado.

-- Porque se tratava d'um principe. A mãe agora ha de cuidar d'elle, porque é mãe.

-- E porque elle é meu filho.

-- Decerto.

-- Como o recebeu ella ?

-- Assim, assim. Ai, meu senhor, aquella mulher já não é a Falcôa d'outros tempos, quando eu a vim depôr nos braços de V. Majestade, pura como um flocosinho de neve e fresca como um morango orvalhado. Uma ingrata, que podendo ser tão feliz ao pé de V. Majestade...

-- Cala-te. Voltou-me arrependida, e eu não quiz nunca saber quem fôra o infame...

-- Nem ella o diz. Que eu, por mim, tenho quasi a certeza...

-- Matava-o!

-- Não queira nunca V. Majestade saber, não queira...

-- E' a mãe do meu filho. Desde então a conheço, o mais esqueci.

-- Tanto mais que, desde esse dia, tenho quasi por certo...

-- Quasi por certo, dizes!

-- Que vos foi sempre fiel, meu senhor.

-- Mas não tens a certeza inteira?

-- Se mal a tenho visto! Se V. Majestade perdeu a confiança que d'antes tinha em mim! Só por muita dedicação a V. Majestade, ás vezes vigiava...

Tambem aquelle só se servia de meias palavras!... Era sina d'El-rei n'aquelle dia!...

-- Tomára ouvir dar meia noite e este dia maldito rolar no abysmo!

-- Que dias temos na vida, meu senhor! disse Fr. Bernardo em tom de lamentação.

-- Vigiavas disseste, e porque?

-- Pelo profundo amor que tenho a V. Majestade e a quanto lhe pertence.

-- E que viste?

-- Nada, juro-vos, senhor, nada que confirmasse as minhas suspeitas.

-- As tuas suspeitas?

-- Loucas suspeitas, senhor, visto nada ter observado que m'as confirmasse.

El-rei respirou.

-- Se Maria da Boa Hora me tivesse traído, depois do muito que lhe perdoei... Mas como ella ficou grata ao meu perdão, com que piedade acceitou de novo as minhas caricias!... Ah! porque não pude eu fazel-a rainha!

-- Como V. Majestade a estimava!

-- Como doido!

-- Doida foi ella!

-- Não me recordes seu passado. Para quê? Para que me vens agora com tanta crueldade?... Se eu te digo que tudo perdoei, e tudo ía já esquecendo!... Se m'a trouxeste pura, tu novamente m'a trouxeste...

-- Do inferno onde fui buscal-a!

-- Cala-te, pois.

E, n'um d'aquelles impetos que lhe davam ás vezes e que Fr. Bernardo fôra preparando, correu para elle, apertou-lhe o braço com tanta força que o frade sentiu na carne gravarem-se-lhe os dedos d'El-rei.

-- Sabes quem foi?... Sabes?

-- Senhor, não.

-- Juras?

-- Juro.

-- Mas diz-te o coração...

-- ...Que foi o mesmo homem que uma noite salvou V. Majestade d'um grande perigo em que se achava e que ao agradecimento de V. Majestade lhe respondeu insultando-o.

-- Lembra-me...

N'este mesmo instante, o padre Ventura assomou á porta.

-- Quem é? perguntou El-rei, vermelho de ira. Quem vos deu auctoridade...?

O padre tremia.

-- E' da vida de V. Majestade que se trata.

-- Quem vos envia?

-- Quem este signal me entregou para ser conhecido de V. Majestade.

Eram os punhos da espada que elle entregára a Manuel Furtado. Soltou um grito de espanto. Uns guardas correram. Fr. Bernado passava as mãos pela testa como victima d'um sonho.

-- Já!... já!... gritou El-rei. Agarrem n'esse homem... já!... já!... Mettam-o á minha ordem na mais funda masmorra da torre de Belem!

Os guardas saíram e com elles o padre Ventura, louco de pasmo e de côr.

E El-rei em nada mais pensou toda a noite. N'um d'aquelles furores, que ninguem sabia acalmar, corria ao acaso pelo quarto, rasgando papeis, lançando os moveis ao chão, atirando cutiladas aos reposteiros.

Deu meia noite. Ia no Tejo um temporal desfeito. A maré subia. Lembrou-se de Antonio Conti que o esperava.

-- Que espere! que o leve o diabo!

E Fr. Bernardo calava-se. Não desejára ir tão longe logo ás primeiras; tinha agora de emendar a mão.

Pero Rolão amarrado, atirado para dentro d'uma liteira, attribuia sua desgraça á paixão que a Calcanhares talvez não soubera encobrir. Parecia-lhe ter ouvido falar em torre de Belem.

Passaram-lhe adeante dois cavalleiros. Julgou reconhecer D. Rodrigo de Menezes e o Duque de Cadaval. Gritou-lhe:

-- Pero Rolão!... Vou preso!

E elles viraram para traz.

Na foz do Jamor, Antonio Conti toda a noite sob a carga d'agua, jurou, ás seis horas da manhã, que havia de cortar as orelhas a Simão Peres.

CAPITULO XII

Cada qual Comsigo

No bergantim, Simão Peres, sob a carga d'agua, monologava, nada satisfeito com a nova direcção que ía tomando sua fortuna.

Não perdoava á gente do Infante suas ambições desenfreadas, tão oppostas ao puro amor que apregoava de bem do reino e salvação da republica. Que má ideia perturbar o que tão serenamente, com tantos sacrificios já feitos, se encaminhava a tão bom termo!

O Conde!... Porque haviam de guerrear o Conde a quem Portugal devia as melhores victorias sobre Castella e solidas allianças com os mais poderosos imperios da Europa?

Quanto a elle fôra sempre pelo Castel Melhor, a quem considerava muito acima de toda a farandulagem que acompanhava e aconselhava o sr. D. Pedro.

Gostou do termo, que achou justo, e repetiu contente:

-- Farandulagem!... Farandulagem!

Como tudo corria! Como a Calcanhares imperava sobre todas as damas de fama duvidosa em Lisboa! Que tinha o reino de que tanto queixar-se? Que lhe faltava?

Recordou-se da noite que passara na vespera, de como encontrára El-rei satisfeito com a tenção de cumprir seus deveres de esposo, do recado que depois lhe trouxera a açafata, da ceia em que El-rei, coitado, bebera uma pinga a mais...

A Brichota!... Sim, essa teria talvez razões de descontentamento. Mas a Calcanhares não as tinha eguaes, completamento eguaes, e não se calava? Ha gente que, por gosto, se entretem a desarrumar as coisas!

Agora Antonio Conti!

Mas a carta que elle escrevera á Falcôa e que o Conde de Castel Melhor mostrara a El-rei?... Ou o amor pela moreninha estava de todo esquecido ou a vingança que El-rei esperava tomar de seus inimigos era terrivel, que assim esquecia aggravos de tal ordem.

As horas íam passando, a chuva caía e Simão Peres pelas considerações politicas ia entremeando pragas de arreeiro.

Que haveria feito a Calcanhares?

Não estava socegado. Mais dia, menos dia, teria que mudar do partido, por muito que lhe custasse, se ella não achasse meio de concertar o castello que via ameaçando arruinar-se.

Ainda menos trcxnquillo, com quanto ao abrigo da chuva, Fr. Bernardo, pallido e atarantado, assistia aos furores d'El-rei.

Consolava-o ter por certo que Manuel Furtado, áquella hora, desesperado, dava com a cabeça nas grossas muralhas da torre do Belem; mas anciava por saber porque apparecera n'aquella sala tão a proposito a espada de El-rei, e via no facto qualquer decisão erradamente tomada por Maria da Boa Hora, decerto não esperando o desenlace que elle preparara com mão de mestre.

Estava Manuel Furtado nos ferros de El-rei, o que mais nas unhas lhe entregava a Falcôa, disposta sem duvida a concessões que lhe elle impuzesse para melhorar a sorte do antigo amante.

Que voltas dava o mundo e quanto um homem precisava de abrir o olho para manter o equilibrio! Não havia contar nem com a justiça nem com a gratidão dos que estavam de cima. Sabia-o por triste experiencia propria:

E, lembrando-se dos muitos sacrificios feitos por aquelle que ali via sobre coisas inertes saciando seus furores, considerando o triste estado a que se achava reduzido, arrastando-se em muletas pelos corredores do paço arrumados aos telhados, frigidissimos no inverno e de abrazar no verão, se um dia procurasse novos amos, de quem seria a culpa?

O filho d'El-rei!... Era talvez um socego para muitos fazel-o desapparecer do paço ou d'este mundo.

O filho d'El-rei!

O frade poz-se a rir.

D'El-rei!

Um excellente passo tinha elle dado; d'um temivel inimigo se livrára elle.

E, emquanto se regosijava, cuidando o capitão na torre, Manuel Furtado contemplava tristemente Maria da Boa Hora e o pequenino, deitados juntos na mesma cama, adormecidos.

Quanta angustia, quanta miseria, via gravadas n'aquelle rosto, como estigmas indeleveis! Tanto cabello branco, tantas rugas dolorosas! Maria da Boa Hora dormia com uma das mãos no peito magrissimo, a outra aconchegando a si o filho, que, de quando em quando, soltava um gemidosinho queixoso.

E Manuel Furtado deitava outra vez contas ao tempo. O pequenino fizera dois annos em abril. Correu mezes para traz, recordou o primeiro beijo de seus labios febris nos cabellos loiros de Anninhas em evora. Devia de ser por esse tempo. Maria da Boa Hora recolhêra a Lisboa e outra vez se entregára a El-rei.

Maria da Boa Hora que elle tinha amado tanto, n'aquella mesma casa em que estado miseravel lhe apparecia!

Como dormia inquieta! Como descompassado era o arfar de seu peito, que via erguer-se e abaixar-se sob o lençol em movimentos convulsivos! Que mão tão magrinha e sem forças apertava junto ao d'ella o corpo franzininho, mal avultando sob a roupa, do filho de suas entranhas!

Como elle a tinha amado!... Como elle a via agora!

Continuava a chuva a bater nas vidraças e a ventania parecia trazer lamentos de muito longe.

Manuel Furtado ouviu passos. Era a Lourença que ainda andava de pé. Abriu cautelosamente a porta.

-- Vae deitar-te, Lourença. Ella vae melhor. Adormeceu.

Mas a Lourença parecia inquieta. Elle percebeu o que a assustava; socegou-a cora um sorriso triste.

-- Nada receies, velhinha. Vae deitar-te.

Parece que a fraquissima luz do dia, mal rompendo as nuvens, ainda espalhou maior tristeza no céo côr de chumbo e de fuligem. Eram pallidos os livores da manhã e os sinos das egrejas batendo ave-marias tinham um som melancolico, que parecia não poder elevar-se na atmosphera pesada.

A agua corria barrenta pelas ruas e descia, formando cascatas, pelas escadas ingremes dos bêcos tortuosos.

Rolou ao longe um trovão soturno e a chuva caíu mais grossa; o vento, que se acalmára por instantes, assobiou outra vez desesperadamente.

A Lourença, que se encostára na cama, resou pelos que andavam sobre as aguas do mar e pensou que na côrte havia mais temiveis temporaes. Resou por El-rei e por Manuel Furtado e um mesmo padre-nosso por Maria da Boa Hora e D. Anna de Portugal.

O Tejo encapelára-se e as ondas entravam furiosas no bergantim d'El-rei, amarrado ao cães.

-- Vá S. Majestade com suas ordens para o inferno! disse Simão Peres furioso. Não está tempo para almas christãs obedecerem aos mandados reaes!

Era certo que Antonio Conti não esperaria até taes horas. Talvez El-rei houvesse ido por terra, esquecendo-se que o pobre Simão Peres, sempre dedicado a seu serviço, estava ali, encharcadinho, a espilrar desde a meia noite.

Poz-se a caminho da casa da Calcanhares, onde acordaria a Luzia, que lhe aquecesse um pichel de vinho para tomar com muito mel.

Tremia de frio; ía furioso. Quando offerecesse os seus serviços ao Infante seria melhor tratado.

Deu-lhe o coração um baque: não seria cilada que lhe armasse Fr. Bernado?

Bateu á porta violentamente, duas, tres vezes. E a chuva a caír!

Havia de saber o que passára e, se o frade pensava, com sua infeliz Maria da Boa Hora, vencel-o, luctaria com todas as armas. A Calcanhares o aconselharia; ainda era a mulher mais bonita de Lisboa.

A' mesma hora, Fr. Bernardo estava no quarto, meio morto; despia-se e, a tremer de frio, mettia-se entre os lençoes immundos do catre.

Que noite aquella!... Felizmente o Braz conseguira que El-rei fosse para o quarto. Desde o desastre que lhe acontecêra, mal tratado como fôra, perdêra para sempre a saude. Uma noite sem descanço enchia-o de dôres, sobretudo n'aquella perna que os cirurgiões lhe tinham concertado com menos carinho do que o exigido pelo sr. D. Affonso para seus cães.

Deitou-se, mas não pôde pregar olho. O coração batia lhe assustado. Era certo, fizera a primeira vasa; mas temia o jogo do parceiro e via duvidosa a partida. Os mysterios irritavam-o.

Com prolongadas queixas -- diabo da perna -- virava-se na cama, sem poder fechar os olhos. Que se passaria? Se era Maria da Boa Hora quem tinha feito seu jogo contra elle, uma vingança tinha na mão, ainda que elle proprio estoirasse, como succede ás vezes a quem lança fogo á mina.

Como viria ali parar Manuel Furtado?... Seria acaso?... Seria trama enredada pela Falcôa?

Levantou-se, vestiu-se, agarrou nas mulêtas, foi por ali fora, debaixo do temporal, até casa da Lindosa.

Já a essa hora Manuel Furtado marchára com Pantaleão Gonçalves e Maria da Boa Hora para a praia de Xabregas, d'onde uma falua, contra vento e contra mará, os levou Tejo abaixo á Outra Banda.

Maria da Boa Hora resava baixinho:

-- Senhor Deus!... Senhor Deus!... Salvai-me o meu filho!

-- Ha de salvar-t'o. Boa Hora, dizia-lhe Manuel Furtado.

E, deante de tanta desgraça, doía-lhe o coração, porque se sentia d'ella culpado. Tambem elle enganára aquella mulher, abrindo-lhe os braços, quando já não podia, sem mentir, jurar-lhe amor para sempre.

Pantaleão Gonçalves tinham-se-lhe dissipado os ultimos fumos do vinho e, muito pallido, na falua que saltava sobre as ondas, muito agoniado, com a mão na bocca do estomago, pensava na morte e n'outras coisas tristes a que andava arriscado.

Devia de ter nascido o sol; mas as nuvens cada vez mais densas pesavam sobre o rio e a cidade, encurtando o horisonte.

O pequenino chorava.

-- Aonde me levas? perguntou Maria da Boa Hora.

-- Onde resguardes teu filho.

-- Manuel! disse ella, percebendo admirada quanta generosidade, quanto perdão encerrava aquella acção do antigo adorado amante.

Elle fechou os olhos. Aquelle seu nome, n'aquella bocca, ai quanta vez o ouvira assim, pronunciado com tamanho amor!

Na cidade, a luz baça d'aquella manhã em começo de inverno, quanta gente a vira depois d'uma noite de insomnia! Quantos olhos se não haviam fechado, que não o deixaram odios, projectos de vingança, ambições, tramas urdidas!

CAPÍTULO XIII

O Secretario

Não era D. Rodrigo de Menezes homem que, de braços cruzados, esperasse os lanços do inimigo para então de improviso responder-lhes. Certo de que muito essencial para marcar vasa lhe era a protecção de Luiz XIV ao partido do Infante, approximára-se, muito cortezão, do embaixador francez, abbade de Saint-Romain, que o recebêra com um sorriso dos mais animadores.

Principiára sua côrte a tornar-se mais assidua, ainda em tempos do Conde de Castel Melhor, quando, depois de ajustada a liga, El-rei de França resolveu conquistar um porto de mar em Galliza. Para tal fim marcharia o Conde de Schomberg com as tropas estrangeiras, devendo o governador das armas de Entre Douro e Minho, Conde do Prado, fornecer-lhe a gente e munições necessarias para a conquista. Resolvêra, porém, o conselho de estado que era perigoso o francez tão proximo da nossa fronteira e ao Conde do Prado foi pelo Castel Melhor ordenado que, mostrando-se pressuroso em obedecer ás ordens, fosse ideando difficuldades taes que não se realisasse o intento. Não se illudiu o velho Conde de Schomberg e logo deu parte a El-rei de França do pouco interesse de Portugal em lhe prestar auxilio.

D. Rodrigo de Menezes manifestou seu sentimento ao abbade de Saint-Germain. Era feia a ingratidão praticada pelo sr. D. Affonso contra S. Majestade Christianissima, a quem devia a conservação da corôa. Enganar assim o Conde de Schomberg que viéra a Portugal commandar oito mil homens todos pagos á custa de El-rei de França! Um tão pequenino serviço, que redundaria em tamanho bem do reino, assim se negava a seu desvelado protector!...

Ah! se o Infante fôra rei de Portugal!... Pudesse elle repetir ali o que lhe ouvira, os termos indignados com que recebêra a nova da affronta feita a S. Majestade de França e a de tanta deslealdade!

O embaixador francez convidou D. Rodrigo de Menezes a que mais vezes voltasse a visital-o, que muito folgava em ouvil-o.

D. Rodrigo lamentava de todo o coração a sorte da infeliz senhora, que de longe viéra illudida e não se via tratada por El-rei nem como rainha nem como esposa. Tudo sabia o Conde de Castel Melhor, mas convinha-lhe, para suster-se no poder, encobrir tamanhas vergonhas. Heroicas verdadeiramente eram a modestia e a paciencia da princeza desgraçada, que tão calada soffria.

E não se esquecia nunca do panegirico ao Infante, ornado de tão singulares virtudes, que outro principe não havia na historia das gentes a que pudésse comparal-o.

El-rei incapaz de successão e de governo... Ah! com que generosa acção podia El-rei Christianissimo merecer a benção de Deus!

E já El-rei Luiz XIV informado pelo abbade, embaixador em Portugal, se mostrava disposto a favorecer as pretensões de D. Pedro, quando uma carta que recebeu da Rainha, D. Maria Francisca, o decidiu a enviar ao Tejo uma esquadra de dezaseis navios.

Poucos estavam no segredo do que havia de passar-se e o proprio Infante, novo e ardente, não via, senão como em sonhos, o alvo para que o ía encaminhando o sisudo D. Rodrigo.

Era, preciso, um por um, ir destruindo os esteios de El-rei.

Começára já a lucta contra o secretario Antonio de Sousa de Macedo, porque de Henrique Henriques de Miranda deu-lhes pouco trabalho o desfazerem-se. Era elle quem de portas a dentro tudo administrava no palacio e como, de tempos antigos, era amigo do Conde de Castel Melhor, revertia sobre elle grande parte do odio da plebe ao infamado escrivão da puridade.

Logo que elle melhorou, decidiram matal-o publicamente, sem para o crime procurar as trevas da noite. Mas Henrique Henriques foi avisado e mandou a liteira para casa. Chegou ella á praça onde a esperavam os assassinos armados de clavinas, os quaes, ordenando aos creados que parassem, correram as cortinas. Elle então, salvo por favor da Providencia, pediu a El-rei que o deixasse sair da côrte.

Não dormia D. Affonso uma noite socegado e todas mandava a Simão Peres que viesse com a Calcanhares pela porta secreta. Já não queria adormecer antes de ver a manhã luzir nas frinchas das janellas.

Tinha medo de fechar os olhos, desde que uma vez sonhára com a Rainha mãe e acordára com o coração a despedaçar-lhe o peito. Mandou logo chamar Martim dos Reis e encommendou muitas missas pelas almas do purgatorio. Mas nunca mais teve socego. Apenas anoitecia, ao menor barulho, voltava a cabeça, apavorado. Não podia pensar n'aquelle horror.

Quem primeiro estava junto d'elle não sabia. Era tudo escuro, muito escuro, no quarto. Chamára a Calcanhares, mas devia de ser a Falcôa quem tinha entrado, fazendo ranger a porta devagarinho. Não podia distinguir as feições de quem se lhe approximára do leito; mas conhecia aquelle beijo que tinha um travor de lagrimas. Os beiços que o beijavam eram frios, frios como gêlo. Enregelaram-o todo e elle pôz-se a bater o queixo. Depois, na escuridão, começou a formar-se um alvor, como de neblina que luz mysteriosa de luar illuminasse, e n'elle definiu-se um rosto macilento, como de cadaver, cujas feições se começaram accentuando, avivando. Todo o corpo lhe tremia convulsivamente na cama. Ouvia ao longe os gemidos d'um homem que assassinavam e que gritava por elle. De repente, reconheceu na visão Magdalena com seu véo de noviça, olhos fechados dolorosamente e duas lagrimas de sangue muito vermelho a correrem-lhe pelo rosto pallido, immovel. Depois este começou a contraír-se, os olhos a abrirem-se muito, muito, a bocca a estorcer-se, as feições a alterarem-se. Os gemidos lá fóra haviam-se calado. Era agora o rosto da Rainha, da esposa que o contemplava, irradiando aquella formosura, cujo só pensamento lhe alterava as faculdades. Um nó apertava-lho a garganta, o grito saíu-lhe rouco: -- «Izabel!» E ella sorriu-se para elle, com uns labios que o attraíam, olhou com uns olhos cujo fogo lhe queimava o coração. -- «Izabel!» repetiu. Ella desenhou na bocca o geito d'um beijo e foi ao d'elle approximando seu rosto; e elle estendia os labios ancioso, cerrava os olhos antegosando o prazer lubrico, quando via, outra vez no rosto que lhe apparecia, alterarem-se as feições, e a noviça sobre seu hombro deixar descaír a cabeça. O bafo cheirava a cadaver, os olhos eram dois buracos e, junto ao rosto d'elle, era a caveira da Rainha mãe que lhe falava: -- «Filho! filho! tu me mataste, dá-me um beijo!»

Acordou alagado em suores frios. O quarto estava ás escuras. Parecia-lhe ainda ouvir ranger os ossos dos dedos que o afagavam. Que horror!

Não, nunca mais queria dormir de noite, nunca mais estar só de noite. E quando no ouvido sentia como um ecco d'aquellas palavras: «Filho, filho, tu me mataste», mandava á Calcanhares que cantasse. E logo lhe arrancava a viola das mãos com saudades de Maria da Boa Hora.

Que seria feito da Falcôa?... Que seria feito do filho?

Nunca mais chamára Fr. Bernardo, nunca mais este o procurára. Se houvesse novidade, viria dizer-lh'o. Não queria saber noticias, queria que o deixassem queria enlouquecer, esquecer tudo... Ah! se pudesse dormir!... Ah! se pudesse morrer sem medo!

Dessem-lhe um homem em que pudesse confiar, um homem como fôra o Conde!

E agora pasmava de ter pensado em Antonio Conti. Relembrava-lhe, com accessos de raiva, sua audacia escrevendo a Maria da Boa Hora. Em que momento de loucura, de terror, de isolamento cruel, pensára em tal homem?

E o que estava na torre de Belem, preso á sua ordem, quem seria?

Davam-lhe impetos de o mandar soltar; não queria saber, não queria...

Como era possivel que ainda amasse Maria da Boa Hora?... Era a mãe de seu filho, a qual não havia de querer mal decerto. E elle lêra piedade em seus olhos.

Amor!... Amor!

E na lembrança, como no sonho, confundia rostos, e a Falcôa tiritava de frio e Magdalena chorava lagrimas de sangue e a Rainha, com um sorriso de mofa, estendia para elle os labios vermelhos e lubricos, tentadores.

Então não queria vêr mais nada, deitava-se sobre o canapé, com o rosto occulto na almofada... Era o castigo de Deus!... Era o castigo de Deus!

E não ter um homem, um só, que lhe valesse !

Foi então que se aferrou ao braço de Antonio de Sousa de Macedo. Era um honrado velho, que não havia de abandonai-o nas unhas de tantos inimigos.

Simão Peres e a Calcanhares, até que a manhã rompia, assistiam ao delirio d'El-rei e trocavam olhares que diziam: «Temol-o por pouco. Aproveitar!»

Fr. Bernardo cá por fóra pensava o mesmo. Falára com a Lindosa e apenas apurára que a Falcôa saíra de casa com o pintor. Espreitára muita vez a casa de Manuel Furtado e seguira na rua a Lourença, quando ia ás suas devoções, mas só notára que a velha tinha as faces queimadas de lagrimas. Interrogando os creados de D. João d'Almeida, soubera que, desde havia muitos dias, o capitão não apparecêra á noiva. Era pouco para o muito que pretendia saber.

Foram angustiosos para El-rei aquelles dias. Sabia o quanto a Rainha se havia de revoltar, se novamente ao logar de secretario chamasse Antonio de Sousa de Macedo.

Votára-lhe ella o mais inquebrantavel odio. Não a moveria ao perdão o parecer do conselho de estado que, não obstante o secretario affirmar que, só por mal intendido de S. Majestade esta julgára que elle lhe perdêra o respeito, quando a S. Majestade queria convencer que muito a veneráva a nação portugueza, attendendo á queixa de S. Majestade e só por lhe dar gosto, intendia dever El-rei mandar ao secretario que, por dez ou doze dias, se retirasse da côrte.

O rancor da Rainha exigiria decerto mais rigoroso castigo contra o irreverente vassallo que ousára tocar-lhe nas roupas para obrigal-a a parar e ouvir-lhe as razões.

Não a demoveria do proposito o parecer dos conselheiros tão desrespeitosos que terminavam o papel com estes dizeres offensivos. «El-rei, nosso senhor, deve fazer presente á Rainha, nossa senhora, que executa esta demonstração só por lhe dar gosto e que em similhantes occasiões se não empenha pelas ruins consequencias que do contrario podem resultar á boa direcção do governo, assim de presente como de futuro.»

Era El-rei no conselho do estado, quando a Rainha lhe enviou um papel, que leu só para si.

Começava d'esta maneira: «Não fiz até agora presente a V. Majestade a justa causa do meu sentimento e o grave motivo de minha queixa, por se me ter até agora occultado a resolução tomada, que chegando a ser vista por mim me causou não pequena admiração.»

Seguia-se a relação dos aggravos: a ousadia com que Antonio de Macedo calumniára e enganára os conselheiros, dizendo-lhes que ella falára contra a nação portugueza; a acção altiva que elle contra ella commettêra; a absolvição do castigo merecido por similhante crime.

Terminava pedindo que Antonio de Sousa de Macedo fôsse julgado, sentenciado e castigado pelas leis estabelecidas nos crimes de lesa-majestade de primeira cabeça.

Guardou El-rei o papel e a gente do Infante, para lançar fóra da ilharga de El-rei ao secretario, nenhum melhor meio achou que o da queixa da Rainha, a que El-rei não respondêra, seguindo em sua determinação.

lam-se os dias passando e El-rei tremia da approximação das víboras que, em delirio constante, lhe parecia ouvir rastejando em volta do throno.

Chamou uma noite a conselho o secretario de estado e outros homens velhos em que mais confiava. Mostrou-lhes o papel da Rainha, pediu-lhes seu parecer.

Era entre elles Salvador Corrêa de Sá Benevides, restaurador do reino de Angola, soldado velho, pouco entendido de paliativos quando urgia a resolução.

-- O caso é tão grave, disse, que julgo se não pódem já evitar todos os designios do Infante, sem que mande V. Majestade cortar algumas cabeças.

E citou nomes: D. Rodrigo de Menezes em primeiro logar, D. Sancho Manuel, o Conde de S. João, o Conde da Torre.

Todo elle tremia de indignado. Concluiu dizendo:

-- O espirito cobarde tem cerrado muitas vezes a porta a grandes fortunas; os principes não tanto se fazem temer pelo seu poder como pela sua ousadia.

Já votavam com elle alguns conselheiros, entre os quaes Antonio de Sousa de Macedo, quando o Conde de S. Lourenço entendeu fazer suas ponderações.

Falou contra o Infante, motor de todas as inquietações, o qual depois de haver lançado fóra o Conde de Castel Melhor, tentára contra a vida de Henrique Henriques de Miranda e queria agora separar de El-rei o secretario de estado, valendo-se da Rainha, enganando a plebe, attraíndo a si os fidalgos. Nada o contentava, o que era prova evidente de traição. Sempre buscando novos disturbios, de tantas desordens e maquinações quem podia duvidar que aspirasse seu intento a fim mais alto?

Mas discurdou do parecer de Salvador Corrêa de Sá, parecendo-lhe n'aquella occasião, não dever usar-se de violencia, mas antes de astucia. Deveria El-rei, não se dando por entendido, passar á outra banda do Tejo com toda a infantaria e cavallaria da côrte e d'ali chamar a todo o reino, incorporando-se ao exercito. Chamaria o Infante e a todos seus creados, titulos e gentis-homens, dando por traidores aos que não obedecessem. Aos comprehendidos nas inquietações e disturbios mandaria conhecer nas suas causas para que fossem punidos pelo crime de lesa-majestade.

A todos pareceu bem o discurso do Conde de S. Lourenço.

Ajustaram encontrar-se todos nas seguintes noites para, conforme as circumstancias, ir decidindo o que fosse mais urgente e acertado.

Salvador Corrêa de Sá resmungava:

-- Não deixes para ámanhã...

Parecia-lhe que El-rei dormiria mais socegado, se o algoz houvesse cançado o braço contra meia duzia de pescoços.

Mas El-rei estava satisfeito com aquella resolução. Quando entrou na sala onde já a Calcanhares o esperava, esta recebeu-o com um grito de alegre pasmo:

-- Ora graças a Deus! Parece que a quaresma acabou!

-- Parece-me! repetiu D. Affonso.

-- Vindes de vosso conselho?

-- Antonio de Sousa de Macedo é velho e quiz ouvir a velhada.

-- Velhos tontos fizeram rir V. Majestade, observou Simão Peres.

-- Velhos tontos! exclamou D. Affonso. Se ouvireis como Salvador Corrêa de Sá falava em cortar cabeças!...

-- Cáspité!

-- Degolava mais portuguezes agora do que hollandezes matou em Loanda.

Simão Peres pôz-se muito sério.

-- Muita vez declarei a V. Majestade minha opinião. Approvo o parecer de Salvador Corrêa.

-- Ah!... eu não! disse a Calcanhares.

-- Estás então com o Conde de S. Lourenço?

-- Que disse elle?

-- Pareceu-lhe cedo. Acha que devemos esperar.

-- E V. Majestade que lhe parece? perguntou Simão Peres.

-- O Conde fallou com maior prudencia. Salvador Corrêa é mais soldado; vae logo ás do cabo. Era já ámanhã no Rocio um mólho de cabeças: de D. Rodrigo de Menezes, de D. Sancho Manuel, do Conde de S. João, do da Torre, não sei quantas mais!

-- Sempre gostei d'aquelle homem!

El-rei estirára-se n'uma cadeira, chamando para junto de si a Calcanhares.

-- Vou deixar-te, sabes?

-- Deixar-me? perguntou ella com tom assustado. E quando?

-- A'manhã ou depois... não sei; elles não disseram.

-- E para onde ides, que não podeis levar-me?

-- Tambem não sei ao certo; para a Outra Banda, creio eu. Mas levar-te...

Simão Peres e a Calcanhares trocaram um olhar.

-- Não ides só, continuou ella.

-- Não; vae o exercito commigo, e de lá hei-de fazer convocações... Olhae que isto é segredo.

Simão Peres levou a mão á bocca como a tapal-a, depois ao peito como a jurar silencio.

-- E isso vos alegra tanto! disse a Calcanhares com uma expressão saudosa.

-- Alegra-me, porque depois...

E El-rei sorria contente.

-- Posso vêr-te depois sem estes pavores, sem estas cautellas, livre para amar-te, livre para ser rei!

Abraçou-a.

Simão Peres disse:

-- Até que vos vejo emfim no bom caminho! Confie V. Majestade nos amigos fieis que ainda tem, não os despreze por humildes... e a victoria ha de ser nossa, não é verdade. Calcanhares?

Esta abraçára-se a El-rei.

-- Sei lá do que falaes!

E baixinho dizia a D. Affonso:

-- Mandae-o embora. Queria estar só comvosco. A'manhã partireis, dizeis vós!

-- A'manhã não disse... Depois talvez... Um d'estes dias...

-- E as horas de ausencia, dias, semanas, mezes talvez, como hei de eu passal-as, longe de vós, com as minhas saudades?

Simão Peres fazia signaes desesperados á Calcanhares. Ella baixou a voz outra vez.

-- Se julgaes que Simão Peres me faz boa companhia... O quanto elle me aborrece nem sabeis calcular!... Mandae-o embora... Queria tanto estar só comvosco, hoje que estaes mais alegre, hoje que tanto preciso dizer-vos adeus!

El-rei voltou-se devagarinho e fez signal ao escudeiro, que sorriu discretamente, como a dizer-lhe que bem o percebia, e saiu nos bicos dos pés.

-- Não ha tempo a perder, disse comsigo. O caso é arranjar meio de falar a D. Rodrigo de Menezes.

Bem tinha elle percebido os olhares significativos da Calcanhares e ella os signaes que lhe elle dirigira.

Subiu á casa de S. Francisco, onde guardava o habito de frade de que uma vez fizera uso para se apresentar ao Conde de Castel Melhor e intrigar Antonio Conti. Revestiria o mesmo burel, para que ninguem o reconhecesse, quando procurasse penetrar no palacio da Côrte Real. Ajudal-o-hia um bilhetinho que remetteria a D. Rodrigo. Suas letras eram poucas, mas chegavam para que o entendessem.

Foi no papel perfumado de que a amante de El-rei se servia que escreveu em grossas letras o aviso e o pedido para a conferencia. Pôz o sobrescripto e no lacre imprimiu o sêllo da Calcanhares, Cupido atirando uma setta.

-- Não é conventual, disse com um riso de môfa, mas, se lá o reconhecerem, mais cedo me abrirão a porta.

Encaminhou-se para a Côrte Real, compondo phrases que lhe pareciam de effeito: a causa do reino acima da causa de El-rei, a tyramnia do secretario, as virtudes do Infante... Era preciso não haver engano. Manejando bem as cartas, conhecendo o jogo de cada um dos outros, que lhe custaria ganhar a partida? Coitado do Rei nos braços da Calcanhares áquellas horas!... Não lhe dava um mez de throno. E o secretario, coitado!...

-- A causa do reino! dizia enfatuado.

E revia as phrases demoradamente armadas sobre os logares communs mais sabidos, com que havia de deslumbrar os conselheiros de S. Alteza.

Entrou no palacio e, com ar muito humilde, esperou o escudeiro a quem daria a carta para D. Rodrigo de Menezes, rogando lh'a quizesse entregar urgentemente, pois se tratava do serviço de Deus.

Olhou em volta e viu na loja mal illuminada por um unico larapeão de azeite, sentado a um canto, como quem espera resposta d'algum recado, outro frade, tal como elle vestido, que, avistando-o, puxou para os olhos o capuz. Não gostou do encontro, não fosse o irmão encetar palestra. Cumprimentou-o de longe.

-- Irmão, Deus vos salve! disse, disfarçando voz.

O outro correspondeu ao cumprimento, cruzando os braços sobre o peito e inclinando ligeiramente a cabeça. Mas não se ergueu, o que fez desconfiar Simão Peres.

Pelos tempos que iam correndo não havia que fiar em habitos fradescos.

Reparou que tambem elle tinha uma carta na mão.

Um mulato disse a rir:

-- Dois frades da mesma ordem que não se conhecem!

-- Cheguei ha dois dias da provincia, respondeu Simão Peres. Venho do Minho. Trago de meus superiores uma carta para o sr. D. Rodrigo de Menezes.

-- Fizestes talvez juntos o caminho, continuou o mulato voltando-se para o outro, visto como do Minho tambem viestes.

-- Do Minho, sim, respondeu elle.

-- E de que convento sois, meu irmão? perguntou-lhe Simão Peres, para não caír em escolher o mesmo.

-- De Amarante. E vós?

-- Da Guarda.

O outro estremeceu. Um frade na Guarda a suppôr-se no Minho!

-- E como viestes?

-- A pé, meu irmão; esmolando por esses caminhos. E vós?

-- Vim n'um burrinho. Sou coxo. E que cidades atravessastes onde conventos nossos de tanta caridade vos abrigassem?

-- Muitos, muitos! respondeu Simão Peres. Nem lhes perguntava os nomes. Era mandado que vinha cumprir.

-- E em Lisboa onde estaes, irmão?

-- Maldito curioso! rosnou Simão Peres.

E alto:

-- Onde a caridade me abrigou, que não falta nunca aos pobresinhos.

-- Deus vos abençoe, irmão.

-- Deus seja comvosco.

Entrou um escudeiro e perguntou a Simão Peres o nome e o que desejava.

-- Fr. Bernardo, respondeu elle.

Foi o que primeiro lhe lembrou.

E entregou-lhe a carta.

O escudeiro foi ter com o outro, que relanceando o olhar para o sobrescripto, reconheceu espantado o sêllo da Calcanhares.

-- Simão Peres! exclamou a meia voz.

-- Frei Simão, repetiu o escudeiro.

-- Tem graça! disse comsigo o Simão verdadeiro, algum tanto admirado.

Mas deu-lhe uma suspeita. Approximou-se.

-- Que fazes aqui, Bernardo? perguntou, reconhecendo o antigo companheiro d'outro genero de aventuras.

-- E tu, que vejo no mesmo disfarce que para meus fins escolhi?

-- E' segredo, bem vês.

-- Para que buscas então saber o meu?

-- Para, se andarmos com o mesmo fito, nos não pisarmos no caminho.

-- Tens razão.

-- Sempre fui teu amigo, Bernardo.

-- Provas tenho e boas da tua amizade.

-- Porque te escondias de mim?

-- Porque...

E muito baixo, para que o mulato nem meia palavra ouvisse:

-- Sabes tu, Simão, o que nos separou?

-- A tua desconfiança.

Fr. Bernardo encolheu os hombros.

Foram as mulheres. Onde entram mulheres, acabou a boa harmonia entre os homens.

-- Lá isso é verdade.

A Calcanhares por um lado, tu a quereres tudo para a Calcanhares... A Falcôa por outro, eu a querer tudo para a Falcôa... Mal empregado tempo Simão, mal empregado tempo! Não ha mulher que mereça os sacrificios que um homem faz por ella.

Simão Peres approvava com a cabeça, philosophicamente, e o gesto exagerado communicava-se-lhe á ponta do capuz.

-- Minha pena é que assim me não falasses sempre.

-- Mais vale tarde do que nunca.

-- A's vezes, chego a ter remorsos...

Fr. Bernardo atalhou-o com um gesto dos que por vezes admirára no pateo das comedias.

-- Se tu soubesses...

Approximou-se ainda mais. Falou-lhe ao ouvido, olhando de revez para o mulato muito espantado de vêr tão manos já dois frades que não se conheciam.

-- O que me traz aqui é o meu remorso.

-- Como? Dar-se-ha caso...

-- Andei tão mal com El-rei, doem-me tanto as minhas culpas... Pelo amor de Deus, Simão, não me vás traír!

-- Era lá capaz!...

-- Dize-me primeiro a que vens, ou se és pelo Infante.

-- Sou pelo reino!

Lembrou-se d'uma de suas boas phrases, mas não quiz estragal-a.

-- Pois então escuta, Simão. Eu venho arriscar a vida... para vêr se salvo a de El-rei!

-- Tambem eu, homem, tambem eu!

-- Lembrei-me d'este disfarce para lhes inspirar confiança; fingir-me-hei todo por elles... e o que eu souber...

-- Ainda bem que te encontrei no meu caminho, Bernardo! Isso mesmo pensava praticar pelo sr. D. Affonso, a quem devo muito, muito...

-- Simão!

-- Bernardo!

Apertaram muito as mãos um ao outro. O escudeiro vinha chamal-os. Ouviram-lhe os passos. Encarregára D. Rodrigo o Duque de Cadaval de falar a um dos frades. Foi Fr. Bernardo, com o nome de Fr. Simão, o primeiro introduzido. O Duque de Cadaval mandou entrar Simão Peres com o nome de Fr. Bernardo.

E os dois iam pensando um do outro:

-- Não me embaças, eu te farei a cama.

Mas nem o Duque de Cadaval deu tempo a Simão Peres para recitar suas phrases de estudada rhetorica, nem D. Rodrigo de Menezes consentiu que Fr. Bernardo se espraiasse em considerações sobre quanto lhe pesava em sua consciencia a má vida que levára. Era opinião d 'ambos que devia pagar-se a traição e despresar o traidor.

Simão Peres com protestos da maior dedicação a S. Alteza, que desde pequenino amava, contou o que sabia dos pareceres de Salvador Corrêa e do Conde de S. Lourenço, expendidos no conselho, aquella mesma noite reunido no paço, e como o secretario de estado approvára com enthusiasmo a opinião mais atrevida que mandáva decepar tantas cabeças de tão insignes fidalgos, dignos de muita estima e do maior respeito.

E não se esqueceu de pôr de sobre-aviso o Duque de Cadaval com respeito a quanto Fr. Bernardo, traidor temivel, estava mentindo a D. Rodrigo de Menezes.

D. Rodrigo entretanto escutava attentamente o frade narrando-lhe o que sabia do filho de Maria da Boa Hora que El-rei tratava como seu. Mas cada vez que Fr. Bernardo dizia suas considerações sobre a existencia de tamanho perigo, D. Rodrigo, impaciente, mandava-lhe que proseguisse em sua narração.

O peor era o desapparecimento de Maria da Boa Hora que, segundo a opinião de Fr. Bernardo, deveria estar occulta em ponto só conhecido de Manuel Furtado, seu antigo amante, agora com certeza desejoso de renovar seus amores.

Sabia D. Rodrigo que, desde a noite em que Pero Rolão fora preso, nunca mais o capitão apparecera em casa de D. João d'Almeida. Perguntou ao frade:

-- E sabes onde elle pára?

-- Não o sabe V. Ex.ª? disse Fr. Bernardo muito admirado. Está na torre de Belem.

-- Com Pero Rolão?

-- Pero Rolão!

-- Sim, que foi preso ás ordens de El-rei uma d'estas noites, quando pelo padre Ventura lhe enviou os copos de uma espada...

-- Com mil raios! exclamou o frade esquecendo-se d'onde estava. Mas n'esse caso Manuel Furtado...

-- Que suppões?

-- Está com Maria da Boa Hora a defendel-a!... Torto vae o negocio!

-- E alguem saberá onde pára...

-- Deve uma só mulher sabel-o talvez, mas não será facil sacar-lhe uma palavra.

-- Quem?

-- A Lourença, a creada velha do capitão, que me enforcará se me poe a vista em cima.

D. Rodrigo meditou um instante.

-- Volta ámanhã por estas horas. E' força que essa creança desappareça. Eu te direi o que deves fazer. Vae.

Fr. Bernardo curvou-se todo. Queria beijar a mão de D. Rodrigo.

-- Um aviso ainda, meu sonhor. A'lém, com o Duque de Cadaval, está Simão Peres, o rufião d'El-rei, o homem da Calcanhares, como eu disfarçado em frade Tomae cuidado com elle. Veio aqui para enganar-vos. Até amanhã, meu senhor.

Encontraram-se os dois frades no corredor. Fôram juntos até á porta.

-- Desgraçado rei!

-- Desgraçado rei!

-- Adeus, Simão.

-- Adeus, Bernardo.

Não trocaram mais palavra. Cada qual seguiu seu caminho.

O Duque de Cadaval logo procurou a D. Rodrigo, que se encaminhava para com elle encontrar-se.

-- Era um rufião d'El-rei, um da patrulha baixa, quem vos remetteu ha pouco uma carta. Conhecestel-o sob o disfarce?

-- Era Fr. Bernardo, e, sendo frade, de frade vinha disfarçado com effeito. Foi dos companheiros de Conti e não embarcou com os italianos por ter partido as pernas. Outro rufião vos procurou.

-- Simão Peres, gentil-homem da camara da Calcanhares. Que vos disse Fr. Bernardo?

-- Confirmou o que suspeitavamos. O Conde de Castel Melhor creava em casa uma creança que El-rei dizia seu filho.

-- Pois melhor me contou Simão Peres. Fôstes hoje condemnado á morte.

-- Por quem?

-- Por Salvador Corrêa de Sá. Concedeu-vos uns dias de vida o Conde de S. Lourenço. El-rei prepara sua fuga para o Alemtejo. E' urgente falarmos com o senhor D. Pedro.

-- E que diz o secretario? perguntou sorrindo D. Rodrigo.

-- Que desejava vêr no cepo a vossa cabeça.

-- Não lhe darei esse gosto.

E os dois encaminharam-se para os quartos do Infante.

Rapidamente soube elle tomar suas precauções, que, no outro dia pela manhã, todos os conselheiros de estado se achavam, por aviso seu, esperando-o no paço, onde chegou acompanhado por muitos titulos e senhores da côrte, todos secretamente armados.

Estava o terreiro cheio do povo, que já subia as escadas, invadindo as salas.

E El-rei dormia.

Despertaram-o.

Não tivera maus sonhos. Espreguiçou-se. Sorria-lhe um desejo ainda mal definido de acabar por uma vez com tão accumulados tormentos e gosar em Salvaterra os dias bellos do verão de S. Martinho, que não tardava.

Sentia-se mais socegado.

Mas deram-lhe a nova do que ía no paço e no Terreiro, e começou logo a vertir-se atabalhoadamente, praguejando. Quem tinha razão era Salvador Corrêa.

Deu ordem para que a toda a pressa viesse ter com elle Antonio de Macedo. Responderam-lhe que ninguem o encontrava.

-- Malditos! malditos! dizia.

E embaraçava-se no enfiar das mangas e rasgava as rendas e arrancava os botões. Assim, e com os cabellos desgrenhados, esquecendo-se de cingir a espada, entrou na sala do conselho.

Estava o Infante n'um grupo separado dos outros, acompanhado pelo Marquez de Marialva. D. Rodrigo de Menezes, Condes de Villa-Flôr, de S. João e da Torre, D. Luiz de Menezes, Gil Vaz Lobo e o Duque de Cadaval, á frente de todos.

Em conselho de guerra, para que o Infante de manhã os convocára, lhes contára o que havia e como tudo era revolto pela assistencia de Antonio de Macedo junto d'El-rei. Não se déra satisfação á Rainha da sua queixa e El-rei augmentára o escandalo mettendo dentro em palacio o secretario. Era portanto dever seu, vendo a monarchia agonisante, acudir ao bem commum do reino e amparar a princeza estrangeira perseguida. Queria o secretario va-ler-se do sagrado do palacio, onde se achava com armas e acompanhado por quem apoiava sua malicia; influira no coração d'El-rei para que saísse da côrte, levando d'ella comsigo a infantaria e cavallaria, juntando o exercito para pôr tudo a ferro e fogo e mandar então decepar as cabeças dos maiores fidalgos. Antes que se fizesse incuravel o mau contagio, força era lançar fóra da côrte aquella peste. A expulsão do secretario satisfaria a Rainha; só ella lhes poderia assugurar honra e vidas.

Duvidavam alguns do melhor caminho a tomar; mas deu-lhes alento o Duque de Cadaval.

-- Por muito menos mandou S. Majestade a Rainha regente deitar a Antonio Conti fóra do palacio, e eu fui o executor d'essa ordem. Mais perigosas agora são as circamstancias, pois que anda El-rei tão enganado, que manda approvar a execução cruel de tantas maldades forjadas pela tyrania do secretario. Com a separação d'este se acommodará tudo; haverá paz e socego em palacio, sem as inquietações causadas por este mau vassallo. Sentil-o-ha El-rei á primeira vista; mas, quando conhecer que todos os movimentos se executam em seu serviço, não poderemos recear castigos, antes esperar muitas mercês.

Todos logo se levantaram e partiram para o palacio, onde subiu o Duque aos quartos do secretario de estado, que lhe appareceu, pobre velho decrepito, de espada á cinta e um cruxifixo na mão.

O povo enchia as escadas levantando vozes e o Duque impunha-lhe sua auctoridade, dizendo-lhe:

-- Antonio de Macedo vae commigo.

-- Atirae-o da janella! gritava o povo, lembrando-se alguns de como haviam vingado seus odios no cadaver de Miguel de Vasconcellos.

Levaram-o, esconderam-o. E o velho fidalgo chorava:

-- Como Antonio Conti!... Como Antonio Conti!

Entrou El-rei na sala do conselho e ouvia lá fóra o povo a uivar.

Approximou-se o Infante e expôz-lhe as razoes de todo aquelle alvoroço, em phrases rhetoricas que D. Rodrigo compuzera e D. Pedro toda a noite levára estudando.

El-rei, tremulo, com os punhos sobre a meza, pallido pela colera reprimida, ia escutando. Chammejavam-lhe os olhos, estorcia-se-lhe a bocca. Para que lisongeal-o assim? Para quê tantos protestos de amor e de fidelidade? Não conheceria elle o veneno que encerravam aquellas palavras? Lá voltavam com a queixa da Rainha e a escandalosa assistencia do secretario em palacio. Agora a ironia mais uma vez: -- «Todos com amor e zelo assistimos a V. Majestade, para que, sem a menor occasião de pena, não só logre, mas dilate a gloria, que, tão airosa e felizmente, lhe teem adquirido as heroicas acções de seus valorosos vassallos. »

Não quiz mais ouvir.

-- Mentes!... Mentes!... gritou convulso.

O povo gritava lá fóra. Os fidalgos approximavam-se do Infante, cercando-o, a defendel-o, murmurando ameaçadoramente.

-- Senhor! disse este.

-- A calumnia torpe, se em tua bocca achou vida, é que bem viste, cobarde, que eu não tinha a minha espada!

Caíra-lhe o cabello sobre os olhos; afastou-o com um gesto raivoso.

O Infante desembainhára a espada e offerecia-lh'a.

-- Senhor! Se V. Majestade necessita de espada para satisfação de alguma inadvertencia de minha sinceridade, aqui tem esta para desafogo de sua paixão; se determina empregal-a no castigo de alheios delictos, eu serei o melhor executor de seus preceitos.

-- Cala-te!... Cala-te! respondeu-lhe El-rei. Guarda a tua espada, que me basta o meu chicote!

E já o brandia furioso, quando os gritos do povo augmentaram, e já se approximavam pelas escadas, que os guardas não haviam tido forças para defender.

-- A' morte!... A' morte!

-- Antonio de Macedo!... Antonio de Macedo! gritou El-rei.

Procurou socegal-o o Marquez de Marialva.

-- Senhor, Antonio de Souza de Macedo está em sua casa vivo e são. Eu o entregarei a V. Majestade quando me pedir conta d'elle. Soceguemos o tumulto.

E arrastou-o para a janella onde logo o Infante se lhe juntou, e o povo, vendo-os juntos, os applaudiu.

Quebrára-se o furor d'El-rei, que murmurava baixinho:

-- Só!... Só!...

E outra vez tremia, mas de mêdo.

Retirou-se.

N'esse instante entrava a Rainha na sala do conselho.

Tambem ella vinha pallida; tromiam-lhe as azas do nariz e brilhava-lhe nos olhos um fogo singular. Ouvira os urros ferinos do povo contra o paço em que habitava e todo seu orgulho de princeza se revoltára. Tanto El-rei descêra que a tanto a plebe se atrevia!... Ainda que em sua ira melhor firmasse o intento que afagava, não lhe perdoava o arrojo. Batia-lhe o queixo e mal na garganta se lhe formavam as palavras.

Approximou-se do Infante; afastou-o do grupo dos fidalgos, que se inclinavam, reverentes.

-- Pedro!

-- Senhora, disse elle, lendo-lhe a mêdo no rosto um odio fundo.

-- Apressemos a vingança... Quero ser Rainha.

-- Rainha sois, senhora!

-- Quero!

Apertou-lhe a mão com força nervosa.

-- Quero... comvosco no mesmo throno!

O Infante quedou-se como estatua. Ella saíu majestosa e lentamente.

-- Que lhe diria? perguntou D. Rodrigo ao Duque de Cadaval.

O Duque não respondeu. Lembrou-se do que, uma noite, ella lhe contára. Passou-lhe pela ideia o possivel casamento com o cunhado.

Foi chamar o Infante.

-- Senhor, é tempo de recolher a vosso palacio.

A grande cavalgada seguiu pelas ruas entre innumeravel povo que soltava enthusiasticos vivas.

Em que pensaria o Infante, que tão distraído os agradecia?

-- Ora bem! disse o Conde da Torre. Devem os homens da paz andar satisfeitos. Com mil raios!... nem uma gota de sangue!

-- Tudo terminou! disse o Duque.

-- Ainda não, respondeu D. Rodrigo.

E, sem se apear do cavallo, marchou para casa de D. João d'Almeida.

CAPITULO XIV

Tristes amores

Sabia D. Anna de Portugal, porque o contára o Conde da Torre a D. Pedro de Almeida, de como Pero Rolão so achava preso na Torre de Belem. Desde esse dia nunca mais houvera novas de Manuel Furtado e toda ella era inquietações, tanto mais de a amargurarem, que todas calava comsigo.

Nem um mandado! Nem uma carta! Era preso com Pero Rolão, ou fugido? Levava noites e dias a rezar e, quando algum mais negro pensamento a torturava, lembrava-se do juramento que lhe elle déra e de suas palavras d'elle tão quentes e do olhar com que a olhava encantado, olhar que não mentia, olhar em que ella embebia o seu e que era ainda, lá d'onde elle estava, e ella não sabia, toda a luz de sua tamanha saudade.

Andaria em busca de salvar o amigo, talvez. Mas porque assim se lhe escondia? Já não teria n'ella confiança?

Junto da janella, ao pé de D. Violante amargurada de tão melancholica vêr a filha, esquecêra sobre os joelhos a tapeçaria e deixára indeciso pairar o pensamento entre uma esperança que o confortava e um receio que o ennegrecia.

-- Em que tempos vivemos. Senhor Deus de misericordia! disse por fim D. Violante, como concluindo a longa série de pensamentos que a tivera calada.

Era costumada queixa. Chegava ella ás vezes a ter saudades do tempo de D. Filippe. Mas era tão sentido agora seu gemido, que Anninhas volveu para a mãe os olhos inquietos, ainda antes que a interrogasse.

-- Novas más não tivestes de...

-- Não, filha. Nem nós nos devemos queixar dos revoltosos tempos, porque outros, muito mais do que nós, hão curtido em silencio dôres maiores.

Um tilintar de esporas na grande escadaria de marmore pôz Anninhas um momento de sobresalto. Nâo, não era elle, não eram seus passos.

Um instante depois, um escudeiro introduziu Fr. Gregorio.

-- Senhoras! Senhoras!... disse o frade agitando as mãos nos ares. O que por lá vae!... o que por lá vae!

E contou aquillo a que assistira e o que eram as vozes da plebe e como fôra deposto Antonio de Macedo e como o Infante recolhêra a palacio acclamado pelo povo.

-- Senhor!... Senhor!... dizia D. Violante pondo as mãos.

Receava pelo filho, não o arrastassem argumentos do Conde da Torre.

Anninhas pensava em Manuel Furtado. Se tambem elle se envolvêra na conspiração? Não, não podia ser. Mas, se ainda por El-rei, onde estava?

O frade cruzava as mãos no peito e dizia:

-- Senhor!... Senhor!... Vae chegar o tempo de que falaram os prophetas. Dies irae, dies ille!

-- Viste lá meu filho? perguntou afflicta D. Violante.

-- E Manuel Furtado? perguntou, pondo-se de pé, D. Anna do Portugal, a quem o tom soturno do frade agora mettia pavor.

-- Nem um nem outro lá vi. Estavam talvez, porque eram muitos e não vi todos. E o povo gritava: «Morte!... morte!» E gritavam tambem as mulheres... E eu vi, vi... Miserere mei!... Miserere mei! Era uma sombra que andava a correr sobre o povo, era a sombra das azas do demonio! Arrepiou-me os cabellos o vento que fazia!

E D. Anna e D. Violante olhavam para o frade e sentiam correr-lhes o corpo um calafrio de agoiro.

-- Calae-vos!... calae-vos!

O escudeiro entrou novamente. Mandava D. João d'Almeida pedir á mulher que descesse ao salão, onde D. Rodrigo de Menezes desejava apresentar-lhe seus respeitos.

Inquieta saíu.

E disse o frade:

-- Commigo subiu a escada. E' dos homens do Infante.

Olhou para D. Anna e seus olhos de doido apagou-os por um momento uma expressão de piedade.

-- Orae, orae muito, senhora, para que Deus se compadeça de nós. Riam de mim, empurravam-me, batiam-me, alguns, se os deixassem, esfollavam-me para rir ainda mais das visagens que eu faria. Doidos, doidos, não me queriam ouvir e agora hão-de ranger os dentes!...

D. Anna mal respirava. Um presentimento negro anciava-lhe o peito.

D. Violante voltou.

Fr. Gregorio calou-se. Muito cançado, esforçou-se por sorrir.

-- A esmolinha, disse.

-- Acompanha Fr. Gregorio, ordenou ella ao escudeiro. Dá-lhe a esmola do costume.

-- Rogae a Deus por nós, Fr. Gregorio, disse-lhe D. Anna, descobrindo no rosto da mãe uma nuvem de maior tristeza.

D. Violante metteu-lhe compaixão a filha, cujos olhos afllictos a interrogavam anciosa.

-- Pede a Deus que nos acuda, disse enygmaticamente.

-- Mãe, algum mal me aconteceu?... Que vos disse D. Rodrigo?

E como lhe ella não respondesse logo.

-- Manuel Furtado? perguntou.

-- D'elle falámos.

-- E' ferido?... E' morto? Respondei, minha mãe. Por Deus!...

-- Não.

Duas lagrimas corriam-lhe pela face.

-- Querida Anninhas!

E não podia falar.

-- Não sei... Depois te contarei tudo... Não é ferido nem morto. Ninguem sabe onde elle pára.

-- Mas por culpa d'elle são vossas lagrimas.

-- Pelo que vaes sofirer.

-- Mae, que me mataes!... Traíu-me?

D. Violante calou-se; beijoa-a muito. Aquella commoção, aquelles carinhos eram a resposta.

-- Traíu-me!

E desatou a soluçar.

D. Rodrigo de Menezes tinha bem tecido sua teia. Duvidava d'aquella gente, pois D. João d' Almeida não saía de sua melancholia custumada e o Conde da Torre não conseguira ainda convencer D. Pedro. Pero Rolão manifestára-se pelo Infante mais d'uma vez, mas nunca levára comsigo em taes emprezas a Manuel Furtado. Havia de este defender-se com todo o seu denodo e intelligencia, se quizessem de surpreza enredal-o. Demais, era para dar-se por muito certo dever de ser elle o pae da desgraçada creancinha, que D. Affonso tinha por sua com a infame approvação da Conde de Castel Melhor. Saber de Manuel Furtado era saber onde o espurio principe animava talvez occultas ambições, perigosas para mais tarde.

E, com pé de avisar Manuel Furtado dos grandes perigos que andava correndo, tamanhos que obrigavam o governador do palacio a pôr de lado deveres para com o Infante n'aquella hora, viéra correndo a casa do velho fidalgo.

Que dolorosa foi a nova para todos!

-- Anninhas!... Anninhas! dizia D. Violante, beijando-lhe os cabellos, molhando-os de suas lagrimas. E' mais uma tristeza em nossa familia. Seja feita a vontade de Deus, Nosso Senhor!

Mas sua voz tremia-lhe, e a formula resignada que diziam os labios ainda lhes não subia do coração.

Olhou para a rua, onde o povo passava em magotes, ainda inquieto, ainda falando alto, gesticulando, alguns erguendo vozes de morte contra o secretario.

-- Em que tempos vivêmos, meu Deus!

Chamou uma creada velha de sua confiança.

-- Acompanha minha filha.

E approximando-se de Anninhas, beijando-a outra vez:

-- Fica-te com a Brigida. Vou até á Sé pedir a Nossa Senhora que te dê conformidade.

Saíu.

Anninhas ergueu a cabeça. Enxugou os olhos.

-- Brigida, vae depressa buscar minha mantilha. Tu me acompanharás.

-- Eu, menina!

-- Tu, e já, antes que volte minha mãe.

-- Mas as ruas estão cheias d'essa plebe alvorotada, que não respeitará...

-- Brigida! Brigida, por Deus! Pois não vês que se me parte o coração?

-- Mas que tendes?

-- Que te importa?... Vae.

Saíram as duas.

Ainda D. Anna avistou D. Violante descendo a calçada e confrangeu-se-lhe o coração.

-- Pobre mãe!... O que vae soffrendo!

Mas com a Brigida voltou á esquerda.

-- Ella resará por mim, que eu não posso agora, não sei, não me lembra uma oração!

Metteram pelos bêccos de Santa Luzia, direito ao Salvador.

Tanta vez Anninhas havia pedido a Manuel Furtado que lhe descrevesse a casa e como era situada e a vista que tinha, que deu com ella, apenas se achou no pequenino largo em frente do convento.

A Brigida rabujava.

-- Mas aonde me levaes!...

Anninhas não lhe respondia.

Bateu á porta e a creada velha torceu o nariz. Como era possivel que a filha de D. João d'Almeida, uma das mais nobres senhoras de Portugal, saísse de seu palacio em busca de casa tão miseravel!

D. Anna era tremula.

Se a Lourença não estivesse?... Queria saber tudo n'aquella hora; não teria paciencia de esperar, sofrêga pela punhalada que, tinha a certeza, ía receber em cheio, no peito amoroso. Logo a seguir bateu segunda argolada e terceira.

-- Senhor!... Senhor!... Que demora!

Ouviu passos precipitados pela escada e ainda bateu mais uma vez.

A porta abriu-se e ella reconheceu logo a velhinha adorada, que tanta vez Manuel Furtado lhe descrevêra.

-- Lourença! disse.

E esta, muito espantada, viu-a subir a escada estreita e só lá em cima a reconheceu, quando ella affastou o véo denso com que encobria o rosto.

-- Senhora!... aqui!

E, vendo-lhe os olhos cheios de lagrimas, não soube conter-se.

-- Minha senhora!... Minha senhora!

E, a chorar, pôz-se a beijar-lhe as mãos.

-- Que é de Manuel Fiu'tado ? perguntou Anninhas.

Mas a Lourença não sabia que dizer-lhe, e repetia:

-- Manuel... Manuel...

E os soluços não a deixavam continuar.

-- Lourença, não me haveis de mentir, não? Não receeis dar-me a morte que seria bemvinda a acabar uma vida com que não posso, se hei-de vivel-a no tormento que me vês a despedaçar-me a alma!

Olhava para o quarto e, sobre a mesa e nas paredes, só via recordações suas: o retrato, um quadro devoto que déra ao noivo e elle suspendêra á cabeceira, pequeninos objectos sem valor recordando horas preciosas. N'um dos vidros baços da janella pequenina leu seu nome della -- Anninhas -- riscado com um diamante, e uma data por baixo. E ao lado viu umas garatujas, riscos atravessados sobre um outro nome.

Pois tanto mudariam os tempos e em tão crueis se haveriam tornado!

A Lourença calava-se. Queria serenar e não podia. Que havia de dizer áquella mulher que lhe apparecia, havia tanto, em sonhos, com seus lindos cabellos côr de aurora doirando a neve de suas azas d'anjo!... Era ella, era a Anninhas que ali chorava, a Anninhas em que ella fundára toda sua esperança, anjo da guarda de seu querido Manuel a quem amava como a filho!

Abraçou-a, ajudou-a a sentar-se.

-- Lourença! tornou ella. Dize-me o que sabes.

Outra mulher, havia bem pouco tempo, ali chorára tambem, n'aquella mesma cadeira. Que differença entre as duas, mas que piedade ambas lhe mereciam! Olhos negros de Maria da Boa Hora, olhos côr do céo que a olhavam agora supplicantes, almas que um mesmo amor affligia, como uns e outros enxugar, como acudir a uma e outra? Um dos amores um sopro do inferno o accendêra; o outro, uma aragem do céo. Duvidava ainda a compaixão de Lourença!

Perguntavam-lhe o que sabia. Se novas não tinha de Manuel Furtado desde que, n'aquella manhã de temporal, abalára de casa, onde tão feliz vivia, onde tão socegado sonhava!

E respondeu:

-- D'elle não sei, ha muitos dias, desde que a menina tambem deixou de saber d'elle.

-- Depois que se foi de minha casa o viste, se aqui veio.

-- Umas horas ahi esteve, até que chegou o sr. Pero Rolão...

-- Que foi preso por ordem de El-rei.

-- Preso! exclamou a Lourença. Se é preso o meu Manuel!

-- Não; Manuel Furtado não o acompanhou.

-- Sim, é verdade; saíu depois, muito depois.

-- E só?

Lourença, que a principio enfiára, veio-lhe ao rosto um bocadinho de sangue.

-- Já córas, Lourença, da mentira que me ias dizer.

-- Não foi só, disse a pobre velha, com a voz afogada.

-- Foi?...

-- Foi com Maria da Boa Hora!

Anninhas deixou caír a cabeça para o dorso da cadeira e em seu rosto muito pallido desenhou-se a mais dolorosa expressão.

Lourença e Brigida correram para ella, chamaram-a, afagaram-lhe as mãos, ambas invocavam Nossa Senhora e o Senhor dos Passos.

-- Valha-me Deus!... Para que lh'o disse eu, assim tão de repente, sem lhe poder explicar... Lamentava a Lourença.

-- E o que vae dizer-me a sr.ª D. Violante!... Menina... então!...

-- Mas escutae, escutae...

-- Elle ha de voltar...

-- O mal não é tamanho como cuidaes. Um d'estes dias vem noticias. Valha-me o Senhor dos Passos!

-- Valha-me Nossa Senhora!

E as duas velhas, em volta de Anninhas, continuaram em suas lamentações, até que a viram reabrir os olhos.

Olhou em volta um instante, reconheceu onde estava o silenciosamente começou chorando.

A Brigida queria leval-a. Ella ergueu-se, deixou que a aia a encaminhasse até á porta. Mas ahi parou, estendeu a mão a Lourença.

-- Não lhe digas que vim a sua casa. Não lhe fales mais em mim.

-- E porque não? exclamou a Lourença. Pois onde ha de elle vêr sua felicidade senão em vós?

D. Anna olhou para ella com um fulgor, de esperança no olhar. O rosto animou-se-lhe.

-- Em mim...!

-- E' que ha, senhora, um mysterio em quanto se passou. Elle disse-me, antes de saír, que não temesse nada; e que mais havia de eu temer no mundo -- bem o sabia elle -- do que uma traição de que fôsseis victima?... Uma noite, entrou n'esta casa a mais formosa mulher que haviam visto meus olhos. Ainda então, senhora, vos não conhecia. Foi Maria da Boa Hora quem veio n'ella habitar e encher-me de escrupulos pela vida que os via levar juntos, tão fóra da lei de Deus. Mas era tão linda, senhora de tantos encantos, que eu não podia acreditar que não houvesse em sua alma um boccadinho de luz do céo... Outros amores levaram o meu Manuel para bom caminho, louvado seja Deus!... Se a visseis depois, quando nos ella voltou... Que era feito de sua belleza, do brilho de sua mocidade, do seu riso mais alegre que os salgueiros do Tejo cheios de rouxinoes? O que senti foi dó; foi dó tambem que lhe ella inspirou mais o filhinho que trazia ao collo... Não vos perdeu o amor, menina; socegae.

-- E para onde foi? perguntou D. Anna de Portugal, sem que Lourença no tom de sua voz pudesse perceber as razões intimas da pergunta.

Leu-lhe nos olhos, em que as lagrimas haviam secado, uma resolução firme. Hesitou na resposta.

-- Não sei.

-- Sabes. Dize-m'o.

-- Tinham de fugir, que importa para onde foram?

-- Quero sabel-o.

-- Se vos eu digo, se vos eu juro que é constante seu amor por vós, por sua noiva!

D. Anna supplicou.

-- Porque me queres mal?

Deitou-lhe os braços ao pescoço, beijou-a.

-- Se o que dizes é verdade, se me vês aqui, anciosa por acreditar-te, Lourença, jura-me que não sabes d'elle ou dá-me um bocadinho de luz que me ponha em seu rastro. Elle me repita o que me disseste... e viverei!

Era tão commovente o pedido, que Lourença accrescentou, baixando a cabeça, como se forçada o confessasse:

-- Saíram d'aqui de madrugada, elle com Maria da Boa Hora e o filho de El-rei. Acompanhava-os Pantaleão Gonçalves. Era ideia d'elles embarcar para a Outra Banda. Nada mais sei, mais nada; novas não tive depois.

A Brigida puxava por Anninhas.

-- Obrigada, Lourença, disse esta.

E tornou a beijal-a.

Quando chegou a casa, ainda não era de volta D. Violante.

-- Que farei, meu Deus, que farei? dizia Anninhas só no seu quarto, mas resolvida firmemente a saber de Manuel Furtado.

Bem o adivinhára D. Rodrigo de Menezes; e quando, n'essa noite, outra vez, Fr. Bernardo o procurou.

-- Vigia os passos de D. Anna de Portugal, disse-lhe. O que descobrir não soubeste por tua astucia ella o saberá por seu amor.

CAPITULO XV

Amantes e mulher

El-rei já não podia com a Calcanhares. Enchia-a de presentes e dinheiro, chamava-a para não estar só, porque haviam voltado a perseguil-o os mesmos pavorosos pesadellos, mas, cada manhã, ao deixal-a, sentia a alma mais desconsolada e fria. Antes a tristeza da Falcôa do que o riso forçado, desafinado, que, por mais d'uma vez, o irritara n'aquella mulher, sempre a rir para mostrar os dentes bonitos.

Chamou Fr. Bernardo que lhe trouxesse a Falcôa, e este metteu-se no quarto a compôr durante hora e meia as phrases da temivel revelação. Entrou depois, esbaforido, na sala d'El-rei, communicando-lhe que a Falcôa e o pequenino, conforme lh'o contára, lavadinha em lagrimas, a Lindosa, haviam desapparecido e que, desde então, nem novas nem mandados!

El-rei quedou-se, com a voz afogada na garganta.

-- Foi uma pedra na bocca do estomago! pensou o frade.

El-rei, longe de seus costumados furores, já preparado para todo o mal, perguntou-lhe pormenores. Fr. Bernardo disse nada saber, mas, por algumas palavras que a Lindosa lhe contára ter ouvido murmurar á sobrinha, dava como certo que esta fugira para salvar o filho d'alguma traição que temia.

-- Sim, sim, disse El-rei. Andou bem; mas devia ter-me avisado.

-- Decerto. Mulheres de certa laia não sabem... De quem mais me queixo é da Lindosa, que tanto deve a V. Majestade...

Mas El-rei fez-lhe signal que saísse e ficou-se ainda mais triste.

Não tinha no paço ninguem, ninguem que o procurasse. Parecia que todos tinham mêdo que desabassem aquellas paredes. Até dos homens da patrulha baixa alguns lhe tinham fugido. O Braz lhe restava. Só elle talvez devéras o amava n'este mundo. Chamou-o para junto de si, fez-lhe umas perguntas indiferentes, afagou-o na cabeça. E elle amava alguem... Se amava!

Quantos dias passava agora sem vêr a Rainha!... O beijo que lhe ella déra guardava-o no coração. Mas era n'elle como um ferro em braza.

O Braz!... Só o tratador dos cães gostava d'elle n'este mundo!

Não, não era só o pobre idiota. Lembrou-se d'aquella mulher que tivera uma noite em seus braços, por uma traição que Simão Peres armára.

-- Magdalena! disse com um sorriso extático. Querida Magdalena!

Era um amor antigo na sua almasinha. Desde pequenina que assim amava o seu rei.

Recordou-se de certas circumstancias. Uma vez, quando o Infante o atirára do cavallo de baloiço -- era ella tão pequenina ainda! -- chorava de vêl-o triste. Lembrava-se d'outros momentos em que ella, creancinha, sempre lhe revelára sentimentos de piedade. Perdêra-a de vista, esqucêra-a, mas, quando outra vez a encontrára, na mesma noite, agora se recordava, em que estivera olhando para os enforcados, commovêra-o a ternura com que lhe ella beijára a mão.

Mandou chamar Simão Peres, que viesse a toda a pressa.

Queria descançar os olhos n'um rosto amigo, vêr uma vez ainda, em seus hábitos de noviça, Magdalena, que o amára. Simão Peres fôsse adiante, combinasse lá isso no convento da Esperança, onde, embuçado, para que ninguem o conhecesse, iria ter d'ali a uma hora.

Simão Peres, habituado aos caprichosos impulsos d'El-rei, contentou-se com encolher os hombros e pôz-se a caminho.

D. Affonso chegou-se á janella e com os olhos tristes olhou para os lados de Salvaterra. Se poderia ainda alguma vez adormecer socegado, ouvindo cantar as rãs dos charcos e rir as corujas nas torres velhas.

A fuga de Antonio de Macedo puzera ponto nos devaneios de saída para o Alemtejo. E agora só, tão só!

Desviou a vista para o outro lado e reparou que os quatorze navios da armada franceza, que entrára na vespera e ancorára em frente da Côrte Real, ainda não haviam levantado ferro.

Quando o cabo da armada o viera cuprimentar, dissera-lhe que só entrára a barra porque a falta d'agua o obrigára a tomar terra e era Lisboa o porto mais proximo.

-- Alguns transtornos tiveram, disse comsigo.

Embuçou-se na capa, puxou muito o chapeu para os olhos, ía já a saír quando parou de repente e atirou um beijo para os lados do quarto da Rainha.

-- Deus não quiz... disse comsigo.

Desceu a escada, montou a cavallo, saíu pela porta do jardim.

-- Contanto que Simão Peres tenha encaminhado o negocio...

E, ao passar pela Côrte Real, tornou a observar a esquadra.

-- Porque não saíria? disse comsigo distraídamente.

Não havia de sair tão cêdo.

Pela esquadra esperára impacientemente a Rainha, que, n'essa mesma manhã, saíndo do paço a passeio, o fôra terminar no convento da Esperança.

De lá mandára aviso ao Infante, que n'um dos locutorios interiores fôra conferenciar com ella.

Na portaria, passeando, esperavam o Duque de Cadaval e D. Rodrigo de Menezes.

Dizia o Duque:

-- Não sei como povo olhará para esta circumstancia, difficil do attribuir ao acaso.

O cabo da armada viu-se pela falta d'agua obrigado a tomar terra. E' uma razão que todos acceitam. A Rainha aproveitaria a occasião... Separada de El-rei, volve a ser uma estrangeira; não ó de notar, portanto, que busque o auxilio dos seus.

-- Decerto; mas não deixará de perder as sympathias do povo.

-- Que hoje...

-- Que hoje precisamos ter a nosso lado, D. Rodrigo.

-- E teremos. Nem um soldado francez desembarcará, pois que levaremos a cabo nossa empreza com a maior facilidade.

-- Resta a questão do dote que a Rainha requer, observou o Duque de Cadaval. Como lh'o pagará o reino?

D. Rodrigo calou-se; mas o sorriso que se lhe desenhou sob o farto bigode não passou ao Duque despercebido.

-- E' pois certo que haveis pensado... começou dizendo ao governador da casa do Infante.

-- Como vós. E' natural que todos o mesmo pensassemos, sem uns a outros o confessarmos. O bem do reino exige do Infante o sacrificio de sua subida ao throno com todos os espinhos d'uma boa governação. Annulado o casamento de El-rei, ou o dote é pago á Rainha, ou...

O Duque, muito mais novo do que D. Rodrigo, não conservava o mesmo sangue frio.

-- Ou para evitarmos o mal que nos póde resultar da estada no Tejo d'uma poderosa armada franceza...

-- Nem da armada me lembrava agora, confesso-vos, disse D. Rodrigo com ar indifferente. Ou o dote é pago á Rainha, ou...

Mas não terminou o que ia dizer. Entrou o Infante, acompanhado pela irmã porteira, Soror Benedicta.

-- Duque, disse, acabo de falar com S. Majestade que vos nomeia procurador na causa que vae tentar para annulação de seu matrimonio.

N'este momento, bateram violentamente á porta.

-- Quietos!... quietos! gritou para fóra a irmã.

-- Que temos? perguntou o Infante.

-- São horas de jantar, respondeu a velha, e os pobresinhos teem fome.

-- Pouco nos resta a combinar; mas S. Majestade deseja ouvir vossa opinião D. Rodrigo. Vinde commigo.

Outra vez, agora com os amigos, entrou para o interior do convento.

Soror Benedicta foi abrir a porta aos mendigos, que, todos de tropel se empurravam n'uma algazarra de ensurdecer. E ella não fazia senão repetir:

-- Então!... então... Quietinhos!... quietinhos!

Duas leigas vieram com um enorme caldeirão e logo todos voltaram a cercar a porteira, n'uma lamuria desafinada.

E ella a ralhar:

-- Isto assim não póde ser. Ou vós tomaes juízo ou procuro quem me substitua.

E todos:

-- Não!... não!

Começou a distribuição do caldo, e os mendigos, de que se ouviam os sorvos gulosos, já se íam accomodando, quando á porta, pomposo, tirando o chapeu com grandes ares de fidalgo, assomou o vulto de Simão Peres.

-- Ora seja Deus n'esta casa!

Soror Benedicta conhecia-o d'outros tempos. Gostava de ouvil-o conversar. Deu um grito de espanto.

-- Ditosos olhos! Muito ingrato heis sido, sr. Simão! Por onde tendes andado?

-- A fazer penitencia de meus peccados, minha santa irmã.

-- Vossos peccados!... Quem m'os dera! Sempre vos conheci temente a Deus, cumprindo vossas obrigações de christão. Que ha de novo?

-- Ha que já não posso com tanta responsabilidade. Por mais que pregue, só encontro ouvidos moucos. Eu não durmo, eu não como... Desde que se foi do paço o Conde de Castel Melhor, tudo ficou ás minhas costas: a paz, a guerra, noitadas, politica, mulheres cada noite uma...

-- Que horror!

-- Dizeis bem. Que horror!... Tudo carrega o pobre Simão Peres!

-- Coitadinho!

Chamou-a de lado. Era uma confidencia. O contentamento deu um bocadinho de luz ao olho apagado de Soror Benedicta.

-- Quereis saber?... Talvez, não tarde, eu comece a proteger as ambições do Infante. Sabeis decerto o que diz a este proposito Santo Agostinho.

-- Ah! foi grande santo e é grande auctoridade. Que diz?

-- Talis pagalio, talis canlatio.

-- Se o diz Santo Agostinho... Lembrae-vos todavia que tambem não é o sr. D. Pedro quem tem jus ao throno de Portugal.

-- Sois por Hespanha, Soror Benedicta? exclamou Simão Peres, fingindo-se pasmado e n'um tom de censura.

-- Por Hespanha!... Nunca!... Este reino é d'El-rei D. Sebastião!

O nosso grande rei encoberto.

Poz-se a cheirar o panellão.

-- Rico cheirinho!

-- Quereis provar?

Appetecia-lhe. Abriu muito as ventas. Ella sorriu-se. Aquelle Simão Peres encantava-a! Foi-lhe buscar um tacho.

Entretanto um mendigo velho approximára-se de Simão e batêra-lhe no hombro.

-- Tu deves-me dois vintens.

-- Queres tu uma estocada?

Mas já a velhinha voltava com o tacho, muito apressada, muito sorridente.

-- Appeteceu-lhe a feijoada, coitadinho!

-- A carne, santa irmã, sabe a gente calal-a. Outro motivo de maior gravidade aqui me trouxe.

-- Falae, disse ella muito contente.

-- Um amigo meu, um santo, vive doido d'amores por uma ingrata que, abandonando-o, veio n!este claustro procurar a paz.

-- E então?

-- O pobresinho queria vel-a, uma só vez que fôsse.

-- Mas como?

-- O caso é muito sério. Se lh'o não consentirdes, o desgraçado morre!

-- E' que eu...

-- Quem sabe? Talvez só de vêl-a, o toque o santo exemplo.

-- E não lhe falará?

-- Só quer vêl-a ainda uma vez.

-- N'esse caso escutae... E é por serdes vós quem sois. Logo, por detraz d'aquella grade, vae passar a communidade toda. Madres, irmãs, noviças, senhoras que ahi estão recolhidas, nenhuma faltará no enterro d'aquella santinha.

-- Um enterro!... Que bella ideia!

-- Se o vosso amigo quizer espreitar, ninguem se póde oppôr.

-- E quem morreu no convento?

-- A que foi uma santa, como vos disse, sr. Simão Peres. Morreu de remorsos d' uma culpa que não tinha.

-- Não intendo.

-- Nunca nenhuma de nós a intendeu.

Simão Peres rapava o tacho.

-- Coitadinha!

Poz as mãos. Deu graças.

-- O Senhor seja comvosco, disse-lhe a freira retirando-se.

-- Lembrae-vos de mim nas vossas orações.

O mendigo velho voltou á carga.

-- Sobeja-te a labia, falta-te a vergonha!

-- Tudo isto por causa de dois vintens! respondeu o rufião encolhendo os hombros. Onzeneiro do inferno, dá-me uma semana ou duas, e éu te pagarei capital e juros.

Ia o velho responder, quando El-rei entrou na portaria e logo todos os mendigos o rodearam em lamuria infernal mostrando-lhe as chagas, alardeando suas miserias, tratando-o por excellencia, chamando-lhe nobre cavalleiro. Foi preciso que Simão Peres, á bruta, puzesse ponto na cantilena.

El-rei vinha sorumbatico, com um medo mal definido no coração que o enchia de agoiros. Quasi á porta, tivera um mau presentimento. Ia acontecer-lhe desgraça. O quê? Não sabia. Alguma grande calamidade estava para caír sobre o reino talvez... Eram tantos os receios a amofinal-o, que nem sabia pôl-os em ordem... O filho... Maria da Bôa Hora que fugira... Se era o filho o que estava ameaçado? Devia ter dado ordens immediatas para que o procurassem. Mas como? A quem podia elle confiar seu segredo? Se já ninguem tinha, ninguem que lhe não quizesse mal!... O Braz... Magdalena... Que podia dizer-lhe o Braz senão sandices?... Em que podia Magdalena ajudal-o a não ser com suas orações?

E com essa ideia entrou no convento.

-- Dize-me, Simão, se hei de vêl-a.

-- Descançae. Não tarda que ali passe toda a communidade.

-- Magdalena!

Pôz as mãos, e, como a rezar baixinho, disse:

-- Acolhe a minha prece e dá-me o teu perdão. Roga a Deus que affaste do meu leito os phantasmas nocturnos e aquiete os meus sobresaltos. Pede-lhe vida, saude para o meu filho, tu que me tiveste um boccadinho d'amor, que tão pura vieste para meus braços e que tão manchada entreguei a Deus! Perdoa-me e pede-lhe que me perdoe!

Voltou-se para Simão Peres.

-- Conta.

-- Vae haver um grande enterro.

-- E quem morreu?

-- Isso agora... A velha está tonta e disse-m'o n'uma charada que ainda não adivinhei.

El-rei empallidecêra. Levou as mãos ao peito como a querer socegar o coração.

-- Magdalena! murmurou.

Benzeu-se.

-- Nunca tal Deus permitta!

Ainda na portaria se ouvia o remexer das colheres de pau no fundo dos tachos. Os mendigos conversavam uns com os outros.

A irmã Benedicta assomou á porta.

-- Lá volta a velha, disse Simão Peres. Veremos se nos dá o conceito.

A freira trazia os olhos cheios de lagrimas.

-- Silencio agora, meus irmãos, disse com voz tremula. Os anjos do Senhor vieram bater á nossa porta, trouxeram-nos a dôr. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo! Para aqui se encaminha o enterro da que foi em vida soror Magdalena.

Ouviu-se um grito. El-rei exclamou apaixonadamente:

-- Magdalena!

Correram-se as cortinas da grade. Ouviam-se ao longe as freiras que vinham cantando em côro: -- «Requiem aeternam dona ei, Domine, et lux perpetua luceat ei».

El-rei lamentava-se em voz tristissima pela maior dôr que tivera em vida. Esquecêra os perigos que o filho de Maria da Boa Hora andava correndo, esquecêra que mais lhe valia Magdalena morta, para orar a Deus por elle.

-- Magdalena! dizia. Subiste aos céos! Roga a Deus que me destrua a vida, pois que a tua me roubou para meu castigo!... Magdalena!... Magdalena!

E eram tantas as suas lagrimas, que mal distinguia o cortejo que ia atravessando por detraz da grade para entrar no claustro.

Iam á frente uma freira com a cruz e mais duas com cereaes. Seguiam-se as noviças de véo branco, depois um grupo de freiras com tochas e logo o esquife ao hombro de seis noviças. Atraz íam as senhoras recolhidas vestidas de negro, com véos espessos a tapar-lhes os rostos. E todas cantavam plangentemente: -- «Requiem aeternam dona ei, Domine, et lux perpetua luceat ei».

Tocava o orgão na egreja; tocavam os sinos na torre.

D. João d'Almeida tem suas coisas preparadas para que o filho vá servir como capitão de cavallos no exercito do Alemtejo, e eu irei como seu tenente. D. Margarida toda estremece e põem-se-lhe chorosos seus lindos olhos, pensando em tal separação e perigos que seu marido vai correr. Pouco ou nada a consolam as farroncas do irmão, dizendo que, só, dará cabo das hostes castelhanas, logo que lhe passem as dores de gôta do braço direito.

D. Anna de Portugal tem artes sempre para se afastar a logar um pouco mais retirado, e taes voltas sabe dar ao dialogo, que, por muito que lhe eu queira fugir, bate sempre no mesmo assunto, com a constancia d'um dobre de finados.

André de Albuquerque não era novo. O bigode, os cabellos junto ás fontes, já muitas brancas os prateavam. Creio que a paixão de D. Anna foi, mais que a outros dotes, buscar alimento a seu fogo nas glorias do militar. Era atravez d'uma aureola que ella o via fóra de toda proporção, e assim eu sempre lh'o apresento, eu, que só o conheci horas antes de o ver morto em meus braços.

Sinto um exquisito prazer em contemplar seu rosto, pouco a pouco a transformar-se, os olhos scintillando, a bocca sequiosa bebendo as minhas palavras. As vezes, oiço a consciencia a repreender-me, mas logo encontro razões para calal-a: se estou vivendo de mentiras, que importa que viva mentindo? Se ella só vive de sua paixão, não será caridade alimental-a?

Em casa de D. João, lá somente, sei algumas novas do que vai pela cidade o pelo reino, que, umas vezes, me atiram, outras, me sobem para a terra, conforme por onde pairo ou me deixo andar condemnado.

Nos tempos em que vivemos, não ha coisas de menos valor, e só para mim pouco importam, que me vêm encontrar fria a minh'alma, longe do enthusiasmo com que outros escuto a discutil-as.

Ha tanto que me escreveste, tantos dias deixei passar sem te responder, que tarde é decerto agora para vir esclarecer-te duvidas sobre o que é sabido em todo o reino. E verdade que a Rainha corroborou com seu dito ao corrido Marquez de Chouppes a quixotada do Conde do Cantanhede. Já o Marquez se queixara ao secretario de estado, Pedro Vieira da Silva, da forma por que lhe havia o Conde repellido suas indecentes condições offerecidas, accrescentando que talvez em subsequentes conferencias fosse possivel chegar-se a mais prudentes conclusões. A phrase altiva da Rainha abriu-lhe os olhos. Se o viste ahi em sua passagem, has de contar-me a cara de palmo, que o francez levava na jornada de regresso.

O socego em que nos têm deixado os castelhanos, dizem os entendidos, é prognostico de grande temporal, que não tardará. Livres de seus temiveis inimigos francezes, andam preparando o exercito com que hão de caminhar sobre a nossa fronteira.

El-rei de França, Luiz XIV, casou afinal com a filha de D. Filippe IV, e a nossa infanta D. Catharina, que, pouco devendo á formosura, parece destinada a haver tantos noivos como noivas teve quem a despresou, dizem agora, casará com el-rei de Inglaterra, Carlos II. Ainda ha dois dias proscripto, correndo a França, não recebido pela côrte, repellido por D. Luiz de Haro e pelo cardeal Mazarino, que com todas as honras tratavam o embaixador da republica, Lockart, foi-lhe tão sem violentas commoções restituida a coroa, que, esquecidas Castella e França, em casa de D. João d'Almeida, durante semanas, todos fallaram da Inglaterra e do filho do infeliz rei, Carlos I, degolado n'um cadafalso. A grande difficuldade para a realisaçao d'este casamento, que dá peores noites aos conselheiros da Rainha, é o dote que exigem á Infanta e que o reino só a muito custo poderá pagar. Como se fallou em cedencias de territorio, o povo em Lisboa começou murmurando, não gostando de ver uma princeza de Portugal casada com um hereje e pouco fiado em que de tal alliança algum bem nos possa vir.

Talvez mais devesse accrescentar que não sei, nem te juro a verdade de quanto digo. Apenas uma ou outra vez, presto mais attento o ouvido ás opiniões pausadas de D. João d'Almeida, aos enthusiasmos de D. Pedro, ás furiosas dissertações do Conde da Torre. Ha dias em que tão alheio estou ao que em torno a mim passa, que uma exclamação em voz mais desafinada no tom do dialogo, me acorda em sobresalto e me deixa envergonhado.

Diz-se que Antonio Conti foi ouvido sobre o caso do dote, ficando de convencer El-rei a que dê seu consentimento.

Parece que a penna se queria recusar a escrever estes nomes e nos salpicos de tinta que esguicharam, melhor do que podes imaginal-o, verás qual foi meu estremecimento.

E, entretanto, parece-me ás vezes sentir o coração a puxar-me para o desgraçado enfermo, que nos ha de levar talvez á maior desgraça, se nos Deus não acode. Não sei de rei nem de homem tão novo que tanto contra si tenha criado motivos de desprezo, accendido indignações. Soffrendo d'uma enfermidade que o infama e cuja dôr o corroe como cancro, acompanhado de seus rufiões em cujas mentiras acha unico lenitivo á desesperada sede que o mata, só ambicioso do que não póde, mais ridiculo que D. Quixote quando homem se quer mostrar, riem-se d'elle as mulheres a quem paga, riem-se d'elle os homens que em rixas nocturnas lhe enchem o corpo de nodoas negras.

Poz-lhe a Rainha casa finalmente e serve de reposteiro-mór D. João d'Almeida. Mas nem a escolha muito pensada que a Rainha fez dos homens que haviam de acompanhal-o, nem a fala que, perante os conselheiros de Estado, lhe dirigiu o Duque de Cadaval, o desviaram de seu caminho.

Mas lembra-me ás vezes que esse homem caído tão baixo póde ainda, de quando em quando, luzir-lhe n'alma, com um remorso, um sentimento bom, talvez puro, e que mais nos deve, do que o odio que em todos vejo, inspirar talvez piedade.

E aqui estou eu sem saber se não é a mais vil das hipocrisias que me está dictando estas linhas. E' odio, odio que lhe tenho a elle e a seu valido e a quantos o rodeiam, odio!

Déste com certeza um grande pulo ao ler a palavra, que, entre as outras, tão negra te apparece. Côr de sangue a vi já, acredita, e só agora mo lembra que de tal ainda não tive remorsos. Do ceu, d'onde esperava a luz, choveu lama sobre mim.

Ah! não sabes, não pódes suppôr que vida levo e que maus phantasmas vêm, de noite, com seus dedos de ferro, suster-me as palpebras para que não durma! Rompe a aurora, ouço na rua os primeiros pregões e nas torres das egrejas baterem as ave-marias da manhã... Que longas horas de tormenta! E' uma dôr muito cá de dentro, que não quero, que não sei descrever-te, que não perceberias por muito que ao trabalho eu me desse de explicar-te. Queime o sol uma flor, despedace-a um temporal, mas quem passe a seu lado sem poder colhel-a, não lhe abafe o perfume salpicando-a de lodo.

Para que te escrevo assim? Que te quero dizer? perguntarás. Escrever-te é pensar alto, não te queixes, se és meu amigo. Outra vez me vais ler sem perceber-me, e cansultarás o padre e ambos haveis de concluir tão sómente que o ceu em que me puzestes tem suas horas de inferno. Se tem! E são taes muita vez, que meu maior desejo seria abalar, procurar o esquecimento num campo de batalha, talvez a morte ante o mosquete d'um soldado inimigo. Saír d'aqui é como o anceio de lavar-me, de purificar-me.

D. Pedro d'Almeida, desde a chegada do general Schomberg, que, com outros officiaes, embarcou em França e acompanhou a Portugal o Conde de Soure, não fala senão de combates, influe-me com seu denodo e cala muita vez o cunhado com suas portuguezadas. Quanto mais não vale a ambição d'um nadinha de gloria, que uma bala desfaz sem um minuto de soffrimento, que esta febre que padeço, em que uns instantes de prazer pago-os com tantos dias sombrios, tantas noites de cruel pesadelo.

Nos Pirineus, sobre o rio Bidassoa, foi armado em palacio, metade em territorio francez, metade em territorio castelhano. N'elle o velhaco Mazarino e D. Luiz de Haro, que tão vergonhosamente vimos fugindo das linhas d'Elvas, assignaram o tratado de paz em que tão desalmadamente fômos abandonados pela França. Despediu-se o Conde de Soure e ainda o embaixador hespanhol, Conde de Fuen Saldaña quiz oppôr-se a que lhe fosse concedida a ultima audiencia. Estamos sós em campo contra Castella, que já não tem outros inimigos.

Em breve marcharão para a nossa fronteira os veteranos de Flandres, da Italia e da Catalunha. Diz-se que D. Filippe IV nomeará capitão general do exercito seu filho bastardo, D. João de Austria, grão prior de Castella, da Ordem de S. João, conselheiro de Estado, governador e capitão-general dos Paizes Baixos e governador das armas maritimas. Titulos, como vês, não faltam ao hespanhol. Tem quasi tantos como D. Luiz de Haro, que jubiloso de suas artimanhas, espera prudentemente em Madrid novas melhores que as por elle, da outra vez, levadas á capital da monarquia.

Tem D. João d'Austria trinta e tres annos; governou as armas de Napoles, Sicilia e Catalunha; é o conquistador de Barcelona e aperfeiçoou-se na arte da guerra ao lado do grande Conde. E' elle quem vem á conquista de Portugal e decerto lhe parecerá estreito á sua gloria todo o Alemtejo, para, em seu passeio militar, chegar á vista de Lisboa.

A' sua ambição e fama parecerá pequena a façanha. Mas não saberá talvez, não lh'o disseram os que, antes d'elle, de terras portuguezas mais queixas levaram da Fortuna, que são rijos os nossos peitos, que, a cada grito da patria, creanças, velhos, mulheres se transformam em soldados. Vencemos D. Luiz de Haro; foi muito pouco para nossas ambições de gloria; venceremos D. João d'Austria e o seu exercito.

No ardor dos nossos soldados tenho eu a maior confiança. Confio no Conde de Cantanhede, no Conde de Atouguia, em D. Sancho Manuel, nos generaes que tantas provas tém dado de seu valor. O Conde de Schomberg, allemão que serviu muito tempo em França, foi ao Conde de Soure recommendado pelo marechal Turena, muito afeiçoado a Portugal; é dizer-te que é dos melhores no conhecimento da tactica moderna.

O que mais me desanima é a intriga que vai na côrte, a ambição dos conselheiros e os partidos que tomam. No momento de maior angustia, quando a todos se exige o maior dos sacrificios, quanta vez a vaidade offendidia cala a bocca que o melhor conselho devia de pronunciar!

Vês-me aqui fallando como velho. São coisas que tenho de ouvido e que me têm quadrado.

Falla-se muito em que a Rainha já por mais d'uma vez, tem querido retirar-se abandonando o governo ao filho. E' desgraça a que ninguem vê remedio. Um só teria: um homem que surgisse. Mas d'onde?

Ponho-me ás vezes a scismar, muito a serio, que talvez D. Sebastião não morresse em Alcacer-Kibir. Deitando conta aos annos que hoje poderia ter, uns cento e poucos, não seria o milagre sem segundo.

Leio as prophecias que apparecem e dá-me um desejo muito grande de n'ellas acreditar, de concordar com as explicações que d'ellas dá Fr. Gregorio, um frade leigo que frequenta muito a casa de D. João d'Almeida, onde lhe dão esmola.

Quem me déra viver assim d'uma esperança, ter a certeza de que, n'uma ilha encantada, vive, á espera de que sôe a hora de seu resurgimento, o grande justiceiro, que Deus nos ha de enviar para maior gloria de Portugal e ventura do inteiro mundo! Que sonho formoso o de Fr. Gregorio! Quanta vez o invejo e como talvez n'elle acreditasse se não fôsse vel-o em tanto engano, quando a mim e a D. Anna nos abençôa e nos cobre com o mesmo olhar de ternura! Tudo são illusões do pobresinho do frade!

Sabe-me bem escrever-te. Hoje por esta carta comecei o meu dia; quero que todo elle me saia bom. Ficarei em casa. Ligeiras e suaves aqui deixarei correr as minhas horas. Pois não tenho ao pé de mim o que mais estimo no mundo, o clarão d'uns olhos meigos, que a cada minuto me interrogam mudos, docemente, e cuja luz, que é luz de toda a minha vida, me desfaz no coração todo negrume? Pois que maior ventura hei de eu querer? Que sestro meu é este de ir procurar por minha mão os espinhos que tanto de mim querem afastar?

Se um dia amaste uma mulher, deves conhecer este horrivel tormento do espectro do passado, que até nos surge entre as nossas caricias. Não ha promessas, não ha juramentos que de nós o afastem. A cada instante vêm-nos á bocca perguntas grosseiras que os labios só tremendo pronunciam. Nem a tanto ás vezes se atrevem, e fica-nos a suspeita no coração como ferro em braza.

Em casa o dia todo!... Dá-me alegria pensal-o.

Ouço-lhe a voz... E' um recado que vem trazer-me...

Ponho ponto na carta. D. Pedro d'Almeida precisa hoje fallar-me sem falta. Pretextos de D. Anna de Portugal... Não sei que sinto, que me treme o coração. Não tenho tempo para mais. Dá um grande abraço ao padre.

Teu

Manuel Furtado.

Releio á pressa esta carta. Que supporás de mim? Que estou doido? Estarei.

M. F.

CAPITULO XI

No rasto da Falcôa

-- Não! disse El-rei, dando, furioso, um murro na mesa.

E Simão Peres recuou logo, muito humilde.

Havia já tempos que andava com má sorte.

Fr. Bernardo calava-se. Percebia que o valimento de Simão Peres ia descaindo; paciente, esperava occasião em que pudesse espanejar-se mais á vontade. Era talvez cedo ainda para urdir a intriga; quando désse o golpe, havia de ser mortal.

De cabeça baixa, queixo a tremer, D. Affonso olhava desconfiado para os amigos. Tinha os olhos encarniçados, sombreados polo cabello que lhe caía sobre a testa.

-- Bons amigos, não haja duvida! disse com voz raivosa. Nem um só, que, uma vez, por acaso, adivinhe o que soffro, me traga um alivio! Qualquer dos meus mulatos sabe dar uma facada a quem se me opponha em meu caminho; julgaes talvez que não devo saír á rua sem a companhia de vossas espadas, rufiões vilissimos! Não foi para isso que vos escolhi, nem só para os instantes de alegria. Qual de vós sabe o motivo das minhas lagrimas, póde gabar-se de me haver enxugado uma só?

-- Lembrando-vos, senhor... disse a medo Simão Peres.

-- Cala-te!... A tua alma fede na tua bocca.

Approximou-se d'elle, olhou-o de perto e de fito, como a querer com os olhos queimar-lhe os olhos.

-- Não! repetiu.

Simão encolheu-se todo medroso, choramingando, com uns modos arrependidos de quem implora piedade.

-- Um dia pego n'um chicote e corro tudo, tudo!

E, passeando pelo quarto, ainda mais coxeava, ferido na perna da ultima vez que descêra á praça a tourear.

-- Julgam talvez ...

Mas suspendeu-se, ouvindo a um dos cantos da sala um gemido lamentoso. Era o Braz que chorava.

-- Anda cá, maltrapilho, disse-lhe El-rei.

O aleijado approximou-se quasi de rastos.

-- Como vão os meus cães? Em ti e n'elles confio, que vos conquistei com pedaços de pão duro, e por tão pouco, e porque não sabeis fallar, me lambeis a mão!

-- Um chicote!... tudo!... tudo!... soluçava o Braz.

El-rci ergueu-o, abraçou-o, encostou a cabeça aos cabellos cheios de palha, crespos, emmaranhados, do tratador dos cães.

-- Sinto bater o teu coração, disse! unico que hei sentido em toda minha vida!

Simão e Fr. Bernardo calavam-se, olhando, de quando em quando, anciosos, para a porta. Quem lhes dera poderem sumir-se!

-- Tu, só tu! disse ainda El-rei. Maluco, que não falas e tanto melhor! Se soubesses, mentirias tambem!

E, muito unido ao desgraçado, como a defender-se com elle, escarrou na cara de Simão Peres a injuria:

-- Canalha!... Canalha!

O rufião encolhia-se todo, como debaixo d' um aguaceiro.

-- E tudo isto porquê? perguntava elle a si mesmo. Haverá diabo que intenda este diabo?

Fr. Bernardo tinha um desejo doido de saltar e de esfregar as mãos; mas continha-se, que o mandava a prudencia. Eram vasas que ia assentando; talvez ainda viesse a comprar o az e a bisca.

-- E ferro-te um capote, amigo Simão, pensava elle.

-- Só, só no mundo! dizia El-rei, ainda na mesma posição e como se comsigo fallasse. Até d'aquelles de quem por meus amigos tive maiores razões de queixar-me, agora me roem saudades, e sei agora o bem que me queriam. Despedi-me do Conde de Odemira em seu leito de morte, e tres dias e tres noites não pude fechar os olhos, que não visse a luzir na sombra o seu olhar! Que me dizia, que me doía tanto? E para onde me eu virava, os seus olhos lá estavam a perseguir-me! Ah! porque não segui seus conselhos? Porque vos chamei de novo, vós todos que me lisongeaveis, vós todos que me atirastes para a lama d'onde vinheis?

Conteve-se um instante, passou a mão pelos cabellos, enxugou a testa alagada em suor.

-- Se me parece até que Antonio Conti...

Olhou para o Braz, afastou-o um pouco, poz-lhe as mãos sobre os hombros.

-- Se um dia me vires só no mundo... irás ter comigo.

Simão Peres fingiu limpar uma lagrima.

El-rei passeava pelo quarto.

-- Antonio Conti! Sao os negocios da côrte, que o afastam de mim dias e dias; o casamento de minha irmã e a discussão do dote que ha de levar. Em meu nome se impõe aos conselheiros de minha mãe. E eu que gema, agarrado ao homem dos cães, um alcaiote infame que me sirva de piloto em mais uma vicla fedorenta da Mouraria. Que mais precisa El-rei de Portugal? Tem por amigo um piolhoso, tem por amante a Calcanhares, que mais quer?

-- Na Calcanhares é que bate o ponto, pensou Simão Peres.

-- Abre-me esses ouvidos, Bernardo! disse comsigo o outro.

-- E porque tens gloria no teu vil mister, continuou D. Affonso, caminhando outra vez para Simão, porque das migalhas que ando espalhando vives mais abjecto qae os meus cães, quando a dôr me esmigalha o peito, no teu não achas outra consolação a dar-me. «Distraia-se V. Majestade!... Vamos cear com a Calcanhares!» Não!

-- Um arrufo! concluiu logo o alcaiote.

E respirou fundo, aliviado.

Mas El-rei, como sempre lhe succedia, cançava. Já fallava a custo e, offegante, sentou-se. O olhar sombrio foi-se transformando, empallideceu-o uma tristeza.

-- E da Falcôa? perguntou. Não houveste mais noticia?

Simão Peres torceu-se todo. Fôra esse o maior desaire de toda a sua vida. Daria um olho por achar a fugitiva, mas nem rastos seu faro, de fama n'outras aventuras, lhe encontrava. Assumiu um ar muito desconsolado, quasi de tragedia.

-- Ainda esta manhã visitei a desgraçada tia, a quem levei a mesada que V. Majestade lhe ordenou. Cada vez mais se confirmam as minhas tristes suspeitas. A infeliz menina já nâo pertence a este mundo.

Simão Peres fallava muito compungido, com a mão direita espalmada sobre o peito.

-- Conforme tive a honra de informar a V. Majestade, na memoravel noite em que V. Majestade foi ferido, a Falcôa, a cuja casa fômos buscar a cadeirinha, ficou n'um grande estado de exaltação. -- «Ai, se elle morre, que será de mim?... Ai, se elle morre, que será de mim?» Era uma loucura que tinha por V. Majestade.

Viu estremecer os hombros de Fr. Bernardo, sacudidos pelo riso contido. Atirou-lhe uma pisadela e continuou:

-- No dia seguinte, logo muito de manhãsinha, corri a casa d'ella para lhe dar novas. Quem estava n'um grande estado de exaltação era a tia. -- «Ai, a minha menina que morre!... Ai, a minha menina que morre!...» Tive um trabalhão para a socegar, e quiz ver a Falcôa. Sacudi-a, borrifei-a, abanei-a, não houve meio de a fazer voltar a si. Eu não sabia onde dar comigo; a Falcôa, doente, V. Majestade doente, eu a querer dar á Falcôa noticias de V. Majestade, eu a querer dar a V. Majestade, noticias da Falcôa... Encommendei o negocio a Nossa Senhora e disse á tia: -- «Olhe V. Mercê por ella, que eu vou ao paço n'um pulo». Vim n'um pé, fui no outro... Quando lá cheguei tinha desapparecido a Falcôa!

-- Mas todos sabieis... interrompeu El-rei.

Simão Peres calava-se. Com o olhinho muito choroso implorava a compaixão real.

-- Que mais haviamos de fazer, meu senhor? Dias e dias, noites e noites, andei batendo matto, disse por fim.

E assim fôra. Mas logo continuou mentindo:

-- E' verdade, todos sabiamos que V. Majestade daria a corôa a quem lhe trouxesse novas da infeliz menina; foi por isso que só a tremer contei a V. Majestade... Creia V. Majestade, antes eu tivesse morrido estripado n'um bêco antes d'esse dia!... Foi a tremer que contei a V. Majestade o que me disse o tal barqueiro; uma noite, uma mulher, um bote, uma pedra ao pescoço... O homem foi apanhar o barco já para lá da Torre de Belem!... Contei tudo isso a V. Majestade. No dia seguinte, tornei a procurar o homem; não o achei. Dizem que era algarvio; foi para o Algarve. Vão lá achar um homem no Algarve!

Tremia-lhe o beiço, conseguira subir aos olhos uma lagrima como cabeça de alfinete.

-- Era um anjo! Deus, Nosso Senhor, chamou-a a Si.

Limpou os olhos.

-- E são creados assim, que V. Majestade despreza!

El-rei fez-lhes um signal mandou-lhes que saíssem.

Respiraram.

-- Nada mais ordena V. Majestade? perguntou ainda Simão Peres.

-- Senhor!... Senhor!... exclamou D. Affonso. Por essa alma bemdita, Senhor, livrae-me do castigo!

Voltára-se para o esquife, onde avultava sob o lençol o cadaver da noviça.

-- Reliquia veneranda...

Mas de repente afogou-se-lhe na garganta a voz.

Aquella mulher!... Aquelle andar!... Aquelle perfume que espalhava!...

-- Olá!... gritou. Quem tal comedia se atreve a representar-me?

Reconhecêra no acompanhamento do enterro Maria Francisca Izabel de Saboya.

A Rainha parou e com ella todo o côrtejo. Tirou lentamente o véo.

-- Eu sou, disse. Senhor, bem sabeis que nunca fui vossa esposa.

O cortejo poz-se novamente em marcha. El-rei, suffocado, quedou-se por instantes immovel.

-- Que fará? pensava Simão Peres.

Meditou um instante.

-- Que farei sei eu.

El-rei sacudiu a cabelleira, desembaraçou-se da capa. Deu um rugido.

-- Ah! cuidaes que já não sou rei de Portugal!

-- El-rei exclamaram os mendigos.

EUe ouviu-os.

-- Pois ides vêr que ainda sou rei da crapula!

Gritou aos piolhosos.

-- Olá, vós! escutae-me. Ganha um milhão quem arrombar aquella porta!

Já todos corriam contra ella, quando a porta se abriu e dou entrada ao Infante, D. Rodrigo e Duque de Cadaval, todos de espadas desembainhadas.

-- Canalha vil! gritou o Infante.

Simão Peres foi-se-lhe pôr ao lado.

-- Dae-lhes sem dó, que ha mais de meia hora lhes resisto!

Os mendigos recuaram todos.

-- Adeante! gritou-lhes El-rei, E' El-rei quem vos manda.

E disse-lhe o Infante:

-- Rei, vós!... que nem sequer sois homem!

-- Pedro! bradou-lhe D. Affonso no auge do furor, lançando mão da espada.

Mas ouviu outra vez o orgão que tocava lá dentro.

-- Aquelle canto!. . disse largando a espada no chão. O' Magdalena, Magdalena!... Deus justo castigou-me!

E, só, de cabeça muito baixa, foi saíndo devagarinho.

Muito ao longe as freiras ainda cantavam piedosamente: -- «Requiem aeternam dona ei, Domine, et lux perpetua luceat ei».

CAPITULO XVI

O Infantesinho

Que dias aquelles! El-rei já não pedia a Deus senão a morte para seu descanço.

Só! Sempre só agora!... Que longos eram os dias, e que tormentosas noites passava! Até a madrugada, que tanto o animava d'antes, o enchia de terrores agora. Que lhe traria o dia novo, tão pallido, a encher-lhe de mais ameaçadoras sombras a penumbra do quarto?

Que mocidade a sua!... E ninguem tinha dó d'elle, ninguem!

Um gemido do Braz, lamentoso como de animal ferido, era ecco unico n'aquella melancholica solidão, que ainda abrandava o desespero da sua alma.

D'aquelles ultimos dias as memorias pavorosas tumultuavam em seu pensamento: a fuga de Antonio de Macedo, a vergonha de sua fraqueza que a Rainha lhe lançara em rosto, a morte do Magdalena, o desapparecimento de Maria da Boa Hora com o filho... O filho! Dessem-lhe o filho e o desterro, talvez se consolasse.

Crescia-lhe o amor com a saudade da creancinha, e não tinha ninguem, ninguem com quem pudesse desabafar!

Os creados que o serviam mostravam-lhe má vontade, como receosos de sua dedicação que táo caro lhes pagava. Ouvia-os ás vezes a cochichar pelos cantos. Que diriam?

Até o patife do Simão Peres o tinha abandonado depois de, na portaria da Esperança, se haver posto ao lado do Infante!

Mandou chamar Fr. Bernardo. Talvez elle houvesse tido novas da Falcôa. Quem lhe déra beijar o filho ainda uma vez! Robusteceu-se-lhe a esperança. Fr. Bernardo que viesse immediatamente.

Mas só alta noite appareceu

D. Affonso era furioso; o frade logo o amansou. Andára em serviço de S. Majestade, espreitando, vigiando. Pouco lhe importava a ingrata; mas queria saber de S. Alteza pequenina.

-- E nada de novo?

-- Nada, meu senhor.

E entre si dizia:

-- E o que eu souber não o saberás.

-- Mas que voltas déste?

-- Olhe V. Majestade para as minhas muletas, meu senhor, que lh'as trago aqui roidas por todas as pedras de Lisboa.

-- Mas quem tenho eu contra mim, Deus ou o diabo? exclamou El-rei.

-- Tem V. Majestade a pandilha de S. Alteza.

-- Ah! como bem falou Salvador Correia!

-- Ha mais quem saiba falar, meu senhor.

-- E só!... só!... sempre só!... Que sabes tu da Calcanhares?

Sorriu-lhe uma ideia repentina.

-- Olha, vae ter com ella. Conta-Ihe como Simão Peres me traíu. Dize-lhe que não tenha receio de vir comtigo pela porta secreta. E, se encontrares o Simão no teu caminho, fura-lhe a barriga. Vae.

O frade saíu attonito.

-- Está de todo, coitado!...

E fez um gesto ironico de piedade, levando um dedo á testa.

-- Chama-me para saber do filho e acaba por mandar-me a casa da amante! Irei, mas com toda a cautella, não me morda o Simão o calcanhar, quando eu fôr subindo a escada. Isto ó que tem sido uma estafadeira!

Seguindo os conselhos de D. Rodrigo de Menezes, o frade não fazia senão vigiar os passos de D. Anna de Portugal, bem sabendo o quanto ella desenvolveria faculdades para dar com o paradeiro de Manuel Furtado.

Mas até aquelle momento haviam sido inuteis todos seus esforços.

D. Anna passava horas e horas no quarto, d'olhos fitos em alguma scena luminosa de seu passado, pela phantasia reproduzida com mais vivas côres. E meditava em seu presente e tamanho contraste do mais fundo do coração lhe arrancava o rio das lagrimas.

A velha Brizida seus olhos não desfitava da amargurada menina.

-- Nada soubeste!

-- Nada!

Quando acabariam aquelles dias, se alguma vez houvessem do acabar?

D. Pedro d'Almeida procurava muita vez a irmã, buscando com palavras de esperança alliviar-lhe a dôr. O que disséra D. Rodrigo não fôra senão o desabafo algum tanto imprudente d' uma suspeita. Breve, haveria maneira de esclarecer pontos escuros de toda aquella historia complicada. O segredo não era d'elle; fôra-lhe revelado por algumas palavras soltas levianamente pelo Conde da Torre; por isso ainda se calava.

Mas nos olhos de Anninhas lia uma tal supplica, que mais algumas palavras ia deixando caír com que fôsse alentando-a.

Os tempos iam mudar. Quanto se passára o estava indicando. Mais dia menos dia, triumpharia a gente do Infante. O Conde da Torre andava n'uma alegria!... Fôra um dos condemnados á morte pelo conselho que El-rei reunira; mas nem sequer se rodeava da menor cautella, tão certo que parecia que o minimo perigo o não ameaçava. Pois com certeza não era confidente do muito que ainda se tramava, porque D. Rodrigo de Menezes e o Duque de Cadaval não confiariam maiores segredos ao Conde, cujo genio irascivel, mais d'uma vez, ia tudo deitando a perder.

-- Pobre D. Affonso, dizia D. Anna de Portugal.

Olhava para o irmão, que ainda se mostrava hesitante.

-- Que mais sabes?

-- Suspeito de que D. Rodrigo do Menezes conquistou para seu partido o governador da torre de Belem.

-- E...

-- E, se Pero Rolão corresse o menor risco, elle o saberia salvar.

-- Deus te oiça, Pedro.

-- Mas, ainda mais: é provavel que lhe possamos em breve falar e elle nos dirá talvez o que é feito do amigo, se o souber.

-- Uma voz interior diz-me que Manuel Furtado está em serviço d'El-rei.

-- Deus te não oiça, irmã.

E ella estremecia. Só d'ella fôra a culpa!...

Mas de quanto falava com D. Pedro tirava D. Anna de Portugal certo conforto para sua alma, que tanta vez desmaiava.

Brigida andava n'uma roda viva.

Todas as manhãs, todas as tardes, o que ella corria aquelle caminho, de casa de D. João ao Salvador, da humilde casa de Lourença ao palacio onde a esperava D. Anna anciosa, e sempre levando uma esperança, trazendo sempre um desengano!

Tão absorta ia a velhota, que nem dava attenção ao bater das muletas de Fr. Bernardo, que a seguia de longe, que a esperava depois, meio occulto a qualquer esquina, para lêr-lhe no rosto a nova que trazia.

-- Ainda não é para hoje, dizia comsigo ao vêr a cara de palmo com que a Brizida voltava.

Já começava a desconfiar de que D. Rodrigo lhe déra um mau conselho. Nem o amor de D. Anna era capaz de descobrir o paradeiro de Manuel Furtado, e, por consequencia, o de Maria da Boa Hora.

Cumprindo as ordens de El-rei, dirigia-se agora para casa da Calcanhares, que encontrou furiosa contra Simão Peres desapparecido.

Ao avistar Fr. Bernardo, devotado protector de Maria da Boa Hora, julgou que elle viesse gosar de vêl-a assim abandonada ou dar-lhe talvez noticia d'algum triumpho novo da sua rival. Se a tal se atrevesse, voltaria para d'onde viera, correndo como um gamo medroso, apesar das muletas. Mas elle avisou logo á entrada:

-- Trago-vos um recado de El-rei.

E olhava, desconfiado. Onde se esconderia Simão Peres?

-- Porque olhas assim? perguntou ella. Receias que o patife se occulte aí por algum canto? Não sabes d'elle?

-- De quem falaes?

-- De quem!... De Simão Peres. Que novas me trazes do rufião?

-- Nenhumas. Desde que no convento da Esperança se pôz de espada desembainhada ao lado do Infante, sumiu-se, desappareceu, vistel-o!

Tratante!

A Calcanhares devia de falar sinceramente.

O frade observava o luxo da casa. Todo aquelle conchego Simão Peres desprezára! Porquê? Para quê? Que esperava encontrar que lhe pagasse o que deixava?... Que saberia de que houvesse de tirar maior proveito?

-- Adiantou-se demais, viu-se perdido, fugiu! disse ella.

-- Sempre foi cobarde, rosnou Fr. Bernardo.

-- Pensas que não o conheço!... E El-rei que diz d'elle?

-- El-rei tem tanto em que pensar...

-- Decerto.

E com um riso ironico perguntou ao frade:

-- Que é feito da tua Maria da Boa Hora?

Respondeu aborrecido:

-- Má peste lhe deu sumisse.

-- Com algum novo amante?

-- Velho ou novo... Não me faleis d'esse monstro, digna sobrinha de sua tia.

E com curiosidade:

-- Sabereis alguma coisa?

-- Eu!... exclamou a Calcanhares offendida em seu orgulho. Bem me importa a Falcôa! Não desce tão baixo o meu pensamento!

Mas, raivosa, mordia os beiços.

-- Tu muita vez me quizeste mal!

-- Eu!... exclamou o frade com admiração hipocrita. Se fui eu que hoje lembrei a S. Majestade a vossa visita

-- Dize-lhe que estou doente, que não posso.

Uma coisa a atormentava havia muito. Porque não tornaria Pero Rolão a apparecer? Talvez o frade lhe pudesse dar alguma noticia.

-- Dize-me, se o sabes. Que seria feito d'um tenente que se chama Pero Rolão?

-- Interessa-vos o mancebo?

-- Namorava-me d'antes. Desappareceu. Curiosidade minha, apenas, saber por onde pára.

O frade deu-lhe um baque o coração com uma ideia subita. Pero Rolão talvez soubesse do amigo; solto, iria procural-o. Era seguir-lhe os passos. Se a Calcanhares lhe tivesse amor... Respondeu-lhe com os olhos nos olhos d'ella, buscando vêr que effeito a nova lhe faria.

-- Pero Rolão é preso na torre de Belem por ordem de El-rei.

-- Preso! disse ella.

Era só espanto; não havia dôr na exclamação.

A Calcanhares pensou:

-- Preciso soltal-o; quero ter esse homem por mim, que me salve quando o abysmo se me abrir. Se teve El-rei noticia do que houve entre nós?

E, alto, perguntou a Fr. Bernardo;

-- Porque o prenderam?

-- Suspeitas de El-rei.

-- Suspeitas!

-- De que elle houvera amores com Maria da Boa Hora.

--Ah!

-- Bem sabeis que, desde ha tempos, regula muito mal a cabeça de S. Majestade.

-- E quando...?

-- Na noite antecedente ao dia em que a Falcôa desappareceu.

-- O que mais confirmou El-rei...

-- S. Majestade não raciocina.

-- Mas como foi...

-- Acabava El-rei de saber que fôra muito provavelmente um homem, que certa noite lhe salvára a vida, o mesmo que depois lhe roubára a amante. E vae d'ahi recebe n'esse instante, como signal, uns copos de espada... Uma historia muito comprida... E manda metter o homem na torre, n'um d'aquelles impetos que lhe dão ás vezes e em que vae tudo raso! Julguei que fôsse Manuel Furtado; qual foi meu espanto...

A Calcanhares erguêra-se. Chamou a Luzia.

-- Dá-me a mantilha. Apromtem a liteira.

-- Vaes dar-me a vasa! resmungou Fr. Bernardo. Queres salvar Pero Rolão!... Bem me importa a mim porquê!

-- Acompanha-me, disse a Calcanhares. El-rei chamou-me; vamos vêr que me quer o doido.

E na liteira ia pensando:

Pero Rolão, se o eu salvar, mais grato me ficará.

Mas veio-lhe uma suspeita.

-- Se me traíu?...

Encolheu os hombros. Era lá possivel!

-- Se me traíu... pagará com a vida.

El-rei recebeu-a com alvoroço.

-- Ainda bem que chegaste!

E voltando-se para Fr. Bernardo:

-- Não se parece com o tal thesouro que me trouxeste um dia...

Sorria-se a Calcanhares. O frade abaixava os olhos como envergonhado, pensando:

-- E' d'onde lhe sopra o vento! Ainda hontem me disse que detestava agora as loiras!

D. Affonso abraçava a Calcanhares, apalpava-lhe a testa, achava-a quente, mostrava cuidado.

E ella respondia que não era nada; um bocadinho de febre, talvez de ter chorado.

-- Choraste!

Voltou-se outra vez para o frade.

-- Esta é das fixas!

Fez-lhe um signal; Fr. Bernardo ia a saír.

-- Espera!... Has-de ficar ahi fóra. E' que tens de saír ainda de noite, continuou dirigindo-se á Calcanhares; os tempos não estão para imprudencias.

E, logo que se viu só com ella:

-- Ainda bem que vieste!

Sentou-se, chamou-a para junto de si, beijou-lhe os cabellos, disse-lhe muitas palavras ligando ideias sem nexo, como quem quer aturdir-se.

-- Agora assim me falaes! disse-lhe a Calcanhares, e tão ingrato heis sido commigo! Tantos dias, tantos...

-- A culpa foi de Simão Peres que abalou. Por isso o hei-de vêr a estrebuchar n'uma forca!

-- Podieis por outro chamar-me... como hoje o fizestes, porque perdestes a esperança...

-- De quê!

-- De vêr tâo cedo a outra que vos fugiu.

El-rei pôz-se pallido como se houvesse recebido uma punhalada.

-- Quem t'o contou? perguntou, debalde tentando tomar a voz firme.

-- Sabe-se tudo. Quando o coraçcão começa a assustar-se, máo signal... E eu, que tão receosa vivia!

Calou-se um instante. Deitou-lhe os braços ao pescoço, murmurou-lhe ao ouvido:

-- Tudo te perdôo!

Sorriu-se. Ameaçou El-rei com o dedo.

-- Mas não torne V. Majestade...

Era optima occasião para uma lagrima, que não conseguiu subir até ás palpebras.

-- Não costumo queixar-me das minhas rivaes; mas tão mal andou a Falcôa traíndo-vos tão abjectamente...

-- Não achas?

-- Traír-vos!... tambem vós me traístes e eu perdoei-vos! Pensou talvez que estaveis pouco seguro no throno... E depois... sabia que já outra vez... Se lhe tinheis tanto amor! concluiu, mordendo os beiços, como a querer suster as lagrimas.

-- Menos, muito menos...

Ella tapou-lhe a bocca com os dedos côr de rosa perfumados, que elle beijou cerrando os olhos.

A Calcanhares continuou:

-- Mas elle, o infame que assim vos faltou ao respeito, que diligencias fizestes para castigal-o?

-- Espera na torre de Belem a minha justiça.

-- Ah! está preso!... Ainda bem! E quem é elle?

-- Não lhe sei o nome por emquanto. Não tenho querido pensar...

-- Ah! quanto a amaes ainda!

-- Não!

Tornou a abraçal-a, cheio de ternura.

-- Tu, só tu me encantas!

-- E então ella fugiu ; foi n'essa mesma noite...

-- Foi! disse El-rei, pasmado de ainda não haver pensado na coincidencia.

Mas porque lhe disséra então Fr. Bernardo que ella fugira com mêdo que algum mal lhe succedesse ao filho?

Chamou-o. Queria uma explicação.

-- Deixae-o, disse-lhe a Calcanhares. Para que ha-de vir interromper-nos?

Mas El-rei teimou. Queria saber o nome do preso.

-- Pero Rolão, disse o frade.

Tornou a saír.

-- Pero Rolão! exclamou ella. Um loiro, feio, d'olhos saídos para fóra? Ah! não sei que me dizia um mau presentimento... Detestava esse homem! Contae-me como foi. Conheceis decerto o delicioso tormento que é remexer na ferida a arma que nos feriu. Contae.

E El-rei contou-lhe o que se passára.

A Calcanhares piscava os olhos, como a fazer calculos.

-- Mas, quando foi que encontrastes esse valente, que assim vos defendeu e depois vos insultou?

-- Não sei.

-- Vêde se vos lembraes.

El-rei recordou-se de repente.

Uns dias depois da batalha das linhas d'Elvas.

-- Mas Pero Rolão foi dos que ficaram na praça, sei-o perfeitamente. D'esses officiaes só quem estava em Lisboa n'esse tempo era...

-- Manuel Furtado! exclamou El-rei.

-- E foi, sabendo qualquer terrivel segredo, que Pero Rolão lançou mão da espada...

-- Sim... talvez...

-- Para salvar-vos! E a quem por vós arriscou a vida mettestes n'uma torre!... Ah! com que loucura amastes essa mulher, que assim maltratastes a quem vos ama!

E, como se em si mesma pensasse, caíu n'uma cadeira a soluçar.

Um creado, que fôra do Conde e ficára ao serviço d'El-rei, entrou n'esse instante com uma carta.

-- De quem? perguntou El-rei impacientado.

-- Ignoro-o, senhor. Quem a trouxe disse-me palavras que me obrigavam a procurar V. Majestade, fôsse onde fôsse no mundo.

-- E onde está?

-- Retirou-se, meu senhor.

O creado saíu.

El-rei abriu a carta. Não tinha assignatura, mas um simples signal, senha que El-rei combinára com o Conde de Castel Melhor para sua correspondencia particular.

D. Affonso soltou um grito. A carta apenas continha quatro palavras: «Resisti. Velo por vós»

-- O Conde! disse.

-- O Conde? perguntou a Calcanhares,

-- Olha.

E ella leu.

Calou-se um instante.

-- Foi o vosso perdão ao innocente que Deus quiz recompensar.

-- Sim, sim, seria...

-- Quando lh'o mandaes? Não demoreis a boa acção, para que Deus vos não castigue.

-- O Conde!... O Conde! dizia elle, já esquecido de Pero Rolão, da Falcôa, da Calcanhares.

Se ainda lhe chegaria a hora de vingar-se?

-- A'manhã mandarei soltal-o.

A Calcanhares beijou-o.

-- Juraes?

-- Juro.

-- Queria sabel-o ao certo, quando fôr.

-- Eu te mandarei a ordem de soltura.

Como sois bom, senhor!

-- Que lhe importava a elle Pero Rolão? O Conde velava...

-- Adeus, Calcanhares.

-- Mandaes-me embora?

-- Quero pensar sósinho... Quero rogar a Deus...

-- Adeus, senhor.

Ainda, já quasi da porta.

-- Nao vos esqueçaes, disse.

E, quando saíu, reparou offendida no suspiro de allivio que elle soltou. Seria porque ella o deixava ou seria a certeza de que se lhe ia acabar o tormento em que vivia?... Que lhe importava?

Velava o Conde!... Meditaria no caminho a seguir... Depois, se quizesse...

Durante o trajecto para S. Francisco não deu palavra a Fr. Bernardo, e, chegada a casa, fechou-lhe a porta na cara.

-- Malcreada! resmungou elle.

E, como era quasi manhã, decidiu não deitar-se e foi-se vigiar a casa de D. João d'Almeida.

-- Bem andei em vir tão cedo, disse, vendo, instantes depois, saír a Brizida. Observemos a cara com que volta. Será de palmo, conforme o costume.

Seguiu a velha uns instantes; viu que se dirigia ao Salvador. Ia decerto a casa de Lourença procurar noticias. Ali esperaria que voltasse.

A velha não se demorou um quarto d'hora. Subia a escada do bêcco tortuoso, apressada, offegante; trazia cara de caso e um brilho maior nos olhinhos encovados.

-- Temos obra! disse o frade. Abre teu olho, Bernardo!

Foi no encalço da aia de D. Anna e não mais desfitou os olhos da porta, por onde calculava não tardaria a saír outra vez.

Effectivamente não se enganára. Havia grande novidade. Lourença tivera noticias de seu querido Manuel. Pantaleão Gonçalves estivera em Lisboa.

-- Louvado seja Deus! exclamara a Brizida, mal, pelas primeiras palavras que Lourença lhe dirigia, percebeu que Manuel Furtado não era desastrosamente morto.

E' que, pelo sim, pelo não, já lhe rezára tres corôas por alma.

-- E onde está? perguntou.

-- Não sei ao certo... Lá pela Outra Banda. Não me lembra o nome da aldeia, nem sei se o Pantaleão m'o disse.

Mentia; mas conhecia o amor de D. Anna a Manuel Furtado e receava uma imprudencia.

E, como a Brizida olhasse para ella com ar desconfiado, acrescentou:

-- Malvado!... Até de mim quiz guardar segredo! Obrigou o Pantaleão a jurar-lhe que apenas me daria novas de sua saude e a de que voltaria em breve.

-- Que veio Pantaleão fazer a Lisboa?

-- Buscar uns remedios.

-- Para...?

-- Para a creancinha.

-- E quando vos veio vêr?

-- Ainda não rompia a madrugada.

-- E onde está?

-- Não sei.

-- Que vos contou?

-- Que anda triste e tão sombrio que mal se atreve a saír, porque não quer metter mêdo á gente. Os rapazes olham para elle de longe e os mais pequeninos fogem.

-- Mas...

-- Do sr. Manuel Furtado e de...

-- D'ella?

-- Mais nada me contou.

-- Está peor o pequeno?

-- Parece que sim. Mas tem que esperar pelo remedio. O sr. Manuel Furtado recommendou a Pantaleão Gonçalves, como era de suppôr, a maior prudencia; por isso, só depois de noite fechada tornará a embarcar.

-- Vivo!... está vivo!... Já a noticia animára a minha menina!

Lourença não disséra tudo o que Pantaleão lhe contára, nem a vida de Maria da Boa Hora ao lado do filho moribundo, nem a de Manuel Furtado ao lado da antiga amante.

A Brizida ía contente.

O dia inteiro passou Fr. Bernardo esperando, o dia inteiro passou fome; mas o coração prognosticava-lhe novidades do maior interesse; não se desviou de junto do palacio.

Que saberia Simão Peres que desapparecêra? Que novo jogo andaria armando?... Havia de vencêl-o!... Odiava aquelle maroto, homem da mais baixa esphera, não sabendo quasi juntar duas letras e que se atrevêra contra elle, que estudára latim e theologia!

A fome apertava. Começou a sentir frio e a bater o queixo. Ia desistir, quando, um pouco depois do sol posto, viu, sorrateiramente, um vulto negro, com o rosto occulto n'uma densa mantilha, saír de casa de D. João e apressadamente caminhar para os lados da Sé.

Seria ella!... Seria D. Anna?

E elle ahi lhe vae no encalço, atirando as muletas o mais longe que podia, que o vulto negro, muito encostado ás casas, quasi corria por aquellas ruas.

Homens que vinham do trabalho, ranchos de mulheres, voltavam curiosamente as caras, riam-se, faziam seus commentarios.

Assim fôram até ao cães do Terreiro, onde Fr. Bernardo viu parar a mulher, falar baixo a um barqueiro, ficar á espera.

-- Que fará? pensou.

Pareceu-lhe inquieta, olhando para todos os lados, aconchegando o véo.

-- E' D. Anna de Portugal, não ha duvida.

Um homem chegou muito embrulhado n'uma capa, de chapeu puxado para os olhos, com ar mysterioso.

Entrou n'uma falua que se encaminhou para meio rio. Logo a mulher desceu para o barco ajustado, que soltou a vela na esteira do outro.

-- Segue-me aquelles dois, disse Fr. Bernardo a um barqueiro que fumava pachorrentamente seu cachimbo, encostado á muralha.

Era noite fechada. A maré baixava; o vento soprava de feição.

-- Aonde iremos dar? dizia comsigo o frade.

-- Vamos então á Trafaria, senhor? perguntou o barqueiro.

-- A' Trafaria?

-- De lá chegou esta manhã a falua que vae na frente.

-- Pois iremos á Trafaria.

Mas o barco foi atracar longe da povoação. O embuçado saltou na praia, metteu para o interior subindo o monte.

Desceu do outro barco a mulher.

-- Em bom rastro vou, disse Fr. Bernardo, saltando.

Mas a subida era ingreme e elle sentia-se fraquejar.

Andaram assim meia hora.

A porta d'uma casa isolada abriu-se e com a luz do interior Fr. Bernardo reconheceu o homem.

-- O Pantaleão!

A mulher parára. Fr. Bernardo imitou-a.

Mais não colhesse, já sabia bastante. Poderia retirar-se, dar parte do que vira a D. Rodrigo de Menezes; mas, apesar da fome e do frio, a curiosidade attraía-o.

Começou a caminhar muito devagarinho, ensurdecendo o bater das muletas. O matto era alto em volta da casa. Escondeu-se n'elle a uns quinze passos. Os olhos haviam-se-lhe costumado á escuridão e viu o vulto negro da mulher espreitando junto da janella em que luzia uma frincha com a claridade do interior.

-- Será ella? pensou.

A mulher arredára a mantilha, como desejosa de mais ar. Viu-lhe n'um traço de luz brilhar os cabellos loiros.

Era D. Anna!

Sorriu-se.

-- D. Rodrigo de Menezes ha-de ir longe.

Approximou-se, quasi rastejando. Estava já tão perto que ouvia os soluços abafados de Anninhas. Que estava ella a observar que assim tanto a mortificava?

Ouviu-lhe murmurar umas palavras:

-- Manuel... Traída... Morte...

Que estaria a observar?... Manuel Furtado com a Falcôa, pois quê?

Via-a toda a tremer... Viu-a depois erguer-se hirta, abrir os braços, caír para traz sem um grito.

Fez um gesto de indifferença, approximou-se muito mansamente e, por sobre o corpo de Anninhas inanimado, pôz-se a espreitar.

-- Lindo quadro! Pena é que tenha de durar tão pouco!

O que lhe fez mais inveja foi vêr Pantaleão Gonçalves abancado deante d'umas postas de peixe frito, arrancando soffregamente o miolo d'um pão enorme com que enchia a bocca desdentada.

Mais para o meio da casa, Maria da Boa Hora e Manuel Furtado estavam junto d'um berço onde uma creançinha dormia. Maria da Boa Hora olhava para ella assustada e elle parecia dizer-lhe palavras de esperança, apertando a mão da antiga amante.

-- Cada vez mais velha, um cangalho! Mas ha homens que gostam de mulheres assim! Que lhe dirá ella agora?... E elle a chamal-a para si!... Beijou-lhe a testa... E ora aqui temos porque esta desgraçada desmaiou.

E afastou cuidadosamente os pés para nâo pisar o corpo de D. Anna immovel, estirado sobre a terra dura.

-- Não vá o caso complicar-se... Sei mais do que esperava...

Ia a retirar-se, quando a porta da rua se abriu e elle nao pôde suster um grito de espanto.

Entrára o Conde de Castel Melhor.

-- O Conde!

Puzeram-se-lhe as pernas a tremer. Fincou os sovacos nas muletas. Era sorte demais! Protegia-o finalmente a fortuna com o descobrimento d'aquelle segredo!

O Conde ali! Com quantos mil cruzados lhe pagaria o Infante a denuncia?

Não tirava os olhos da frincha bemdita.

O Conde e Manuel Furtado falaram acaloradamente. A Falcôa, ora comtemplava o pequeno, ora unia as mãos e com supplicante olhar dirigia-se ao amante. Pantaleão, intervallando-a com as garfadas que mettia na bocca, mettia sua colherada na conversação. E bebia que era um louvar a Deus.

-- Se eu pudesse ouvir...

Não havia meio.

-- Talvez á porta...

Dobrou a esquina da casa.

Falavam de Pero Rolão. Pantaleão Gonçalves trouxera a nova... O Conde contava com o governador da torre... De Maria da Boa Hora pouco mais ouvia do que um sussurro... O pequeno doente... Melhor... Falava o Conde agora. O Alemtejo... D'ali a tres dias... Mas era tão cortado o dialogo, que não havia meio de lhe achar o sentido por tão poucas palavras ouvidas.

Não fôsse algum d'elles abrir a porta de repente...

Voltou para a janella.

D. Anna de Portugal continuava na mesma posição, estirada, immovel.

-- Estará morta? pensou o frade.

Espreitou.

Manuel Furtado puzera o chapeu, embrulhára-se na capa. O Conde puxava-o.

-- Vão-se embóra!... Bello!

O caminho era pelo outro lado; Fr. Bernardo deixou-se ficar junto da janella, sem receio.

Maria da Boa Hora chorava. Os dois saíram e ella caíu soluçando, encostada ao berço.

Pantaleão Gonçalves levantou-se a cambalear; entrou para um quarto interior.

O frade hesitou um instante sobre o que havia de fazer. O mais prudente era sem duvida voltar a Lisboa, dar parte do que vira. No dia seguinte fizesse a gente do Infante o que intendesse por melhor.

Mas reparou em D. Anna. Dariam decerto por sua falta. Haviam de procural-a, descobririam tudo.

Não havia mais que arrancar n'aquelle momento o filho a Maria da Boa Hora.

Odiava aquella mulher, que pudéra ser a ventura d'elle e duas vezes lhe fugira. Para quê? Para n'uma choupana miseravel padecer miserias por amor!

Seria meia noite, nem tanto. Tinha tempo. A casa era n'um êrmo; que importava que a mulher gritasse? Pantaleão não despertaria; os outros íam longe. Correria a Lisboa, accordaria D. Rodrigo, preveniria tudo, voltaria com gente armada a pôr cêrco ao pardieiro.

Olhou ainda uma vez. Maria da Boa Hora, com a cabeça sobre o corpinho do filho, continuava a soluçar.

Decidiu-se. Entrou.

Ella ergueu a cabeça e deu um grito estridente, que obrigou Fr. Bernardo a recuar. Se os outros tivessem ouvido... Não, já deviam de ir no Tejo.

-- Bonita maneira de receber amigos! disse.

Maria da Boa Hora erguêra-se, levára as mãos aos cabellos, fitára os olhos doidos no homem que ali lhe apparecia n'aquelle instante, como visão medonha no mais horrivel dos pesadellos.

-- A que vens?... A que vens? perguntou-lhe, inclinando para traz a cabeça, estendendo os braços, como a querel-o affastar.

Saíam-lhe das orbitas os olhos apavorados.

O frade ria-se, e toda ella esfriava ouvindo-lhe a gargalhada.

-- Por Deus!... Por Deus!... Vae-te!... Vae-te!

Recuava; mas, com um grito do entranhado amor, um susto que lhe transtornou o rosto fêl-a outra vez correr para junto do berço.

-- Para que berras? perguntou elle. Bem sabes que ninguem póde acudir-te. Teu guarda-costas dorme como um porco em seu chiqueiro, os outros vâo longe e talvez não voltem.

-- Meu Deus!... Meu Deus, porque assim me castigaes? soluçava ella.

-- Se eu quizesse... continuou o frade. Não seria a primeira vez, hein?... Lembras-te em evora? Até fingiste que desmaiavas e...

-- Infame!... Não m'o lembres agora, não m'o lembres!...

-- Isto é conversar. Ora, porque não seguiste os meus conselhos, ahi estás chorando, velha, miseravel...

-- Que me queres? Dize que me queres! Responde pelo amor de Deus e não rias assim, que me pões mêdo!

-- Agora te ponho mêdo! Deverias havel-o antes de fugir pela segunda vez... para o sr. Manuel Furtado!

-- O pequenino está doente... O meu filhinho vae morrer... E estou só!... só!... só comtigo n'esta hora!... Diziam que estava melhor... Era a visita da saude... Diz-me o coração que o meu filho vae morrer... Elles enganaram-se... Deixa-ram-me só, só... E tu vieste!

Crescia-lhe a exaltação; os cabellos desgrenhados eram-lhe em volta da cabeça como um resplendor negro; a bocca torcia-se-lhe; os olhos apavorados tinham um fulgor de loucura.

-- Quem te mandou?

-- El-rei, respondeu o frade.

-- A que?

-- A buscar esta creança.

-- A buscar...

Soltou uma gargalhada de tamanha dôr, que Fr. Bernardo, pasmado de sua propria, estranha commoção, sentiu correr-lhe o corpo um calafrio.

-- A creança!... O meu filho!... Que tem elle com o meu filho?

O frade riu-se.

-- Forte novidade!

E cynicamente accrescentou:

-- Mas bem andaste em mentir-lhe, como boa mãe. Agora é tarde para dizer-lhe a verdade. Manda quem póde. Dá-me o pequeno.

Ella correu para o berço.

-- Falcôa! gritou-lhe o frade pegando-lhe nos pulsos para afastal-a.

Mas o insulto d'aquelle nome, que elle assim lhe cuspira, parece que lhe dobrara as forças. Maria da Boa Hora empurrou-o e elle caíria, se não encontrasse a parede que o susteve.

-- Não!... Não!... Não o arrancarás de meus braços!

E olhava para elle, ferina e como a desafial-o.

Elle rangeu os dentes.

-- Vamos vêr!

Correu sobre ella, tentou derribal-a.

Maria da Boa Hora defendia-se.

-- Ladrão!... Ladrão! gritava.

E mordia, raivosa, as mãos que tentavam prendel-a.

-- Manuel!... Manue!

Mas já quasi não tinha forças para gritar.

Fr. Bernardo insultava-a por entre dentes. Calou-se tambem. Não levaria a melhor; a fraqueza das pernas desajudava-o; o sangue escorria-lhe pelas mãos.

A lucta continuou silenciosa. Ouviam-se no quarto interior os roncos sonoros de Pantaleão Gonçalves.

De repente, Maria da Boa Hora soltou outro grito, maior, pavoroso. Olhara para o leito e vira o filho d'olhos abertos, assistindo á lucta, com os beicitos a tremerem.

-- Filho!

O frade caíu desamparadamente e ella correu para o berço.

O pequenino entrára em convulsões que lhe sacudiam o corpinho; os olhos reviravam-se-lhe, o rosto empallidecia.

Que sentia o frade? Que vago terror, que impressão mysteriosa era aquella que não sabia dominar? Só com esforço, que até lhe fazia doer, conservava nos labios seu costumado sorriso ironico. Remoia phrases de mofa com que ainda mais martyrisasse a pobre mãe, a mulher que odiava; mas sentia a bocca paralisada ao querel-as proferir. Tinha mêdo.

Passou uma aragem e pareceu-lhe que era um suspiro vindo de muito longe, que lhe dava um novo calafrio.

A creancinha ía morrer. Maria da Boa Hora soluçava; com as mãos arripiava os cabellos; tinha os olhos fitos na dolorosa, prolongada agonia do filho da sua alma. As convulsões íam-lhe diminuindo, os olhos embaciando. Viu-o soltar tres fundos suspiros intervallados, os olhos formosos entortarem-se, o labio inferior descaír, ficar-se immovel.

-- E' abalar agora, tratar dos outros, pensou o frade. Levo uma boa nova ao Infante.

Mas sentia uma força desconhecida prendel-o ali.

O silencio prolongou-se. Maria da Boa Hora já não chorava e de repente ergueu-se.

Pareceu a Fr. Bernardo que lhe havia crescido a estatura.

Ella avistou-o e, com as feições decompostas, a voz mudada, um gesto doido, gritou-lhe:

-- Era teu filho!

CAPÍTULO XVII

Pero Rolão

Não admira que D. Affonso tão perturbado ficasse com a missiva, embóra muito curta, do Conde de Castel Melhor, que tudo mais esquecesse: o desapparecimento de Maria da Boa Hora, a morte de Magdalena e até a carta de D. Maria Francisca de Saboya que do convento lhe escrevêra: «Deixei a patria, a casa, os parentes, e vendi minha fazenda por vir acompanhar a V. Majestade com desejo de o fazer á sua satisfação, e tenho sentido muito a desgraça de o não poder conseguir por mais que o procurei. Obrigada da minha consciencia, me resolvi em tornar para França nos navios de guerra que aqui chegaram. Peço a V. Majestade me faça mercê de dar-me licença para isso e de me mandar entregar o meu dote, pois que V. Majestade sabe muito bem que não estou casada com elle. Espero da grandeza de V. Majestade me mande fazer assim entrega do meu dote como tambem o favor que merece uma princeza estrangeira e desamparada n'estes reinos e que veio buscar a V. Majestade de parte tão distante.»

Só da carta do Conde se lembrava, vivia só da esperança que lhe ella trouxera.

Não foi portanto de espantar que toda a manhã e o dia todo a Calcanhares se amofinasse á espera da ordem de soltura para Pero Rolão, que El-rei lhe promettêra.

Eram variados os boatos que corriam e todos lhe chegavam aos ouvidos como ameaça ao poder do amante. Já de casa mandára para mais seguro local as melhores joias e algum dinheiro que arrecadára. Mas essa manifestação de prudencia não a socegava. Temia a colera do povo, quando chegasse a hora do ajuste de contas, e com uma boa amizade no partido do Infante dormiria mais segura.

Anoiteceu e não veio mandado de El-rei.

Enraivecida, mandou-lhe um de seus escudeiros, que não conseguiu entrar no paço

Podia a revolução contra o poder real rebentar mais cêdo do que se dizia e como provar que fôra ella quem mandára aviso ao Infante das tenções de El-rei com respeito ao Conti?

Egualmente receoso se mostrava D. Affonso cerrando cuidadosamente as portas do palacio.

Era noite velha, saía a Calcanhares de casa e dirigia-se ao paço sósinha em sua liteira. Uns homens do povo atiraram-lhe vaias e chascos a que os lacaios não se atreveram a responder. Ella, phylosoficamente, commentava:

-- Elles me avisam de que ando bem tendo pressa.

Encaminhou-se pelo corredor secreto para os quartos de El-rei, a recebeu muito mal.

-- Pois tanto melhor, pensou ella; escuso de ter depois saudades e remorsos.

Passada uma hora, dopois de muitas correrias de escudeiros a levar recados, saíu com a ordem para o governador da torre.

D. Affonso mal lhe dirigira uma ou outra palavra, interrompendo seu soliloquio. Nem sequer lhe perguntou que motivos ella havia para tamanha pressa.

-- Adeus, senhor, disse ella.

E pensou:

-- Foi talvez o ultimo adeus.

Mandou aos lacaios que a levassem á torre, onde foi recebida pelo governador, militar velho, dado ás damas, que a conhecia de vista, e lhe disse que muito folgava em poder beijar-lhe a mão.

Pôz a luneta, mirou e remirou o papel. Tudo estava em ordem.

-- Esperaes pelo preso? perguntou.

-- Espero.

-- Que patife me saíu o tenente! disse elle baixinho entre si, com certa inveja.

Ia dar ordem ao carcereiro para chamar Pero Rolão, quando um official entrou com uma carta.

O governador fez um gesto de surpreza. Rasgou o sobrescripto e leu n'um só relancear d'olhos as duas linhas que lhe escreviam.

Onde está? perguntou ao official.

-- A' porta.

-- Dizei-lhe que suba.

Mas, reparando na Calcanhares que puxára a mantilha para os olhos, emendou a ordem.

-- Eu vou.

O official retirou-se.

-- Perdoae-me, senhora, um só momento.

Saíu.

Era Manuel Furtado o portador da carta.

-- Quem sois?

-- O capitão Manuel Furtado.

-- Quem vos manda?

-- Como pela carta que recebestes deveis sabel-o, manda-me o Conde de Castel Melhor.

-- E' pois certo...

-- E' certo que tem confiança em vós e na vossa fidelidade.

-- Que desejaes?

-- Que me ajudeis a salvar o melhor dos meus amigos.

-- Dizei quem e como e porque está preso.

-- Ignoro os motivos de sua prisão, provavelmente seus amores com a amante de El-rei.

-- Pero Rolão?

-- Era pois verdade o que eu suppunha. Temo a colera de El-rei contra o meu desgraçado amigo.

O velho governador sorriu-se.

-- N'esta mesma hora recebi ordem de soltal-o.

-- Ordem!

-- Ordem de El-rei. Ides vêl-o.

Chamou o carcereiro, que lhe trouxesse o tenente áquella sala.

-- Agradeço-vos, senhor, vossa boa vontade. O Conde, melhor do que eu, quando Deus queira, vos saberá pagar a amizade que lhe provastes.

Os olhos do governador diziam uma interrogação curiosa. Que é d'elle? perguntavam.

-- Véla pelo reino e por El-rei.

O velho militar percebeu que não devia insistir.

Pero Rolão entrou com a barba e o cabello em desalinho, o fato andrajoso de tantos dias de prisão.

-- Manuel! exclamou cheio de jubilo, caíndo-lhe nos braços.

-- Meu amigo, és livre! respondeu-lhe Manuel Furtado apertando-o n'um abraço valente.

-- Livre!

-- Livre, disse-lhe o governador mostrando-lhe a ordem que recebêra.

-- E tu fôste, Manuel, tu...

-- Não. Ao chegar á torre já a ordem encontrei. Nem sabia...

O governador muito malicioso bateu no hombro do tenente.

-- Quando eu era novo como vós, tambem agradava ás damas. Andaes bem seguindo-me as pisadas.

Livre!... Damas!... Pisadas d'aquelle velho empavonado!... Pero Rolão não era capaz de fechar a bocca e nao fazia senão esfregar a testa.

-- A Calcanhares! exclamou como se repentina luz o illuminasse.

-- A Calcanhares! repetiu Manuel Furtado.

-- A Calcanhares, confirmou o governador da torre. Ella em pessoa me trouxe a ordem, ella em pessoa vos espera.

-- A Calcanhares! E onde, onde está ella?

Parecia doido; queria vêl-a. Fôra o sonho mau que tivera todas aquellas noites, o martyrio da desgraçada. El-rei ciumentissimo encarcerando-o a elle e mandando coser a amante a facadas pelos homens da patrulha baixa!

-- Quero vêl-a! tornou a exclamar.

-- Espera.

Manuel Furtado carregára o sobr'olho. Poz a mão sobre o hombro do amigo.

-- Responde qual preferes, o amor da rameira ou a amizade d'um homem de bem?

Nunca o governador vira uns olhos assim, nem bocca mais espantada que a de Pero Rolão.

-- Tendes que falar a sós? perguntou com ares discretos.

E, como o gesto attencioso de Manuel Furtado lhe não dizia que ficasse, encaminhou-se para a porta.

Eram raras na torre mulheres tão bonitas; até não desgostava de ter pretexto para recordar e redizer finezas com que illustrára sua mocidade.

-- Um pedido vos farei, disse-lhe Manuel Furtado, demorando-o com um gesto. Ser-vos-ía penoso que essa dama por uns tempos curtos vos fizesse companhia?

-- Manuel! disse Pero Rolão.

-- Temo que ella esteja com os mais terriveis inimigos de El-rei. Não acharieis pretexto para a demorar n'estes bons ares...

-- Decerto, dois ou tres dias...

-- Dois ou tres dias ser-nos-hão bastantes.

-- Boa vista sobre o Tejo, mesa excellente...

Pero Rolão não percebia nada.

-- Mas como explicar... disse ainda o velho.

-- O Conde vos desculpará junto de El-rei.

-- Mandaes então...

-- Nada mando, senhor; apenas vos peço o que me parece prudente. Deixae-me falar com Pero Rolão; eu vos direi depois...

-- Atirae-me cá de baixo um signal...

-- Eil-o. Quando me fôr, se eu disser: «Deus seja comvosco», deixae a ir; se vos eu disser: «Boas noites, senhor», é porque vos desejo uma noite excellente ceando em má companhia.

Pero Rolão durante o dialogo não dera palavra. Attonito, perguntava a si mesmo por que motivo Manuel Furtado se lhe mostrava tão pouco amigo.

O governador saíu esfregando as mãos.

-- Tive hoje noticia da tua prisão, disse Manuel Furtado; corri para salvar-te.

-- Encontraste-me já salvo! Quanto póde o amor das mulheres!

-- De minha amizade não falas!

-- Perdôa, Manuel; é que não sabes qual foi meu tormento durante dias e noites em que a sombra do meu carcere se encheu de phantasmas temerosos. N'ella pensei constantemente.

-- Na Calcanhares!

-- Pois em que mulher querias que pensasse, se me havia ella promettido o seu amor?

-- Para de ti fazer um denunciante...

-- Manuel!

-- Para de ti servir-se no dia em que o partido do Infante houvesse de triumphar.

Pero Rolão córou até á raiz dos cabellos.

-- Seja como fôr, a El-rei deveste o estar livre agora, não lh'o vaes desagradecer ámanhã juntando-te a seus inimigos.

-- Que ha de novo?

-- Ha que, na mesma noite em que fôstes preso, sahi de Lisboa com Maria da Boa Hora e o filho, que occulto vivi com elles até hoje n'uma casa pobre do Outra Banda, não me atrevendo a abandonal-a, não me fiando de Pantaleão Gonçalves. O pequenino ás portas da morte, quem teria coração para expôr a pobre mãe a receber o golpe n'aquelle êrmo, sósinha? Que haverá pensado de mim D. Anna de Portugal? Como lhe hei-de explicar a minha ausencia? Não sei. Mas, agora que estás livre, tu me valerás.

Ensinou-lhe o caminho que havia de seguir para dar com a casa. A creancinha ia melhor, quando a havia deixado. Tinha recados inadiaveis para Lisboa e Pero Rolão, por um dia ou dois, poderia substituil-o.

-- Conheço teu bom coração. Tambem tu amaste Maria da Boa Hora ou sua viva imagem. Tem d'ella piedade; dize-lhe que, o mais breve que o permittir o meu dever, estarei com ella.

-- Guardas-me segredo de alguma coisa.

-- Guardo.

-- Não te mereço confiança?

-- Não para o que intento.

-- Por El-rei?

-- Sim.

-- Mas como explicas, tu que tanto o odiavas...

-- Liga-me á sua causa um juramento.

-- Que fizeste...

-- A D. Anna de Portugal.

-- Estou ás tuas ordens.

Manuel Furtado approximou-se da porta; gritou para cima:

-- Boas noites, senhor!

E Pero Rolão pensou:

-- Quando acabará minha má sorte com mulheres?

CAPITULO XVIII

A renuncia

Tocava ao cabido da Sé de Lisboa ser juiz na causa de divorcio que a Rainha tentára, não podendo soffrer, dizia ella na carta que lhe dirigira, os remorsos de sua consciencia, e muito tempo dissimulados pelo muito amor que tinha a estes reinos. Implorava-lhe désse pressa ao negocio, favorecendo assim uma estrangeira maguada da desgraça de não poder viver na terra que de tão longe viera buscar com tanto gosto.

Juntou-se o cabido e, n'elle lida a carta, acceitou a incumbencia.

Foi então que os conselheiros de estado, a nobreza e o povo do Lisboa determinaram accudir ao perigo da monarchia, vendo o reino sem governo e El-rei sem successores.

Foram falar ao Infante os ministros do senado da camara e a casa dos vinte e quatro do povo.

Respondeu-lhes D. Pedro que no dia seguinte estivessem juntos, pois que tudo desejava fosse executado a satisfação de El-rei.

No outro dia de manhã cêdo, ainda El-rei dormia, entrou-lhe no quarto o velho Marquez de Cascaes a pedir-lhe licença para lhe falar com toda a liberdade.

-- Lá vem o Marquez com alguma das suas, disse El-rei sorrindo.

Espreguiçou-se na cama.

Pensou:

-- Quando surgirá o Conde de Castel Melhor a valer-me em tamanho aborrecimento?

O Marquez esperava a licença pedida.

-- Falae, disse-lhe El-rei.

-- Pois bem, senhor, começou o Marquez, sabei que não é tempo de dormir agora. Accordae, senhor. Nem como rei vos portaes em vosso reino, nem como homem vos portastes com vossa mulher. Estão vossos vassallos dispostos a conservar-vos a auctoridade real e a vossa liberdade segura, mas querem obedecer á direcção do senhor Infante no governo do reino. Ceda vossa contumacia ante nosso desejo e tanto melhor será para vós, que não saíreis do vosso descanso.

Desviado d'este caminho, o melhor que tendes a seguir, padecereis o que vossa imaginação não chega a comprehender.

Mas El-rei sentia-se seguro com a promessa do Conde e já respondia com desconcertadas palavras, quando entraram na camara os outros conselheiros de estado que estavam juntos n'uma sala proxima.

-- Saí!... Saí!... gritou-lhes El-rei.

E queriam os mais velhos falar e El-rei não os attendia.

-- Tudo me querem roubar!... Ladrões!... Quadrilha de ladrões!... O Infante!... O Infante!... O meu Pedro é comvosco!... Vós lhe déstes o veneno a beber!... Canalhas!... Ladrões!

Deixou caír a cabeça sobre a almofada, mordendo os punhos.

Resolveram os fidalgos que fosse o Duque de Cadaval dar conta ao Infante do malôgro da diligencia.

Entrou o Duque na Côrte Real e encontrou D. Pedro rodeado pelos seus mais intimos companheiros, muita nobreza, o juiz do povo e seu secretario. Deu conta do que passára e do desabrimento com que fôra recebido.

-- Não haverá V. Alteza maneira de acudir ao aperto do reino, disse D. Rodrigo de Menezes, sem a desgraça da reclusão de El-rei.

O Infante olhou em volta. Nenhum mostrava querer oppôr-se á proposta do governador de sua casa.

-- Outro meio não haverá? perguntou.

Todos se calavam

-- Temo a censura maliciosa dos homens, continuou D. Pedro, que hão de vêr ambições onde só me leva, de coração esmagado, a salvação d'estes reinos. Ensinae-me outra maneira de os salvarmos, se a sabeis, que eu vos juro mais contente seguirei o novo caminho. Falae, peço-vos.

O silencio foi curto; quebrou-o outra vez D. Rodrigo de Menezes.

-- Toda a diligencia fez V. Alteza em fervoroso zelo para reduzir seu irmão a decorosa e amigavel correspondencia. Meditae, senhor, na insufficiencia de S. Majestade, na impossibilidade de ter successão, nas injustas operações que tantas ha executado, na escandalosa reclusão da Rainha, na confusão do governo, nas negociações dos castelhanos. São fieis portuguezes que vos imploram. V. Alteza, não só póde, mas é obrigado no fôro de sua consciencia, a tomar posse como immediato successor de El-rei do governo d'esta monarchia que só de V. Alteza espera toda salvação.

E como o Infante ainda parecesse hesitar, D. Rodrigo accrescentou:

-- São d'este mesmo parecer os maiores letrados com quem hei consultado este negocio gravissimo.

Eram tres horas de quinta feira, vinte e tres de novembro, quando o Infante saíu da Côrte Real acompanhado da maior parte da nobreza do Lisboa, do senado da camara e casa dos vinte e quatro e muita gento do povo que toda ali se juntára mal corrêra em Lisboa o boato que o conselho de estado entrára na camara de El-rei sem ordem sua.

Ei-rei scismava porque tardaria tanto o Conde, mas confiava n'elle. Antes preso na peor masmorra da torre de Belem que renunciar ao poder como lh'o exigiam.

Apeou-se o Infante de sua carroça no pateo da capella.

Vieram recebel-o os conselheiros de Estado.

O Infante subiu aos quartos de El rei. Mostrava-se resoluto e de severa catadura.

Entraram outra vez na camara os conselheiros, e, como El-rei desabridamente resistisse a todas as instancias, deu ordem o Infante para que a porta lhe cerrassem pelo lado do fóra e que a mesma diligencia se fizesse com as mais por onde o irmão pudesse tentar fugir.

Acudiram ao rumor alguns moços da camara e homens da patrulha baixa, que, logo, medrosos retiraram.

O povo no Terreiro continuava em grande vozearia. Accomodou-o o juiz do povo que lhe falou d'uma das janellas do palacio.

-- Filhos! disse Antonio de Belem. Demos graças a Deus que tudo o que imaginavamos funesto saíu ditoso. S. Majestade mandou chamar S. Alteza para tratar com elle amizade e esta se acha firmada com tanta segurança, que lhe entrega desde já o governo do reino, pois quer descançar do trabalho que tem tido, conhecendo que é mais seguro fiar-se d'um irmão desinteressado que de um vassallo dependente.

Ficou o povo satisfeito, pois que já, conforme os partidos a que pertenciam, uns lamentavam a desgraça de El-rei que julgavam morto, outros falavam em largar fogo ao paço.

Ouviam-se n'uma das portas interiores as pancadas que El-rei lhe dava com um bacamarte.

Mandou o Infante ao secretario Antonio de Cavide que levasse El-rei a assignar a renuncia, que era do theor seguinte: «El-rei, Nosso Senhor, tendo respeito ao estado em que o reino se acha e ao que lhe representou o conselho de estado e a outras muitas causas e razões que a isso o obrigaram, de seu motu proprio, poder real e absoluto, ha por bem fazer desistencia d'estes seus reinos, assim e da maneira que os possue, de hoje em diante para todo sempre, em a pessoa do Senhor Infante D. Pedro, seu irmão, e em seus legitimos descendentes, com declaração que do melhor parado das rendas d'elles reserva cem mil cruzados de renda em cada um anno, dos quaes poderá testar por tempo de dez annos, e outro sim reserva a casa de Bragança com todas suas pertenças. E, em fé e verdade de S. Majestade assim o mandar cumprir e guardar, me mandou fazer este que firmou. Antonio Cavide o fez em Lisboa, a 23 de novembro de 1667.

Entrou Antonio Cavide a falar com El-rei e entretanto os fidalgos que estavam juntos ao lado do Infante estranhavam a ausencia do Conde da Torre, a quem D. Pedro mandára recado que viesse ajudal-o na importante diligencia.

D. Rodrigo de Menezes expunha em voz alta quaes as razões que haviam imperado no animo do Infante para aquelle passo que tanto lhe custára a seu coração amantissimo: a incapacidade de El-rei para o governo da monarchia, o abuso do governo que tanta vez degenerara em tyrannico, a dissipação dos bens e da fazenda real.

Alguns mais lisongeiros já aventavam a ideia de acclamar o Infante, dando-lhe a posse da corôa. Mas D. Rodrigo oppunha-se com excellentes razões; nunca tal consentiria o bom coração de S. Alteza.

Entretanto El-rei não firmou o papel que Antonio de Cavide lhe apresentára, tinha confiança na carta que recebêra; nunca daria ao irmão direitos por que havia de pugnar em favor do filho.

O filho!... O filho!... Que saudades agora o assaltavam!

Pouco e pouco foram serenando no Terreiro os rumores da plebe. Desceu a noite e El-rei não pôde pregar olho. Chamou para junto de si o Braz, que se lhe deitou aos pés, e toda a noite levou a pensar no filho. Os primeiros rumores da manhã despertaram-o de sua distraçâo.

Perguntou baixinho:

-- Ainda dormes, meu Braz?

-- Não pude, senhor. Choraveis tanto!

El-rei pegou no papel que o secretario lhe deixára.

-- Eis a renuncia. Porque vacillo em firmal-a?... Era o descanço. Alvorece o novo dia. Que maiores desgraças me trará?

Approximou-se da janella.

-- Que manhã tristissima!... E como chove!... Toda a circumferencia do paço é occupada de sentinellas e rondas dos terços!... Traidores!... Traidores!... Oh! quem me déra fugir!... Poder vingar-me!

Rangeu a porta secreta.

-- Conde! gritou El-rei com alegria.

Era effectivamente o Conde de Castel Melhor quem, disfarçado em trajes de almocreve, acabava de entrar.

-- Cumpro a minha palavra.

-- A que vens?

-- Saber se ainda sois rei.

-- Sim, preso aqui, mas rei por emquanto.

-- Cheguei a tempo.

-- Pois que hei-de fazer?

-- Fugir.

-- Fugir!

-- Conto com o exercito do Alemtejo, para onde hontem partiu um homem de confiança a prevenir os nossos amigos.

-- Quem?

-- Manuel Furtado, que pelo vosso filho tem velado dedicadamente ha muitos dias.

Não lhe era estranho aquelle nome. Lembrava-se agora. Fôra o portador da boa nova da victoria das linhas d'Elvas. Mas que lhe disséra uma vez Fr. Bernardo?

O Conde não o deixou proseguir em seu pensamento.

-- A renuncia? perguntou-lhe.

-- Eil-a. Não a assignei; contava comtigo.

O Conde passou os olhos pelo papel.

-- Cem mil cruzados annuaes, a casa de Bragança!... Hipocritas que só vos darão os ferros d'uma enxovia!

-- Senhor Deus! Senhor! exclamou El-rei com lagrimas de raiva. Fôsse eu filho d'um crime e minha mãe á nascença me houvesse partido o craneo n'uma esquina!... Para que nasci rei?

-- Para que o fosseis. Um homem fiel aguarda-me ali fóra. Mal rompe a manhã. Um barco espera-nos na praia de Xabregas. Vou dar recado que se approximem do paço os cavallos em que havemos de montar. E' preciso um disfarce, uma capa...

-- Tenho apenas este meu fato.

O Conde reparou no Braz.

-- Este desgraçado me dará o seu.

-- Mas... disse El-rei. Depois a vingança...

O maluco percebeu o risco a que ia expôr-se. Passou-lhe um riso pela bocca disforme.

-- Ficarás aqui. Entra n'aquelle quarto e com o manto e o chapeu de El-rei passa ás vezes a furto pela janella. Assim salvarás quem um dia te salvou.

El-rei e o Braz trocaram as capas.

-- Infeliz patria! disse o Conde. Estás nas mãos d'este maluco!

Dirigiu-se a El-rei.

-- Animo, senhor! Escondei-vos ali atraz d'este biombo, tapae o corpo e o rosto n'esse manto esfarrapado.

O Braz entrou para o quarto interior.

-- Deus vos proteja! disse El-rei.

-- Coragem! recommendou-lhe o Conde.

E tornou a saír.

Instantes depois, entravam o Infante, o Duque de Cadaval, o Marquez de Marialva e o Marquez de Cascaes.

O Duque entreabriu a porta do quarto para onde o Braz entrára disfarçado.

-- Eil-o no quarto, disse.

E correu-lhe o fecho.

-- Vêde ali, Marquez, ordenou o Infante ao Marquez de Cascaes, apontando para o biombo.

-- O maluco dos cães a dormir como um porco, respondeu elle. Deus abençoe o desgraçado.

-- Dorme! Melhor, disse o Infante. Não perceberá...

Cabisbaixo, não terminou a phrase. O Duque percebeu que um remorso começava a roel-o...

O mesmo cuidára D. Rodrigo e, receando um desanimo, corrêra, noite fechada ainda, ao convento da Esperança a avisar a Rainha.

-- Vamos, senhor, disse o Duque de Cadaval a D. Pedro. Novamente tentemos algum esforço com El-rei. Hoje devemos ao povo de Lisboa dar-lhe a boa nova.

Dirigia-se o Infante para o quarto interior, quando D. Rodrigo entrou açodado.

-- Senhor, uma dama com o rosto encoberto em véo densissimo deseja falar a V. Alteza.

-- A taes horas! exclamou o Infante.

-- Vem de parte da Rainha.

-- Da Rainha!

-- Decerto razões bem graves... disse o Marquez de Marialva.

-- Que entre. E vós deixae-me só.

D. Rodrigo voltou acompanhado pela senhora que annunciára. Curvou-se e saiu com os mais fidalgos.

-- Que me quereis? perguntou o Infante.

-- Dar-vos a audacia que vos falta, respondeu ella, arrancando o véo.

-- Isabel! exclamou D. Pedro, mal podendo articular o nome. E ousastes...

-- Sim, ousei, porque soube que ainda duvidaveis. Ah! se soubesseis o que hei passado no convento, o que passei n'essas ruas!... Um ebrio quiz insultar-me e atirou-me com o meu nome ás faces!

-- Conheceu-vos?

-- Não: é o meu nome que anda na lama; atiram-o ás mulheres perdidas! Já não sou rainha e quero sêl-o; não sou esposa e vosso amor não é bastante para vos dar a audacia que de vós requeiro.

-- São remorsos... São remorsos...

-- Pois bem, eu só, fraca mulher, terei bastante vigor para sacudir o rei do seu throno e pôr no throno o meu amante!

-- Isabel! gritou D. Pedro.

Ella deitou-lhe os braços ao pescoço.

Ouviu-se um grito de angustia.

-- Pedro!... Irmão!

O Infante recuou cheio de terror, como ante uma visão vingadôra

Era El-rei que estava em frente d'elle, com o fato esfarrapado com que se disfarçára, os cabellos em pé, os olhos esgazeados.

-- Sêde malditos!... malditos!... Caim! Infame Caim!... Ali me rasguei todo, lacerei com a dôr todas as minhas carnes!... Olha para as minhas unhas; é sangue meu, egual ao teu sangue!

Voltou-se para a mulher e ella estremeceu e gritou para o Infante:

-- Defendei-me do insulto!

D. Pedro levou mão á espada.

El-rei descobriu o peito.

-- Fere! disse-lhe. Com uma só cutilada farás menos bestial o teu incesto! O meu Pedro!... O meu irmão!

-- Cobarde! disse a Rainha para o Infante, vendo-lhe desmaiar a côr. Quem tendes hoje, continuou dirigindo-se para El-rei, que no throno vos sustenha?

-- Eu, senhora! disse o Conde de Caatei Melhor voltando a apparecer á porta secreta por onde saíra.

-- O Conde! exclamou ella refugiando-se junto do Infante.

O Conde abriu a porta do quarto onde sabia que o Braz estava occulto; chamou-o.

-- Braz!

-- Infame! disse a Rainha. Não sabeis...

-- Sei que ao menor grito vos metterei uma bala nos miolos.

Pôz a mão no hombro de Braz.

-- Escuta. Damnou-se um dia um dos teus cães. Lembraste? Tinha os olhos raiados de sangue e as guellas cheias de baba. Até contra o dono arreganhava o dente. Pegaste n'uma pistola e metteste-lhe uma bala na orelha.

-- O Barbaças, respondeu o Braz.

-- Emquanto elle os sustem, temos tempo de sobra para nos pôrmos longe de qualquer perseguição, disse o Conde a El-rei.

E, estendendo uma pistola ao Braz, continuou:

-- Tens ahi dois cães que estão damnados. Se gritarem, desfecha!

De repente, sentiu que da mão lhe arrancavam a arma. Voltou-se; deu com os olhos em Simão Peres, que, atravez do sombrio corredor, lhe seguira os passos.

-- Canalha! gritou.

Simão Peres voltou á porta e chamou em alta voz:

-- Olá, soldados!

Um grupo de soldados cercou immediatamente o Conde de Castel Melhor.

-- Mais uma traição! exclamou El-rei tristemente.

-- O verme é pelo tigre! disse o Conde.

-- Senhor Conde, insultaes-me, respondeu Simão Peres insolentemente. Não torneis a contar com o meu modesto amparo.

Dirigiu-se ao Infante.

-- Deponho a minha espada aos pés de V. Alteza; é honrada e fiel; n'ella podeis confiar. Passei noites inquieto, ao frio e á chuva, vigiando a entrada da porta secreta. Não foi debalde que á morte me arrisquei.

-- Depressa, ponde o véo, disse o Infante baixo á Rainha.

E para Simão Peres:

-- Eu saberei pagar-te.

Foi á porta por onde os fidalgos haviam saído.

-- Senhores, vinde!

Foi grande o espanto em todos elles.

-- O Conde! exclamaram.

Mas D. Pedro socegou-os com um gesto.

-- Duque, acompanhae esta senhora.

E todos se curvaram quando ella saíu.

O Infante continuou, apontando para Simão Peres:

-- Tudo era perdido, se não fôra a prudencia e o valor d'este homem. Vosso nome?

-- Simão Peres.

-- De mulheres vivia, disse El-rei; vive agora de traições.

-- Eu vos perdoo como bom christão, senhor, respondeu o rufião.

E dirigindo-se outra vez ao Infante:

-- Uma só recompensa imploro de V. Alteza: dae-me a guarda de El-rei, que eu vos prometto, senhor, saberei guardal-o.

E poz a mão sobre o hombro de D. Affonso.

-- Infame, atreves-te a tocar-me! exclamou este.

Então o Braz correu sobre Simão Peres.

-- Cão damnado!

E enterrou-lhe a faca no ventre.

Simão Peres caíu morto.

Os soldados deitaram mão ao Braz.

E El-rei assignou a renuncia.

-- Eis a renuncia, irmão. Deus te perdoe. Só duas condições te imponho. Concederás a vida ao Braz e a liberdade ao Conde.

-- Acceito, respondeu D. Pedro.

-- Sois perdido! exclamou o Castel Melhor.

O Infante escrevia.

-- Eis o salvo-conducto, disse para o Conde.

-- Vou de lucto, senhor, disse este beijando a mão de El-rei, de lucto por vós e pela patria.

El-rei chorava.

-- Deus te assista, respondeu-lhe.

E o Conde saíu pelo caminho da porta secreta.

Era o Terreiro outra vez cheio de povo, cujo murmurio chegava aos quartos reaes.

Disse D. Rodrigo ao Infante:

-- Escutae, senhor, aquelles rumores. E' o povo leal de Lisboa que vive em cuidados. Permitti que lhe dê a boa nova.

-- Sim... mas antes... Tendes amigos, disse para El-rei; escolhei aquelles que desejaes para creados.

D. Affonso relanceou em volta o olhar tristissimo.

-- Quero este, disse apontando para o Braz, que se pôz de joelhos a beijar-lhe a mão.

D. Rodrigo levou comsigo o Infante. O Marquez de Cascaes dizia tristemente ao Marquez de Marialva:

-- Desgraçado rei! Pregáram-lhe boa peça!

D'ali a pouco ouvia-se o povo aos vivas no Terreiro e El-rei contemplava o cadaver de Simão Peres. Repicavam os sinos nas egrejas mais proximas.

-- Não sei o que sinto em mim, disse El-rei. Nunca assim me pareceu ter a alma tão socegada! Tudo é trevas para o futuro, trevas em que dormirei. Parece que a mão d'um anjo saccou da minh'alma as ruins paixões!... Senhor da luz, Senhor das trevas, valei-me!

Olhou mais attento para o cadaver.

-- Coitado do Simão Peres!... Braz resa por elle, resa commigo, para que não venham os phantasmas apoquentar-te o somno.

E ajoelharam os dois, emquanto o povo gritava lá fóra e os sinos repicavam.

CAPITULO XIX

O convertido

Não perguntava Fr. Bernardo porque havia Deus de castigal-o assim, que bem sabia quaes haviam sido suas culpas.

Seu filho!... Era de seu filho aquelle corpinho morto, côr de cêra, cujo olhar assustado se fixára n'elle no ultimo instante, a cujas convulsões assistira e provocára talvez!

Seu filho!... Nunca de tal se lembrára, e com o esquecimento da culpa Deus o castigára pelo crime!

-- Filho!... Filho!... dizia.

Havia tanto que não chorava e molhavam agora o berço suas lagrimas, como as de Maria da Boa Hora, que chorara tanto.

-- Meu Deus! dizia ella.

E elle repetia:

-- Meu Deus!

Queria agora dar a vida por dar vida ao filho, morrer por expiação de tanto mal que havia feito, morrer de rastos a pedir perdão.

E aquelle amor com que encetava nm novo caminho de desgraça, aquelle amor, que tão tarde penetrára em seu peito, seria o companheiro inseparavel de seu arrependimento.

Ainda uma vez sentiu rancôr contra Maria da Boa Hora.

-- Porque me não disseste...? perguntou dolorosamente.

Ella, porém, não lhe respondeu, suffocada pelos soluços.

E elle mais nada disse, e com os olhos na creancinha, a que ninguem fechára os olhos, batendo no peito, dizia:

-- Perdão!... Perdão!

Tudo esquecêra, politica e traições e o que ali o trouxera.

Abriu-se a porta; Pero Rolão entrou, e os dois olharam para elle, com um espanto no olhar, ambos entregues á sua dôr.

Mas o tenente pasmou ao dar ali com aquelle homem.

-- Quem és tu?

Elle não deu resposta e Pero Rolão reparou na creancinha morta.

-- Morreu?

Então, ouvindo o som d'aquella palavra funebre, pronunciada por um estranho, comprehendeu Maria da Boa Hora todo o horror de seu soffrimento, que a torturava n'um pesadelo menos horrivel que a realidade.

-- Morreu! repetiu.

E não podia convencer-se, e o frade, junto d'ella, repetia:

-- Morreu!... Morreu!... Senhor!... Senhor!...

Pero Rolão ajudou Maria da Boa Hora a erguer-se, sentou-a n'uma cadeira, consolou-a com palavras ternas, chamou-a á vida com o recado de Manuel Furtado.

-- Manuel!... repetiu ella.

E de mãos postas, supplicando Pero Rolão:

-- Nâo me deixes só, não?... Não me deixes sósinha com aquelle homem!

Fr. Bernardo ouviu-a. Approximou-se d'ella, ajoelhou.

-- Perdôa! disse-lhe. Perdôa!

E só então reconheceu o tenente, caíu em si, lembrou-se de D. Anna de Portugal estirada ali fóra, e deu um grito.

-- Acudi-lhe! disse apontando para a porta.

Arrastou comsigo o tenente.

-- Vinde!... Vinde!

D. Anna continuava deitada no chão muito frio, na mesma posição em que a deixára o frade.

-- Ajudae-me.

Ergueu-a pelos braços.

-- E' D. Anna de Portugal.

Pero Rolão tremia tanto que mal podia com o corpo franzino e delicado da noiva do amigo.

Maria da Boa Hora reconheceu-a. Lembrou-se da traição que lhe armára o frade e de como ella descobrira em Evora os novos amores do amante.

Egual cilada seria agora?... Mas aquelle anjo que culpas tinha para tamanho castigo?

-- Está enregelada, talvez morta...

E o frade procurou um pouco de matto para deitar no lume, emquanto Maria da Boa Hora cuidava sonhar e, humilde, baixava a cabeça para maior castigo que lhe enviasse Deus.

Outra vez agarrada ao bergo, chorava, chorava, lamentava-se em voz alta, dizia suas culpas, chamava o filho...

E os tres eram como doidos.

Até Fr. Bernardo contou a historia toda do que lhe succedêra e do crime que planeára. Contou como seguira D. Anna e a vira desmaiada e a deixára, pouco lhe importando sua morte. E, sempre com lagrimas de dôr e angustiosas exclamações, lagrimas e palavras eram identicas ás da pobre mãe que soluçava.

Pero Rolão encostára o ouvido ao peito de Anninhas e sentira-lhe bater o coração, mas tão fraquinho que lhe pôz mêdo.

O lume já crepitava na lareira e uma leve côr começou tingindo as faces da desmaiada. Pero Rolão despira a capa, deitára-lh'a sobre o corpo enregelado.

-- Mandae-me, senhor, disse Fr. Bernardo. Tende confiança em mim. Juro-vos por Deus, que tanto se desviou d'um miseravel peccador e cuja justiça agora vi de tão perto e me feriu tão fundo, juro-vos, senhor, que para principio de meu resgate cumprirei fielmente vossas ordens. Se algum bem puder fazer a quem já fiz tamanho mal, ainda poderei crêr na misericordia de Deus.

-- Correi a Lisboa, ordenou Pero Rolão. Procurae Manuel Furtado e avisae-o do que se passa...

Manuel!... Manuel!... gemeu Maria da Boa Hora.

Pero Rolão não desfitava seus olhos do rosto de Anninhas, que lhe pareceu vêr estremecer.

Continuou:

-- Se não derdes com elle, procnrae D. Pedro de Almeida, contae-lhe em que estado vim achar sua irmã.

Fr. Bernardo approximou-se do cadaverzinho, ajoelhou, chegou os labios ás mãositas em que as unhas começavam arroxando. Como desejaria beijal-as! Labios que tanto haviam mentido e praguejado... Não se atreveu.

-- Anjo do céo, roga a Deus por mim!

Saíu quando já vinha a romper a manhã tristissima de novembro. O vento soprava do sul; ajudava-o na travessia.

O barqueiro olhava para elle. Não era aquelle o homem que trouxera. Como voltava alquebrado, d'olhos sumidos, tremulo como um velho, esqualido como quem passou annos de febres e de tormentos!

Quando Fr. Bernardo chegou a Lisboa, já o Terreiro era cheio de gente. Ouviu insultos e chascos de vadios e regateiras que o reconheceram. E cabisbaixo sob os improperios, com maior nojo de si mesmo do que o nojo que causava, não se atreveu a ir ao Paço buscar o cavallo, foi nas muletas até o largo do Salvador.

Bateu á porta. Lourença não lh'a queria abrir, e elle disse humildemente:

-- Abri-me, que outro sou, e não já quem por desgraça d'esta casa conhecestes. Assombrou-me Deus com um raio de sua colera. Abri-me, acolhei-me em meu caminho do arrependimento. Por Manuel Furtado vol-o poço e por vós e por D. Anna de Portugal, e tambem por aquella a quem perdi.

E era tão sincera a dôr de suas palavras e tão fundos eram em sua face os sulcos das lagrimas, que Lourença commoveu-se.

Manuel Furtado não estava em casa, nem Lourença tivera novas d'elle. Que tinha havido?

Fr. Bernardo contou-lhe a tragedia d'aquella noite e como deixára D. Anna ás portas da morte.

Então appareceu a Brizida, e Lourença olhando para ella, vendo-lhe nas feições signaes da maior tortura, caíu-lhe nos braços a chorar.

-- Sabeis d'ella?

-- Sei.

-- E' viva?

-- Deus o queira!

-- Que sabeis ? Foi D. Violante em lagrimas, foi D. João por entre gritos, em que pede a Deus que o leve d'este mundo, que me mandaram ter comvosco. Que sabeis, dizei-me, para consolal-os, para dar-lhes uma esperança, para de meus amos affastar a morte!

-- Ide, ido com ella!... disse Fr. Bernardo. Vou pôr minha cabeça nas lages d'uma egreja até ouvir a voz de Deus a dizer que me perdoou.

Aa duas velhinhas encaminharam-se para o palacio de D. João d'Almeida, onde na mais pungente agonia todos haviam passado aquella noite.

Desde que deram pela falta da filha, uma dolorosa suspeita se lhes apoderára do coração; mas nem sequer um e outro se atreviam a exprimil-a. Se iria ter com Manuel Furtado?... Como acredital-o?... Saíria, levada por um impulso do coração que os olhos ternissimos dos paes adivinhavam que tanto soffria... A plebe andava agitada... Um mau encontro talvez... Mas que o coração da filha a levasse a traír um dever, não, tal não podiam, não queriam acreditar.

E os creados toda a noite andaram a procural-a e, um a um, voltaram descorçoados.

Foi só de manhã que se atreveram a mandar a Brizida saber novas, emquanto D. Pedro d'Almeida se encaminhava para a torre de Belem com uma carta de D. Rodrigo d'Almeida ao governador em que lhe pedia o deixasse falar com Pero Rolão.

O governador, que tão prompto se mostrára para agradar ao Conde de Castel Melhor, estimou poder affirmar a D. Pedro que era muito particularmente gostoso ser amavel com D. Rodrigo.

Os tempos corriam cheios de enygmas amedrontadores e muita vez o boato da noite era desmentido mal o sol nascia. Pé n'um partido, pé no outro, assim andavam muitos.

D. Pedro explicou o motivo que ali o trouxera, e o governador, calando prudentemente o que se referia a Manuel Furtado para não ter que falar do Conde, contou como Pero Rolão fôra na vespera posto em liberdade, em virtude da ordem que lhe trouxera a Calcanhares.

E, para que não restasse a D. Pedro d'Almeida duvida alguma sobre as sympathias que lhe merecia D. Rodrigo de Menezes e seus amigos, disse-lhe como prudentemente conservava entre dulcissimos ferros a amante de El-rei.

-- V. Sr.ª comprehende que certo mysterio envolve este caso... A amante de El-rei a taes horas na torre!... Podia ser traição armada contra o pobre mancebo, official valente, que é dos vossos.

Mas já D. Pedro o não ouvia. Preoccupado, montára outra vez, e, dirigindo ao velho militar um curto agradecimento, metteu esporas ao cavallo, caminho de Lisboa.

O governador pensou:

-- Andei bem, que bem estou com o Castel Melhor e com a gente do Infante.

D. Pedro soffria pensando que alguma relação poderia haver entre o desapparecimento da irmã e aquella tão extraordinaria missão da Calcanhares, alta noite, para soltar o amigo de Manuel Furtado. Repugnava-lhe indagal-o, pronunciar o nome de Anninhas perante aquella mulher.

Chegou a seu palacio e encontrou a Brizida lavada em lagrimas, contando-lhe o que tinha sabido e como D. João e D. Violante haviam partido para a Trafaria, na supposição de que seria verdade o que o frade, entre muitas lagrimas de arrependimento, havia narrado a Lourença.

-- E essa mulher?

-- Voltou para casa.

Talvez lá estivesse Manuel Furtado ou Pero Rolão.

Deu ordem a um creado que fôsse avisar o Conde da Torre do que se passava e que era força procurar os dois amigos.

Correu ao largo do Salvador, onde a Lourença apenas repetiu o que soubéra pelo frade. Seguiu a toda a brida para o Terreiro, onde ouviu o povo agitado e, por phrases entrecortadas, incompletas, teve noticia das decisões do Infante. Mas que lhe importavam n'aquella hora a desgraça de El-rei e o arrojo de D. Pedro para assumir o mando. Metteu-se n'uma falua, atravessou o Tejo. Dirigiu-se a casa de Maria da Boa Hora.

Havia poucos minutos tinham á chegado D. João d'Almeida e a mulher. Com que anciedade haviam subido o atalho estreito, que desde a praia trepava até o casebre pobre onde Manuel Furtado escondêra a amante de El-rei e seu filhinho! Amparava-se D. Violante ao braço do marido, ainda que mal nos joelhos tremulos podia elle suster-se.

Nem palavra um a outro disseram pelo caminho; eguaes n'um e n'outro eram as lagrimas e o bater dos corações.

Entraram. Sentadas, uma ao lado da outra, abraçadas em frente do cadaver, viram as duas mulheres. Anninhas reclinára a cabeça no seio de Maria da Boa Hora e as lagrimas da mãe desgraçada molhavam-lhe os cabellos loiros. Ao fundo, Pero Rolão e Pantaleão Gonçalves, de pé, mudos, comtemplavam a tristeza do quadro.

-- Filha!... gritou D. Violante.

Anninhas ergueu para ella os olhos; quiz estender-lhe os braços e não poude.

D. João ficára no limiar da porta, a voz embaraçava-se-lhe na garganta; chorava de rijo. Pero Rolão correu a amparal-o,

-- Socegue V. Ex.ª Sua filha é salva.

E assim lhe deu animo para caminhar mais uns passos.

-- Sabia que virieis, disse Anninhas a D. Violante, que lhe pegou nas mãos e a achou a arder em febre.

-- Porque nos quizeste matar? Que mal te haviamos feito? Filha! minha filha!

-- Não faleis aqui de morte, disse D. Anna. Tende compaixão da pobre mãe. Ambas soffremos egualmente, uma por culpa d'outra. Ella é hoje de nós duas a mais desgraçada.

-- Porque mais culpada fui, disse Maria da Boa Hora. Senhora! Senhora, perdoae-me! A pouca vida que me Deus ainda queira dar será para expiar minhas culpas contra vós!

E alliviou com um grito a alma despedaçada.

-- Filho!... Meu filho!

Depois ergueu-se. Foi a um quarto interior buscar uma canastrinha; cobriu-a com um lençol, deitou n'ella a creança. Haviam-se-lhe nos olhos seccado as lagrimas. Saíu e voltou com uma mão-cheia de flôres que deitou sobre a brancura do linho. Beijou o cadaver; cobriu-o.

Pero Rolão tremia; punha-lhe mêdo aquella augusta serenidade.

-- Não podeis, senhora, saír d'aqui no estado em que vos achaes, que não tendes força para a jornada. Ao pé de vós, não sou digna de vos servir. Ainda uma vez, perdão.

Maria da Boa Hora ajoelhou.

Devagarinho, Anninhas baixou a cabeça, beijou-a nos cabellos, fechou os olhos como em dolorosa recordação.

Maria da Boa Hora olhou para Pantaleão Gonçalves e só com o olhar ordenou-lhe que a seguisse. Ergueu a canastrinha com o cadaver. Elle amparou-a. Tomaram o caminho da egreja.

D. Pedro chegava n'esse momento. Era pois verdade quanto á Lourença dissera o rufião d'El-rei, o indigno frade expulso da sua ordem!

Entretanto, n'uma egreja, tambem Fr. Bernardo batia no peito, e, como Maria da Boa Hora, chorava desesperadamente a morte do filho, que assim lhe accordára fibras do coração que já mortas cuidava.

Ali se quedou o dia inteiro, ali grande parte da noite, sobre a fria lage, morto de fome e de cançasso que não sentia, porque era toda sua vida a dôr sómente da sua alma.

Não via ante seus olhos senão o ultimo olhar espavorido da creancinha; não tinha em seus ouvidos senão aquellas palavras terriveis: «Era teu filho!»

De tanto o mortificar com as unhas, tinha o peito em sangue.

-- Quem amou o meu filho, não fui eu, dizia; outros foram, e eu matei-o!

E lembrou-se dos cuidados que a creancinha déra ao Conde de Castel Melhor. Lembrou-se de como o vira em casa de Manuel Furtado.

Se algum perigo correria agora?

Quiz erguêr-se e não podia. Com um grito de dôr conseguiu dobrar um joelho.

Era quasi madrugada. O sineiro entrou para tocar á missa das almas e pasmou de vêr um homem na egreja.

-- Ajudae-me, disse-lhe Fr. Bernardo.

Poz-se de pé. Agarrou nas muletas. Caminhou até o paço.

-- Olá! disse-lhe um homem. Tu. me encaminharás ou mato-te.

-- Bemdito seja Deus! exclamou o frade, reconhecendo-lhe a voz. Senhor Conde, escutae.

E, mais uma vez, contou o que se passára.

-- A creança é morta?

-- E' morto o meu filho!

-- Teu filho!

-- Perdoae-mee, senhor!... Dizei o que hei de fazer, estou prompto a obedecer-vos, a soffrer, a reparar meu crime.

-- Encaminha-me á porta secreta, tu que demais conheceste esses caminhos. Um rufião esperava.

-- Por aqui, senhor.

E, quando Simão Peres acudiu com os soldados, atravessou com uma estocada o corpo de Fr. Bernardo.

Horas depois levavam o moribundo para o convento da Penha de França dos agostinhos descalços.

CAPITULO XX

Dia de festa

Segunda-feira de Paschoa, 2 de abril, como estavam adereçadas as janellas, engalanadas as ruas que levavam do convento da Esperança á quinta dos reis em Alcantara! Repicavam os sinos, estoiravam nos ares os foguetes, estrugiam musicas alegres. Por todo o trajecto que deviam de seguir os coches, apinhava-se o povo que queria ver a desposada do Principe D. Pedro, a que fôra rainha, agora apenas princeza, D. Maria Francisca de Saboya.

O Principe soubera conquistar as boas graças do povo.

Pela primeira vez em 27 de janeiro, perto de dois mezes depois da renuncia de El-rei, tendo chegado a Lisboa os procuradores de côrtes, se juntaram os tres estados do reino na grande sala dos tudescos e ahi fôra o Infante jurado principe.

Logo n'uma das primeiras assembleias do povo, em S. Francisco da Cidade, Pedro Fernandes Monteiro expôz que deviam a D. Pedro acclamal-o como rei d'estes reinos e o povo deu fim ao acto com vivas. E como não fossem do mesmo parecer a Nobreza e o Ecclesiastico, ameaçaram que o acclamariam o primeiro dia que saísse em publico.

Foi difficil soffrear-lhe a ancia com que mostrava sua confiança no irmão do rei encarcerado, que de seus quartos no palacio real ouviria talvez uns echos das musicas festivas e veria no céo azul, rutilante, da primavera, o fumo branco da polvora das constantes girandolas.

Em que meditaria o desgraçado? Haviam-lhe roubado o septro, roubado a liberdade, roubavam-lhe agora a mulher!

Uma ultima carta do Conde de Castel Melhor annunciara-lhe a morte do filho. Fôra feliz; antes anjo entre os anjos do céo do que rei entre os homens.

Tivera ainda umas furias de que voltára a si arrependido. Levava agora os dias sem dar palavra.

Nem dera attenção ao quo lhe haviam contado das pazes assignadas com Castella.

Pois foram o maior motivo de alegria para o reino.

No dia 9 de janeiro chegara a Badajoz um enviado de Castella para assentar pazes; mandara pedir licença para entrar em Portugal e trouxéra cartas para D. Gaspar de Haro Gusman y Aragon, prisioneiro no castello de S. Jorge, com um treslado das instrucções das pazes, pelas quaes o reino ficaria como era no tempo de El-rei D. Sebastião.

Oppunha-se o assistente de França, abbade de Saint Romain, a que as pazes se celebrassem sem que fosse ouvido o parecer de El-rei Christianissimo. Entretanto para assental-as chegava o vice-almirante de Inglaterra, Conde de Sandwich. E como, saíndo um dia S. Alteza do paço, acompanhado por toda a nobreza para ir a Santa Engracia ouvir um sermão, o povo o acclamasse com vivas e vozes de pazes, despachou-se um aviso a França que mandasse plenipotenciarios a toda a pressa. E' que o povo tumultuariamente, dizia-se, accelerava aquella resolução e não era possivel resistir-lhe. Já o juiz do povo avisára o abbade francez de que, se nas pazes houvesse demora ou desvio, nào lhe sobejariam forças para livrar-lhe a casa d'um incendio.

Terça-feira, 14 de fevereiro, foi assignado o tratado, e, apenas sabida a nova, tudo foram expansoes de jubilo que os de Madrid imitaram expondo o Senhor em todas as egrejas.

O processo de divorcio movido pela Rainha ía correndo, entretando; mas o povo tinha a attenção distraída pelas novas que lhe davam, cada manhã melhores. Levantar-se-íam as decimas e todos mais tributos que por motivo da guerra se haviam ordenado; não mais haveria governadores, nem cavallaria, nem infantaria paga.

Sabbado, vespera de Ramos, deu o cabido a sentença de annullação do casamento de Affonso VI com D. Maria Francisca de Saboya. Dizia-se que tinham enganado ardilosamente El-rei, saccando-lhe uma confissão, que muitos dos juizes julgavam indispensavel, persuadindo-o de que obteria com ella a liberdade. Dois dias depois, sabia-se que Luiz de Verju trouxera de França, o breve de dispensação que permittia o casamento do Principe com sua cunhada e que fôra concedido pelo Cardeal Duque de Vandoma, legado a latere do Summo Pontifice junto de El-rei Luiz XIV.

Mandou a Rainha declarar a cada um dos tres estados que, visto a sentença dada em seu favor, determinára voltar para França, o que não podia sem restituição de seu dote.

Então os que mais de perto haviam ajudado o Infante em todas suas tramas mostraram-lhe quanto convinha á conservação do reino tratar de seu casamento com tão excelsa princeza, adornada de tantas e tão singulares virtudes. Mandou o principe encommendar a Deus pelas pessoas de vida exemplar o acerto d'aquella resolução, consultou letrados, ministros e o conselho de estado. A Rainha, resignada na vontade de Deus, obrigada do affecto que devia aos portuguezes e de tão ponderosas razões politicas como lhe apresentavam, declarou sujeitar-se ao que parecesse mais justificado e mais util ao bem commum.

Que dias alegres haviam sido aquelles em que foram em todo o reino publicadas as pazes com Castella! Como favoravel auspicio a promettel-as mais firmes, até na vespera se havia celebrado em Lisboa um auto de fé, queimando-se alguns judeus! D. Gaspar de Haro Gusman y Aragon, nas casas em que se aposentára no Terreiro da Graça, offereceu de comer e beber a quantos quizeram aproveitar-se da sua generosidade, deu meio tostão a cada pobre que se lhe dirigiu e a quantos estavam presos por dividas até vinte mil réis livrou do carcere pagando o que deviam.

E o povo de Lisboa dava vidas, cheio de enthusiasmo, ao generoso fidalgo castelhano.

Terminára finalmente aquella longa epocha de vinte e sete annos, tão cheia de luctos e de pesares.

D. Pedro soubéra conquistar as boas graças do povo.

A Princeza saíu do convento da Esperança acompanhada por muitas senhoras e foi rompendo por entre a multidão. Era a novidade do caso que o pasmava, ou era que o entristecia o encarcerado que fôra rei e esposo d'aquella mulher e os vivas podiam acordar de sua somnolencia?

O povo calava-se.

D. Maria Francisca ía pallida, com os dentes mordendo o labio inferior.

Não ouviu um viva, não viu um rosto a sorrir-lhe... E pensou talvez que uma epocha ainda peor encetára em sua vida.

FIM DA TERCEIRA PARTE

QUARTA PARTE

O EXILIO

CAPITULO I

A Princeza

Devia de chamar-se João, se nascesse rapaz; se menina, seria Izabel.

Com que anciedade era esperado pelos paes.

Pois não serão filhos uma benção de Deus?

Então entraria n'aquelle paço uma alegria nova, esqueceriam tantas preoccupaçoes, sumir-se-íam sombras no resplendor d'um corpinho, que pae e mãe encheriam de beijos.

Como era desejada aquella hora em que se lhe ouvisse o primeiro vagido!

Todos os cortesãos cantavam cora ar satisfeito a felicidade que Deus concedêra ao reino, assegurando-lhe a successão do throno. Mas outra era a satisfação dos principes. Talvez durante momentos lhes fosse possivel aliviarem-se d'aquelle peso que brutalmente os esmagava e de que nem um a outro, se atreviam a queixar-se.

Deus abençoara-lhes o casamento. Pois que é a concessão dos filhos senão fructo da benção de Deus?

João...! Izabel...! Que lhes importava agora o que lhes Deus havia do conceder? Comtanto que seus olhos bebessem carinhos na luz d'outros olhos, que desabrochasse em seus labios um sorriso por outro creado, florescente em labios que os encantavam! Enlevo do inteiro dia, sonho de todas as noites, como deixaria o pantano de exhalar miasmas de cuja materia faz a noite as aventesmas terrificas!

El-rei continuava preso dentro do paço e os principes não dormiam, sempre em sobresaltos, cuidando escutar-lhe os gemidos que se prolongavam pelos corredores, como o ullular soturno d'um lobo ao longe.

Desejariam tiral-o d'ali, mas tinham mêdo. Lembravam-se de mandal-o para Thomar ou, ainda para mais longe, para Bragança; mas receavam que mais com descontentes se lhe reforçasse o partido. Saíu um decreto que o enviava para Peniche, consignando-lhe cincoenta mil cruzados por anno; nomearam-lhe officiaes e creados; mas logo se assentou que não convinha a resolução. Com o mesmo aperto o deixaram preso.

Quando elle se queixava em seu carcere, mentiam-lhe dizendo que assim era preciso para sua segurança, porque o povo o queria matar. E elle soltava um suspiro triste:

-- Porquê? Se nunca offendi o povo!

Mal sabia da consulta que este enviára ao Principe, pedindo-lhe liberdade para El rei, como era sua obrigação d'elle conceder-lh'a.

Não teve despacho a consulta dos povos, porque mais amofinado ficára D. Pedro com a carta recebida de sua irmã e seu cunhado, reis de Inglaterra, estranhando a insolencia com que era tratado El-rei de Portugal.

Não sabia como responder-lhes nem que razões allegar para defender sua crueldade.

A nobreza mostrava-se inquieta; o povo deixava ouvir seus murmurios. Não era coisa facil com um tratado de paz e uns dias de festa calar tantas boccas.

Um homem sobre todos o amedrontava. Por longe andava exilado; mas era ainda seu nome o mais prestigioso de todo Portugal. Quem sabia o que andaria tramando? E os dois principes em plena lua de mel, um ao lado do outro deitados, ouviam bater de susto os corações.

Logo depois da prisão de El-rei, houvera o principe noticia que o Conde de Castel Melhor se occultára no convento do Bussaco. Mandou logo que duzentos homens de cavallo o buscassem e o prendessem. Os frades o esconderam na matta a que os soldados quizeram pôr fogo; e os frades lhes disseram que ali morreriam todos queimados. Suspendeu-se a resolução. Breve nova ordem os mandou voltar com mais gente, mas ainda não deram com o Conde, que os frades esconderam sob o altar-mór.

Passaram-se mezes e o Conde escreveu de Sevilha ao Principe uma carta em qne lhe exprobava nos termos mais respeitosos as ordens dadas contra D. Affonso VI, seu rei e seu irmão.

O mêdo cresceu. De que seria capaz o Conde de Castel Melhor offendido? Era necessario prendel-o, obrigal-o a que viesse a Lisboa dar estreitas contas, condemnal-o, andar com elle ao contrario de seu procedimento, fraco no castigo a seus inimigos maiores.

Soube-se que era o Conde na côrte de Madrid, bem acolhido pela Rainha regente, muito assistido de todos os ministros. E logo em Lisboa correram boatos de que elle voltaria a occupar seu cargo de escrivão de puridade junto do Principe. E o boato foi bastante para accender invejas e odios velhos.

Então o conselho de Estado propôz que fosse o Conde citado por cartas de editos para que no praso de trinta dias viesse dar contas de como havia dispendido o dinheiro que lhe achavam carregado. Offereceu-se Simão de Vasconcellos para dar as contas que a seu irmão pediam, dessem-lhe para isso licença para vir á côrte, e provaria que innocente padecia o Conde as graves accusações de seus inimigos ferrenhos.

Mas, quando o embaixador de Portugal chegou a Madrid, o Conde, depois de conferenciar com elle, saíu d'aquella côrte.

Aonde iria? Se haveria voltado a Portugal?

Era preciso um exemplo de energia. Salvador Correia foi mandado para a torre de S. Gião, onde lhe não deixaram um só creado a seu serviço; Simão de Vasconcellos foi recolhido no forte de Outão em Setubal; para trinta leguas fóra da côrte foram desterrados 0os filhos de Salvador Correia e outros de quem o Principe havia razões de suspeitar.

O que se dizia na côrte e como se intrigava!

Uns affirmavam que as prisões se haviam effectuado por motivo de cartas apprehendidas, em que o Conde tramava com os presos a liberdade de El-rei; diziam outros que taes cartas eram falsas, forjadas por quem do Conde se temia.

O primeiro que padecêra fora o confessor de El-rei, Fr. Pedro de Sousa, tio do Conde de Castel Melhor, religioso de S. Bento, bispo eleito de Angra, que recebendo ordens de desterro, fallecêra, antes de poder cumpril-as, ferida sua alma de tamanhos golpes.

Alterou-se grandemente a côrte quando o Principe deu ordem á Condessa de Castel Melhor, que estava desterrada na villa de Pombal, para que recolhesse a Lisboa e, pouco depois, absolvia Simão de Vasconcellos de toda prisão e desterro.

Correu então pelo vulgo, e não deixou de ser acreditado entre alguns do paço, que perdoaria D. Pedro a todos os desterrados não exceptuando o Conde de Castel Melhor. O embaixador de Castella assim o haveria negociado, confiando o Principe no Conde para melhor segurar a El-rei.

Ninguem sabia em que fundava as razões do que ia dizendo. As incertezas continuavam. Os terrores constantes em que os principes viviam mudavam a cada instante suas resoluções.

Aquelles em que D. Pedro tivera maior confiança, incertos do que lhes reservariam successos que não sabiam prevêr, vendo que os não protegia o antigo valimento como desejavam, mostravam-se por vezes queixosos e desabridos.

Os primeiros que o Principe mais chamou para suas ilhargas foram os Condes de S. João e da Torre, contra os quaes nas partes mais publicas da côrte se affixaram pasquins:

Se o Principe governar

Quizer com satisfação,

Metta o S. João na Torre

E o Torre no S. Gião.

Pouco depois, estando D. Pedro a caçar em Pancas, tratou com elle o Conde da Torre para que o nomeasse secretario da puridade, pretensão a que todos se oppuzeram. E o Principe a si mesmo perguntava se apenas ambições haveriam movido o valido mais caro.

Tendo o Conde S. João aconselhado ao Principe que convocasse para guarda de sua pessoa uma companhia de cento e cincoenta cavallos, todo o povo e muita gente da côrte veio a revoltar-se dizendo que não faltariam em Lisboa latrocinios e violencias, como no tempo de El-rei. Mandou o Principe dar a cada soldado trinta cruzados para se voltar a sua casa. Offendido o Conde, porque lhe condemnavam o conselho e as occultas ambições, pediu licença para saír da côrte.

O mesmo já havia feito D. Rodrigo de Menezes, escandalisado por não confiarem d'elle o governo absoluto, tendo já havido com o Principe um primeiro arrufo por motivo do passadiço que este mandára construir ligando com o paço as casas da Côrte Real, obra cujo grande dispendio a muitos parecia escusado. Lembrára D. Rodrigo zelosamente a D. Pedro que n'aquelle mesmo paço havia habitado a Rainha mãe com suas duas filhas e com El-rei e com S. Alteza. Respondeu-lhe D. Pedro desabridamente, pelo que D. Rodrigo lhe pedira licença de retirar-se para Cascaes.

Ao Conde de S. João e a D. Rodrigo de Menezes negou o Principe a auctorisação que lhe pediam.

O velho Marquez de Cascaes não foi dos ultimos a revoltar-se. Tendo feito diligencia para que lhe fôsse restituido o governo das armas n'aquella villa, viu indeferido o memorial que entregára ao Principe e este remettêra ao conselho de estado.

Foi ao paço, e encontrando-se com D. Pedro, desembainhou a espada e disse-lhe:

-- Pois que me não serve para defender o que é de V. Alteza, mande V. Alteza dal-a a qualquer de seus lacaios.

E arremessou-lhe, colerico, a espada aos pés.

Pegou-lhe o Principe pela capa e disse-lhe:

-- Não foreis um velho tonto, mandára-vos deitar d'aquella janella abaixo!

Levaram-o para fóra os fidalgos que estavam presentes e logo a casa lho chegou um decreto ordenando-lhe que no praso de tres dias saísse da côrte e se fôsse para Porto de Moz.

Tanto não esperou o Marquez, pois que, dentro em tres horas, se poz em jornada.

Mas estava de esperanças a Princeza, e o Principe confiava em todo o poder d'uma creancinha, que em volta de seu berço havia de congregar os vassallos, trazel-os ao respeito e á obediencia, calar os odios, domar as ambições.

Em todas as egrejas mandára a Princeza fazer rogativas por seu bom successo. E até El-rei em sua prisão rogava por ella, com a esperança de que, na hora em que os sinos repicassem alegres, lhe concedesse o irmão a liberdade.

Murmurara-se muito na côrte dos amores do Infante, e muitos deitavam suas contas e maliciosmente esperavam para mais cêdo o feliz acontecimento. Passaram-se nove mezes sobre o casamento e El-rei respirou mais aliviado, menos temeroso de maior vergonha, mais impaciente.

-- Quando será?... Quando será?

Os poucos creados que o serviam e Antonio de Cavide alimentavam-lhe a esperança unica de que vivia.

Amanheceu o dia de Reis de 1669, e quando El-rei acordou, ouviu alegres repiques em todas as torres da cidade. Bateu-lhe o coração. Chamou o Braz, que fôsse logo, logo, saber que significavam aquelles signaes de regosijo. Trouxe-Ihe a nova Antonio de Cavide: a Princeza déra a este reino uma Infanta com parto muito feliz.

E El-rei disse:

-- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo!

Mandou o Principe immediatamente convidar para compadres El-rei de França, seu primo, e a Rainha de Inglaterra, sua irmã.

Foi grande a alegria na côrte. Logo de manhã se fez na capella acção de graças e prégou o padre Antonio Vieira. Durante tres noites a cidade illuminou festivamente.

Teria chegado a hora do socego? Com a creança tão linda, que parecia um anjo que do céo houvesse descido a consolal-os e a dar-lhes o perdão, com a filhinha adorada a sorrir entre elles, como era possivel que o remorso ainda falasse nas consciencias, que um gemido ainda se ouvisse vindo lá do quarto longe onde El-rei soffria?

Luiz XIV enviou embaixador que fez sua entrada no dia 9 de março e foi recebido pelo Principe na sala dos Tudescos. Fez-se o baptismo com toda a majestade.

Como eram profundamente amargurados os rostos de D. Pedro e de D. Maria Francisca!

E' que D. Catharina, Rainha de Inglaterra, recusára-se a ser madrinha da nova Princeza.

CAPITULO II

Quem teme a Deus não lhe põem mêdo os homens

Havia já muitos mezes que o Conde do Prado fôra eleito embaixador do Principe regente na côrte de Roma.

Estavam na bahia de Paço d'Arcos fundeadas as fragatas que haviam de levar o embaixador e por cabo d'ellas nomeado Francisco de Brito Freire.

Era em meados de maio. O dia fôra lindo. El-rei, do quarto onde o haviam fechado, avistava uma nesga do Tejo, e, até que a noite desceu de todo, entretivera-se olhando para as gaivotas brancas que atravessavam rapidas como pontinhos brancos a correr sobre o fundo já escuro dos montes.

Havia quasi tres mezes que a Princeza fôra baptisada. Porque não o soltavam? Que mal lhes fazia? Porque assim condemnavam sua mocidade? Porque assim o faziam soffrer maltratando-lhe os amigos? Andavam fugidos fóra do reino o Conde de Castel Melhor e Antonio de Sousa de Macedo; era encarcerado Henrique Henriques.

Já não tinha forças para queixar-se; todo se entregára nas mãos de Deus.

Entrou-lhe no quarto um padre áquella hora tâo avançada, e disse-lhe sorrindo, como quem traz uma boa nova:

-- Boa noite, senhor. Deus guarde V. Majestade.

-- Alegre vindes, padre Manuel Fernandes, disse-lhe El-rei.

-- Porque me traz o bem de V. Majestade.

-- O meu bem...!

Era entre triste e ironico o sorriso do encarcerado.

-- O meu bem...! repetiu. Annunciaes-me então a minha morte?

-- Senhor!

-- Que outro maior bem posso querer?

-- De Deus e de vosso irmão, que tanto vos quer, toda ventura deveis esperar.

-- N'um milagre de Deus ainda acreditar poderia, se lh'o merecesse.

-- E' sua misericordia infinita.

-- Quem vos manda, padre, vir ter commigo e assim dar-me uma esperança, falando-me da misericordia divina?

-- S. Alteza me envia.

-- Meu irmão!

O rosto de El-rei empallideceu; desvaneceu-se em seus olhos o clarão de alegria que os animara. Contentou-se com perguntar:

-- E que me quer o Pedro?

O padre voltou a sorrir-se.

-- Dar-vos a liberdade!

-- A...!

E nem poude repetir e palava que lhe soou aos ouvidos como estranha musica.

Cambaleou, passou a mão pela testa; arrimou-se ao Braz para não caír.

O padre continuou brandamente:

-- Ides vêr, ides vêr, senhor, como é magnanimo o coração de S. Alteza.

-- Falae, falae, depressa! exclamou El-rei impaciente.

-- Manda- vos S. Alteza perguntar se quereis ir para Almeirim, onde estareis á vossa vontade e aliviareis vossa tristeza com o entretenimento da caça tanto de vosso gosto.

El-rei não queria acreditar.

-- Padre, não sejaes cruel... Juraes-me...

-- Para quê, senhor? Da verdade do que vos affirmo podeis convencer-vos...

-- Quando?

-- Assim que o ordene V. Majestade.

-- Já?

-- Já.

-- N'esta mesma hora?

-- Quando V. Majestade o leve em gosto.

-- Pois seja logo.

-- Seja, disse o padre. Prepare-se V. Majestade.

-- Não tenho que preparar mais que uma roupa.

E chamou um creado para que ajudasse o Braz a encher dois bahus, cem objectos que ía indicando.

El-rei não cabia em si.

-- Porque me déstes ainda hoje um mau dia? perguntou. Porque não me avisastes mais cêdo? Mais cêdo havíamos saído.

E o padre, sempre sorrindo, sempre melifluo, explicou:

-- Esta, senhor, é a melhor hora para o nosso intento, que já todo esse povo barbaro está recolhido. Não sabe V. Majestade o odio que lhe inspira. A plebe desenfreada, sabendo que V. Majestade se retirava, era muito capaz de commetter algum sacrilego insulto e até de tentar contra sua preciosa vida.

Cingiu D. Affonso a espada.

-- Para quê? perguntou o padre.

Mas lendo uma desconfiança nos olhos de El-rei, julgou por melhor calar-se.

El-rei hesitava; o padre tremia.

-- Desejava...

-- O quê, senhor?

-- Despedir-me do Infante.

O padre, com um ar muito innocente, contentou-se com responder:

-- A taes horas, senhor, já deve de estar recolhido.

El-rei desceu até os claustros da capella, onde o esperava muita gente armada.

-- Que é isto? perguntou turbando-se. Querem matar-me?

O padre tornou a explicar.

Como eram dôces todas as palavras que saíam de seus labios!

-- Senhor, não. Porque haveis de vos mostrar assim medroso? E' gente que S. Alteza vos envia para assegurar a pessoa de V. Majestade.

Approximaram-se dois creados do Principe.

-- Conheceis-me por vosso rei? perguntou-lhes D. Affonso.

Os dois inclinaram-se, mas sem responder.

-- Muito bem me lembra que ao acto assististes em que todos me juraram rei d'estes reinos.

-- Vinde, senhor, continuou o padre.

E a El-rei voltou-lhe a confiança, tão alegre era o semblante de quem lhe falava, tão suave a sua voz.

Junto á capella esperava uma carroça. Sem uma hesitação El-rei subiu o estribo. Entraram com elle o padre e os creados.

Os cavallos partiram a todo o galope.

-- Braz! gritou El-rei.

Seguiam atraz os soldados a cavallo.

-- Aonde me levaes? Este caminho não vae a Almeirim, mas a Belem!

E com a mesma voz untuosa, o padre continuou em suas explicações:

-- Senhor, que importa a V. Majestade que o levem a Almeirim ou á Ilha Terceira? Em Angra, com sua vida segura, gosareis toda a liberdade. Assim em vosso beneficio o pediram El rei de Inglaterra e a Rainha vossa irmã.

El-rei curvou a cabeça e disse:

-- Deus seja louvado. Seja feita a sua divina vontade.

Entrou na fortaleza de S. Gião sem mais dizer palavra, sem mostrar um receio, disposto a morrer se d'elle a morte exigissem. Mettia piedade a resignação de seus olhos tristes.

O padre e os dois fidalgos entregaram-o ao governador da torre e retiraram para Lisboa.

No dia seguinte de manhã, veio o governador communicar-lhe que se havia de embarcar nas fragatas, para as quaes lhe apontou fundeadas em frente de Paços d'Arcos.

Pediu então que o deixassem, antes de sua viagem, confessar-se e receber o Senhor. Não lh'o haviam de negar e levaram-o n'uma falua até o mosteiro de S. José dos Arrabidos, onde por entre lagrimas de compaixão os frades o receberam.

E foi elle quem os animou, mostrando-lhes prazenteiro o rosto, dizendo-lhes que era dever de todos conformarem-se com a vontade de Deus.

Ajoelhou e disse no segredo do confessionario as suas culpas. Contou como o orgulho de seu coração se revoltára contra sua propria miseria; pediu perdão a Deus, achando por demais benigno o castigo que lhe inflingia; perdoou a quantos o haviam offendido para que lhe Deus perdoasse.

Ouviu missa, commungou. Pareceu-lhe que sua alma creava azas, que a porta que lhe iam abrir nâo dava para as trevas da masmorra, mas para uma região toda luz.

Beijou a mão do frade que lhe deitára a benção enchendo-o de consolação. Dirigiu-se outra vez á praia e mandou que o levassem á nau, d'onde o Conde de Prado desceu a recebel-o e lhe offereceu o braço para ajudal-o na escada, pedindo-lhe que se desembaraçasse da espada.

-- Os reis não necessitam de arrimo, respondeu-lhe D. Affonso; e quem tiver o de Deus nada lhe falta.

Subiu ligeiro, mas a espada não a quiz largar.

Logo o vento da barra começou a soprar mais rijo; grossas nuvens esconderam o sol; os mastros rangiam e as cordas do navio começaram a gemer. Nunca se vira um temporal d'aquelles em fins de maio e os marujos, ainda os mais velhos, empallideceram, supersticiosos. Que medonho castigo lhes reservaria o céo?

Não mudára El-rei de rosto e olhava tristemente para as gaivotas que corriam para terra soltando pios lugubres.

Só!... Tão só, como nunca se vira!... Só com Deus!... Isso lhe bastava.

Estendeu a vista pelo Tejo acima e, muito vagarosa, uma lagrima, uma só, tremeu-lhe nos cilios, desceu-lhe pela face, caíu ao mar.

Não comparecêra ainda a bordo o cabo das fragatas, Francisco de Brito Freire.

Haviam-o chamado ao palacio na mesma hora em que El-rei fora entregue em S. Gião. Leu a ordem que lhe deram e viu que lhe concediam o titulo de visconde e a nomeação perpetua de governador da Ilha Terceira, onde devia de ficar com El-rei e tel-o preso na fortaleza.

Outras circumstancias de que falasse o papel, ninguem as soube, que Francisco de Brito logo o rasgou e, saíndo do Paço, cheio de lagrimas os olhos, tomado de pavor, desilludido da virtude e das honras do mundo, foi bater á porta d'um mosteiro a implorar por compaixão uma roupeta.

Ordenou-lhe o Principe que partisse; não houve argumentos que o torcessem na sua resolução. Tomaram conta d'elle os ministros da justiça e, por ordem de D. Pedro, o levaram á torre de Belem onde o metteram no carcere mais escuro.

Nem uma palavra murmurou Brito Freire sobre os pormenores crueis da missão de que o incumbiram, mas contentou-se com dizer repetidas vezes:

-- Quem teme a Deus não lhe põem mêdo os homens.

O tempo continuava contrario. Foi preciso buscar novo cabo para a armada, novo alcaide para a fortaleza. A armada só poude saír a 30 de maio.

Nomeou-se por cabo e governador da Ilha Terceira a Luiz Velho e por alcaide da fortaleza a Manuel Nunes Leitão, sargento-mór de batalha, que o fôra na provincia do Minho.

Durante quatro dias soprou violento o temporal e acompanhou com seus uivos o melancholico meditar de El-rei.

Os homens do mar, que as altas ondas levaram alguma vez para mais perto do céo, para mais perto de Deus que lhes enterneceu os corações, olhavam para El-rei, e seu olhar d'elles piedoso consolava-o.

Uma saudade só tinha, uma saudade e um receio; o Braz, como iriam tratal-o? Se alguma vez lhe voltasse o frio á sua alma a que alma havia de aconchegal-a!

N'essa manhã viu como um ponto negro no alto d'uma onda. Affirmou a vista. O ponto negro desappareceu. O Tejo era furioso. Como roncavam as ondas a quebrar-se nos areaes do Bugio! Tornou a avistar o mesmo ponto; percebeu o manejo d'um braço vigoroso. Um homem luctava contra o temporal, procurando approximar-se da esquadra. Não hesitou El-rei um instante e bradou:

-- Braz!

Se elle o ouviria por entre o fundo roncar das ondas e os assobios do vento?

Encostavam-se anciosos os marujos á amurada. O nadador approximava-se, impellido pela corrente. A maré enchia.

De bordo gritavam-lhe para animal-o. Preparavam cabos para deitar-lhe.

El-rei puzéra as mãos, resava, e seu olhar ancioso seguia todas as peripecias da lucta. Não o abandonaria Deus, que ainda lhe deixava um amigo.

Uma onda mais vigorosa ergueu o nadador na alta crista, mais alto que a tolda da náo. Teve-o suspenso um instante:

-- Adeus! gritou.

O Conde do Prado acudira á algazarra dos marujos.

-- Salvae-m'o por Deus! disse-lhe El-rei.

A onda desfizera-se, atirára o Braz quasi contra o costado do navio. O mar embrulhou-o, o aleijado desappareceu.

-- Braz!... Braz! gritou ainda El-rei.

Ia a precipitar-se. Susteve-lhe o Conde o impeto.

Viu-se uma mão saír das aguas acenando, surgir uma cabeça.

-- Adeus! disse-lhe El-rei, luctando com o Conde do Prado para que o soltasse.

Mas pela mão certeira d'um marujo velho ura cabo fôra lançado a tempo. O Braz agarrára-o com as mãos nervosas. Estava salvo. Perdeu os sentidos. Estiraram-o sobre a tolda.

E El-rei de joelhos murmurava a Deus suas acções de graça, beijava as mãos do maluco.

Deus era com elle; que lhe importavam os homens?

Foi o temporal amainando; mas de noite ateou-se o fogo na embarcação. Aos gritos da marinhagem, acordou El-rei, viu o clarão, conheceu o perigo, arrançou da espada, ordenou que todos trabalhassem na extinção e ninguem ousou desobedecer-lhe.

O clarão illuminava um barco que ia rapidamente fagindo para a Outra Baada.

-- Traidores! dizia El-rei. Não sabeis que é Deus que me guarda a vida?

E voltando-se para o Conde:

-- A vida dos reis está na mão de Deus e não no poder dos homens.

E n'aquella confiança, que não mais o abandonou, adormeceu sem sonhos maus ao lado do Braz cheio de febre.

Não tão abandonado estava D. Affonso como cuidava, pois que, com a nova do seu desterro, com a piedade que a todos inspirava, se alterára o povo de Lisboa, compungido, alvoroçado, expandindo em vozes de ameaça o seu furor. Os vinte e quatro com o juiz do povo mais d'uma vez se dirigiram ao Principe para que não desterrasse El-rei para fóra do reino, saíndo-lhes sempre sem despacho a petição, até que a ultima obteve uma aspera repulsa.

E o Principe e a Princeza, ao lado da Infantasinha, como querendo ao pé da innocente livrar-se da colera de Deus que poderia fulminal-os, tremiam a cada nova que lhes traziam de fóra, viam fugir-lhes o povo com que haviam contado, e, desde a Rainha de Inglaterra até o mais obscuro fidalgo, quantos com honradissimo arrojo lhes haviam exprobado o proceder!

Deram ordem, fôsse qual fôsse o tempo, que a esquadra partisse no dia 30 de manhã.

Estavam as praias da margem direita apinhadas de gente.

A náo dirigia-se para o alto mar e El-rei, junto da amurada, sem dizer palavra, sem murmurar uma queixa, dizia um saudoso adeus ás torres, aos montes onde já as seáras começavam aloirando, ás serras longes muito verdes.

Tanta gente que ali estava!... Era o povo de que elle fugia e que o queria matar!

Mas viu uns lenços acenando, e, depois outros, muitos. Puxou do seu, acenou com elle, e o adeus que lhe enviaram de terra perturbou-o até o mais fundo da alma.

Ah! como lhe haviam mentido! Como lhe haviam calumniado o povo!

Entretanto D. Pedro procurava explicar seu procedimento a todas as côrtes da Europa, enviando-lhes uma circular.

«Desejando fazer que seu irmão gose de mais liberdade e doçuras do que os tres estados lhe concederam, e, sabendo que elle deseja estar em um logar onde possa fazer algum exercicio e gosar doa demais prazeres do campo, isento de cuidados e de cerimonial, e, considerando que, se o deixasse longe de si em qualquer outro reino, elle poderia dar occasião a renovarem-se as queixas que se faziam nos primeiros annos do seu reinado e que seria impossivel, com o genio que tinha, impedir que não aventurasse ao acaso a sua vida e auctoridade; desejando achar um meio termo em que, sem faltar com o devido á sua pessoa e dignidade, podesse gosar do que desejava, havia resolvido, com seu grande aprazimento, que iria residir na ilha Terceira, tanto por ser aquelle clima o que os medicos lhe aconselhavam para a infermidade de que soffria, como por ser aquella ilha mais agradavel para o exercicio da caça e abundante de todas as coisas da vida, tendo seus familiares e os senhores que o acompanhavam a liberdade de escolher o logar onde assentariam morada, ou na Aldeia da Praia, na cidade d' Angra, ou na casa real do forte de S. Filippe, com tanto que esse logar lhe conviesse; e, para que aquella viagem se fizesse com honra e segurança, ordenou-se ao Conde do Prado de escoltal-o até á Ilha Terceira com uma das esquadras navaes, assistido do Conde de Atalaia, de D. João de Sousa, D. Luiz da Silveira e outros. »

Até que emfim eram livres d'elle! Prohibiram que d'elle lhes viessem falar. Mas falleceu o Conde dos Arcos, D. Thomaz de Noronha, e quizeram saber porquê, e como fôra. E não houve meio de occultar-lhes que o velho fidalgo morrêra de paixão, ao ver a desgraça de seu rei, que seu coração despedaçara. Chamára filhos e netos para junto de seu leito e, antes de expirar, estivera lendo-lhes uma lição dos desenganos do mundo.

Ainda tinha El-rei amigos d'aquelles, e tanto o povo lhe queria!

Mas porque?... Mas porque?

Havia mais um prisioneiro de estado no castello d'Angra... Não maldizia da sorte.

As vozes terrificas dos phantasmas nocturnos não se tinham calado nos paços da Ribeira.

CAPITULO III

Ambições perdidas

Desappareceram as velas vagarosamente. Já se não via d'ellas mais que uns pontinhos brancos no extremo horisonte, e ainda alguns diziam avistar o lenço de El-rei e o seu adeus ao povo.

O mar adormecêra cançado pela lucta dos dias anteriores, e só uma leve espuma muito branca franjava as areias d'oiro do Bugio. Para além, alargava-se o Oceano muito azul e parecia que as perolas brancas que se iam sumindo eram o feixo que ligava a terra e o céo.

Continuavam os outeiros cheios de gente, que a elles subira para mais um instante demorar a vista no quadro, mais entristecer a alma, buscar motivo para maior saudade. Havia mulheres que choravam e os homens falavam baixo, como se o coração opprimido lhes abafasse a voz na garganta.

-- E' tentar a Deus, diziam uns.

-- Deus o acompanhe, repetiam outros.

E não era n'elles a mesma expansão quando falavam do Principe e quando falavam de El-rei. A crueza de D. Pedro, a desgraça de D. Affonso moveram os corações; n'uma só viam aggravos, na outra attenuantes.

O dia tão formoso parecia que até elle estava favorecendo a melancholia das almas.

No alto d'um cabeço, com o queixo encostado ao punho cerrado, Manuel Furtado olhava para o mar. Se desviava os olhos, via do outro lado o grupo de casas brancas da Trafaria e maior tristeza lhe annuviava o rosto e uma nevoa lhe embaciava os olhos.

O que elle sonhára chegando a Lisboa com a boa nova da victoria d'Elvas!... Chorava agora o sonho desfeito, sonho em que tão lindas perolas engastoára.

-- Deus vos salve, senhor! disse uma voz junto d'elle.

Era Fr. Gregorio que passava.

-- Deus vos salve, Fr. Gregorio.

O frade parou e olhou para elle.

-- Viestes cumprir um santo dever de caridade. Bem fizestes. Deus vol-o ha de levar em conta.

-- Deus vos oiça, respondeu o capitão.

O frade ía a retirar-se, falando só.

-- Tomae, disse-lhe Manuel Furtado, dando-lhe uma pequena moeda de prata. Dizei em vosso convento que orem por mim.

-- Estaes velho, disse-lhe Fr. Gregorio, contemplando-lhe as rugas da cara, os muitos fios de prata entre os anneis do cabello, o olhar amortecido. Agradecei a Deus que vos manda a velhice antes de tempo; rogae-lhe que breve vos envie a morte. Não vereis o castigo, que ha-de caír sobre a cidade.

Apontou para ella, sacudiu a cabeça, ergueu a mão; mas o braço caíu-lhe sem força. Olhou para o lado do mar, piscando muito os olhos, pondo-lhes a mão por cima a sombreal-os.

-- Desappareceu!... Não me quiz ouvir... Desafiou o céo!...

Voltou-se para Manuel Furtado.

-- Obrigado, disse, beijando a moeda de prata que o capitão lhe déra.

Desceu para o povoado, e o capitão, que o seguira, montou a cavallo, deu uma moeda de cobre ao gaiato que lh'o segurára e seguiu devagarinho para Lisboa entre os ranchos do povo que íam fazendo seus commentarios e baixavam a voz quando elle se approximava.

Vinha atraz um cavallo trotando.

Manuel Furtado voltou a cabeça, curioso, já quando alguem bradára por elle.

-- Manuel!

Era Pero Rolão, que não parecia o mesmo, esmerado no vestir, muito alisado o cabello, a cara muito escanhoada.

-- Deus te salve, Pero.

-- Se não te houvera de encontrar! Lá faltavas tu á despedida do victorioso malaventurado!

Todo elle era virar-se na sella contemplando as raparigas do povo e commentando-lhes a belleza como homem entendido.

Déra n'aquiIlo agora: sobre o assumpto mulheres só falava de papo.

-- A mim trouxe-me apenas a curiosidade; mas confesso-te que volto acabrunhado. Razões ponderosas obrigaram S. Alteza a desterrar o irmão; mas... não sei se já sabes que nas horas vagas não desgosto agora de philosophar o meu bocado; meditei sobre os livros de Salomão, emquanto a náo levantava ferro.

-- Lês Salomão agora!

-- Tenho lá tempo! O que sei d'elle é o que todos sabem: Vanitas vanitatibus, omnia vanitas, vanitatibus!

Mau grado a tristeza, não pôde Manuel Furtado deixar de rir com o disparate.

-- Sorri-te a vida, Pero?

-- Sorri.

E de repente, poz-se sério.

-- Pobre Manuel!

Calaram-se um instante. Depois Manuel Furtado, como a mêdo, perguntou:

-- Não a tens visto?

-- Não, respondeu Pero Rolão com a cabeça. Não sae, não deixa o lado da mãe, que tão doente é sempre.

-- E D. Pedro?

-- Vejo-o ás vezes em casa do Conde da Torre; tem sempre para mim um olhar agradecido.

Continuaram calados. Foi Pero Rolão quem quebrou o silencio.

-- Olha!... Olha!

Mostrava a Manuel Furtado uma rapariga formosissima, que olhava para elles sorrindo com seus olhos muito negros, maliciosos.

-- Ah! mulheres!... mulheres!

E approximando o cavallo do do amigo:

-- Sabes quem é agora minha amante?

Manuel Furtado olhou para elle interrogativamente, mais por delicadeza que por curiosidade.

-- Adivinha.

-- Sei lá!

-- E' entre nós, á puridade...

-- Guarda teu segredo.

-- Não os tenho para comtigo.

Olhava para todos os lados.

A pluma vermelha esvoaçava-lhe alto no chapeu e o cavallo fazia seus caracoes, como orgulhoso de seu cavalleiro.

-- Nem que estivesses dez annos... Aguenta-te na sella, não caias de pasmado.

Obrigou o cavallo a ladear e deu a noticia quasi ao ouvido de Manuel Furtado.

-- A Calcanhares!

Effectivamente o capitão estremeceu de espanto.

-- A Calcanhares! repetiu.

-- Aqui tens a historia em duas palavras. Falou-me d'ella ha dias, o governador da torre, que já não podia atural-a, tanto mais que a desgraçada rapariga, os creados fizeram-lhe mão baixa nas joias e Simão Peres deixou-se matar sem lhe prestar contas. Amor com amor se paga, tambem é da sabedoria das nações: ella quiz salvar-me, salvei-a. Quando lá cheguei com a ordem, o governador caíu-me nos braços, chamando-me querido e piedoso amigo, e agora sou eu que oiço, no mais dôce enlevo, como fugiram a Luzia, o Joaquim, o Fortunato, e qual a ultima aventura do Simão, que Deus tenha em sua santa gloria.

Passavam em frente da torre. Pero Rolão contemplou-a.

-- Ali me fôste buscar, querido Manuel.

-- O ultimo dia em que vivi.

Pero Rolão entristeceu, recordando o que essa noite passára.

-- Perdôa, Manuel. Falando-te muito da minha ventura, julgarás que me esqueço das tuas tristezas.

-- Não, amigo. Segue em teu rumo; irás talvez onde ir cuidei. Alegrar-me-hei com tua alegria. Para mim, já nenhuma espero encontrar na vida. Amei demais e não soube amar.

-- Minha phylosophia é esta, disse Pero Rolão: uma só ou todas.

Manuel Furtado tornou a sorrir.

Chegaram a Santos. Pero Rolão despediu-se.

-- E' para ahi que ella mora?

-- Escondida. Se vive só do meu amor! Guarda segredo, hein, Manuel?

-- Se a ninguem falo!... Procura-me um dia no Salvador.

E devagar caminhou para casa, sentindo ainda mais carregado o lucto de seu coração.

Com que ambições, com que illusões chegára á cidade, onde vira o campo da lucta, onde por um só instante não cuidára poder ser vencido! Entrára finalmente no caminho do bem onde o levára um purissimo amor, e, quando elle se dispunha a proval-o, desnorteára a sua bussola, puzera-o no caminho da desgraça!

Deixou o cavallo nas mãos do escudeiro, entrou em casa.

-- Que novas me traz V. Mercê? perguntou-lhe a Lourença.

-- A melhor que te posso dar, que vi o povo chorando.

-- E' que nós temos coração, observou a velhinha, maior, muito maior que...

-- Que todos a quantos a dôr propria não deixa logar para a dos outros...

-- Quem vistes por lá?

-- Fr. Gregorio que andava doido...

-- Elle lá sabe porquê, porque vê longe.

-- E Pero Rolão, doido tambem.

-- Pela Calcanhares?

-- Como o sabes?

-- Porque tanto segredo pede a todos, que nâo ha quem não deva sabel-o.

-- Coitado!

-- Coitado porque? Com aquella cara de Paschoa, não vê, não ouve o mais que vae pelo mundo, pensa nos seus amores e...

-- Em que querias tu, minha Lourença, que elle houvesse de pensar?

-- Sei lá!... Nem toda a gente pensa na Calcanhares.

-- Nem elle d'aqui a tres dias se lembrará da desgraçada; outra aurora lhe ha de surgir.

-- E acha bonito?

-- Vida!... Mocidade!...

-- Vida, mocidade para perros de Marrocos; mas uma alma christã...

Manuel Furtado não lhe dava attençâo. Ficou-se a falar comsigo.

-- Ha mais estrellas no céo e até o sol tem outra côr!... A mim encheu-me de saudades a manhã de maio e o perfume do matto e dos pinhaes pareceu-me de goivos e de cyprestes!

O rosto da Lourença entristecia.

Elle continuou:

-- Loucuras!... Como é bom sonhal-as e nem dar pelo boccadinho de noite que as engraza umas nas outras! Pero Rolão vive! Deixa-o viver, Lourença.

Ella abraçou-o.

-- E tu, Manuel?

Em suas horas de maior ternura tratava-o assim por tu.

-- Eu!... respondeu elle.

Suspirou; esteve por um instante calado.

-- Porque não me respondes? volveu ella.

-- Que te hei de contar que não saibas?

Levantou-se, deu uns passos pelo quarto, chegou-se á janella.

-- Esta casa entristece-me, disse. Antes n'ella nunca houvera sido feliz! O que eu sonhei entre estas velhas quatro paredes!

-- Deus não quiz... disse a velha procurando com um bocadinho de ternura na voz communicar a Manuel Furtado sua resignação.

-- Ah! quando se fala de guerra, que esperança renasce em minh'alma! disse elle de repente. Uma bala!...

-- Que dizeis, menino! atalhou a Lourença. Pois não haverá no mundo quem vos queira e muito?

E elle commoveu-se. Beijou-a.

-- E não sou eu só, continuou ella baixinho.

-- Não serás, disse elle com voz quasi sumida.

-- E com umas voltas que der o mundo...

Elle tapou-lhe a bocca.

-- Cala-te, Lourença, que as illusoes já não sabem o caminho da minh'alma.

-- Mas sabe Deus o que faz; confiae n'elle, e como não fôstes mau...

-- Não fui mau?... Se dei cabo de duas almas!... Quando vi os ciumes de D. Anna, para lhe mostrar que todo meu odio contra El-rei passara, dediquei-me á sua causa d'elle. Tu bem sabes, Lourença, que outro pensamento não tinha mais que andar na vida até sentir-me digno de...

Um soluço abafou-lhe o nome na garganta.

-- Mas quando a pobre Maria da Boa Hora aqui entrou, fugida, medrosa, implorando meu soccorro... Foi commisseração, foi um acordar de não sei que memorias esquecidas, foi um remorso tambem que me obrigaram áquelle passo fatal. E eu pensava, para domar inquietações da minh'alma. -- «E' por El-rei... E' por meus amores!... Por ella!...» Por quem bem o sabes, Lourença.

-- E não o sabe a sr.ª D. Anna? perguntou Lourença a mêdo.

E, como Manuel Furtado lhe não respondesse logo:

-- Entregae tudo nas mãos de Deus, disse ella rapido, não querendo mais falar n'aquelle assumpto. Deveis ter fome, que não jantastes hoje.

-- Não, não tenho.

-- Fiz-vos uma sopinha secca e tenho ali um bocadinho de rim para grelhar.

Calou-se, sorriu-se com certo ar de mysterio, procurando alegral-o.

-- E... e... Adivinhae... Máo são!... Eu aqui, dia e noite, a pensar n'elle e elle a pensar em morrer!

Chorava.

-- Lourença, minha tonta! disse-lhe Manuel Furtado tornando a abraçal-a. Pensas que não sou teu amigo?

-- Então porque me faz chorar? Cuidaes que, por eu ter cabellos brancos poucos, não gosto já de sonhar como sonham rapazes novos?... Não me tornes a falar em morrer, não, Manuel?

E foi pondo a mesa.

-- Não quero deixar de vêr-vos como vos via d'antes, n'uma alta posição, respeitado, casado com aquella que vos teve a alma e tem uns dedos lindos para me fechar os olhos.

-- Traí-a! disse Manuel Furtado.

-- Mentis!... Mentis! exclamou a Lourença com amargura.

-- Não sei, não sei se traí! Sei que lhe rasguei com minha imprudencia o coração e que mil annos que eu viva, arrependido e chorando, serão poucos para castigo de minha culpa!

Silenciosa agora, a Lourença desdobrava a toalha, punha-a na mesa desfazendo-lhe as pregas, limpava os copos, dava uma passagem com o panno sobre a louça branca, meticulosa no seu aceio.

-- Nossa Senhora nos valha! disse com um suspiro. Vamos ao jantarsinho, sim?

-- Pois sim, respondeu elle.

Sentou-se.

Entrava no quarto, pela janella semi-cerrada, uma restea de sol a descer, que desenhava um quadrilongo de luz na toalha branca.

Que melancholia n'aquella casa que d'antes alegrara tanto a voz cantante de Maria da Boa Hora!

E d'ella que seria feito? Depositado o pequenino na egreja muito fria, pedira a Pantaleão Gonçalves lh'o velasse, e desapparecêra. Estava morta?... Onde estava?... Mais uma que lhe devia a desgraça!... Tanto viço, tanto perfume, tanta vida de que elle déra cabo!

E o mysterio em que vivêra durante aquelles tempos? O Conde que por ali andava occulto e déra com elle em seu esconderijo, conhecendo-lhe o valor, fizera-o seu confidente; na hora em que o mais tremendo caso do sua vida se resolvia, marchava elle para o Alemlejo com ordens secretas para os officiaes do exercito. E tudo se perdêra ás mãos d'um rufião traidor!

Com que dôr d'alma elle ouvira de Pero Rolão a narração de toda aquella tragedia em que sua ausencia passára na miseravel choupana da Trafaria!... E nunca mais ousára apparecer a D. Anna que o vira abraçado a Maria da Boa Hora, e nunca mais uma hora de alegria ou leve esperança lhe nascêra no coração!

A Lourença entrou com a sopa, mas elle estava distraído e não buliu no prato.

Andava por terras longes o Conde de Castel Melhor. Se um dia voltasse?... Se, com um acto de justiça, n'um arrojado movimento, tornasse no throno a collocar El-rei?... Uma lucta!... Seria o esquecimento... e, se n'ella encontrasse a morte, a ventura!

Passou-lhe um riso pelos labios.

-- Então! disse-lhe a Lourença.

E elle começou comendo.

-- Está ao gosto de V. Mercê?

Respondeu que sim com a cabeça; mas logo pousou a colher no prato.

-- Valha-te Deus, cabecinha doida!... Então!

Manuel Furtado fez um esforço; levou mais duas colheradas á bocca, e a Lourença saíu para ir buscar o rim.

Uma varejeira zunia monotonamente na janella, descendo de costas encostadas aos vidros pequeninos.

-- Temos visita, disse a Lourença, entrando de volta da cozinha.

-- Quem?

-- Não sei; mas uma varejeira a zunir é signal certo. Talvez alguem que nos traga uma boa nova.

Ainda a boa Lourença esperava boas novas!... Se ella soubesse o desespero que elle tinha n'alma, que melancholia o envelhecia e lhe roubava forças!

-- Bom? perguntou ella.

-- Optimo! respondeu elle muito amavel, elogiando-lhe o pedaço de rim, coberto de salsa picada, muito verde, apetitosa.

E ella foi então buscar a surpreza e entrou radiante com um prato de morangos.

Que luz tanto para acordar saudades a d'aquelle quarto no prolongado crepusculo do mez de maio!

A Lourença bem via que elle estava comendo os morangos só para lhe dar prazer.

Como estava magro o seu Manuel, com tão fundas rugas no rosto ainda tão bello, com a bocca descaida, os olhos encovados na face pallida, tantos cabellos brancos! Em que estaria elle scismando?

-- Em que scismaes ainda? perguntou-lhe.

E elle sorriu-se.

-- Em Fr. Gregorio, respondeu.

-- No doido?

-- Muito menos que todos nós. Vive d'uma esperança que ha-de acompanhal-o até á morte; tem por certo que um dia ha-de chegar a este reino uma hora de immensa ventura, e, n'ella postos seus olhos, n'ella se esquece, quando Deus o ajuda, das miserias que o cercam. Deus me fizesse sebastianista um dia, como elle...

Sorriu-se tristemente e concluiu:

-- Como tu.

Ergueu-se da mesa, deu graças, pegou no chapeu.

-- Ides saír? perguntou-lhe ella, a scismar porque lhe chamaria Manuel Furtado sebastianista.

-- A tarde é linda; vou respirar um bocadinho do ar d'esses olivaes até á Penha de França.

-- Ide, ide... O Senhor vos acompanhe.

E foi para a janella vel-o saír, como costumava d'antes.

Lembrou-se de quando com um fato muito pobre, um chapeu muito velho, Manuel Furtado lhe encantava os olhos, tanta luz de mocidade n'elle resplandecia! Tão caído agora, d'olhos tão amigos do chão, até parecia que o fatigava o subir a meia duzia de degráos d'aquelle bêcco sombrio.

O que fazem amores!... E, quando elle desappareceu, pôz-se a recordar dias negros, que tambem ella havia passado em sua mocidade. Mas tinham lá comparação!

O que fazem amores!... Era egual o thema dos melancholicos pensamentos em que se afundára Manuel Furtado.

Subiu até á Graça e demorou-se um instante lá no alto, como a escutar o murmurio de vozes, que apagado chegava até o cume do monte. E com as vozes iam as trevas subindo pouco e pouco e n'ellas punha elle seus olhos tristes, emquanto seus ouvidos se iam apurando para distinguir o de que as vozes lhe falavam...

Outras vezes assim contemplara a cidade, e bem se recordava do que lhe ella dissera, falando-lhe d'um futuro glorioso, de conquistas, de victorias; tudo eram musicas de clarins, e então não subiam até elle as trevas; era o sol que o illuminava lá de cima.

Nos montes do outro lado do valle, arvores, telhados, torres de egreja recortavam-se nitidamente no céo ainda brilhante.

Que lhe dizia agora a grande cidade? Era como um gemer prolongado o que ouvia; era o gemer de seu coração a que toda ella falava, como outr'ora á sua vaidade louca de ambicioso.

Devagarinho, mais entristecido ainda, foi seguindo para diante. Anoiteceu, e foi seguindo. Entrou no olival e por entre a ramagem olhava para o céo que as primeiras estrellas accendia. Como estava sereno!

Parecia que d'elle uma paz consoladora vinha descendo.

Erguia-se a torro da Penha de França, lá no extremo do monte. Deu-lhe um desejo de recolher-se, de orar na egreja, de mostrar seu coração a quem só podia valer-lhe e pedir para elle um bocadinho d'aquella paz dulcissima, que o céo vertia sobre o mundo.

Entrou no templo; ajoelhou a um canto mais escuro.

Sob as lampadas estavam ajoelhadas duas senhoras, que resavam com as cabeças devotas inclinadas sobre os seios. Um frade, junto do altar mór, com as mãos cruzadas no peito, tinha os olhos fitos no crucifixo e orava devotamente.

Nem um murmurio se ouvia n'aquella solidão.

Manuel Furtado sentiu n'alma que já o céo lhe escutára sua prece, que sua dôr amaciava, que um olhar de piedade penetrára até sua chaga, como caricia que fosse um balsamo.

Respirou fundo; começou orando.

Havia na atmosphera da egreja uns longes de perfume de incenso que ajudavam a sua devoção. Sobre o altar uns ramos de flôres murchavam aos pés da imagem da Senhora. Como era doce o ar n'aquelle templo!

E outra vez Manuel Furtado tomou fundo a respiração, e não soube definir o que sentiu. Passou a mão pela testa. Que recordação aquella!

Quiz com mais devoção resar, entregar seu espirito a Deus, e não poude.

Bem se lembrava. Era aquelle mesmo perfume o que pairava na capella de D. João d'Almeida, aquella manhã em que fôra ouvir missa por alma de André de Albuquerque. Era assim. Se nunca mais lhe esquecêra!

Seria dos ramos do altar o aroma das flôres que se misturava ao do incenso. Mas outro havia tambem, mais subtil, mais penetrante...

-- Anninhas! murmurou comsigo, cheio de saudade, interrompendo uma avè-maria.

As duas senhoras levantaram-se, e elle teve de abafar um grito.

Era Anninhas que com D. Violante se encaminhava para a porta onde a liteira as esperava.

A cabeça de D. Violante era branca de neve. O que ella havia de ter soffrido! Bastaram-lhe talvez para isso as horas angustiosas que passou abraçada á filha quando cuidou vêl-a expirar.

D. Anna voltou a cabeça e dos olhos de Manuel Furtado as lagrimas rebentaram. Pois era aquelle o rosto da mulher que adorára? Como era pallido e desfeito! Atravez do véu muito negro que lhe encobria a cabeça, pareceu-lhe que já uns reflexos de prata amorteciam as scintillações doiradas das fartas madeixas. Os olhos encovados embaciava-os uma tristeza funda.

Caminhavam mãe e filha para a porta e uma á outra se amparavam e a seu mutuo amor.

Manuel Furtado, na sombra a que se acolhêra não deram por elle.

Fechou os olhos quando passaram mais perto, mas o mesmo perfume, que lhe despertára lembranças, penetrou-lhe até ao coração, que se lhe pôz em alvoroço, que depois lhe parou quasi.

Era ella...! ella...! Anninhas!

Como vinha encontral-a!

E lembrou-se então -- porquê nem ao principio o sabia -- d'outra mulher que sua inconstancia despedaçára tambem. Tambem Maria da Boa Hora lhe apparecêra assim uma vez: d'olhos sumidos, corpo alquebrado, cheia de brancas.

Então desatou a chorar, não podendo por mais tempo comprimir os soluços. Pôz as mãos sobre o altar e n'ellas escondeu o rosto.

-- Animo, irmão. Que tendes? perguntou junto d'elle uma voz compassiva.

Devia de ser o frade que lhe acudia. Manuel Furtado ergueu para elle os olhos, que, turvos pelas lagrimas, não reconheceram quem falava.

-- Senhor, Deus de misericordia, valei-me! exclamou a mesma voz.

-- Quem sois, que tanto vos affligis com meu tormento? perguntou assustado Manuel Furtado, como quem sái d'um pesadello para mais temivel realidade.

-- Alguem, respondeu o frade, alguem a quem não bastou a penitencia que fez para que Deus lhe perdoasse, as lagrimas que chorou, os tormentos a que pôz os bocados ultimos de seu coração com um resto de vida! Ainda ha quem soffra por culpa minha e, emquanto a Deus chegarem os gritos de sua dôr, ha de o céo cerrar os ouvidos aos fundos gemidos da minha contricção.

-- Que mal fizestes que a minhas culpas se compare? Que dolorosas queixas tendes a gemer que sejam os arrancos era vosso peito para cotejar-se aos meus?

O frade ajoelhára.

-- Perdoae-me, disse-lhe.

E curvou a cabeça até dar com ella nas lages, aos pés de Manuel Furtado.

-- Perdoae me, para que Deus me perdoe, ou castigae-me com a vossa ira, para que se abrande a ira do Senhor.

Manuel Furtado recuára. Começava uma suspeita a apoderar-se-lhe da alma.

-- Quem sois? perguntou.

O auctor de vosso mal, o que andou pelo mundo a semear traições, o que um dia vos quiz matar, o miseravel que a justiça de Deus escolheu para algoz do proprio filho!

-- Fr. Bernardo!...

Elle, de joelhos sempre, ergueu a cabeça e, pondo as mãos, humilde, implorou:

-- Aqui não, que é a casa de Deus!

Merecia a morte; acceitava-a; talvez Deus lhe perdoasse.

E arrastava-se pelo chão onde seu chôro lhe marcava o rastro.

Manuel Furtado calava-se; aquelle homem mettia-lhe horror.

Viu de novo a imagem de Anninhas, encostada ao braço da mãe, de cabeça baixa, passando ali junto d'elle, com um leve ruge-ruge de seu vestido. Tambem ella, a que elle desgraçara, tinha muito que perdoar-lhe...

O frade resava alto o padre-nosso e, quasi chegado ao fim, quando disse: «perdoae-nos as nossas dividas» Manuel Furtado repetiu com elle:

-- Como nós perdoamos aos nossos devedores.

E saíu da egreja.

Ao chegar a casa, mal tocára na argola, já a Lourença lhe abria a porta.

-- Não dizia eu a V. Mercê, que haviamos de ter visita.

-- Quem veio ? perguntou elle ancioso.

-- A Brizida. E' D. Pedro d' Almeida que deseja falar comvosco.

CAPITULO IV

Duas cartas

De Maria da Boa Hora a D. Anna de Portugal:

Perdoae, senhora, o atrevimento a quem vem pedir-vos a esmola do perdão.

Dão-me confiança para tanto o saber que santa nascestes e a lembrança das lagrimas de vossos olhos, que na hora mais horrivel da minha vida ás minhas se misturaram.

Por minha desgraça enlouquecida, de junto de vós me parti, levando nos braços o cadaver de meu filho. Lembra-me da egreja em que o deixei e, como um sonho, dos dias em que vadiei pelos campos a chorar loucamente.

Dias e noites andei por aquellas charnecas. Nem sei quem me deu de comer e quem me abrigou não sei. Dentro em mim dizia-me uma voz que havia de ser minha vida soffrer, soffrer, sofírer para sempre!

Era tamanha a minha dôr, que a dôr dos outros esqueci.

Sabia que havia de soffrer para sempre, mas quanto não sabia, que, se o houvera imaginado, certo morrêra n'aquelle instante.

Melhor me fôra.

E d'ahi não, que era preciso que eu padecesse, para que Deus me perdoasse; era preciso que, sendo tamanha minha desgraça por culpas que não tive, medisse meu arrependimento pelo tamanho das minhas culpas.

Abrandou meu delirio e, ai de mim! então começou a corroer-me o remorso.

Fez-me Deus mercê de tocar meu coração. Sobre a minha chaga feriram-me seus dedos misericordiosos e requintaram a minha dôr. Bemdito seja Deus que assim me animou, senhora, a vir deitar-me a vossos pés.

Para que hei de contar-vos, ai de mim e ai de vós, quanto podemos padecer sem que a morte nos acuda? Deveis sabel-o, ainda que soffreis innocente. Pois é á vossa dôr que venho rogar perdão para a minha.

E' do convento da Conceição em Beja que vos escrevo. Umas joias que tinha, fructo maldicto de meus peccados, foram-me dote cora que entrei na casa do Senhor.

Santas, virtuosas amigas encontrei, que se compadeceram de meu estado e me apontaram o caminho que vou seguindo com minha cruz. No alto do Calvario a luz encontrarei, se a vossa misericordia fôr similhante á que me contam do Deus que tanto soffreu pelos peccadores.

Agora caminho em meio de trevas, mas levo commigo uma esperança que me anima.

Perdoae-me, senhora.

Quantas vezes tentei o passo a que me afoito! A desordem em que me occorriam meus pensamentos não me deixava logar senão para pôr no papel desordenados gritos. Envergonhava-me depois de assim vos expôr tanta miseria da minha alma, a vós que sois purissima; envergonhava-me o atrevimento. Cinco ou seis cartas vos escrevi, que depois rasguei em mil pedaços.

Deus me perdôe, que não sei se o fiz por minha soberba, se por humildade, ao considerar-me indigna de beijar as pegadas que deixaes no caminho da virtude.

Não sabia como a vós me dirigir, tal era meu receio de offender-vos.

Não quero reler o que hoje vos escrevo.

Se desprezardes minhas rogativas, Deus me levará em conta o dobrar-se minha angustia; se me attenderdes -- e esta esperança é unico allivio á minha tristeza -- resarei muito por vós, e o vosso nome, na minha agonia, ha-de refrescar meus labios queimados pela febre.

Uma confissão vos farei, pois quero que, perdoando-me, não ignoreis o muito que exijo de vossa misericordia, e de quantas negras culpas contra vós meu remorso me accusa.

Depressa passarei sobre o caso de meus amores, que não quero n'elles demorar meu pensamento. Infeliz fui sempre até quando tinha a meu lado o escolhido do meu coração; é que o seu d'elle e o seu pensamento para vós de mim fugiam a cada instante. Era já castigo de Deus. A felicidade d'esse a quem eu mais amava do que a mim mesma não a queria o meu desejo. Luctas crueis sustentei contra o dever, contra o vosso amor, contra o meu amante e contra Deus.

Quero que o fiqueis sabendo para que de mais alto, sobre minha cabeça coberta de cinzas, desça o vosso perdão: odiei- vos.

Quando o amor a meu filho me obrigou a buscar a piedade que dei por certa n'uma alma que eu muito conhecia, levava commigo o tenue calor d'uma esperança de mais uma vez conquistal-a ao meu amor. Da minha honra já nao tinha de cuidar, do vós nao queria Iembrar-me.

Na corôa do espinhos do meus remorsos sâo ostaa as mais aguçadas pontas.

Pois vós fostes que me acudistes na hora de maior desespero em minha vida; vossa mão que me acariciou, quando me vi perdida, n'esse instante me apontou a estrada em que inda havia de salvar-me, talvez.

Devia-vos a confissão de meu crime; a vossos pés quiz dizer meu acto de contricção. Só do proposito que tomei me sinto mais descançada, como se o vosso nome unido á minha prece me obtivesse da piedade infinita de Jesus um olhar menos severo para a enormidade de meus peccados.

Bendita sejaes.

Longos mezes de vigilias e de constantes mortificações deram-me cabo da saude, mas venceram impetos maus, que me queriam levar a um acto de desespero.

Não, não; quem peccou deve humilhar-se e padecer.

Uma santa companheira, que teve artes para apagar em meu peito as ultimas brazas da paixão, procurou um bocadinho de espelho em que eu mirasse meu rosto.

-- E se elle te visse agora? perguntou-me.

Minha ultima esperança -- se alguma ainda tinha, mas creio que não -- sumiu-se n'esse momento com a lagrima que me caíu dos olhos e fez no chão um bocadinho de lama.

Morreu minha vaidade; apagou-se com ella o ultimo raio do meu amor. Quero viver nas trevas, que mais doces acolhem afflictos, onde melhor se escutam as vozes consoladoras.

A vós me dirijo para que amacieis o tormento de meu remorso.

Cançados suspiros inuteis Deus m'os recolherá agora, pois que tanto padeceu por nós. Acirrando a minha dôr, Elle me deu animo para vir ter comvosco. Elle me envia para que me ponha de joelhos ante vós a implorar de vossa piedade um só olhar; vencendo meus escrupulos, chamarei depois a compaixão do Senhor sobre a miseria da minha vida.

Tanto mal vos quiz! Deixae-me agora, ao dizer para sempre adeus ao mundo, que vos deseje todo o bem.

Nâo quero reler esta carta, não. Como se atreve assim a abjecta peccadora a implorar a que foi sua victima? Vou enviar-vos a carta antes que me arrependa.

Perdoae-me, senhora, ou Deus desconte em meus peccados a pena a que me sujeitar vossa justiça.

«Soror Maria».

De D. Anna de Portugal a Maria da Boa Hora

Nem tudo entendi de vossa carta, mas -- ainda que de ha muito vos não houvera perdoado -- para que todo meu perdão vos fôsse agora, uma só phrase vossa vol-o faria merecer.

Que dó tenho da vossa desgraça e como vos invejo a vossa resignação, a firme vontade de assim vos dedicardes. A'quelle cujos tormentos, por muito maiores e nunca merecidos, não devemos sem peccado, nem podemos sem loucura, aos nossos comparar!

Dizeis-me que no só proposito de escrever-me achastes consolação; mas que força encontrastes, que só Deus podia dar-vos, para me assim falardes de como, distraídos seu coração e seu pensamento de quanto lhe dizieis, o homem que amastes um e outro deixava vaguear por muito longe de vós?

Para me dar animo a qualquer sonho que ainda em meu peito acarinhasse, assim me querieis consolar e, ao cabo de vossa carta, me desejaes todo o bem.

Adivinho o que insinuar-me tentastes; mas, por mim, só queria a serenidade santa da vida que, esquecida do mundo e de seus males, ides agora encetar como serva do Senhor.

Não quero a vossa esperança, que, só da tentação que me deu de acceital-a, senti-me mais quebrada de forças o com maior turbação dentro em mim.

Aos que pretendem consolar-me rogo que não avivem meu tormento. Tomara dar cabo da memoria! Querer esquecer é a fórma mais cruel do recordar; recordar doces momentos do passado é mais amargurar a hora triste em que vivo.

Deus me ampare com a misericordiosa mão com que a Si vos chamou.

Bem fizestes em escrever-me; Deus vos guiou em vosso intento e soube escolher a hora.

Hontem, instantes depois de me haverem entregado a vossa carta, entrou meu irmão nos meus quartos. Sua compaixão por minha tristeza em que via definhar-me e sua ignorancia por meu verdadeiro estado, inspiraram-lhe a ideia a que seu orgulho, vencido emfim pelo amor que me dedica, longo tempo resistiu. Mandou vir a nossa casa quem elle cuidava senhor do poder para chamar-me outra vez á vida; contou-lhe o soffrimento que seus olhos liam em meu rosto, mas não soube dizer-lhe os segredos que meus labios calam e a vós somente hoje revelo.

Calculae quanto soffri, vós que amastes tanto; imaginae que luctas padeci dentro em minh'alma e como tive de aquietar o coração para dar serenamente uma resposta, unica digna de mim, de meu amor offendido, do grande exemplo que me destes.

Vós nos separastes; e vossa imagem invocada sempre, como unir-nos deixaria?

Ah! não vos dê esta minha declaração sincera maior remorso! Não nos traímos uma á outra; ambas fomos traídas pelo mesmo homem.

Toda a noite enchi de lagrimas a almofada do meu leito, a mim mesma perguntando se não seria minha resposta segredada por meu orgulho, se não seria meu ciume só filho de meu amor proprio.

O meu ciume que nos perdeu!

Para que havia eu de encaminhal-o para a defeza de El-rei? Queria que onde ello por vós havia posto seu odio, por meu amor fôsse levar sua defeza.

Toda a noite chorei. E' madrugada agora e decidi rosponder-vos, para que haja uma testemunha das promessas que fiz no segredo da minh'alma e para que, toda esta vos abrindo, melhor vos possaes inteirar de todo seu perdão.

Triste vida levo, que vejo minha mãe, dia a dia, a definhar-se, desde que me esqueci de seu amor para só me lembrar do meu. Tambem ella me perdoou e, em troca de tamanha falta contra ella commettida, enche-me de caricias ainda mais fundo buscadas em seu coração de mãe. Até junto do irmão. Conde dos Arcos, a quem a desgraça de El-rei levou com sua dôr á morte cruel, eu via-a desviar por instantes os olhos da agonia, em que se lhe ia a vida de um ente carissimo, para os volver á minha, compassivos.

E' meu dever quedar-me ao lado de minha mãe. Não fôra ella, como correria a seguir o vosso exemplo!

As lagrimas que molham este papel nem eu sei o que m'as puxa aos olhos, se as recordações de que desejo fugir, se a pena que me dá de não poder imitar-vos.

Imitar-vos!... Nem quero pensar em tal, que uma horrivel dôr se interpõe entre o fim de meu martyrio e o começo de meu descanço: a morte da querida mãe.

O que passa na minh'alma não sei, nem sei que desejar. Acaso alguma vez o soube? Parece-me ás vezes que não; outras, julgo um crime o ter deixado infiltrar-se na minh'alma este amor que havia de ser a minha morte.

Mas esta ideia, que persigo mais do que me persegue, nem ella por ora teve forças para arrancar de meu coração raizes fundas, que são da minha carne e alimentei com o meu sangue.

Amei um homem quasi desde a minha infancia. Outro não via que julgasse poder egualal-o na grandeza com que surgia a meus olhos encantados. O que d'elle me contavam deslumbrava-me a phantasia que dominava em mim todas as mais faculdades, minha razão perturbada, minha vontade que era uma só: amal-o, amal-o, amal-o muito, amal-o para sempre.

A bala, que o atravessou no campo de batalha, derribou n'um segundo, brutalmente, quanto, para minha ventura, em minha imaginação architectára. Julgei-me a mais desgraçada creatura do mundo.

Não sabia eu, n'aquelles tempos, o que eram desgraças.

Quiz então viver de minhas lembranças; nem outra consolação me parecia exigirem os agros momentos que passei. O que d'elle me contassem, que de seu amor me trouxesse mais uma prova, entrava suavemente na minh'alma, musica a descer-me do céo e que para elle me transportava, aonde era todo o meu querer.

Anciosamente esperava instantes deliciosos promettidos, que eu tentava approximar chamando-os com todo o vigor dos meus anhelos.

Um e outro, o que fôra senhor meu e a morte me roubára, e o que d'elle me dava novas e com ellas saciava minha alma afflicta, comecei a entrevêl-os n'um só, indefinido desejo, e como que a fundil-os n'uma só imagem.

Como deslindar enredos de amor? Como prevêr-lhes o desenlace?

Quem nos diria que um dia serieis vós a escolhida com quem desabafasse meu coração?

Aquelle que suavisava a minha tristeza havia dentro em pouco de ser a minha alegria. Quando lhe sentia os passos na escada, já não era pelo outro que arfava ancioso o meu peito; já elle occupava em meu pensamento o logar d'aquelle que me abandonára e cujo sorriso nunca mais em sonhos me appareceu a saudar-me.

Quando dei pelo que em mim passára, já de todo me não conheci; outra mulher nascêra em mim com meu novo amor.

Era a medo que eu resava por alma de André de Albuquerque, não já por um antigo impulso de meu coração, mas por que tinha receio de que, ao fechar dos olhos, surgisse a condemnar-me. Mas nem em sonhos o vi nunca mais.

Se tinha o outro as mesmas virtudes que me haviam despertado para o amor, e a mais -- Deus me perdoe -- a triumphante mocidade!

Sem quererem, porque nenhum dera pela minha transformação, ajudaram-a os meus com apologias que eu escutava contente, que eram para mim a melhor das alegrias, mas em que me envergonhava de tomar parte. Receios eram de meu pudor que me deveram ter sido aviso.

Tarde meus paes conheceram o estado de meu espirito; mas não mostraram contrariedade quando meus olhos, ainda antes que palavras, imprudentes, lh'o revelaram.

Quem n'elle não confiava, em suas qualidades, no valor de que déra tamanhas provas?

Era pobre... Esperámos; abandonámo-nos contentes em nossa esperança, vendo luzir uma estrella, que eu prppria -- já vol-o contei -- apaguei com meu sopro.

E hoje quero crêr -- vede bem como escrevo: quero crêr -- que, por culpa minha e porque não cuidei da fidelidade jurada, assim deixei captivar meu coração. E' que talvez nunca houvesse vibrado por aquelle a quem jurára amar eternamente e que tão cêdo, cêdo demais, pude esquecer.

Quero crêl-o e não posso.

Comecei este pedaço da minha carta para conseguil-o, vendo-o escripto por meu proprio punho; e aqui me estou já desculpando, porque, em verdade, culpa não tive.

Bem o sabeis vós que tinha de ser, vós que bem o conhecestes.

Tem sido uma lucta violenta que dentro em mim hei padecido; mas nem sei se, chegando a este convencimento que procuro, teria finalmente attingido o meu fim. Não sei.

E' quando a gente quer livrar-se de um amor transformado era martyrio que melhor mede sua grandeza.

Sinto-me cançada; creio que só n'um claustro, entregue minh'alma toda a um mais alto amor, poderia emfim, vencida o vencedora, cantar tristemente minha victoria.

Despedacei quantas lembranças tinha d'elle, e as que mais me eram caras foram as primeiras que sacrifiquei: cartas e retratos, pequenos objectos insignificantes, um nada para outros, para mim joias preciosas.

Mas não posso despedaçar a memoria nem com a morte!

Contaes-me como a vossa dôr transformou vosso rosto. Sinto-me tão combalida, que deve uma velhice precoce ter posto um estigma no meu. Ha lagrimas que são como brazas pelas faces e deixam sulcos profundos; os meus cabellos embranqueceram; o mais adivinho-o no olhar terno e compassivo de meu irmão que nada me diz, de meus paes que já nem tentam consolar-me.

O bem que elles me querem!... Como lhes mal paguei com minha irreflexão! Como fui cruel com elles e commigo!

Mas nada d'isto vos desejava contar. Como para longe me deixei ir n'esta carta do que vos queria dizer!

De vós sómente queria falar-vos e de vossa dôr e consolar- vos conforme pudesse. E de mim, só de mim vos falei, a contar- vos o muito que me fizestes soffrer!

Mal consolar-vos póde uma desconsolada; mas, pelo amor de Deus, não me leveis a mal o ter tido confiança em vosso coração, mostrando-vos a chaga que dilacera o meu.

Com toda a minh'alma vol-o digo: que menos devo eu fazer do que seguir o exemplo de Deus que vos perdoou?

A Elle offereço meus tormentos em acção de graças pelo bem que vos fez. Elle os acolha em sua infinita misericordia e ainda terei maior razão para d'Elle perennemente bemdizer.

Rogae ao Senhor que me dê forças.

E, já que elle nos conduziu por sua santa mão a este caminho, desgraçadas, amparemo-nos uma á outra em nosso padecimento. Já que o amor de um homem nos separou na vida, no céo nos venha a juntar o nosso amor a Deus.

Agradeço-vos, irmã, o terdes-me ensinado a resignação.

Orae por mim.

«Anna de Portugal».

CAPITULO V

Patibulo armado

Passaram-se uns annos.

Nem á custa de muitos cuidados, filhos de seus receios, conseguiram os principes a tranquilidade; nem, á custa de algumas lagrimas, um olhar piedoso de Deus.

A 10 de maio de 1674, pela manhã cêdo, os que passavam no Rocio viram, encostado ás casas dos Lencastres, armado um cadafalso, e junto d'elle tres forcas altas e, em frente de duas d'ellas, dois postos mais altos, ainda.

Iam morrer degolados Fernão Mascarenhas, por ter incorrido na pena da lei, dizia o pregão, seus filhos infames, seus bens confiscados para a coroa; D. Gaspar Maldonado e seu filho D. João; D. João de Mello. Enforcado morreria D. José Peçanha, capitão de cavallos, D. Antonio Cachopim, castelhano de nação, e Diogo de Lemos, bacharel e advogado da casa de supplicação, depois de enforcados, arrastados e esquartejados, expôr-lhes-íam as cabeças em postes defronte da forca em que morressem.

Ah! se o Principe adivinhara que amarguras haviam de trazer-lhe os perfidos conselhos que lhe deram, as suas ambições e o seu amor incestuoso! Tantos angustiosos tormentos não lhe eram compensados pelos pedidos de alliança que lhe offereciam as primeiras nações da Europa, nem por ter vindo de Hespanha o Conde de Oropesa tratar do ajuste de casamento entre a Princeza Izabel e El-rei Catholico, nem por saber que muito em Hespanha se acariciava a ideia de chamar ao throno o Principe portuguez, se curta foôsse a vida de Carlos II, como o prognosticava sua saude fraquissima.

Em volta do throno ferviam as intrigas dos ministros estrangeiros e as ambições dos ministros portuguezes.

O Barão de Batteville, enviado de El-rei Catholico, espalhou que havia tratados secretos entre Luiz XIV e a côrte de Hespanha, para que esta consentisse a um exercito francez caminhar pelos seus territorios e vir conquistar Portugal. O abbade de Saint-Romain, indignado, desmentiu a calumnia.

Andava o povo revoltado e, quando chegou o novo embaixador de França, foi fazer tumultos sob as janellas de seu palacio.

Novo embaixador veio de Hespanha, o Conde de Humanes, que propunha uma contra-liga, formada com a Hespanha e com a Hollanda, em nome d'esta promettendo ao Principe entregar-lhe Cochim e Cananor.

Não queria o D. Pedro saír de sua neutralidade e, sempre receoso, vendo ambiciosos sedentos transformarem-se em inimigos, começou dando ouvidos aos que lhe aconselhavam que nas côrtes proximas se coroasse, procurando assim pôr um ponto final em tantas inquietações como as produzia o titulo de rei ainda usado por D. Affonso.

Fizera cinco annos a Princeza Izabel, e a Rainha que, depois do mau successo que tivera em Villa Franca quando viajava para Salvaterra, fôra condemnada á esterilidade, só na filha punha uma esperança de successão para estes reinos, como já toda a puzera para quietação de seu espirito.

Mas tremia, ás vezes, com um susto indefinido, que lhe dava em meio de suas caricias.

-- Filha!... Filha!... Que tens? dizia-lhe, quando a pequenina fitava n'ella os olhos innocentes em que os remorsos da mãe liam uma accusaçao.

Era filha d'um crime; Deus não a castigasse na sua filha!

E d'onde mais esperava consolação lhe vinha inquietação maior. De noite, não podia dormir sem luz, porque via na sombra os olhos da filha a luzirem, a interrogarem-a.

Tão fraquinha era a creança!... Se lhe morresse?

Descobriu-se por esse tempo a conjuração a que o embaixador de Hespanha, Conde de Humanes, incitara alguns portuguezes descontentes. El-rei D. Affonso iria uma esquadra hespanhola buscal-o á Ilha Terceira e seria restabelecido no throno. Não seriam poupadas as vidas ao Principe regente nem á Princeza sua esposa; mas o mais horrivel, e que endoidecia D. Maria Francisca de Saboya, era terem-lhe dito que egualmente condemnada fôra sua filha.

Abraçou-se á Princezinha, deu urros de leôa, não quiz que a ninguem se perdoasse; entrou-lhe n'alma para sempre, o terror.

O Conde de Humanes foi expulso, os outros condemnados á morte.

Acabrunhado, envelhecido por tantos annos de exilio, o Conde de Castel Melhor, morto de saudades de sua mãe e de seus filhos, implorava a compaixão do Principe. Que o deixassem voltar á patria, pedia, que o condemnassem como intendessem, mas que o deixassem ao pé dos seus.

E D. Maria Francisca de Saboya, ao temer que uma duvida abalasse o animo do marido, reuniu os que mais de perto o aconselhavam para que a todos os rogos d'um pae afflicto se respondesse com a maior das crueldades.

Tudo eram receios, tudo eram pavores no paço, na côrte e entre o povo.

N'essa triste manhã em que o patibulo foi armado no Rocio de Lisboa, ainda antes da aurora haviam começado as missas na capella do palacio de D. João d'Almeida.

D. Violante Henriques estava no côro, com a cabeça coberta por um espesso véo de viuva e, se alguma vez se distraía de tamanha dôr como aquella a que estava assistindo, era para agradecer a Deus ter-lhe levado o marido antes que pudesse vêr tamanhas desgraças.

Nomeada, depois de viuva, guarda-mór da Princeza D. Maria Francisca, de que lhe havia servido sua influencia no paço? E nem sabia agora o que havia de pedir a Deus, se usasse com ella a mesma misericordia com que o esposo havia chamado a si, se lhe desse vida ainda para poder acolher em seu peito tantos desaventurados.

Anninhas era junto da mãe, e ambas sustinham nos braços a filha do Conde dos Arcos, D. Antonia de Bourbon, mulher de Fernão de Mascarenhas, um dos condemnados.

Era espectaculo de cortar a alma; ora a desgraçada viuva lhes desmaiava nos braços, ora, quando, mais desgraçada acordava, não sabiam ellas que palavras de consolação murmurar-lhe.

Em quinta-feira santa, quando o Principe estava na tribuna da capella real assistindo aos officios, entrara D. Antonia de Bourbon e lançára-se a seus pés, rogando-lhe perdoasse a vida a seu marido e não lhe infamasse os filhos; que o condemnasse, se culpas havia, á perda de todos seus bens, que ella iria mendigando o pão das creancinhas. Pois houve quem, na esperança da commenda que vagava, dissesse ao Principe: «Não póde V. Alteza perdoar prejudicando o reino, ao qual o delicto intentou fazer maior damno.»

Respondeu o Principe á esposa de Fernão de Mascarenhas que mandaria vêr a causa por seus ministros e lhe seria feito o favor a que désse logar a justiça. E ella replicou:

-- O dia em nada é da justiça; todo é da misericordia d'um Deus que perdoou a seus homicidas, e deve V. Alteza imital-o como seu retrato na terra, o que não são seus ministros.

Então alguns a retiraram da presença de D. Pedro.

Ali estava agora chorando lagrimas de sangue, á hora talvez em que o marido, beijando o crucifixo, ía inclinar sobre o cepo a cabeça offerecida ao golpe do machado.

D. Pedro d' Almeida, ajoelhado no corpo da egreja, meditava em tanto lucto que, tão immerecido á justiça divina, todos vestiam n'aquella casa. E, compungido pelos soluços que ouvia, pelo terror d'aquella hora, por tão funestos agoiros que em todas as boccas prediziam infortunios maiores, tremia pela vida da mãe, de saude já tão abalada, pela saude da irmã, que tão melancholica via a definhar-se.

A' capella chegava confusamente o murmurio do povo, que se apinhava no Rocio em torno do cadafalso. Augmentou a vozearia, ouviram-se gritos em côro.

A campainha tocava ao levantar a Deus.

Seria a primeira cabeça decepada?

-- Perdoae-lhe, Senhor! disse afflicta D. Violante.

D. Antonia de Bourbon continuava desmaiada.

D. Pedro tinha os filhinhos ao lado: abracou-se a elles. Deus lhes desse melhor sorte que a todos d'aquella casa.

Pobre mãe!... Pobre irmã!... Era seu dever d'ellas agora acudir a maior desventura; talvez assim pudessem esquecer a sua.

Com que paciencia soffriam! Com quo resignação sacrificava uma a tranquillidade da sua velhice, sacrificara a outra a sua mocidade radiante!

Era longe, muito longe Manuel Furtado, que, devotado á causa da patria, perdida a esperança de ventura por um amor e de salvação para El-rei, partira para o Brazil, com a morte dentro em si por companheira.

Pero Rolão chegou ao terminar a ultima missa e mandou aviso a D. Pedro, que lhe veio falar á sachristia.

-- Então?

Pero Rolão, muito pallido, batiam-lhe os joelhos um no outro.

-- Morreram christãmente, respondeu.

-- Deus tenha suas almas! disse D. Pedro.

E correu dentro a amparar a mãe.

Como lhe ella pesava no braço! Como se arrastava! A poucos dias de vida ainda a condemnava o céo! E era do misero desterro que ella se queixava.

-- Deus!... Deus!... Até quando?... Até quando?

Anninhas, com os olhos cheios de lagrimas, seguira atraz, amparando a viuva.

-- Ah! Manuel Furtado! pensava Pero Rolão. Quem tinha razão eras tu! Para dar largas a tantas ambições não foi que arriscámos tantas vezes a vida.

Agora são cadafalsos o esteio do throno; manda no algoz quem o algoz merecia.

E quantos no reino inteiro o mesmo pensavam n'aquella hora!

CAPITULO VI

O prisioneiro de Estado

Saíra, havia tempos, para o mar Pedro Jacques de Magalhães com sua esquadra; mas poucos na côrte sabiam que recommendações levára, ainda que não faltava quem désse por muito certo que se tratava d'El-rei, talvez de mais o estreitar em sua prisão, talvez de mudal-o para mais segura.

Ninguem dormia descançado, mas andavam todos como receosos na côrte e no povo.

Não via a princeza sorrisos abertos em labios que lhe falassem embora lisongeiramente, nem por muito que escutava lhe chegavam aos ouvidos canções alegres das ruas.

Nem uma hora de sua vida podia agora contar, que a não viesse turbar um sobresalto. Inquietações da consciencia não havia coisa que Ih'as compensasse, nem sequer ventura passageira em minutos de amor, d'aquelle amor a que tanto sacrificára.

Mas nem as repetidas traições do marido a distraíam de seu scismar constante, Ah! quem lhe déra ter ainda logar para ciumes no coração!

Outros eram seus cuidados, do que nem o somno a livrava, ao pudesse chamar somno ás horas angustiosas em que na cama lactava com ameaçadores phantasmas.

Mal se atrevia a confessar-se ao marido, porque, uma vez que o tentára, saíra mais angustiada ainda da expansão a que a obrigára seu terror.

O cadafalso, a forca, porque haviam de deital-os abaixo? Era preciso que sempre, sempre ali estivessem armados para exemplo, que sempre trabalhassem á menor suspeita.

De noite, andavam-lhe esvoaçando em torno do leito as cabeças decepadas. Ainda eram poucas. Fôra cobardia o haverem-se queixado do Conde de Humanes á Rainha de Castella, o qual não merecia immunidade porque não guardára a fé publica e commettêra traição. Tinham querido evitar a guerra! Quanto mais nao valia uma lucta á mão armada, com inimigos a mostrarem-se a toda a luz, do que o receio constante d'um punhal, a desembainhar-se na sombra, para feril-a, ferir o marido, ferir-lhe a filha!

Pois ainda tantos amigos tinha El-rei, que eram dos conjurados os primeiros da côrte!... De que desgraças havia sido causa seu amor adulterino e incestuoso! Morrêra de paixão, ao saber da prisão de El-rei, o Conde dos Arcos; quizera vingal-a o genro e morrêra ás mãos do algoz; n'aquella manhã recebêra novas que a morte puzera ponto aos martyrios de D. Violante Henriques.

E nada a moderava em seus impetos. O que mais a torturava era dizerem-lhe que a Rainha de Inglaterra era toda pelo irmão maia velho e que soubéra da conjuração e protegêra-a.

Tanto D. Catharina se interessava pelo Conde de Castel Melhor!... Porquê?... Para juntos combinarem a traição decerto. Não, não consentiria que saísse o Conde lá da Saboya, onde podia a Princeza, sua irmã, vigial-o.

E chamava a filha para junto de si, e abraçava-a, beijava-a, lavava-lhe com lagrimas a testa onde cuidava vêr um ferrete ignominioso.

Como eram tristes os olhos da creança e como olhavam para ella pasmados! Mettiam-lhe mêdo.

Se aquella pequenina houvesse de morrer, se a causa unica, apresentada ao reino, que dera um ar de justiça á tragi-comedia do casamento, a quizesse annullar a justiça divida?

-- Mãe... que me faz doer! disse-lhe a pequenina, quando ella um dia a estreitava anciosamente ao peito.

E largou-a logo, e viu-a saír e ficou-se immovel, cheia de arripios.

Indignou-se contra Deus. Para que matal-a assim tão lentamente? Ella era mais expedita em suas vinganças.

Havia de luctar, havia de luctar, custasse o que custasse, que importava? Havia de collocar a filha no throno, pôr-lhe na fronte uma corôa de Rainha.

O marido, o primeiro... Que odio lhe tinha!

N'essa manhã em que soube da morte de D. Violante, veio mais cêdo o Principe a visital-a. Trazia sombrio o rosto e um vinco vertical, fundo, entre os sobr'olhos carregados.

Perguntou pela filha.

-- Agora se foi, respondeu D. Maria Francisca.

E interrogava o marido com o olhar.

-- Ainda não chegaram novas, respondeu elle, bem sabendo o que lhe ella perguntava.

-- A demora assusta-me. Cada hora que passa duplica o meu tormento.

-- Nada temos a recear; a esquadra é poderosa, Pedro Jacques é de confiança.

-- Bem sei. Não é dos homens que temo; d'elles sabemos defender-nos, que são em nossas mãos suas vidas.

-- Agoiros! Para que haveis de acreditar...

Mas elle mesmo tinha a voz pouco firme.

-- Não posso, não posso...

Baixou a voz e, mais para si que para o Principe, murmurou:

-- Tremo por minha filha!

-- Diligenciae esquecer.

-- Aturdir-me? perguntou ella.

Olhou para o marido, que não dormira no paço e tinha impressos no rosto macilento os excessos da noite lá fóra.

-- Como vós? accrescentou.

A's faces de D. Pedro subiu um bocadinho de côr. Não respondeu; fingiu não perceber a pergunta.

-- E que decidistes de El-rei?

-- Mandal-o para Cintra bem vigiado.

-- Para Cintra... sim... Está mais perto... E' preciso que gente de confiança o guarde... Trezentos soldados pelo menos... Haverá trezentos soldados de confiança?

O Principe sorriu-se; mas havia dôr na contracção de seus labios.

A' morte do Conde do Prado seguira-se breve a do Marquez de Cascaes; D. Rodrigo de Menezes déra-lhe um accidente de apoplexia e para breve sua morte se esperava. O Marquez de Marialva, muito velho, andava doente e o Conde da Torre de mal com o paço, depois que o Principe o descompuzera pelo vagar com que se aprestavam umas embarcações que tinha a seu cargo. Até n'aquelles dias lhe faltava o Duque de Cadaval, de nojo pela morte da mulher.

Tantos lutos na côrte traziam agoirada D. Maria Francisca de Saboya e seu coração cheio de temores.

Dias depois, a 20 de setembro, entrou no Tejo a armada sob o commando de Pedro Jacques, a qual deu fundo em frente de Paços d' Arcos.

Do povo ninguem sabia o que tâo a occultas fôra tramado.

Deu ordem o Principe ao Duque de Cadaval que fôsse receber El-rei e n'esse mesmo dia, o conduzisse com boa escolta ao paço de Cintra.

Na praia teve noticia o Duque do que vinha El-rei muito agastado contra Manuel Nunes Leitão, que, nomeado governador do Castello de Angra, com a consignação necessaria para os gastos de seu emprego, mais não fôra do que barbaro carcereiro, com patente de sargento-mór de batalha.

Chegou o Duque ao navio onde encontrou El-rei fechado no camarim, porque, de espada desembainhada, queria matar a Manuel Leitão.

Não temeu; deu ordem que lhe abrissem e entrou.

Olhou para os olhos d'El-rei e viu n'elles accesa a loucura. Aproveitou-a.

-- Senhor, disse-lhe. Venho livrar V. Majestade de um grande perigo, que se vae este navio a pique!

E El-rei acreditou-o.

-- Saíamos! disse.

Chegou a terra, sem uma só vez olhar para os lados da cidade, que tantos nojentos traidores abrigára. D'olhos baixos, sobr'olho carregado, não deu palavra, emquanto a chalupa veio singrando pelas aguas do Tejo.

Viu a liteira e junto d'ella uma companhia de cavallos das tropas residentes na côrte e de que era cabo o Duque de Cadaval.

-- Aonde vamos? perguntou.

-- A Cintra, meu senhor, respondeu-lhe o Duque.

Entrou na liteira; disse ao Duque de Cadaval que o acompanhasse.

Mas reparou que á estribeira cavalgava Manuel Nunes Leitão.

-- Preso! disse melancholicamente. Ainda estou preso!

Baixou a cabeça o disse com voz magoada:

-- Mas porquê?... Mas porquê.

Era meia noite quando chegou a Cintra. Mostraram-lhe os quartos pouco espaçosos onde o mandavam encerrar.

Perguntou:

-- Ainda d'aqui me levarão para outra parte?

Responderam-lhe que não.

Ergueu resignado as mãos ao céo.

-- Estou comvosco, senhor, disse-lhe uma voz cheia de ternura.

-- Deus te abençõe, que me não deixas só.

E El- rei e o Braz, com as testas encostadas aos ferros da janella, puzeram-se a vêr nascer um bocadinho de lua por detraz da serra.

Os soldados gritavam alerta em volta do paço.

E El-rei disse ao maluco:

-- Quando o vento soprar do sul, ha-de aqui chegar o perfume dos pinhaes.

Para maior segurança, a companhia de cavallos deixou-se ficar em Cintra, devendo ser rendida todos os mezes, e os trezentos infantes puzéram-os a cargo do sargento-mór, filho de Manuel Nunes Leitão, que não degenerára dos seus e desejava agradar ao Principe.

Pedro Jacques e o Duque de Cadaval, ainda não rompia a madrugada, já vinham correndo a galope pela estrada de Lisboa, sabendo como D. Pedro estaria ancioso de novidades.

Esperava-os na Côrte Real e a Princeza era junto d'elle.

-- Então?

-- Foram cumpridas as ordens de V. Alteza.

-- Quantos soldados o guardam? perguntou D. Maria Francisca.

-- Trezentos infantes e uma companhia de cavallos.

-- E que vos disse meu irmão?

A Rainha não domou um gesto de impaciencia. Que importava?

-- S. Majestade, respondeu o Duque, pareceu-me muito abatido e sua razão muito abalada.

-- Ah! exclamou ella.

-- E vós, Pedro Jacques, que novas me trazeis? perguntou-lhe D. Pedro.

-- Confirmo a opinião do Duque meu senhor. Parece-me que El-rei não durará muitos annos e sua razão é apenas luz bruxuleante, de que não ha temer.

E o Principe dizia comsigo:

-- Tão pouco não ha elle soffrido!

O mesmo pensava a Princeza talvez, mas um jubilo estranho luzia-lhe no olhar. Era preciso que elle morresse, para que ella descançasse finalmente, para que a certeza a animasse de que seria rainha sua filha. Dispersos seus terrores, ella saberia esquecer os remorsos.

Mas, de repente, soltou um grito.

A filhinha acabava de entrar, e chorava cheia de mêdo, e tremia, e todo seu corpinho era frio.

-- Mãe!... Mãe!

-- Que tens? disse-lhe o Principe afflicto, abraçando- a.

Mas a creancinha não podia falar, gaguejava, e só os olhos é que diziam o seu terror.

Que lhe haveriam contado?

-- Fala, filha, fala.

E D. Maria Francisca enchi-a de beijos.

Viu-a desmaiar. Soltou um novo grito. Acudiu gente. Um creado explicou: a Princezinha adormecêra, sonhara alto.

-- Que dizia? perguntou D. Pedro afflicto.

Mas o creado acanhava-se.

-- Explica-te!

-- Não ouvi bem... Falava de El-rei e que o iam matar...

-- Que mais?

-- E que era V. Alteza... e que era S. Alteza, sr.ª D. Maria Francisca...

A pequenina abriu os olhos, olhou para a mãe, e com os labiosinhos muito descorados balbuciou:

-- Não o mataste, não?

Então D. Mana Francisca levantou-se e fugiu pelos corredores, com as mãos na cabeça, os cabellos desgrenhados.

Accusava-a do crime a propria filha!

CAPITULO VII

O exilado

Quem lhe diria que assim havia de arrastar a vida! Em que solidão vivia n'aquelle paço!

Eram de cada hora as traições do marido, que já nem quasi d'ella se escondia para commettel-as! Assim queria talvez illudir cuidados, esquecer os sonhos maus que de noite o perseguiam.

E um remorso muito intimo dizia-lhe que era bem feito, que tambem ella fôra traidora, que era castigo de Deus sua esterilidade, que devia de soffrer, soffrer, ouvindo constante o espectro, entre pavores, murmurando-lhe que sua filha havia de morrer e se havia de lhe acabar a raça.

Ah! que longas agonias padecia por suas culpas!

Tudo a amendrontava.

Fôra ella quem obrigára o marido a insinuar ao Conde de Castel Melhor que lhe seria grato vêl-o retirar-se para Turim, onde então reinava Carlos Manuel II, desposado com Maria Joanna de Nemours.

Tinha lá uma irmã para vigiar cada passo do homisiado ministro de D. Affonso VI. Sentia-o alí mais seguro do que em França, para onde primeiro se retirára.

E o Conde obedeceu á insinuação do Principe e, morto de Saudades, ali continuou seu exilio.

Então, maravilhada, D. Maria Francisca viu o desterrado crescer em valor e augmentar na Europa inteira o respeito que a todos merecêra. Escreviam-lhe Luiz XIV de França e Carlos II de Inglaterra dando-lhe o tratamento de primo e em sua defeza escreviam aos Principes de Portugal. Era a propria Duqueza de Saboya quem por elle intercedia junto de sua irmã, era ella quem pedia, poucos annos depois, ao Conde de Castel Melhor olhasse por seus negocios d'ella junto da côrte franceza.

E a D. Pedro e a D. Maria Francisca tingiamse-lhes as faces de côr da vergonha.

Fôra aquelle o homem que haviam tratado como inimigo!

E cresceu-lhes o odio contra elle.

Que longos annos levou o Conde de Castel Melhor e que lagrimas amargas chorou longe dos seus!

Um anno andára por differentes terras, sete annos havia que o céo benigno de Italia o não podia consolar de suas saudades. Pedia, pelo amor de Deus, que lhe déssem um cantinho de Portugal onde pudésse consolar-se de sua desgraça abraçado aos filhos.

-- Não! não!... que me põe mêdo! exclamava a Princeza.

E o Principe punha-se a tremer ao lado d'ella, agoirento tambem, não querendo criar amor á filha, em cujos olhos não queria lêr, não queria...

E, altas horas, saía do paço, a procurar esquecer cuidados, como os esquecia o irmão.

Insistiam por sua clemencia reis e principes, mais que todos a Rainha de Inglaterra, e elle duvidava e não sabia que resposta dar-lhes!

Ah! como o Conde era querido d'elles todos!

E em todos começou a vêr traidores, até na propria irmã!

Para um martyrio d'aquelles, assim roubára sceptro e corôa!

Vigiavam sentinellas o palacio de Cintra; mas como pôr sentinellas a Deus?

Então mais devotados amigos, como elle receosos, lembraram-lhe maneira de ser agradavel a tantos parentes, melhor obtendo ainda livrar-se de qualquer tentativa de rebellião de que pudésse o Conde ser cabeça.

O rosto do Principe illuminou-se. Como mais cêdo lhe não viera aquella inspiração?

A maior parte da casa da Marqueza de Castel Melhor, uma boa parte da casa do proprio Conde, eram na Ilha da Madeira; conceder-lhe-íam que para ella se retirasse e lá um governador escolhido entre inimigos o teria á sua mercê o lhe impediria uma nova fuga.

Agradeceu o Conde; mas não se deixou illudir.

Adivinhou a cilada a Rainha D. Catharina.

Carlos II escreveu novamente a D. Pedro, dizendo-lhe a compaixão que lhe inspirava o triste exilado, que tão devotado fôra á sua patria, e a gratidão que lhe devia pela alliança que mantivera entre as duas corôas. Rogava-lhe que o deixasse ir para Inglaterra, dando em penhor sua palavra que só lhe daria protecção em quanto o visse fiel a seu Principe e á sua patria.

Ainda o Principe se desculpou; mas a uma segunda carta teve emfim de curvar-se. E' que terminava por estas energicas palavras: «Pareceu-nos portanto dever participar a V. Alteza que significámos ao tantas vezes lembrado Conde a nossa dôr pela infructifera intercessão que por elle fizemos e que lhe offerecemos a nossa protecção, que por direito lhe podemos dar, nos nossos dominios, a qual, todavia, antes quizeramos que elle devesse á vossa benevolencia do que á nossa commiseração. Porém a justa consideração dos seus merecimentos e o incansavel zelo com que de muitos modos serviu a uma e outra corôa, não permittem que o deixemos morrer sob o peso dos infortunios, antes exigem que lhe estendamos a mão auxiliadora e lhe prestemos soccorro tempestivo.»

Mal podia D. Pedro suster a penna ao assignar a resposta.

Ah! Como lêr aquellas palavras finaes no papel que o secretario lhe apresentava?

«Concedemos a auctorisação que V. Majestade deseja e, em virtude d'ella poderá o Conde, inteirado por V. Majestade d'esta nossa resolução, passar a Bretanha e viver na côrte de V. Majestade, cuja saude e bem estar encommendamos a Deus com todo o fervor. Em Lisboa, a 12 de abril de 1677. -- De V. Majestade, bom irmão, primo e amigo.»

Tremia-lhe a penna e não acertava com as letras da complicada asignatura.

D. Maria Francisca de Saboya relia ainda uma vez a carta. Fôra ella quem mandára não esquecessem phrases que bem lembrassem as promessas de El-rei. Lá estavam. Se seria bastante?

E relia mais uma vez.

«Fé e real promessa... Bem e cautelosamente vigiado... V. Majestade não interpora mais a sua auctoridade a favor do regresso do Conde para Portugal...»

-- Assignae, disse ao marido.

Tremiam-lhe as azas do nariz; os olhos saíam-lhe das orbitas.

E elle então assignou : «Pedro, Principe.»

Embora entre amigos, era sempre o exilio! Corriam-lhe as lagrimas ao lêr as cartas de Carlos II e da Rainha D. Catharina.

Nâo adivinhavam estes que premio haviam de receber de sua boa acção!

Não adivinhava a Infanta portugueza como contra ella haviam de intrigar os inimigos dos catholicos, accusando-a de cumplice do medico George Wakeman na tentativa contra a vida de El-rei. E foi o Conde quem lhe valeu, e foi devido á sua energia que, muito embora sabendo quão longe El-rei tinha de seu coração a imagem da filha de D. João IV, que nada devia á formosura, obrigou Carlos II a esta resposta, que deu aos que lhe levaram a mensagem da camara: «Pensam que eu apeteço uma nova esposa, mas ainda que assim fôsse, não consentiria que perseguição d'uma mulher innocente.» Foi o Conde, pelas sympathias que soubera conquistar, quem obteve a absolvição do medico, pois a cumplicidade da Rainha juravam-a os mesmos que accusavam George Wakeman. E D. Catharina saíu illibada.

A Carlos II pagou-lhe a generosidade levando-lhe ao leito da morte, com perigo de sua propria vida, o padre catholico que lhe ministrou os sacramentos.

E, sempre pugnando pela patria e pelo dever, entre lagrimas continuou vivendo no desterro a que um odio de mulher o condemnara.

CAPITULO VIII

Soror Maria

Feito Conde de Assumar e nomeado vice-rei da India, estava D. Pedro d'Almeida em vesperas de partida.

Saudoso da mulher, muito agarrado aos filhos, consolava-os com palavras meigas.

Era dever que tinha de cumprir, fugir da ociosidade a que por tantos annos se vira condemnado e deixar um nome honrado aos seus. Queria retemperar a alma abatida n'aquellas tristes luctas da côrte, em que sempre tão empenhado via seu cunhado, Marquez de Fronteira, cujo novo titulo parecia ter-lhe acalmado algum tanto as antigas farroncas.

-- Um bom irmão afinal, dizia.

E olhava para os olhos quo a mulher desviava d'elle querendo esconder-lhe a tristeza.

-- Devo ao seu valimento o favor do Principe e a minha nomeação.

-- Por isso choro, respondia ella abraçando-o.

A cada momento esperavam a volta de Manuel Furtado, a quem, desde que tivera a certeza de seu novo cargo, D. Pedro escrevêra desejando-o por companheiro em sua missão, onde muita honra esperava colher.

Mas que tristes recordações lhe trazia aquelle nome!

D. Anna, logo depois da morte de sua mãe, recolhêra-se ao convento da Conceição em Beja, sem que na familia houvesse quem de tal escolha adivinhasse a razão.

As cartas que ella escrevia eram cada linha um exemplo de resignação christã. Toda se entregára a Deus e bemdizia seu nome em cada linha.

Ora n'essa manhã, chegou carta de Beja e não era de Anninhas o sobrescripto que D. Pedro rasgou com um mau presentimento.

Dizia a carta:

«Irmão. Dize a teu coração que se resigne com suas saudades, se lh'as eu merecer. Volveu Deus a mim seus olhos finalmente e ouvi sua voz que me chamava. Poucas horas ainda terei de martyrio, aliviado já por uma esperança que me enche de forças para meu ultimo instante. Orae por mim, que, confiada na misericordia divina, breve espero estar resando por vós, de joelhos aos pés do throno perpetuamente luminoso do Senhor. Dize a minha irmã Margarida que me perdoe o ter-lhe faltado com minha ajuda na educação de seus filhos. Alguma vez lhe abri a minh'alma e, lembrada do que lhe disse, minha irmã saberá usar de clemencia com uma triste peccadora. Refugio contra um amor só est'outro que busquei. Muito me ajudou para minha salvação uma querida companheira, cujos dedos, afagando a minha chaga, aquietaram as turbações da minh'alma. Orae por ella. Todos, um dia, nos encontrarêmos onde a paz será eterna. E' a oração da minha ultima hora. Tua irmã que sempre te quiz muito. -- Anninhas.»

D. Pedro, pallido, o como n'um entre-sonho doloroso, mal podia acreditar no que lhe diziam aquellas linhas que outra vez relia. Soltou um suspiro e corria para a mulher a dar-lhe mais uma triste nova e a procurar consolação, quando, erguendo os olhos, viu ante si um homem que a principio não conheceu.

-- Pedro! disse-lhe elle.

Era a voz d'um amigo.

-- Manuel! exclamou o Conde de Assumar.

E a soluçar caíu-lhe nos braços.

Era Manuel Furtado. Mas quão mudado vinha! Como lhe pesavam os quarenta annos! Alquebrado, com os cabellos quasi todos brancos, os olhos sem luz, fundas rugas sulcando-lhe o rosto, não foram decerto apenas penosos trabalhos de seu officio de militar nas doentias regiões do interior da America que assim o haviam transformado, de tão robusto e ainda galan que se partira.

Velho tremulo, angustiado, perguntava:

-- Que tens?

-- Em que má hora chegas, Manuel! Lê, respondeu-lhe D. Pedro.

D. Margarida acabava de entrar com os filhos. Ouvira os soluços do marido; vinha abraçar-se a elle, ainda não sabendo, mas já adivinhando o desgosto que o feria.

Manuel Furtado desdobrára anciosamente o papel em que reconhecêra a letra de Maria da Boa Hora. Correu a vêr a assignatura. «Anninhas!» Que mysterio era aquelle?

E leu a carta, com muitas lagrimas silenciosas a correrem-lhe pelo rosto.

Em sua ultima hora ainda Anninhas dictára aquella palavra amor pensando n'elle!... E relia as linhas tão cheias de conformidade e adivinhava o esforço feito pela enferma a expirar para não falar de sua paixão, que ainda á terra talvez sua alma lhe prendesse.

Mas aquella letra...! E, em meio de sua dôr, não deixou de reparar que era tremida, como se a mão que pegava na penna mal pudésse dar conta do que lhe mandavam.

-- Anninhas! disse.

-- Anninhas! repetiu D. Pedro. A minha, a tua Anninhas!

Mas D. Margarida quiz animal-o. Seria talvez exagero da irmã; o desejo que tinha da morte faria que a visse de mais perto, como quem sonha.

-- Não, respondeu D. Pedro. A freira a quem ella dictou a carta, nem uma linha lhe accrescenta de sua lavra, o que confirma a verdade do que minha irmã me escreve.

Olhou para Manuel Furtado.

-- Parto immediatamente para Beja. Acompanhas?

Manuel Furtado curvou-se.

-- Partiria, embora só. Agora desembarquei e vim correndo a tua casa. D'amigos saberei depois. A Lourença... Pero Rolão cuidou do seu enterro. Lá está no adro do Salvador ao lado de minha mãe. E' só o tempo de beijar as duas campas. Querido Pedro!...

E outra vez, entre lagrimas, os dois abraçaram-se.

Não esperava alegrias não, á sua chegada a Lisboa. Para Manuel Furtado era o céo toldado para sempre. Nem depois dos longos annos de ausencia, de mezes atravez do Oceano, teve aquelle contentamento do viajante que afinal avista o céo da patria, boccadinhos de terra em que foi feliz. Tudo lhe recordava tristezas: a serra de Cintra, a praia de Paço d'Arcos, os montes da Trafaria, a torre de Belem a brilhar como perola entre as aguas do Tejo côr de saphira.

Agora com D. Pedro d'Almeida, na liteira, atravessando as charnecas do Alemtejo, outras saudades ainda mais dolorosas lhe occorriam, mais amargas porque lembravam contentamentos.

Como elle atravessára, por aquelles mesmos sitios, collinas e valles, a galope desenfreado de seu cavallo, trazendo a El-rei a nova da victoria d'Elvas e seu pensamento na mulher que, tão sem macula, lhe habitava n'alnia ! Não era a mesma que chorava agora. Não. Como se déra aquella mudança?

Já haviam deixado á esquerda a estrada que levava a Evora. Outro scenario fôra de seu drama. Lembrou-se de seu primeiro beijo nos cabellos loiros de Anninhas, do grito que então ouvira...

Vinha rompendo a manhã quando chegaram a Cuba.

-- Meu Deus!... Meu Deus! como a liteira caminha lentamente! dizia D. Pedro.

Iam mudar-se as mulas.

Então Manuel Furtado ouviu dois homens conversando, encostados ao balcão da estalagem.

-- Ainda hontem vivia, dizia um d'elles.

-- Porque ha de Deus atormental-a assim, perguntou o outro, se todos lá dizem que ella é santa?

-- Dil-o a gente de Beja, que melhor a conhece, e já tão longe lhe chegou a fama, que até do Algarve lá foi uma mulher para que ella pedisse a Deus que lhe curasse um filho.

-- E curou?

-- Está claro que havia de curar. A mulher voltou para a terra, como quereis vós que eu o saiba?

-- Não havia pobre nem rico que, batendo áquella porta, d'ali se fôsse ainda a mendigar consolações.

-- Foi por isso que eu senti nem sei o quê nas entranhas, quando, á boquinha da noite, lá cheguei com as minhas couves e ouvi as freiras cantando na egreja. Já a nmsica era tão de encher a gente de tristezas que logo adivinhei desgraça por pouco. Então perguntei á rodeira: -- «Por quem rezaes?» E ella respondeu-me, e mais me disse que talvez a doente ainda désse conta da noite.

Manuel Furtado approximou-se. Batia-lhe o coração.

-- De quem falaes?

E mal ouviu a resposta, gritou para D. Pedro:

-- Tua irmã vive!... Ainda vive!

Ah! não haver ali dois cavallos que os levassem a toda a brida, como d'antes!

Vivia!... Anninhas ainda vivia!

Já lá ao longe se avistava a torre de Beja. As mulas, na estrada velha, mal concertada, animadas pelos gritos do moço e pelas chicotadas, davam o que podiam.

-- Depressa!... Depressa! gritava D. Pedro.

-- Saiba ella, ao menos, que estou prostrado ante o altar da egreja, pensava Manuel Furtado, ali, a rezar por ella, emquanto seus labios se abrem para o ultimo suspiro! Senhor do céo, attendei a minha supplica; saiba que lhe fui fiel e toma era conta minhas lagrimas para conceder-me seu perdão!

Pelo terreno ondulado e monotono continuava caminhando a liteira.

-- Depressa!... Por Deus, depressa! tornou D. Pedro a gritar.

A estrada enchêra-se de barrancos com as primeiras chuvas. Uma das mulas caíu.

-- Valha-nos Deus! disse D. Pedro.

E Manuel Furtado, emquanto o moço praguejava, deitou a correr estrada fóra.

Encontrou um cavalleiro, contou-lhe a que ia, pediu-lhe o cavallo que este lhe cedeu em troca d'umas moedas de prata.

-- Deixae-o na estalagem do Sá Biscainho!

Mas já Manuel Furtado ía longe.

-- Senhor!... Senhor!... Que eu chegue a tempo!

Aquella torre que de tão longe se avistava e aonde não havia chegar!

O cavallo levava a barriga em sangue. E Manuel Furtado continuava a correr como doido. Avistou o convento. Devia de ser aquelle.

As ondulações do terreno escondiam-lhe por vezes a cidade, e elle não murmurava oração nenhuma, que lh'o não consentiam os labios resequidos. A prece era apenas de seu coração.

Chegou finalmente. Bateu á porta e perguntou á rodeira:

-- D. Anna de Portugal?

-- Sois da familia? perguntou-lhe a freira.

-- Sou, respondeu.

Os sinos puzeram-se n'esse mesmo instante a dobrar.

-- Morreu! disse ella, apontando para a torre d'onde vinha o som funebre.

E baixando a cabeça sobre o peito, murmurou:

-- Era d'Elle, do Senhor!... Seja feita sua santa vontade.

Uma lagrima muito pequenina, como as choram as velhas, tremeu-lhe nas palpebrasinhas vermelhas, sem cilios.

Manuel Furtado parecia não perceber. Vergado sob um peso enorme, arquejante, quedava-se de pé no limiar da portaria, d'olhos fitos no chão, com a barba grisalha muito crescida dobrando-se de encontro ao peito.

Disse-lhe então a freira:

-- Deveis de querer saber seus ultimos momentos. Entrae.

E elle, sempre mudo, seguiu a velhinha que ia arrastando os chinellos atravez do corredor e mandou sentar junto da grade n'uma larga cadeira conventual em que Manuel Furtado se deixou caír inerme.

-- Esperae um instante, emquanto eu mando lá dentro aviso da vossa chegada. Uma de nossas irmãs virá consolar-vos, que, melhor do que eu, saiba dizer-vos quem era a que para sempre nos deixou e Deus chamou a si.

E nada Manuel Furtado lhe respondeu.

Ergueu a cabeça, relanceou em volta o olhar pelas paredes frias, onde em quadros pequeninos eram escriptas maximas do Evangelho. Não se lhe definia claro na consciencia o motivo por que ali se encontrava n'aquella grade sombria. Era ura atordoamento de que não queria saír, um cançasso de espirito, como o do corpo, que lhe roubava toda a energia, que todo o abatia n'uma preguiça dolorosa. De repente, percorreu-o um estremecimento, e, entre soluços, pôz-se a gemer:

-- Anninhas!... Anninhas!

Uma pesada porta rangeu e uma freira entrou que, ouvindo aquella exclamação, cambaleou e se amparou á hombreira. Um instante só, porém, lhe durou a turbação.

Certo desalinho no trajar dizia a noite que, trabalhosa, levára junto da inferma. Sob a toalha viam-se alvejando uns cabellos revoltos.

Puxou o véo mais para a frente. O olhar mortiço de seus olhos negros accendeu-se mais vivo por um instante, e logo se apagou como obedecendo a uma vontade energica de superior inspiração.

Veio sentar-se do outro lado da grade, em frente de Manuel Furtado, que não déra por sua entrada, e disse-lhe:

-- Ponde vosso coração nas mãos de Deus; só Elle saberá consolal-o.

Então elle ergueu a cabeça, passou as mãos pelos olhos como para accordar, parecendo-lhe entretanto que d'um sonho passava a outro sonho.

-- Pesa muita vez a mão do Senhor sobre aquelles que mais ama, continuou ella.

E Manuel Furtado respondeu-lhe:

-- Obrigado, senhora. Deus que vos deu tanta doçura na voz escolheu-vos talvez para trazer a meus olhos a consolação d'umas lagrimas rebeldes. Vossas palavras Elle as inspire, que me ides contar a minha morte.

-- A vossa morte! respondeu ella. Nem da propria dôr se morre senão quando o quer Deus.

-- Deus me ajude! disse Manuel Furtado em voz baixa e soturna.

-- Deus vos ajude, e aprendereis a soffrer com aquella que Deus tem e de cujas santas reliquias agora beijei os pés que para este mosteiro a encaminharam. Concedeu-lhe o Salvador aqui uma vida nova, e ella então, com seu exemplo e mão carinhosa, para a vida que levava soube sua irmã extraír dos abysmos da terra. Segui-lhe vós os passos, procurae vossa redempção amando os outros como ella os soube amar.

-- Se ella soube amar!... exclamou Manuel Furtado com expressão de tamanha dôr que a freira perturbou-se.

Mas acudiu logo:

-- Amar santamente só póde ser pelo amor de Deus.

Elle baixou os olhos e ella continuou:

-- Quem o buscar alegra-se n'Elle e transporta-se de jubilo. Horas e horas a querida irmã, ajoelhada no côro, rogou ao Senhor que lhe fôsse esteio e refugio; e, como o orvalho gota a gota sobre a terra, foi Elle deixando caír suas bençãos sobre a afflicção d'aquella alma, ainda presa ao mundo, anciosa por subir ao céo.

-- Até que finalmente... esqueceu-me!

A freira, ao ouvir a exclamação de Manuel Furtado, calou-se um instante e apertou contra o peito as mãos cruzadas. Pareceu sobre si mesma fazer um esforço e logo continuou, ainda com maior doçura na voz:

-- Se vos esqueceu, foi para melhor outra vez agora lembrar-se e rogar a Deus que vos ajude. Santissima protectora, por nós ha-de velar. Erguei purificado vosso coração até onde ella descança e nunca mais o Senhor se alongará de vós, tendo vosso coração tão junto ao d'Elle. Falastes na morte; seja vosso cuidado primeiro tornar-vos digno d'ella, pelo martyrio d'uma dôr que seja vossa redempção. Se deverás amastes quem choraes, conforme seus desejos, que no mundo vos manifestou, ide procurar o dever a cumprir. Ella rogará a Deus que vos dê sua ajuda, que preste ouvidos a vosso clamor e attenda as vossas orações. Por ella alguma vez vos alegrastes, o que não vos impediu a queda n'um abysmo de miserias; chorae por ella agora e achareis consolação beijando a vossa cruz.

Manuel Furtado escutava a voz que lhe falava e não podia fixar recordações fugidas que lhe vinham. Parecia que já a ouvira alguma vez dizendo-lhe palavras que não eram inspiradas no livro de Deus, mas profanas, e que por certos caminhos mais trilhados mais facilmente chegavam á sua alma.

Mas era a voz tão meiga, de tanto conforto eram as palavras, que respondeu:

-- Tendes razão e hei de procurar viver. Sei como áquella de cujo amor me falam o meu lh'o houvera de ter provado. Obedeci a circumstancias que me quebraram a energia, porque n'ellas vi a mão poderosa a que tudo obedece no mundo.

Referia-se ao que devêra tentar por bem de D. Affonso.

Parece que a freira o entendeu, porque disse:

-- Não ha tamanhas penas no mundo que outras não possamos encontrar maiores.

Manuel Furtado, vendo assim adivinhado seu pensamento, perguntou-lhe:

-- Contou-vos ella...?

-- E mais me disse porque assim vos exigira o sacrificio talvez de todo vosso futuro.

-- Mas a vós... porquê?

-- Por que me teve muito amor quando remida me viu. Aqui cheguei coberta de confusão e de ignominia, com meu coração preparado para toda a sorte de miserias e de improperios. O seio sobre o qual havia chorado minha maior dôr aqui se me veio outra vez offerecer. Achei assim quem se entristecesse com minhas tristezas, quem me consolasse em minha angustia.

-- Maria da Boa Hora! exclamou Manuel Furtado erguendo-se.

Ella ajoelhára dentro das grades. Disse com voz suffocada pela dôr e pelo arrependimento:

-- E, pois que ella me perdoou, perdoae-me vós tambem!

N'esse momento entrava na grade D. Pedro d'Almeida, e Manuel Furtado corria para elle:

-- Ah! Pedro... Pedro!

Soffocado encostou-lhe a cabeça ao hombro.

Quando a ergueu, Maria da Boa Hora havia desapparecido.

Os sinos continuavam a dobrar.

CAPITULO IX

Ultimo esforço

Aferrava-se áquella ideia entre as lagrimas da sua dôr. Era um dever. Cumpril-o-ía pelo amor da querida morta. Melhor assim se approximaria d'onde ella o esperava.

Que mais lhe podia acontecer do que morrer por ella?

Quando voltara de Beja, atravez d'aquelle immenso Alemtejo, por onde a liteira seguia vagorosa, interrogara D. Pedro, e do que este lhe ía contando traçava elle seu caminho enredado, por onde esperava chegar ao desejado termo: salvar El-rei.

Maria da Boa Hora tinha razão. Não deve abandonar-se á morte quem tem deveres na vida.

Recordando escuras desgraças, falou de El-rei, perguntou pelo Conde de Castel Melhor.

E D. Pedro respondeu-lhe:

-- Inspiram dó e saudades. O Conde está em Londres e ninguem melhor tem servido a patria.

-- Perdoou a seus inimigos!

-- Fez mais que perdoar; paga com o bem o mal que ainda lhe desejam.

-- E a Marqueza, e Simão de Vasconcellos?

-- Choram a ausencia do filho e do irmão, mas encontram sempre fechados aos mais enternecidos rogos os ouvidos do Principe.

-- Que diz a côrte?

Mas não deixou que D. Pedro lhe respondesse, lembrando-se de suas allianças de parentesco com os mais intimos do paço. Continuou:

-- D'ella te queres affastar, terás tuas razões. Que diz o povo?

-- Anda formando uma lenda em volta do sr. D. Affonso, a quem já cognomina de santo. Diz que, quando El-rei vae á capella, entra em extasis e tem o rosto luminoso.

E D. Pedro baixou muito a voz, instinctivamente, como se temesse que até n'aquella charneca ouvidos perigosos o escutassem.

-- Já fôram dizel-o a D. Maria Francisca de Saboya.

-- E ella?

-- Lembras-te de como era formosa?

-- Lembra-me; mas havia em seu rosto...

-- O que quer que fôsse a metter mêdo...

-- Sim, uma seducção...

-- Se hoje a visses!

Calaram-se.

Quando D. Pedro, ouvindo a Manuel Furtado um mais fundo suspiro, tornou a olhar para elle, iam os dois chorando tristemente.

-- Quão desgraçado fui na vida, meu Pedro!

-- Fôste. Culpa tua, caro Manuel.

-- Culpa minha!...

E accrescentou:

-- Hei de resgatal-a.

Vestido de luto, na propria manhã em que chegou a Lisboa, foi a casa de Simão de Vasconcellos. A Marqueza quiz vêr o homem que uma vez lhe salvara o filho mais velho, procurando escolher em seu coração, se ainda para outros pudesse ter piedade, uma phrase com que lhe minorasse a dôr de seu luto.

Beijou-lhe Manuel Furtado a mão e disse-lhe:

-- Agradeço-vos, senhora. Não foi de todo inutil a minha vida, já vejo, pois alguma coisa vos mereço.

Falaram do Conde. Mostrou-lhe a Marqueza cartas que o filho lhe escrevia, morto de saudades, pouco lhe importando as honras de que o enchiam em Saboya e nas côrtes de Paris e Londres, querendo apenas ter a dita de beijar ainda uma vez seus filhos.

-- Olhae, disse a Marqueza. Ha rochas menos duras que certos corações. Tanta vez o ouvi dizer e só agora o acredito!

E logo mudando de tom, procurando tirar á voz e á expressão do rosto a dureza com que falára, disse:

-- Perdoae-me. Sou egoista como todas as mães; não era de meu soffrimento que devia de fallar-vos, mas do vosso. Bem fizestes em procurar-nos, que todos aqui muito vos estimamos.

-- Tão boas palavras, minha senhora, como hei de responder-lhes? Vossa dôr é a minha. Pudesse a minha vida servir apenas para apagal-a.

-- Como? perguntou ella.

-- Como? disse como um écho triste a voz de Simão de Vasconcellos.

-- Com o auxilio de Deus, respondeu Manuel Furtado, que me hão de alcançar dois anjos a rogarem por mim, um no céo, outro na terra.

-- Ainda tendes esperança? perguntou a Marqueza, como se na fé de Manuel Furtado ainda pudesse firmar a sua.

-- Deus tudo póde, respondeu elle.

Tornou a beijar-lhe a mão e saíu.

Aquelle olhar da velha mãe do Conde animára-o em sua resolução.

Um homem lhe faltava; havia de encontral-o.

Na intensidade de suas penas achava forças; sentia como que uma inspiração mysteriosa a assegurar-lhe o exito do que ía tentar.

Pero Rolão estava em Cintra com o padre Ventura. Iria vêl-os, falar-lhes; saberia d'elles até onde poderiam ajudal-o.

Não seria a primeira vez quo abusasse da amizade do amigo, da cega confiança que n'elle depositava o innocente rapaz.

E já na phantasia se lhe começava a deslindar o enrêdo do que desejava executar. Uns pontos escuros eram problemas a resolver com a inspiração da ultima hora em que sempre confiava.

Precisava approximar-se de Anninhas. Bem sentia que, quanto mais a tivesse no coração, tanto mais o céo o auxiliaria em seu intento.

Encaminhou-se primeiro devagarinho até á casa do Salvador; mas aí, entre suas saudades, appareceu-lhe, ridente, cheia de sol, a imagem de Maria da Boa Hora.

-- Tambem ella rezára por mim, pensou.

Ajoelhou no adro do convento e, em vez d'uma pedra, como costumava, duas beijou d'essa vez.

-- Pobre Lourença!

Rezou-lhe um padre-nosso por alma e pediu-lhe que tambem ella intercedesse por sua causa junto de Deus.

E, quasi sem dar por tal, foi-se encaminhando para os lados da Penha de França, para a egreja onde vira Anninhas pela derradeira vez.

Animava-o uma superior confiança de que, n'aquelle templo onde Ihe disséra mentalmente seu adeus ultimo, sua alma bemaventurada havia de melhor conhecel-o, rogando a Deus por elle com maior calor.

Contava com sua energia e, se tanto fôsse preciso, com o valor da sua espada, para arrancar El-rei da prisão. Faltava- lhe um homem dedicado que por uns dias o recolhesse, emquanto elle, com seu prestigio, puzesse de seu lado a melhor parte do exercito.

Chegou á porta da egreja. Vinha saíndo o povo. Esperou.

-- Que houve? perguntou a um irmão que estava á porta esmolando para Nossa Senhora.

-- Vêde, respondeu-lhe este, como sai compungida toda a gente. E' sempre assim quando elle préga. Já o ouvistes?

-- Tenho estado fóra do reino e não sei de quem falaes.

-- Pois ainda não chegou a fama das suas virtudes á India, á China e ao Brazil? Já de muito longe, muitos aqui vieram para escutal-o, e, quando elle desce do pulpito, muitos já vi beijarem devotamente o pó em que deixou sua pégada.

-- E de que santo me falaes?

-- De Fr. Bernardo.

De Fr. Bernardo! exclamou Manuel Furtado. De Fr. Bernardo que...

Mas subito calou-se. Pensou.

-- Que mysteriosos são os destinos do homem nas mãos de Deus!

Saíam os ultimos fieis.

-- Aqui tendes, disse ao frade, entregando-lhe uma esmola avultada. Ide já dizer a Fr. Bernardo que um official recemchegado do Brazil deseja falar-lhe com a maior urgencia. Aqui vos espero na egreja.

E foi-se ajoelhar onde pela ultima vez avistára D. Anna.

Não tardou o frade a voltar. Introduziu na portaria a Manuel Furtado.

-- Não me conheceis, padre? perguntou este apenas o leigo se retirou.

-- São meus olhos muito apagados, respondeu Fr. Bernardo, mas produz-me vossa voz uma estranha commoção. Dir-se-ía que me resuscita memorias que eu fechára n'um tumulo.

Manuel Furtado contemplava aquelle homem, muito mais do que elle envelhecido, e meditava no castigo de Deus. Recordou-se das palavras de Maria da Boa Hora e repetiu-as ao frade.

-- E' preciso soffrer:

-- E não soffreria eu já bastante? perguntou elle dolorosamente.

-- Melhor do que eu deveis saber, respondeu Manuel Furtado, olhando cheio de piedade para os estragos com que o remorso se assignalava n'aquelle rosto, melhor do que eu, porque mais lidaes com os livros santos, deveis saber que o castigo divino é premio para quem lhe não foge com o hombro e o recebe de fronte humilde.

-- Tanto o sei que, dia e noite, a Deus lh'o agradeço.

-- Preparae-vos então, Fr. Bernardo, com vossas orações, que não vim para trazer-vos alivio, mas para augmentar vosso tormento.

-- Pois bemdito sejaes, se vindes em nome de Deus. Quem sois?

-- Manuel Furtado.

O frade baixou a cabeça; silencioso encostou ao peito as mãos cruzadas e assim ficou rezando por largo espaço.

Manuel Furtado esperou que elle acabasse a oração.

-- Dae-me animo. Senhor! murmurou o frade por fim.

Ergueu um pouco a fronte calva. A voz tremia-lhe, mas, ao mesmo tempo, indicava resignação.

-- A ultima vez que vos vi, n'este mesmo convento -- ha quantos annos! -- vós me perdoastes pelo amor de Deus, não porque vol-o eu merecesse. Tenho ainda na memoria vossas ultimas palavras. Quereis que vol-as repita?

-- Não, padre, não quero; não faltarei ás minhas palavras que foram dever de christão. Quando de vós me despedir, de todo meu coração e para socego vosso, as repetirei, se me attenderdes como espero.

-- Falae, se é do serviço de Deus o que vindes de tão longe exigir d'um miseravel peccador.

Então Manuel Furtado contou-lhe, como quem se confessa, seu amor por D. Anna de Portugal e quaes os deveres a que se obrigára, como de sua morte houvera aviso e lh'a contára Maria da Boa Hora, o arrependimento d'esta e de como era entre suas companheiras exemplo de resignação e das maiores virtudes.

-- Bemdito seja Deus! exclamou o frade, que vejo que tambem ella me perdoou! Bemdito sejaes, sr. Manuel Furtado, que tão boas novas me troxestes.

-- Escutae-me ainda. Contei-vos como o juramento que fiz a D. Anna de Portugal me levou para o lado de El-rei. Cêdo demais desisti de minhas obrigações contraídas n'uma hora solemne da minha vida. Quero cumprir agora o que jurei, sem o quê não mais terei descanço; quero que não turve minhas saudades um remorso. Tambem vós tendes muitas contas que dar a Deus pelo mal que a El-rei fizestes, pelo mal a que muita vez o encaminhastes, e pelo muito que elle hoje soffre, muito por vossa culpa tambem.

-- Deus me perdoe! disse Fr. Bernardo.

-- Perdoará se o mal souberdes resgatar.

Então o frade pôz-se a tremer e ajoelhou derramando muitas lagrimas.

-- Sim!... Sim!... Mas como?... como?

-- Vossa posição n'este convento impõe respeito a vossos irmãos.

-- Elles a tanto me quizeram immerecidamente subir; obedeci-lhes.

-- Jurae-me que dareis a El-rei secreto abrigo em vosso convento, se vol-o eu trouxer. Não saiba ninguem de sua existencia aqui; entregae-m'o depois ou a quem por mim vier, se eu fôr morto, quando o povo e o exercito outra vez o reclamarem.

-- Deus! Deus!... dizia Fr. Bernardo. Não me quereis dar a paz n'este mundo nem que eu possa rezar ante o vosso throno que ncão seja em gritos!

-- Juraes? repetiu Manuel Furtado já com um tom de impaciencia na voz.

-- O que eu venha a soffrer por El-rei o tomarei como da mão de Deus.

Manuel Furtado beijou-lhe o habito.

-- Padre, orae por mim.

-- Deus vá comvosco!

Manuel Furtado saíu.

Meia hora depois, montava a cavallo e ás tres horas, galopando sempre, chegava a Cintra.

Uma nuvem muito tenue pousava levemente sobre a torre do convento da Pena, no alto da serra. Começavam as arvores a desfolhar-se e os choupos nos valles buliam docemente as folhas d'oiro. A brisa de novembro fazia gemer os pinhaes. A natureza estava ali de accordo com a melancholia que Manuel Furtado levava na alma.

Entrou no quarto que Pero Rolão habitava no paço e encontrou-o jogando com o padre Ventura.

Olharam para elle sem de prompto o reconhecerem. Um instante depois, Pero Rolão punha-se de pé, caminhava para o amigo, mas, ainda antes que para elle abrisse os braços, exclamára o padre.

-- Manuel Furtado!

Mal este podia falar, tão commovido se achava, de tantas recordações que lhe trazia dolorosas a vista dos amigos.

-- E's tu ou teu phantasma que me apparece? perguntou Pero Rolão com a voz a estrangular-se-lhe na garganta.

-- Ah! Pero!... padre!... meus amigos!

E Manuel Furtado só achava exclamações para dizer a commoção d'aquelle instante.

Aquelles sabiam toda a historia de sua dôr, que para elles nunca tivera segredos seu coração. De que serviam ali palavras?

Pero Rolão soubera da morte de D. Anna e da partida de D. Pedro d'Almeida e do amigo para Beja. A cada instante esperava carta chamando-o ou a visita de Manuel Furtado.

O padre Ventura ainda quiz dizer-lhe umas palavras aconselhando-lhe a resignação christã; mas Manuel Furtado calou-o com um gesto e agradeceu-lhe com um sorriso cheio de melancholia.

-- Sei o que deve ter-se passado em vossos corações e quanto haverieis de soffrer comigo. Resignado já venho.

Abraçaram-se.

E elle continuou:

-- Resignado, mas não satisfeito. Cumprido, por memoria de D. Anna de Portugal, um dever ultimo, meu coração descançará; mas preciso do vosso auxilio.

-- Conta com elle, respondeu logo Pero Rolão n'um d'aquelles impetos a que o obrigavam sua amizade prompta, sua dedicação ao companheiro. Fala.

-- E' cedo por emquanto. Preciso saber de vós, saber o que vae por esta Cintra, que, mal a avistei de longe, encheu minh'alma de tristeza.

Começaram então conversando.

Falaram de suas ambições antigas e de seus cabellos brancos de agora, em numero menor que suas desillusões.

Manuel Furtado falou de seus amores e de como no Brazil, por onde andára arriscando a vida, a morte não quizera d'elle.

-- O que falavamos de ti, cada vez que do Brazil nos chegavam novas tuas! disse o padre. Tens no exercito o mais prestigioso nome. Se tu quizesses...

Manuel Furtado olhou para elle.

Contou depois como viera a chamado de D. Pedro d'Almeida e como esperava na India ainda algum bem poder obrar pela patria.

-- E nós por aqui nos ficaremos n'esta podrissima paz! disse Pero Rolão. A's vezes, Manuel, envergonho-me de me vêr soldado a servir de carcereiro!

Tomava o dialogo o caminho que Manuel Furtado lhe desejava.

-- Culpa vossa foi, respondeu elle á observação do amigo.

Então falaram de El-rei e de como, entre o povo e até já entre os soldados que o guardavam, seu martyrio a todos mettia piedade e o começava sanctificando. Tinham-se apagado memorias d'outros tempos em que já muitos não acreditavam. Falava-se agora com saudade amarga dos dias em que o Conde de Castel Melhor tinha em suas mãos os destinos do reino e com seu ingenho encaminhára para tantas victorias os portuguezes.

-- Atraz de mim virá quem bom me fará, disse o padre Ventura.

-- Mas tu, por ti, que pensas? perguntou Manuel Furtado a Pero Rolão.

Este encolheu os hombros.

-- Os soldados de cavallaria que para aí vieram commetteram disturbios e abusaram de sua força. Manuel Nunes Leitão não sabia contel-os. Pediu officiaes que o ajudassem. Mandaram-me para Cintra. Obedeci por dever de militar.

Reparou Manuel Furtado no tom com que Pero Rolão pronunciára aquellas palavras. Seduzil-o-ía talvez a aventura para que vinha convidal-o. Via-o mais de molde do que suppunha.

Mudou de repente o rumo á conversação, não querendo desde logo dar a conhecer suas ideias. Perguntou-lhe:

-- E de amores?

Pero Rolão córou. O padre pôz-se a rir; mas arrependeu-se logo.

-- Desculpa, Manuel Furtado. Soou-te mal talvez a minha gargalhada.

-- Não. Fomos alegres; recordou-me bons tempos.

Voltou-se para Pero Rolão.

-- De que se riu o padre?... Ainda o sestro te não passou das arrebatadas paixões? Que doidas eram! A ultima que te conheci foi... foi...

Procurava recordar-se.

-- E quando te acompanhei á Villa de Fronteira onde encontramos a Consuelo... Consuelo... não sei quê!

-- Rodriguez. Bons tempos! disse Pero Rolão.

-- Mas a ultima?... Ah! lembra-me agora... A Calcanhares!

-- Pois ainda! disse o padre.

-- Ainda! exclamou Manuel Furtado.

-- Ainda! murmurou Pero Rolão acabrunhado, como esmagado pela fatalidade.

E de repente, desafogando:

-- Sabes lá o que tenho padecido! Esta mulher é peor que uma carraça! Agarra-se á gente que parece uma lapa n'um rochedo! E não creias que os dez annos que passaram lhe deram maior formosura. Longe d'isso. A's vezes quizera matal-a, outras quizera morrer. Agarra-se a mim como um naufrago a uma boia! Cada vez que a vejo é como se ella me mettesse um dedo pelas guelas. Quando me sorri, tudo se me faz escuro, e quando me fala, mette-me agulhas pelos ouvidos!

-- Entretanto... disse Manuel Furtado.

-- Entretanto, disse o padre interrompendo-o, quando a occasião se lhe offerece de livrar-se, é elle quem faz de boia, lapa e carraça, e se aferra aos velhos encantos da mulher de quem desdenha.

-- Não é assim! disse este furioso, lembrando o Pero Rolão de outras eras.

-- Agora mesmo, se quizesses...

-- Atiral-a para os braços de Manuel Nunes Leitão?... Nunca!

-- Porquê?

-- Porque seria matal-a, não lhe reconhecendo o muito amor com que me quer!

-- A ti!

E o padre pôz-se outra vez a rir.

Pero Rolão passeava pelo quarto assoprando.

-- Ha dez annos que me é fiel!

-- Porque te encontrou para taboa de salvação no temporal em que se via. Amor!... O amor da Calcanhares!

-- De que Manuel Nunes Leitão falaveis? perguntou Manuel Furtado.

-- Do filho, do que governa estas tropas, respondeu o padre Ventura. O pae, o carcereiro de El-rei, tanto confia n'elle, que se foi agora para Lisboa descançar o espirito da continuada vigilancia. Desde então, o sargento-mór não deixa o paço e só elle penetra até os quartos do sr. D. Affonso.

-- E tu?

-- Vejo ás vezes El-rei por entre as rotulas do côro, quando entro na egreja em minhas devoções.

Manuel Furtado franzira o sobr'olho, como se meditasse.

-- Então o sargento-mór namora-te a amante? perguntou a Pero Rolão.

-- Duas, tres vezes por dia, sae do paço e vae florear a cavallo para defronte de casa d'ella. Se viras os olhos com que a procura, nunca mais me falaras do estoirado dos meus. Mas diz que á noite lhe minguam á força de choramigar. Escreve á Calcanhares cartas de enternecerem o granito da serra e a mim proprio já por tres vezes me enterneceram. Dá-lhe o nome de todas as estrellas do céo e flores do campo; anda agora pelos animaes e já lhe chamou gazella e mariposa. Aos amigos diz que morre um dia d'estes. Diabos o levem!

-- Ouve, disse-lhe Manuel Furtado. Ha pouco te falei do auxilio que de ti precisaria. Não dirias não a uma aventura, para distraír-te.

-- Uma aventura!... Abrias-me o céo!

O padre ergueu-se curioso.

-- Queres passar commigo sob as janellas da tua amante? Olharás para a formosa Calcanhares sem um sorriso e com o ar triste de quem diz adeus para sempre ao que possue melhor na vida.

-- Mais nada?

-- Pouco mais. Olhos de quem leva a morte na alma, o corpo alquebrado como sob o peso esmagador d'um gravissimo desgosto.

-- Serve-te esta cara?

Só de vêl-a o padre desatou a rir.

-- Está quasi perfeita.

E Manuel Furtado sorriu-se.

-- Curioso me fico, disse o padre.

Os dois officiaes montaram a cavallo.

-- Não me explicarás?...

-- E' uma experiencia que tentamos o cujo resultado saberás d'aqui a uma hora.

Caminharam para o lado de Collares, sob as grandes arvores da serra. Vinha a noite caíndo.

-- E' ali, disse Pero Rolão apontando para uma casa velha, abrigada sob dois enormes ulmeiros.

-- Excita o cavallo para chamar a attenção de tua dama.

E logo a Calcanhares appareceu á janella.

-- Não te esqueças do meu recado. Um olhar de eterno adeus. Mais triste, homem, ainda mais triste!

Manuel Furtado olhou para a velha amante de El-rei. Os cabellos pintados e as pinturas do rosto mais a envelheciam. Só nos olhos piscos conservava uns longes da graça antiga. Ella sorriu-se. Faltava-lhe um dente.

-- Pouco perdes, disse a Pero Rolão.

-- Prompto! respondeu este. Explica-me agora...

-- Ainda não. Voltemos a casa por outro caminho.

-- Subamos a serra. Desceremos pela Sabuga.

Viraram á esquerda.

Manuel Furtado calara-se. Mais se entristecia a luz do crepusculo coando-se por entre a folhagem amarellecida. Os cavallos iam pisando as folhas seccas que, de quando em quando, uma aragem fria levantava. Havia doçura na humidade e perfumes no ar que se respirava. Manuel Furtado pensava em Anninhas e mais profundamente, n'aquella mansidão do principio da noute, mergulhava em sua dôr.

Quando chegou ao paço, tirou o chapeu; passou a mão pelos cabellos grisalhos, sacudiu a cabeça como a querer affastar o pensamento doloroso.

-- E agora? perguntou Pero Rolão.

-- Agora, senta-te e escreve.

-- A quem?

-- A' Calcanhares. O cabeçalho do costume, mas ainda mais terno, mais enlevado, mas poetico, se puderes. Diz-lhe depois que n'aquelle teu olhar ía toda a tua alma n'um eterno adeus; que estás certo de que ella o houvera de ter percebido; que partes commigo para a India e lhe deixas teu coração em bocadinhos; que nunca mais a verás, porque um instante só que ainda junto d'ella vivesses, te roubaria a coragem de cumprir teu dever. Mette-lhe uns versos pelo meio.

-- E depois?

-- Que te importa? Escreve.

E Pero Rolão escreveu.

Entretanto Manuel Furtado perguntava ao padre Ventura se haveria maneira de mandar um aviso a El-rei.

-- Ao toque de recolher, costuma ir a suas devoções á tribuna da capella. Se me parecer que está só...

-- Avisa-o de que lhe quero falar hoje mesmo, esta noite.

Pero Rolão interrompeu a linda phrase que ia escrevendo.

-- Mas como?... perguntou.

-- Tu me encaminharás.

-- Mas Manuel Nunes Leitão a ninguem confia a guarda de El-rei. Elle só...

-- Escreve vais vêr o que succede.

Pero Rolão encolheu os hombros, desanimado ante a solução do enigma. O padre Ventura não se mostrou mais atilado.

-- Escreveste? Bem. Chama um soldado que leve a carta.

Não se passou uma hora. Durante a qual Manuel Furtado só falou de Anninhas e Manuel Nunes Leitão mandava a Pero Rolão que fosse a seus quartos urgentemente.

-- Que me quer elle? perguntou este embasbacado.

Manuel Furtado sorriu-se.

-- O que eu quiz que te elle quizesse. Vai.

Saíu Pero Rolão e o padre Ventura perguntou:

-- Que tencionas...?

-- Salvar El-rei.

-- Salvar...

-- Tental-o pelo menos, cumprindo um juramento.

-- Endoideceste!

-- Não. Sei onde escondêl-o. E se algum prestigio ainda tenho no exercito depois de posto El-rei a bom recato muitos descontentes valerosos hei de ter a meu lado.

-- Terás! affirmou o padre attonito.

-- Dize-me primeiro se foi grande o sacrificio exigido de Pero Rolão, que promoven por suas mãos a traição da amante.

O padre não respondeu á pergunta, mas disse:

-- A Calcanhares vê-se descrepitando e conta com o innocente, que ora a trata com palavras descompostas, ora treme de perdel-a. Não se fia em caprichos, pois lhe diz sua velhice a bater-lhe á porta que devem de ser passageiros. Fique-se El-rei em sua prisão e livra-me o amigo; não será menor mercê.

Voltou Pero Rolão n'esse instante e era seu pasmo o maior da vida.

-- O maior, dizia elle, e não é dizer pouco. E's bruxo.

-- Como assim?

-- Manuel Nunes Leitão chamou-me. Sabes que me queria?

-- Dirás.

-- Põe-me o paço nas minhas mãos, porque só eu lhe inspiro confiança. Encarrega-me de vigiar El-rei, como se elle proprio fôsse. Eu sou quem dorme esta noite na ante-camara.

-- E elle então?

-- Disse-me apenas meias palavras. O pae escreveu-lhe. Trata-se d'uma missão delicadissima. Um encontro em Alcabidexe com uma personagem mysteriosa... Mas como sabias...?

Manuel Furtado pôz-lhe a mão no hombro.

-- Escuta, meu pobre rapaz. A tua carta desnorteou a Calcanhares, que fez rumo para outra direcção. Não te respondeu, mas escreveu ao sargento-mór...

-- O quê!... Pois julgas...! exclamou Pero Rolão com uma d'aquellas caras de que Manuel Furtado tanto ria.

Mas, d'esta vez ficou sério.

-- Ouve, Pero. Disseste-me que estarias á minha ilharga. Pois bem, esta noite salvaremos El-rei. Arranja-me para o caminho tres bons cavallos.

Era meia noite quando, cautelosamente, os dois officiaes se encaminharam pelos corredores do paço, transformado em prisão, até os quartos de El-rei, já prevenido pelo padre Ventura.

-- Mas... se Manuel Nunes Leitão apparece? perguntou Pero Rolão com repentino receio.

-- Não. Pódes estar descançado.

-- Descançado é que não estou. Não julguei que me fizesse a traição da Calcanhares tão desagradavel effeito.

Deu volta á chave, abriu a porta.

Manuel Furtado nem teve tempo para compadecer-se um instante do amigo. El-rei estava de pé em meio do quarto mal allumiado por uma vela a um canto. Ao avistar aquelle phantasma, cuja vida só revelavam os olhos em que scintillava uma curiosidade assustada, Manuel Furtado commoveu-se. Caminhou para El-rei, beijou-lhe a mão.

Pero Rolão ficára do lado de fóra, guardando a porta.

-- Manuel Furtado! disse El rei. Quanto da minha vida vosso nome me recorda!

-- Perdoe-m'o V. Majestade.

-- O que de vós ouvi contar!... Deve meu irmão ter sido comvosco mais generoso...

-- Por minha patria cumpri meu dever. A obediencia a um juramento me impelle agora.

-- A que vindes?

-- A salvar-vos.

-- A...!

El-rei recuou. Calou-se um instante.

-- Sim, disse. Vós serieis homem para tal commettimento; mas salvação só creio na que Deus haja de conceder-me.

-- Deus me envia, senhor!

-- Para que eu saiba que mal andei amaldiçoando o mundo, em vez de bater no peito, arrependido de minhas culpas.

O Braz, enroscado a um canto, dormia. El-rei apontou para elle.

-- Vêde aquelle partilhando minha prisão commigo. Para que hei de eu, peccador, queixar-me do que faz sua ventura? Tinha um amigo na terra, feliz me devia crêr. Outros ainda tenho, vejo-o agora.

-- Senhor, se vos eu disser porque vim ter comvosco, vereis que Deus me conduziu.

-- Falae, ainda que não haveis de convencer-me, mas far-me-ha bem ouvir-vos. Falae.

Então Manuel Furtado contou-lhe que ciumes o haviam roido e toda a historia d'aquella noite em que viera em seu soccorro junto á casa de Maria da Boa Hora. Contou-lhe mais suas aventuras de amor e seu amor por D. Anna e o que a esta lhe promettêra. Disse-lhe a morte de Anninhas, a conversão de Fr. Bernardo, as lagrimas de soror Maria, que no seculo se chamára Falcôa, e terminou:

-- Vêde quantos por vós estão a esta hora rogando a Deus no céo e na terra. Olhae se não é Deus quem manda o que venho tentar.

E vendo que não lhe respondia El-rei, temendo fôsse hesitação de sua fraqueza:

-- Um só perigo não passareis até que vos eu ponha em logar seguro no convento de Fr. Bernardo. Temos por nós toda a noite. Animo, meu senhor, vos dê minha confiança. Na companhia dos santos monges, com suas palavras que lhes Deus ha de inspirar, sabendo consolar-vos do muito que padecestes, esperareis que eu levante o exercito em vosso favor.

Ouvira-o El-rei sem um só gesto; apenas um ou outro movimento involuntario lhe percorria de quando em vez o corpo alquebrado.

Disse por fim:

-- E quem vos diz que sou digno de vosso arrojo? Mereci eu, depois que, preso n'um carcere, a alma se me libertou de paixões terrestres, ter em mim tal confiança, que vos juro sabor dominar meus impulsos? Dae-me vossa mão, Manuel Furtado. Consolou-me Deus com a nova que me trouxestes dos arrependidos em que me falastes. Arrependido eu sou; deixae-me, os annos que Deus ainda quizer conceder-me, na minha penitencia. Elle ha de ser meu libertador. Elle me ha de enviar um anjo, mais poderoso que vós, para me arrancar de meus grilhões.

Limpo de minhas culpas, ha de a morte levar-me onde para sempre ao Senhor agradeça as dôres com que na terra me castigou.

Manuel Furtado, immovel, de braços descaídos, nada ousou responder, tão decidido em sua conformidade El-rei falava.

Disse apenas:

-- Com mais um santo exemplo quiz Deus alumiar-me.

E, ajoelhando, beijando a mão de El-rei, encheu-a de lagrimas.

Quando saíu, disse a Pero Rolão:

-- De hoje a oito dias parto para a India, em serviço de Deus e da patria.

-- E El-rei?

-- Libertou sua alma no carcere. Invejemos sua ventura.

-- Leva-me comtigo, Manuel.

-- Falarei com o Conde de Assumar.

Pela madrugada, já de volta em Lisboa, entrou na egreja da Penha de França e perguntou por Fr. Bernardo. Contou-lhe o que passára e os dois velhos inimigos abraçaram-se.

-- Rogae a Deus que cedo me perdoe, disse-lhe o frade, e me leve para si.

Quando a esquadra da India, dias depois, levantava ferro, Manuel Furtado encostára-se á amurada e fitára seus olhos na cidade que ía desapparecendo. Na praia acenavam lenços.

-- Todos ali deixam um bocadinho de coração, ía elle pensando. Eu levo as minhas saudades desacompanhadas de uma esperança. E' um adeus eterno que te digo, ó cidade em que tanto soffri.

Lembrou-se de Maria da Boa Hora, de El-rei, de Fr. Bernardo, e disse de todo seu coração:

-- Senhor Deus, abençoae a minha dôr.

CAPITULO X

A hora extrema

Que inverno aquelle!

A' porta do palacio de Palhavã conversavam dois creados velhos.

-- Nem sabbado de Nossa Senhora se avistou no céo um bocadinho de sol!

-- Parece castigo!

O outro estremeceu.

-- Calae-vos...

E benzeu-se.

Era a 27 de dezembro de 1683. N'um dos quartos do palacio expirava D. Maria Francisca de Saboya.

Tambem a Rainha olhava para as frinchas da janella, anciosa pelo raio de sol que lhe Deus negava.

Ainda com um resto de energia calava seus gemidos; mas o rosto enrugado e o cavado das faces diziam seu martyrio.

Ah! quantos annos durára, e ella sempre luctando contra a mão de Deus que a esmagava finalmente!

Outra voz rainha, poucos dias gosára o titulo. Mas que pavoroso espectro lhe surgia, quando alguem, ao beijar-lhe a mão, a tratava por majestade! Tanto a morte desejára de D. Affonso que, depois de morto, maior pavor lhe mettia! Punha-lhe agora medo a propria morte, que a faria encontrada com elle.

Que terror diziam seus olhos, que davam calafrios aos que eram no quarto, de joelhos, em volta do leito de agonia!

A filha!... Não queria vêl-a; fizera signal para que a levassem do quarto.

Fôra a filha quem a matára, a filha que fôra toda sua esperança e em cuja fronte via um estigma, signal certo que a marcára o dedo justiceiro de Deus.

Não mais tivéra uma hora de quietação, depois que a armada portugueza voltára de Niza, sem o Duque de Saboya, noivo escolhido para a herdeira d'estes reinos.

Nas côrtes a que o regente chamára fôra dispensada a lei fundamental das côrtes de Lamego que dispunham não casassem fora do reino as filhas herdeiras, e logo se ajustára o casamento da Princeza Izabel com seu primo do Saboya, filho de Madama Real, irmã da Rainha.

Que gloriosa armada compunham as oito náos, commandadas pelo vencedor dos castelhanos em Castello Rodrigo, general Pedro Jacques de Magalhães, Visconde de Fonte Arcada! A náo capitania, S. Francisco de Assis, chamaram-lhe por autonomasia o Monte de oiro, tão digna ia de receber o soberano hospede. Almirante, capitães, creados que iam servir o Duque, eram todos da primeira nobreza do reino. Embaixador e conductor de S. Alteza Real era o Duque de Cadaval, D. Nuno Alvares Pereira de Mello, a quem o Principe regente assim quiz honrar em satisfação de tantos e tamanhos serviços recebidos.

-- Até que emfim! suspirára jubilosa a Rainha, vendo a armada a desapparecer no extremo horisonte até onde com os olhos a foi seguindo.

Chegou a Niza o Duque de Cadaval e achou que o de Saboya era doente. Esperou, mas o Principe não melhorava. Approximava-se o mau tempo e não podia a armada invernar nos portos de Italia; fez-se de véla para Lisboa.

Nem Saboya nem muitos em Portugal desejavam o casamento.

-- Mais uma vergonha! disse o Principe D. Pedro.

E nunca mais D. Maria de Saboya teve no rosto um sorriso, nem que fôsse obrigado pelo esforço de sua hypocrisia.

Só a Princeza Izabel indifferente se mostrava.

O olhar vago, em que a nova do casamento nao puzera uma alegria, nem uma sombra agora viera embaciar sua luz crepuscular, serena e triste. Eram aquelles olhos que faziam tremer a Rainha e lhe introduziam nem ella mesma sabia que mysterioso receio no coração. Eram tristes como se a Princeza quizera dizer com seu olhar: -- «Eu sou a filha do peccado!» Lia nos olhos da filha a sua condemnação.

Tambem esta devia de soffrer e muito. Porque se assim resignava? Assim disfarça uma aleijadinha n'um sorriso paciente a dôr dos improperios e zombarias que vae escutando em seu caminho.

A filha do peccado!...

A's vezes, desejava chamal-a, confessar-se a ella, pedir-lhe que lhe perdoasse, contar-lhe suas angustias, e remorsos em que vivia. Mas como dizer-lh'o? Que resposta lhe iria provocar? E se fôsse a maldição?

Que razões na côrte de Saboya se haviam opposto ao casamento do Duque? Porque não haviam de confessal-as e, durante mezes, dia a dia, addiaram a resposta definitiva ao Duque de Cadaval?... Não era a Princeza Izabel digna esposa para o saboyano!... Não o tentou a união das duas corôas!... Mas porquê?... porquê?

De noite, rasgava o peito com as unhas, no leito frio em que dormia, só como nos tempos do rei agora encarcerado. O céo amaldiçoára-lhe o ventre com a esterilidade, e a filha, filha unica de suas entranhas, ninguem lh'a queria!

Sentia approximar-se a morte...

O Principe casaria outra vez... Um filho, que não era o d'ella, soria o herdeiro da corôa!

-- Filha!... Filha!... gritava ás vezes de noite.

Dormia a Princeza muito longe, n'outro extremo do palacio; mas ouvia aquelles gritos e punha-se na cama a tiritar, horrorisada.

Um dia, trouxeram ao paço a noticia da morte de El-rei.

Estava na tribuna da capella quando lhe déra o accidente. Começara então dizendo: «Senhor, perdoae-me. Compadecei-vos de mim!» Accudiram-lhe, mas elle não quiz que o levassem. Estava o padre Ventura á consagração. El-rei caíu, transportaram-o para o leito e o padre, mal a missa terminou, correu a prestar-lhe seus soccorros.

-- Quereis confessar-vos? perguntou-lhe.

Elle disse-lhe que sim com a cabeça, apertou-lhe a mão, e os olhos muito abertos bafejou-lh'os a morte.

Logo Manuel Nunes Leitão mandou um correio a toda a brida levar a noticia a El-rei D. Pedro.

-- Rainha finalmente! disse D. Maria Francisca de Saboya.

E respirou.

Agora, sim, haviam-se acabado vãos temores! Incontestavel herdeira do throno era sua filha, a Princeza Izabel!

Não a quizera Madama Real para esposa do Duque de Saboya. Que lhe importava? Veriamos agora quantos principes da Europa viriam pedir-lhe sua mão.

D. Affonso era morto finalmente! Que lhe importava como, quando, o que dissera, se foram suas ultimas palavras de ainda maior perdão ou se um gesto d'odio acompanhára seu ultimo suspiro.

Ia grande azafama no paço com as ordens para o enterro, em grandeza e cerimonial em tudo igual ao de El-rei D. João IV.

El-rei D. Pedro mostrava-se generoso.

A Rainha já se encontrára com elle, mas não haviam trocado uma palavra. Um do outro desviaram seus olhares.

Anoiteceu. No silencioso palacio a Rainha sentiu que um mysterioso mêdo a invadia. Pois não era morto D. Affonso? Pois que mal havia agora a recear? Os mortos não se erguem dos caixões para vir atormentar os vivos.

Repetiu-o em voz alta para melhor convencer-se.

E logo tremia ao menor rumor do vento nas galerias ou lento mover de alguma sombra.

Reagiu contra sua pusilanimidade; mas não ousou deitar-se.

Pegou n'uma luz e foi-se atravez das salas até o quarto da filha. Queria vêl-a dormir o somno leve dos seus quinze annos, descançar o espirito ouvindo á innocente o suavissimo respirar, pôr, se tanto pudesse, o pulsar do coração a compasso d'aquelle que batia sem um susto, sem um remorso. Queria vêl-a, sentir-se orgulhosa de ser mãe da futura rainha de Portugal.

Tanto soubera dominar-se, que nem um calafrio a fez estremecer em seu caminho.

Abriu mansamente a porta do quarto, devagarinho dirigiu-se para o leito, afastou as cortinas, e deu com os olhos nos olhos da filha, esgazeados, doidos, que a olhavam como para um phantasma de pesadello.

A Rainha deu um grito e a Princeza disse-lhe:

-- Morreu!... Morreu!

Quiz a mãe socegal-a.

-- Foi a vontade de Deus. Porque tremes? Agora é teu o throno a que eu te subi.

-- Em que me poz o teu peccado!... Mãe! mãe!... E elle morreu como um santo; por tua culpa soffreu martyrios, por tua culpa morreu!... Morreu e ficou resplandecente sua cabeça! Morreu martyrisado e subiu ao céo!... Temos um inimigo no céo, que ha de pôr Deus contra nós!... Mãe! mãe!... Havemos de morrer... Cedo havemos de morrer que nos condemnou Deus á morte!

Quiz a Rainha socegal-a, mas viu a filha arripiar-se, toda esfriar ao contacto de suas mãos.

E logo o mesmo frio lhe correu o corpo todo.

Pois ainda mais, depois de cadaver, o marido havia de perseguil-a!

Chamou as açafatas, que logo rodearam o leito.

-- Ajoelhae, disse a Princeza.

E todos se puzeram rezando: De profundis clamavi ad te, Domine. Domine, exaudi orationem meam.

A Rainha não pôde mais. Outra vez só, com o passo incerto como de somnambula, tornou a atravessar os salões desertos, sempre receosa quando havia de afastar um reposteiro, não se atrevendo a olhar para os velhos quadros, para as apagadas tapeçarias, temendo vêr a espreitarem-a de qualquer recanto os olhos vingativos de D. Affonso.

Não, não chamaria ninguem. Sósinha havia de vencer aquelle receio supersticioso.

Mas a filha... a filha!

Quem lhe fôra dizer que El-rei depois de morto ficára resplandecendo?... Era mentira!... mentira!... Eram seus inimigos a espalharem lendas, para que ainda mais de seu amor a filha separassem.

Amanheceu. Foi procurar o marido.

-- Coroemo-nos depressa! disse-lhe.

-- Coroarmo-nos!... respondeu, como se em tal não houvera ainda pensado.

Não queria. Dessem a corôa á filha.

-- Não quero!... não quero! dizia. A corôa de meu irmão não a quero, que tenho mêdo!

E foi preciso que os conselheiros viessem convencel-o de que assim era preciso, que o reclamavam os povos.

Então acceitou; mas no dia da acclamacão todos o viram cabisbaixo e á Rainha, já tocada pela morte que breve havia de leval-a.

Quiz D. Pedro conceder ao Conde de Castel Melhor seu regresso para o reino, tão cheio de serviços o considerava e tanto lhe pedia a mercê a Rainha de Inglaterra. E a Rainha de Portugal mais uma vez se oppoz.

-- Nao!... Não!

-- Que mal contra vós poderia elle tentar agora?

Nao queria, não queria. Odiava o homem que tanto mal lhe quizera, affirmou.

-- Odeia a Princeza. Não quero.

E, farta de luctar, eram suas luctas intimas que haviam de vencel-a finalmente.

Aconselharam-lhe os physicos a mudança d'ares. Então El-rei com sua casa foi habitar o palacio do Conde de Sargedas, em Palhavã.

E ella pensava que entre aquellas paredes socegaria, dormiria melhor sob aquelles tectos, onde memorias não habitavam que viessem de noite perseguil-a.

Enganou-se. Levava comsigo seu remorso.

A cada momento via approximar-se o castigo: a morte que para breve lhe havia a filha previsto, El-rei outra vez casado, um filho d'outra mulher, que seria o herdeiro da corôa.

Calava-se. Uma só queixa não dizia, porque ouvidos amigos não tinha que lh'a ouvissem.

A filha!...

Que tomentosos foram aquelles dias!... Ah! como D. Affonso pedira a Deus que o vingasse!

No quarto silencioso, onde todos de joelhos oravam, a Rainha de Portugal, que duas vezes o fôra, expirava agora.

Poucos dias sobrevivêra ao marido desgraçado.

E pensava D. Pedro, temeroso de seu pensamento:

-- Parece que lá do tumulo a está chamando!... Para quê?... Para vingar-se!

Arfava a Rainha na angustia ultima. Os olhos fitos na frouxa claridade da janella, por onde se avistava o céo carregado de nuvens, pareciam implorar um bocadinho de luz, como esperança que lá de cima lhe viesse. Tudo era negro, negro!

O que soffrêra!... O que soffrêra!

Centuplicassem-lhe as dôres do corpo, mas dessem-lhe á alma um nadinha de esperança!... O marido morrêra e uma aureola de luz circundara-lhe a cabeça!... Fôra a filha quem lh'o dissera... E ella morria agora tão nova ainda!... Mais novo ficava D. Pedro viuvo... Deus tornara-a esteril... Elle havia de casar... Outra mulher acclamada pelo povo havia de sentar-se na cadeira do throno que ella deixava. . Um filho nasceria... Seu nome? O do avô por certo... D. João... D. João V, este viria á filha de suas entranhas roubar o sceptro! Ninguem, ninguem no mundo ficaria da sua raça!...

Entrou no estertor.

A Princeza muito pallida, ergueu-se de seu logar e veio beijar-lhe a mão.

Ella então murmurou:

-- A filha do peccado!

Tornou a abrir os olhos, muito, muito.

O céo era negro, negro...

Correu-lhe uma lagrima pela face e logo ella deixou respirar.

-- Deus t'a leve em conta! disse uma voz.

E outra disse:

-- Morreu!

Só se ouviam no quarto os soluços da Princeza e o caír da chuva lá fóra.

FIM DA QUARTA PARTE

CONCLUSÃO

Tempos depois da morte da Rainha, obtivera o Conde de Castel Melhor licença para voltar ao reino.

Depois de serviços tamanhos como os fizera na côrte, grandes os havia ainda prestado em Inglaterra em favor da patria e da familia de El-rei.

Soffrêra no exilio os mais amargos desgostos e lá recebera a triste nova da morte de Simão de Vasconcellos, seu irmão e seu maior amigo. Quem lhe déra n'esse momento sentir junto de seu peito bater o coração da mãe velhissima e consolal-a!

Designou-lhe D. Pedro para novo desterro a villa de Pombal e foi preciso que Jaime II de Inglaterra intercedesse junto de El-rei de Portugal para que este concedesse ao Conde a licença tanta vez implorada para residir em Lisboa.

Voltou finalmente para a côrte, onde passados poucos mezes, lhe fallecia a mãe em seus braços.

Certo não doíam na consciencia da Marqueza os conselhos que déra ao filho. Nem porque muito havia perdoado aos inimigos, deixaram estes de se mostrar crueis, até quando de todos os Principes e homens eminentes da Europa o Conde recebia as mais significativas provas de apreço.

Era ao fim da tarde de 22 de Outubro de 1690.

Já um sopro mais frio annunciava a proximidade do inverno e começava a despir as arvores. Umas nuvens brancas, no alto céo, pouco e pouco tingiam-se de oiro pallido. A noite descia melancholicamente sobre a cidade, mais silenciosa que o costume áquella hora.

Na sala do palacio, sósinho, o Conde recordou-se da conversação que ali tivera uma vez com D. Pedro d'Almeida, a quem déra parte de muita coisa que ía imaginando. Como tudo se aluira! Quão longe estava Portugal do alto cume a que sonhara subil-o!... Quanto pudéra contra elle a maldade dos homens.

Entrou o filho e veio tomar-lhe a benção.

-- Tão tarde, meu pae!... E ás escuras!... Não quer que mande trazer luzes?

-- Não, por ora não. Estava para aqui recordando...

-- Recordar é mergulhar em tristezas, meu pae.

-- Não; enganaste. Estava-me lembrando de D. Pedro d'Almeida.

-- Do Conde de Assumar ! Esse nunca foi vosso inimigo.

-- E tem sido um portuguez ás direitas. Seu governo na India recorda tempos velhos gloriosissimos. Boas ilhargas não lhe faltam, é certo: Pero Rolão, Manuel Furtado, cujo nome não sei recordar sem me enternecer, tantos outros... Boa gente ainda temos; assim tivessemos...

Calou-se um instante, meditou. Perguntou depois:

-- Como vae El-rei, soubeste?

-- Vae-se conformando.

-- Triste dia lhe foi o primeiro anniversario do filho. Deus dê ao Principe D. João melhor fortuna que a concedida a seu pae.

No dia 11 de agosto de 1687 chegára ao porto de Lisboa uma esquadra ingleza acompanhando a Princeza Maria Sophia de Neuburgo, filha do Conde Palatino do Rheno, Filippe Guilherme, escolhida esposa de El-rei de Portugal.

E quando a fôra receber em seu bergantim de talha dourada, com toldo e cortinas de setim de oiro e carmezim, emquanto na prôa íam soando as trombetas de prata, entre os grandes do reino e os presidentes dos tribunaes, El-rei lembrava-se de quando se lhe arreigara de vez a tentação d'um adulterio, n'aquelle mesmo Tejo, ao deparar-se-lhe pela vez primeira a escolhida esposa de seu irmão.

Ricamente vestido de côr do fogo, todo coberto de diamantes, as galas eram apenas por fóra que nem um sorriso lhe animava o rosto contrahido. Lembravam-lhe palavras da Rainha em delirio, d'aquella que tanto amara, quo lhe punham agora terror no coração.

Era necessario assegurar a successão do reino, que só tinha por fiadora a Princeza Izabel. Pediram-lhe o conselho e o Duque de Cadaval que contratasse segundo casamento. E elle obedecêra ás altas razões de estado.

Nasceu o Principe D. João a 22 de outubro de 1689.

Mas quando a côrte se preparava para festejar-lhe o primeiro anniversario, suspirava docemente a filha de Maria Francisca de Saboya.

Era seu primeiro anniversario e os sinos lugubremente dobravam a defunctos. Era o enterro da irmã mais velha que saía do paço para o convento das Francezinhas, onde lhe puzeram o caixão arrumado ao da Rainha.

Findára aquella raça. E n'isso o Conde se pôz a meditar.

O mesmo pensaria talvez o filho, que disse.

-- Não foi El-rei D. Affonso feliz com mulheres.

O Conde olhou para elle espantado.

-- Porque o dizes?

-- Agora mesmo ali vi caída á porta d'uma taberna uma desgraçada que um marujo expulsára a pontapés e que, chamando pela guarda que lhe acudisse, dizia ser a Calcanhares.

-- Tem o fim que mereceu. Quantos, para exemplo de vivos, castiga Deus n'esta vida!

N'esse momento entrou na sala um frade velho, decrepito, dobrado ao meio, quasi já sem fórma humana, arfando, arrastando-se, gesticulando desordenadamente. Luziam-lhe os olhos pequeninos. E disse:

-- Rugia a porca do sino,
O sino não badalava,
A grimpa se revirava
E o sino andava a pino.

Era Fr. Custodio.

Hesitou um instante, como a querer recordar-se do que ali o trazia, e saíu sem pedir a esmola e a dar uns gemidos lugubres.

Um dia, uns rapazes, por mofa, haviam-lhe furtado o badalo da sineta em que tocava ave-marias; e, desde então, mal um bocadinho de nevoeiro surgia no céo, Fr. Custodio desnorteava de todo!

Affonso de Vasconcellos sorriu-se.

-- E' doido!

-- Deixal-o... Ainda tem uma esperança, disse o Conde.

Anoitecêra de todo. Parecia que pela sala muito vasta adejavam phantasmas temerosos. Um nevoeiro denso baixára sobre a cidade.

-- Uma esperança! repetiu o Conde. Deus m'a désse... ainda que me endoidecesse.

FIM DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME