Romance historico do século XVIII
No sopé da magestosa serra da Estremadura a que os romanos chamaram Mons-barbaricus, e que desde os arabes é conhecida pelo nome d'Arrabida, existia um espaçoso algar onde se venerava a imagem d'uma santa virgem-martyr, encontrada n'aquelle sitio, segundo a tradição.
Este algar ou gruta -- nos quaes a serra tanto abunda, -- demorava a não pequena distancia dos franciscanos arrabidos, cujo convento ainda existe alli, semi-rendido aos golpes energicos da catapulta dos tempos.
Desde o século XVI, -- época da fundação d'aquelle mosteiro, realisada pelo piedoso castelhano fr. Martinho de Santa Maria, -- nunca a referida imagem se viu entregue ao abandono.
Os frades, subdividindo os seus cuidados piedosos pelas cousas da regra e da particular devoção, destacavam-se por seu turno para a gruta, e alli se demoravam no culto da Santa Virgem, gastando as horas d'ocio na instrucção dos pastores, que appareciam n'aquelles sitios com seus rebanhos.
Após um vinha outro, e todos anciavam viver alli porque lhes aprazia o local e o convivio dos pegureiros.
Era n'uma noute de janeiro, tempestuosa e negra como a alma d'um atheu.
O vento, sibilando com impeto e em differentes diapasões, parecia como que uma horda de duendes, entoando uma canção infernal.
A este concerto insolito e medonho associava-se o som cavernoso do mar, quebrando-se em golfadas espumosas por sobre os pincaros dos rochedos.
Nunca a natureza produziu noute mais procellosa.
Fr. José do Amôr-Divino, encostado ao seu catre de cortiça, com o corpo tapado unicamente pelo habito de estamenha, dedilhava o seu rozario de grossas contas e punha os olhos na santa, a quem pedia que advogasse junto ao throno do Altissimo a causa dos tristes nautas, que n'aquella noute perigavam.
Infelizmente as petições do bom frade não eram ouvidas, pois que o vento recrudescia.
A alampada da virgem martyr, cuja luz enchia a gruta d'oscilante claridade, despcdaçou-se d'encontro á imagem por effeito d'uma rajada de vento, que invadira o algar.
Fr. José, mergulhado em trovas e amedrontado pelo medonho ruido que o tufão produzira, sentiu quo os cabellos se lhe erriçavam, e buscou a muito custo sahir da lapa.
Exposto ás iras do temporal, circuitado do sombras, frio como o gêlo, assustado e convulso, -- o santo monge resolveu abandonar o seu posto e ir-se ao acaso em busca d'uma choupana, que o recolhesse durante a noute.
Difficil e esteril lhe foi a empreza.
Agarrado aos rochedos, que por entre as trevas se lhe exhibiam sob mil formas phantasmagoricas, cahindo e rolando a cada passo, chegou altim á dura conclusão de que lhe seria impossivel realisar os seus desejos.
Meditou.
Voltar á gruta seria expôr-se a novos sacrificios e continuar n'aquella escuridão, que as paredes revestiam de sombras pavorosas.
Tambem alli lhe chegaria aos ouvidos o fremir horrisono da ventania, que, ao introduzir-se na lapa, se assimilhava ao silvar agudo das cascaveis.
Fr. José, deixou-se pois ficar entre dois rochedos.
Conchegou á face macilenta o coçado capuz do habito, e deu-se a novas meditações.
De quando a quando um prolongado estremecimento produzido pelo frio, que lhe chegava á medula, o vinha despertar d'uma especie de mystico lethargo a que se dera.
Depois, mirava o espaço, os lábios deixavam d'agitar-se, apertava febrilmente o rozario, e cahia de novo n'aquella modôrra contemplativa.
E assim permaneceu por largo tempo.
Acostumado a contar as horas pela reza, não lhe foi difficil saber que passava de meia noute.
Então, abriu de novo os olhos, ergueu a vista ao ceu e monologou resignado:
-- Meu Deus!. . meu Deus!... que noute lenta e horrivel!... Misericordia, senhor, misericordia!..
Mal tinha o monge pronunciado estas palavras ungidas de resignação e respeito, quando a não longa distancia ouviu soar uma gargalhada estridente.
Fr. José, invejára n'esse momento o arrojo de Huss, para se erguer d'entre as rochas e caminhar até á presença do impio, que ousava assim despresar a voz do Omnipotente collocada nos labios da tormenta.
Quizera pois confundil-o e ensinal-o a prestar o seu contingente de respeito á horrível magestade da natureza, -- augusta significação do poder de Deus, -- traduzida n'aquella noute pelos fremitos do cyclone, pelas sussurrantes convulsões do oceano e pelo estalido da trovoada, que pouco a pouco se apropinquava.
Mas carecia da coragem de Huss.
Limitou-se pois a pregar as vistas no tecto negro que o cobria, e a deslocar os labios para se expandir em orações.
Segunda gargalhada soou mais forte, mais perto, mais retumbante.
Depois, ouviu-se distinctamente uma horrida imprecação.
Fr. José, estremeceu com vehemencia.
Não atinava como áquella hora, n'aquelle sitio e sob as furias da tempestade houvesse quem remettesse ao Crcador as mais impias blasphemias.
Racciocinou.
Depois de sérias reflexões, accordou que só aos espiritos das trevas era dado escarnecer assim da hediondez da procella.
Cahiu sobre os joelhos feridos pelas lascas d'aquelle duro genuflexorio, e encetou novas preces.
Outra praga se ouviu mais de perto, e em seguida um silvo prolongado, que, eccoando pelas quebradas da serra, como que retrogradou tão agudo e demorado tal qual fôra emittido.
Era alguém que de longe correspondia.
Fr. José, ao escutar o agudo silvo, suspendeu a reza, apurou o ouvido o ficou silencioso e quêdo como se fôra de chumbo.
Os relampagos e as faiscas, que cabiam em abundancia, constituiam o unico colorido d'este quadro pavoroso.
Depois, ouviu-se um ligeiro dialogo.
O monge, sempre álerta, ergueu-se d'um pulo como corça ferida pelas balas do caçador.
O rozario cahiu-lhe das mãos.
Quem então lhe fitasse o rosto á luz sinistra d'um raio, que, como cobra de fogo, se agitava no ar, decerto desconheceria o frade de S. Francisco.
Aquella face macerada pela penitencia e vigilia, aquelles olhos encovados e baços, a curvatura do dorso, produzida por aturadas genuflexões, aquella velhice emfim prematura e contrafeita, esvahiu-se de subito ao reconhecer pela voz o impio, que dirigia blasphemias a Deus.
Se o soffrimento nos envolhece, a felicidade remoça-nos.
E' principio assente e incontroverso.
O franciscano arrabido, corroborava n'aquelle instante este preceito inseparavel da sabedoria dos seculos.
Apresentava-se agora com olhos vivos e penetrantes, com as faces ruborisadas e tão outro que se não conhecia.
Remoçára os annos que a dôr e a fadiga o tinham envelhecido.
Já o não horrorisava a procella, já não pensava nos espiritos das trevas, já não o magoavam as pragas do impio, e cada uma que este proferia chegava-lhe aos ouvidos como sons embriagantes d'uma harpa feiticeira.
Mas o peito effeminado agitava-se-lhe com affan.
Nos olhos negros e rasgados brilhavam-lhe algumas lagrimas.
A este tempo passavam quatro vultos junto a si.
Calçavam altas botas, vestiam calções negros e conservavam os rostos occultos pelas abas d'uns chapeus descommunaes.
Dos hombros pendiam-lhes uns capotes tambem negros, com que se abrigavam dos açoutes da ventania.
Um dos desconhecidos era alto e gentil.
Quando o vento soprava com mais vigor e lhe sacudia o capote, scintillava-lhe á luz da lanterna, que empunhava, um ferro polido de trez gumes, e deixava vêr a tiracollo um pequeno bacamarte.
Os outros companheiros tambem eram d'estaturas elevadas.
-- Capitão (disse um d'elles): A lapa está perto. Se o demonio a não tapou devemos passar n'ella uma noute detestavel.
-- Qual?... Os homens da nossa tempera estão sempre bem, toda a vez que lhes não falte a cachaça. Quem traz as provisões? Acaso ficariam em poder dos outros companheiros?...
-- Antes o diabo me engulisse vivo. As provisões vão aqui.
Estas palavras impiedosas, que revelavam de sobra a indole dos do grupo, foram proferidas por um dos embuçados, que fugira das prisões de Lisboa no mesmo dia em que fôra condemndo a morrer na forca.
-- Muito bem (disse o capitão). Mas... não me disseram vocês que na gruta existe um monge?
-- Sim. Existe. No entanto deveremos caber todos. A lapa é espaçosa.
-- E se não (accudiu o das provisões), -- o frade não é de pedra e este espeto é de bom aço.
Fr. José, que tudo ouviu, não se intimidou por um momento.
Depois caminhou quasi ao pé dos embuçados que dentro em pouco eram na gruta.
Pelas dez horas d'uina noute de fevereiro de 1758, soavam dez badalladas mathematicamente compassadas no sino grande da parochial egreja de Santo Estevão d'Alfama.
As pessoas que as ouviam descobriam-se reverentemente, e pelo mover dos labios bom se via que resavam.
Estas monotonas e tristonhas badalladas chamadas -- da agonia, -- annunciavam n'aquella época o passamento de qualquer adulto, ao mesmo tempo que convidavam os crentes a orar por elle.
Quem penetrasse no labyrintho de ruas estreitas, tortuosas e immundas, que occupavam a área d'aquella freguezia, e se deixasse ir até ao largo do Regedor, depararia sem custo com a casa do moribundo.
As janellas descidas deixavam passar atravez os vidros baços, os clarões melancholicos d'uma luz escassa e oscilante.
De quando a quando ouviam-se lá cm cima uns soluços abafados, que explicavam de sobra o que ia d'intimo soffrimento n'aquelles que os exhalavam.
Á porta da rua estacionavam trez ou quatro individuos com as vistas pregadas nas janellas e immersos em profundo silencio, o qual era apenas alterado por um offego respirar.
Subamos as escadas carunchosas daquella habitação e penetremos na alcôva do agonisante:
Uma das faces do quarto, de forma quadrangular, e que ostentava o mais irreprehensivel acceio, era occupado pelo leito do enfermo, o qual leito tinha á ilharga uma meza de pau preto coberta por uma toalha de finissimo linho, guarnecida de rendas de Peniche.
Sobre esta meza via-se uma imagem do Crucificado ladeada por dous brandões accesos, e logo ao pé uma caldeira metalica com agua benta, cujo hyssope parava nas mãos dum padre sexagenario que se achava presente, e que misturava algumas palavras latinas com bastantes gotas da benta agua, espargida sobre o leito.
Nas outras faces da camara tomavam logar meia duzia de cadeiras de couro com guarnições de metal, uma estante de pau santo repleta de grossos livros, duas mezas de egual madeira primorosamente trabalhadas, duas velhas poltronas e outra identica mobilia.
A' cabeceira do leito encontravam-se, além do velho sacerdote, uma formosa mulher de 18 annos, com os cabellos em desordem, as faces humidas, as mãos erguidas, e fitando nervosamente e por seu turno ora o crucifixo, ora o agonisante.
A pequena distancia estacionava um rapaz alto, trigueiro, bem parecido.
Com a mão direita no seio, a fronte inclinada para o chão o os cabellos em desalinho, -- parecia a estatua de Lacoonte contemplando na masmorra o supplicio que o aguardava.
O moribundo seria homem de 70 annos.
Pouco antes de lhe termos invadido a alcova, dizia elle aos dous jovens com voz firme mas fazendo um esforço sobrehumano:
-- Meus filhos: Já me não restam trinta minutos de vida, e oxalá que se extinga breve porque soffro muito. De sobra sabeis que ficaes pobres. Comtudo, lego-vos o thesouro do meu nome immaculado. Sêde honrados como eu fui. Sêde amigos. Protegei-vos mutuamente. E tu filha, minha querida Branca, pede a Deus em tuas orações pelo descanso da minha alma. Ama teu irmão, que te fica sendo segundo pae, e guarda dia e nout na memoria os meus conselhos... os conselhos de tua santa mãe, que espero em Deus vêr no reinoJ?0 da Gloria. Se não fôra a recordação pungente de vos deixar ficar sósinhos, ah! de certo a doce esperança d'ir vêl a me concitaria a encarar a morte com jubilo.
Este singelo monologo repassado de ternura, cujo tom sentimental se não póde descrever, sortiu effeitos tão pungentes nos corações dos dous jovens, como que se se houvesse transformado no rochedo de Sisipho que de chofre lh'os esmagasse.
Então o velho, enxugando por seu turno os olhos na dobra do lençol, fez um gesto a seus filhos, que se aproximaram do leito.
-- Senta-te aqui um pouco, Samuel. E tu, Branca, colloca-te também ao pé de mim.
Então?... Que tolices são essas?... Porque choram vocês como duas tontas creancinhas? E' mister sermos razoaveis: Quem lhes disse que eu havia de ser eterno? Não tenho vivido de sobejo para os ter educado consoante os preceitos de boa sociedade? Não os deixo ficar em edade propria e com a luz necessaria para descriminarem o bem do mal? Que importa que morra hoje? Pois que sou eu mais do que um simples effeito da natureza, sujeito como tal á intransigencia das suas leis?
Meus filhos: Começae a difficil tarefa da vida real por appellar, no meio das presentes attribulações, para esse santo elixir a que a egreja chama -- resignação. Vida real, sim. Vida real a que desde hoje ides viver, porque até aqui não conhecestes nunca que cousa fosse vogar sósinho na amplidão d'este mar embravecido chamado vida, tendo por escolhos a doença e a miseria, por naufragio a fome, por baixel o trabalho, a honra por leme, por bussola a esperança, a saude por bonança e Deus por fanal. Haveis sido como que umas frageis plantas, defendidas pela escora do meu braço do rigor dos temporaes. Esta felicidade não vos podia ser permanente, por que Deus condemnou os homens ao trabalho, e d'essa condemnação vos não podeis eximir.
E' verdade que nem a todos alcançou a sentença do Senhor: Fica-vos ahi na terra o contraste dos que mourejam desde o sol nado ao sol poente: São os que nasceram em berços d'ouro e que depois encontraram os caminhos da existencia atapetados de flores. Mas nem por isso estes são mais felizes, meus filhos: Embriagados quasi sempre com os gozos comprados a peso d'ouro... atolados na lama de milhares de desvarios, -- nunca conheceram aquelle celestial prazer perimittido apenas ao homem laborioso, que vergado á fadiga d'um dia de trabalho adormece depois com a tranquilidade na consciencia e com o sorriso nos labios por ter sido prestimoso a si e ao mundo, durante as horas que labutou. Ai! meus filhos, -- se na vida existem recifes e tempestades, também é fertil de lirios e bonanças. Sêde pois honrados, trabalhae e amae-vos sempre.
E o pobre velho, com a voz abafada pelos soluços, pegou nas mãos de seus filhos e levou-as aos labios calcinados pela febre.
Decorreram alguns segundos d'um silencio lancinante.
Samuel e Branca, mudos, quedos e lacrimosos assimilhavam-se ás estatuas de granito em cujos olhos pousaram os orvalhos da manhã.
Depois, o ancião, sentindo que o abandonavam os derradeiros alentos e querendo aproveitar os poucos instantes que lhe restavam, dirigiu-se a Samuel e disse lhe alfim com a voz quasi extincta :
-- Meu filho: Eutrego-te tua irmã. Vela pela infeliz creança como eu yelei... Jura que mo has-de secundar em dedicação e amor.
Samuel, esforçou-se mas não pôde responder.
Baixou duas vezes a formosa cabeça em signal affirmativo.
Depois, affastou-se do pé do leito, cambaleou um momento e foi cahir abandonado sobre uma velha poltrona.
Branca, abraçada ao crucifixo, dizia palavras loucas, sem nexo.
O pobre velho já não pôde divisar este quadro doloroso através as nevoas da morte, que lhe empannavam a vista.
Agonisava.
N'este momento abriu-se a porta da alcova, e um velho sacerdote, vestindo crepes, aproximou-se do leito.
Era o prior de Santo Estevão, que vinha exercer um dos mais santos deveres do seu officio ajudando a bem morrer o ancião.
Vinte o cinco minutos depois da entrada do sacerdote na alcova do moribundo, Branca e Samuel choravam profusamente junto ao cadaver do pae.
A noticia da morte de Bernardim Barbeita foi sentida por todos que o conheciam, pois que o bom velho era modelo dos bons chefes de familia e o mais estrenuo protector dos infelizes, que a toda a hora o procuravam.
Procedente d'uma das mais fidalgas familias da Beira Baixa, mas por infelicidade sua exhausto de fortuna, estudou em Coimbra o curso de direito, e, depois deformado, pôde obter logar na magistratura, graças á importancia politica d'um seu parente.
Bernardim Barbeita, casado com a filha terceira dos senhores de Villa-Chan, teve a infelicidade de perder sua esposa poucos annos depois do nascimento de Branca.
Samuel, seu filho mais velho, chegou a cursar estudos superiores, que, depois do fallecimento de sua mãe e por motivos de saude, teve d'abandonar.
Era a familia Barbeita mui avêssa a Sebastião de Carvalho, ministro de D. José, -- o que lhe custou não poucos dissabores.
Se Bernardim seguisse o exemplo dos sabujos (parasitas humanos, que vegetam sob todos os ambientes e em todas as épocas), e se como elles se dobrasse na passagem do grande vulto e lhe limpasse as botas, certamente não morreria pobre entre as quatro paredes d'uma modesta casa situada no coração de Alfama.
Mas o fidalgo beirão, que tratava as questões de dignidade com um estoicismo espartano, preferia passar pela engrenagem da injustiça e ser alvo das maiores intrigas e contratempos, a curvar-se em ridiculos salamalekes, que foram, são e hão de ser sempre o caracteristico dos hypocritas, dos lacaios engravatados e de todos os sujeitos cujas almas aleijadas encerram em si o germen de tudo quanto a natureza procreou de mau, nocivo e nauscoso.
Não era de baixa estôfa o pundonor de Barbeita.
Quando em 1755, depois da horrorosa derrocada de Lisboa, o grande estadista se rodeou de gente da justiça para impedir a violencia o o roubo, -- Bcrnardim fôra dos encarregados de capitanear um certo numero d'esbirros e de patrulhar com elles n'uma determinada zona da capital, -- destruida pelas convulsões vulcanicas e pelo incêndio.
Como Bernardim Barbeita, muitos outros magistrados foram encarregados de vigiar outros pontos e de fazer justiçar os miseraveis, que, como hyenas, se encontrassem sobre os destroços da cidade amalgamada.
O fidalgo beirão, que via n'esta medida uma armadilha á popularidade, por parte do ministro, disse que de facto era assaz humanitario policiar a fazenda e a honra das victimas do terramoto: mas que esta missão não devia ser assim commettida quasi á força a algumas duzias de homens, só porque viviam do herario, -- quanto seria mais regular e vantajoso que affectasse a todos, pois que todos encontrariam o dever e o interesse associados ao sacrificio.
Aos ouvidos do que mais tarde se chamou condo d'Oeiras e marquez de Pombal foram ter as palavras de Barbeita, como que se este fallasse no transmissor d'um telephone, cujo receptor aquelle houvesse junto á orelha.
Sebastião José de Carvalho e Mello, franziu as sobrancelhas e deu á face uma expressão diabolica.
Quando as linhas do rosto se lhe encurvavam, quando os olhos se lhe encendiam, quando, finalmente, assestava a sua descommuual luneta, é certo, diz a tradição, que a tempestade andava perto.
O ministro de D. José mandou chamar o magistrado.
Bernardim Barbeita, appareceu.
-- E' verdade (perguntou o estadista), que murmurou publicamente das providencias por mim tomadas contra a violencia e o roubo?
-- Os informadores officiosos de v. ex.ª, que lhe respondam.
Estas palavras, sêccas como o fogo, pronunciadas a distancia dos encurvamentos do dorso, encabrestaram um pouco os impetos do ministro, que, valha a verdade, pena foi que não vivesse em época mais avançada.
O marquez de Pombal, teve grandes virtudes e defeitos supremos.
As virtudes todos lh'as conhecem: e a sua memoria ha de residir sempre na mente dos homens em quanto a carcôma dos seculos não corroer esse famoso monumento de marmore e granito denominado -- Lisboa.
Hade encontrar-se nos labios da tradição, em quanto que o amôr da patria nos consentir que comparemos o esplendor do seu governo, -- manifestado pela vida da nossa actividade e pela veneração pelo nosso nome -- com isso que ahi nos dirige e que nos arrasta abatidos pela fome, chagados e semi-nus, pelos charcos da miseria, pelos tremedaes da deshonra.
Os seus deffeitos, os seus supremos senões, consistem na demasiada importancia, que se arrogava; consistem nas exorbitancias do poder; consistem na maldita ambição de querer dominar todos e de pretender lançar sobre o proprio docel do throno uma torre de Titans, por onde podesse vêr lá de cima, cá em baixo a humanidade agitando-se como as formigas no verão.
Afóra isto, o ministro de D. José era um vulto grandioso.
Sebastião de Carvalho, apenas Bernardim respondera, assestou contra elle a terrivel luneta e mirou-o d'alto abaixo.
O beirão não se rendeu á ameaça.
Tomou uma commoda posição e poz-se a contemplar a ampla excursão da vista do ministro.
A este tempo Sebastião de Carvalho pensava na cadêa, e Bernardim Barbeita esquecia-se de si e da familia, para se lembrar apenas d'um enorme tinteiro de chumbo, que lhe estava vis à-vis.
O ministro não era cobarde, mas receiou-se da horrivel imponencia do magistrado, a quem de sobra conhecia o genio arrebatado em questões de pundonor.
Por isso, apeiou a immensa luneta sobre um grosso in-folio, que lhe ficava á mão, e limitou-se a dizer:
-- Eu podia castigar severamente o magistrado, que ousou reagir com as ordens d'El-rei. No entanto serei uma vez complacente. Cuidado porém com as prevaricações d'ámanhã.
-- Reagir com as determinações d'El-rei?! Essa accusação é injusta e só própria dos lacaios, que pretendem passar do esterquilinio ás boas graças de v. ex.ª.
-- Basta (replicou o ministro com voz cavernosa).
-- Perdão (continuou o fidalgo.) Bernardim de Barbeita tem a consciencia dos seus actos e nunca abdicou da sua dignidade: Não acceito as censuras de v. ex.ª, por que são injustas.
Escusado será dizer, que, quarenta o oito horas depois do succedido, Bernardim Barbeita era demittido do serviço d'El-rei.
Por muito feliz se devera ter dado, por não ter soffrido os effeitos da vingança do ministro: effeitos que poderiam ter-se traduzido n'um processo forjado nas trevas, que o levasse ao carcere e do carcere ao exilio.
Se fôra outro o imprudente, o reedificador de Lisboa não ficaria assim.
Do marquez de Pombal existem exemplos rarissimos de similhantes benevolencias.
No entretanto existem, e não é d'admirar desde que Diocleciano e Galerio os praticaram tambem.
Se todavia procurassemos a causa d'este facto extraordinario, encontrai-a-hiamos na secretária do beirão, figurada n'uma missiva em que o ministro de D. José como que ordenava á consciencia do magistrado que se deixasse d'escrupulos, e que condemnasse, a despeito da innocencia, um inimigo do estadista -- implacavel, figadal.
Bernardim Barbeita, satisfez com a absolvição do réu ao empenho senão ás ordens de Sebastião de Carvalho, e guardou a carta recebida, a sete chaves, como o uzurario guarda a burra.
Desde então o nome do fidalgo da Beira passou a occupar umas das terriveis paginas do livro negro do ministro; e se sobre Bernardim não tinha desabado a vingança mais energica, é porque Sebastião de Carvalho tinha commettido a maxima leviandade d'escrever-lhe.
Ainda assim o beirão foi por vezes incommodado.
Demittido do logar que exercia, teve de recorrer á economia domestica e ao ensino do latim, para não morrer de fome.
Reduzidas pois todas as despezas ao estrictamente necessario para a vida, trocada a casa esplendida em que vivia por aquella que já vimos em Alfama, e, finalmente, entregue á missão de mestre-escola, -- Bernardim Barbeita viveu assim os tres annos que mediaram do facto referido ao dia da sua morte.
De todos os seus discipulos fôra Branca o que mais progressos fizera.
A este tempo Samuel já não estudava, e empregava-se em coadjuvar seu pae nas lides do ensino.
Quando o ex-magistrado da justiça presentiu que a morte se lhe abeirava, tentou, mas debalde, fazer professar Branca no convento de Sant'Anna, pois que o seu maior cuidado consistia em deixal-a bem amparada.
Branca, oppoz sempre aos desejos do pae uma suave resistencia.
Se fôra homem, dizia ella, abraçaria a vida do claustro, visto que o seu genio melancolico e concentrado lhe exorava a solidão d'uma cella nas horas vagas da mendicancia, depois de ter andado de povo em povo, de casa em casa, ensinando a resignação a uns; depois de ter levado palavras de conforto a outros; depois de ter receitado a humildade aos vaidosos; aconselhado a harmonia aos dessidentes, e levado emfim, o santo balsamo do bem aos espiritos chagados pelo mal.
Assim, mulher como era, não lhe aprazia o duro recolhimento do mosteiro, cujas portas fechar-se-lhe-hiam uma vez para não mais se lhe abrirem.
O fidalgo beirão, que estremecia os seus dous filhos, deu á conta de Deus o futuro d'ambos e cessou de contrarial-os apontando-lhes os caminhos que julgava mais seguros.
Estendido na tumba da Misericordia, amortalhado no habito de S. Francisco e ladeado por alguns padres e mendigos, lá caminha para a sepultura o cadaver do honrado velho.
Se n'este humilde sahimento escaceiam os ouropeis ridiculos com que a toleima se enfeita até depois da vida, sobram em compensação os lamentos assaz sinceros e as lagrimas verdadeiras.
A morte não se casa com os feretros dourados, com as berlindas archiluzentes.
Estes esplendores inspirados pela vaidade podem ter-se em conta do sacrilegos, pois que affrontam pelo contraste o que ha de pôdre e nauseoso no fundo d'um athaude.
Branca e Samuel, ao segundo dia da sua dupla orphandade, tiveram de vender a casa onde viviam, a mobilia e algumas roupas, para pagamento de dividas, que se lhes apresentaram como feitas por seu pae.
Aos dous filhos de Barbeita pareceu um sonho este successo, tanto mais que os credores não provayam o que diziam.
Eram elles dous irmãos mercadores, das relações de Bernardim, os quaes, ao cabo de quinze annos, conseguiram enriquecer.
Samuel, teve tentações de lhes fechar a porta na cara e de lhes chamar ladrões.
Acostumados a roubar impunemente, nem respeitaram a desgraça dos dous orphãos, em cuja casa penetraram assaz seguros de que a bondade d'elles se havia de compadecer do bom nome do pae.
De facto Samuel e Branca consentiram no roubo, no empenho de evitarem que a baba dos dous infames fosse manchar a memoria do honrado ancião.
Entregue a casa e a mobilia, -- os filhos de Barbeita foram habitar uma misera agua furtada para as bandas da Pampulha.
As difficuldades de vida começaram a manifestar-se.
D'uns pobres trapos furtados ás vistas cubiçosas dos larapios, já nada havia que vender.
Samuel, sahiu um dia a procurar trabalho.
Começou por offerecer os seus prestimos aos notarios da cidade, que lh'os regeitaram.
O pobre moço recolheu ao triste albergue, desalentado e com fome.
Branca, entregue á costura, também nao tinha comido.
Aguardava Samuel com uns miseros patacos, satisfeita de si por ter ganho n'aquelle dia o necessario para umas sopas.
Samuel, apenas chegára á escura agua furtada, deixou-se cahir sobre um banco e desatou a chorar.
Não era o proprio soffrimento, que lhe promovia o pranto: era a certeza de vêr sua pobre irmã reduzida ás privações, -- sem esperança de conseguir trabalho por onde lhe fosse dado desfazer a nuvem negra, que lhes toldava os horisontes da existencia.
Depois, recordando-se d'aquelles dias felizes, quando a idéa da miseria lhes era uma utopia, e comparando o passado com o presente, escondia a face entre as descarnadas mãos e suffocava os soluços para que a pobre Branca não adivinhasse o que se passava de doloroso na sua alma.
A ingenua menina, apenas Samuel entrára em casa, ergueu-se de sobre uma esteira aonde costurava, e foi-se ao encontro d'elle.
-- Bem vindo seja (lhe disse, simulando-se zangada): Que fez pela cidade, que tanto se demorou?
Depois, deixando percorrer na fronte uma sombra de tristeza, continuou:
-- Ah! sim... comprehendo: Enfada-te a minha companhia e buscas distrahir-te... Não é assim, Samuel?
-- Que lembrança, Branca!... Pois que haverá para mim de mais caro do que a tua companhia? Enfadar-me?!... Eu?!... Que loucura, minha amiga. Olha: se me demorei mais do que o costume, foi porque andei de porta em porta pelos notarios da cidade, pedindo-lhes algum trabalho para não morrermos de fome.
-- E conseguiste-o?
-- Qual!... Todos me despediram como a um desgraçado.
Foi aqui que o pobre orphão de Bernardim se deixou cahir sobre o banco, e que occultou á pobre irmã as lagrimas, que o affogavam.
Branca, que adivinhava o fundo pezar de Samuel, lançou-se-lhe ao pescoço, e, esforçando-se por lhe amainar a tempestade do espirito, lhe disse meigamente:
-- Não te afflijas, Samuel. Se os notarios da cidade rejeitaram os teus serviços, creio em Deus que alguem t'os aproveitará. E' mister que satisfaças aos derradeiros pedidos de nosso pae: Resigna-te. De mais, penso que a Providencia nos não deixará morrer de fome: Para hoje e para ámanhã, já temos o necessario. Tu és sobrio e eu tambem.
E correndo ao balaio da costura, puchou do trez patacos que mostrou a seu irmão:
-- São os meus ganhos de hoje. Ámanhã, Deus dará.
-- Pobre creança! (monologou o mancebo).
Duas horas depois d'este colloquio de lagrimas e de ternura, Samuel e sua irmã comiam, á fraca luz d'uma candéa, umas magras sôpas adubadas com azeite.
Para mais não dera o ganho da infeliz orphã.
Era a vez primeira que se alimentavam n'aquelle dia.
Quantos e quantos áquella hora não dividiriam pelos cães as fartas sobras dos seus manjares?!
E ainda Branca e Samuel tinham umas sôpas.
Outros haveria, que só teriam maldições para o destino, arrancados pelo magno desespero de se verem rodeados d'esfomeadas creancinhas, pedindo-lhes em vão sustento!...
O mundo é assim...
Finda a misera refeição, Samuel sentiu-se extenuado e adormeceu.
Branca dependurou a candéa em sitio proprio, e foi pôr-se a costurar.
Era-lhe necessario trabalhar muito.
Samuel, não deu por esto novo sacrificio.
Soaram quatro horas da madrugada, e ainda Branca trabalhava.
Por fim, rendida ao cansaço e á vigilia, adormeceu sobre o labor.
Era Branca uma debil creança: O excesso do trabalho começou desde logo a assignalar-lhe os seus estragos.
A côr rosada das faces cedeu sem delongas a esse palôr esbatido, que é quasi sempre o sêlo das fadigas e da miseria.
Samuel, despertando, pôz-se a contemplar a pobre irmã á tibia luz da candéa.
-- Desventurada creança (monologou elle.) Ainda se não deitou!... Oh!... era preciso que Deus fosse um mytho, para que continuassemos assim. Mas Deus existe, e Deus é bom. Daqui a poucas horas hei de entrar n'esta triste casa, hei de abraçar minha pobre irmã e hei de dizer-lhe com jubilo: sou feliz; suspende os teus sacrificios... arranjei trabalho. Descança agora, emquanto ganho o pão de cada dia.
Depois, levantou-se com custo, aproximou-se de Branca e beijou-a na testa.
Os sulcos e a palidez d'aquellas faces, attrahiram-lhe os olhares, como o iman attrahe o aço.
As vistas de Samuel ficariam colladas n'aquelle rosto desolado, se a orphã não despertasse tambem.
Então os dous irmãos fitaram-se com ternura e irromperam em soluços compungentes.
Durante o resto da noute não poderam servir-se d'outra linguagem, por onde traduzissem, por seu turno, a saudade do passado e o temor resultante da contemplação do porvir.
Surgem no horisonte os primeiros raios de luz do dia immediato.
As bellezas que o exornam contrastam distinctamente com o que se passa de tenebroso nos espiritos dos dous jovens.
Samuel, como novo Ashavero, recomeça na sua esteril peregrinação.
Debalde implora trabalho a uns e outros, e mais debalde tenta vencer o desalento que o prostra moralmente.
Ter-se-hia suicidado n'aquelle dia, se felizmente a lembrança de sua irmã lhe não viesse debelar aquella febre de desespero.
-- Como é a vida (dizia elle.) Tenho fome, nega-se-me o trabalho e entregam-me inexoravelmente ao abandono, que é o ponto de partida para o suicidio ou para o roubo!... Infernal dilemma, mi vezes infernal: Ou a sepultura, ou a morte da honra, unico thesouro que me coube em herança de meus maiores!... Que deverei fazer? Apagar esta existencia, que me crucia? E minha pobre irma?... Tornar-me surdo ás vozes da consciencia, que me ensina a estrada do bem sem se lembrar que o viandante cahe extenuado se lhe falta o alimento? Talvez!... Mas... oh! perdão, perdão, meu pae!...
Samuel, chorava.
Terrivel sudario se lhe desenrolava na sua frente:
A morte, ou o crime!...
A deshonra, ou o desamparo de sua irmã!...
Por fim, teve uma idéa:
-- Nem serei ladrão, nem suicida. Mendigo também não: Esses que hoje me negam o trabalho, seriam os primeiros a mandar-me trabalhar se ámanhã lhes estendesse mão pedinte!... O mundo é isto. Complexo d'egoismo, hypocrisia e malvadez.
E assim monologando, foi-se em busca da realisação do seu ultimo ideal.
Hora e meia depois do que fica relatado, estacionava elle junto ás portas dos aposentos de El-Rei.
N'esse dia havia recepção no paço.
Os cortezãos appareciam com profusão dentro das suas burlescas liteiras e enormes carruagens.
Depois, apeavam-se e desappareciam ao longo do amplo pateo do velho paço da Ajuda, que um terrivel incendio mais tarde devorou .
Do interior d'um dos custosos mas grotescos vehiculos, sahiu um fidalgo ainda moço, brilhantemente vestido, em cuja face se lia como que a anciedade pela realisação d'uma idéa concebida.
Com a testa franzida, turba a vista, o labio inferior calcado pelos dentes, interrompendo por vezes a marcha grave e cadencial, -- aproximou-se da porta do palacio onde estacionava Samuel.
O filho do Barbeita, reconhecendo-o a despeito d'aquella perturbação do animo que lhe transtornava a face, aventurou-se a dar um passo para elle e a dirigir-lhe a palavra:
-- Senhor duque (disse -- sentindo que os labios se lhe pregavam...)
O cortezão, como que despertando d'um medonho pesadello, suspendeu rapidamente a vagarosa marcha, dirigiu uns olhares d'esforçada quietação para o seu interlocutor, e limitou-se a perguntar:
-- Quem me chama?
-- Perdão (respondeu o mancebo embaraçado...) Creio que já não sou conhecido de v. ex.ª...
-- Certamente... não me recordo...
-- Pois bem. Eu sou o orphão d'um dos seus melhores amigos.
O duque, mediu Samuel com a vista e ficou silencioso. Depois:
-- Mas... essa explicação não me illucida. Como se chamava seu pae?
-- Bernardim Barbeita d'Alencastre.
-- Oh!... é verdade, é verdade.
Houve um minuto de silencio.
Entretanto, Samuel experimentava mais uma vez o effeito das suas magoas.
O cortezão contemplava o orphão, e agradecia á sua «funesta estrella» o beneficio de collocar-lhe na passagem mais um elemento precioso para a realisação dos seus projectos... «hediondos».
Depois, tomou a mão do mancebo, conduziu-o suavemente para um dos angulos do pateo o disse-lhe a meia voz:
-- Que faz aqui?
-- Esperava-o, senhor duque.
-- Para que fim?
-- Para pedir-lhe trabalho .. protecção... morro de fome.
-- Como?!... Pois o filho d'um fidalgo, d'um magistrado sem maculas... chega a tanto?!
-- Assim é, meu senhor.
-- Mas... Bernardim Barbeita?
-- Morreu pobre, demittido do logar, a ensinar latim.
-- Infamia !...
E o cortezão cerrou os dentes, levou a mão ao florete e passeiou, agitado, alguns momentos.
Seguidamente, olhou em todas as direcções, abeirou-se de Samuel e segredou-lhe :
-- Eu já sabia da vingança do ministro contra o honrado ancião. Exaspera-me o facto a que ella deu origem. Coragem. Esta noute, no meu palacio aos Jeronymos.
E deixando algumas moedas d'ouro nas mãos de Samuel, subiu a polida escadaria do paço, murmurando com terrível satisfação:
-- Mais um novo braço contra o imperio maldito!...
Samuel, por seu turno, silencioso e confuso, ora contemplava o ouro offertado pelo duque, ora pensava em sua pobre irmã, que se definhava a labutar, ora finalmente pesava em seu raciocinio aquellas mysteriosas palavras do cortezão:
-- «Á noute, no meu palacio aos Jeronymos».
Deixemos decorrer serenaramete o burlesco ceremonial.
Os ridiculos encurvamentos d'alguns servis cortezãos, ou as forçadas reverencias d'outros em presença da magestade, nada fazem á nossa historia.
Questões de etiqueta, e de despeito.
Consintamos também sem reparo, que Sebastião
José de Carvalho e Mello, l.° ministro d'El-Rei, veja do alto da sua monumental luneta o que occorre de sincero e fingido n'aquelle rapido-perpassar da côrte pela frente do monarcha.
Sigamos antes Samuel.
O pobre moço, apenas triumphou d'aquella especie de confusão que o tolheu, arrecadou na algibeira o dinheiro do duque, e foi-se em direcção de casa.
Se o Hymalaia lhe tombasse aos pés, decerto o não despertaria d'aquelle sonho de delicias, que sonhára caminhando.
Nem só na ordem physica se estabelecem reacções:
Também as ha de natureza psychologica e tão energicas, que endoudecem e até matam.
Quem haverá que o ignore?
Samuel, -- pobre, faminto, desprotegido, em caminho do suicidio ou do roubo -- por não deixar a irmã abandonada --, ao apertar nas magras mãos o dinheiro salvador, e ao ouvir as ambiguas palavras do cortezão, que tomou como precursoras da sua felicidade, perdeu a sciencia e consciencia própria e não pôde evitar que a sua alma sorvesse d'um jacto o melifluo cordeal, que horas antes tinha para si o triplice travor do fel dos desgraçados.
Já não via o espectro da miseria, na amplitude da sua horrenda magestade.
Tudo lhe sorria.
Aquellas nuvens de desanimo ou desespero, que, tempo antes, lhe empannavam o coração, acabavam de transformar-se em suaves roscios, que lhe davam refrigerio e que lhe adoçavam a existencia até alli amargurada.
Era feliz.
Chegado á desconfortavel agua furtada, que o abrigava a si e a sua irmã, abeirou-se d'esta, que trabalhava assiduamente, beijou-o com enthusiasmo febril, arrancou-lhe com suavidade a costura e disse-lhe alfim n'um extremo de alegria:
-- Branca, minha querida Branca: Deus ouviu as tuas preces. Já temos pão para alguus dias. O resto virá do céu...
E depondo algumas peças sobre o regaço da orphã, que o ouvia estupefacto, começou a doudejar pela saleta dando saltos tão repetidos, que parecia uma creança.
Branca, ora fitando o dinheiro, ora contemplando o irmão, perdeu por fim a consciencia de si, e foi associar-se ás manifestações d'excessiva satisfação produzidas por Samuel.
Eram dous loucos.
Depois de innumeras puerilidades, sentaram-se ambos.
Samuel, encostou então a mão direita a um dos hombros de sua irmã, e n'um tom que accusava o regresso das normaes funcções do espirito, disse pausadamente:
-- Muito soffri hoje, querida Branca. Da minha ultima peregrinação em busca do trabalho colhi apenas os agudos espinhos do mais cruel desespero. Olha, minha amiga: se me vês agora aqui, satisfeito e feliz, a ti o deves, só a ti...
Samuel, baixou a cabeça o limpou duas lagrimas, que lhe rolavam nas faces.
Em seguida, e evitando que a orphã o interrompesse, continuou:
-- Andei como um novo Cartaphilus. Em toda a parte onde a minha voz soava implorando protecção em troca dos meus serviços, ouvia palavras de despedida, cujos sons me chegavam aos ouvidos como clangores horrisonos dos mais acerbos insultos. Desanimado em extremo, cheguei ao desespero. Tentei suicidar-me: mas a pungente lembrança de te deixar abandonada, foi, como o anjo de Abrahão, quem evitou o sacrificio.
Branca ouvia a tocante narrativa de seu irmão com os olhos arrasados de sincero pranto.
Samuel, interrompia-se de quando em quando, para dar livre expansão a um sentido ai! que vinha como que retocar aquelle quadro, que só o sentimento está á altura dc exhibir.
Depois, continuou:
-- No entanto, tinha fome, e como que te via pallida e abatida pelos rigores d'um trabalho, que as tuas forças rejeitam...
-- Samuel (disse Branca com ternura, tentando, mas debalde, interromper o mancebo).
-- Então (proseguiu a custo o orphão)... então puz os olhos no roubo para impedir que a miseria nos anniquilasse...
-- Jesus! (interjeiceonou Branca, tremula do sobresalto).
-- Oh! não te assustes, minha amiga. Teu irmão ainda não manchou as mãos no crime...
-- Mas (balbuciou a donzella)...
-- Perdão (atalhou Samuel). E que caminho a seguir, quando todos me negavam o trabalho honrado, se a Providencia me não facultasse outro meio? Haviamos de morrer de fome, aqui, entre as quatro paredes d'este sombrio albergue?.... Branca, minha querida irmã: Nem sempre o roubo é um crime. Muitas vezes é a expressão da virtude... Tu não sabes que o suicidio é um crime perante o direito natural, as leis profanas e as da religião que seguimos?... E commettem os desgraçados, a quem se recusa o trabalho honrado, o crime de suicidio se se deixam morrer á fome? Sim, commettem!... Então, ha um meio unico...
-- Como? (perguntou Branca horrorisada).
-- É roubar.
Samuel, ao pronunciar estas palavras, tremia como vergonteas sopradas por um tufão.
É que a derrocada dos seus brios de homem probo ainda se não tinha dado.
Branca, muda e immovel, assimilhava-se a uma estatua de alabastro.
Decorreram alguns segundos de um silencio assás profundo.
Alfim o mancebo, abraçando sua irmã ternamente, relatou-lhe tudo que se havia passado desde que partiu para os paços de Belem, até que se encontrou com o sombrio cortezão.
Ás nove horas da noute do dia dous de setembro de mil setecentos e cincoenta e oito, caminhava apressadamente pela rua Direita de Belem um individuo alto e ainda joven, embuçado n'um amplo capote negro; e parava de quando a quando como que para certificar-se se seria ou não seguido.
Depois de muito caminhar, pois que sahira d'uma pequena casa sita ao Alto da Pampulha, parou em frente d'um palacio esplendido cêrca dos Jeronymos, o qual mais tarde a justiça dos homens fez desmoronar .
Pelas ruas, nem viva alma.
N'esses tempos Lisboa vivia vida patriarchal.
Só negocios de summa urgencia ou questões de compromisso, conseguiam arrancar os moradores de suas casas, pelo receio que tinham de transitar cá por fóra.
É que os caminhos assimilhavam-se a uma especie de Falpêrra.
A voz cavernosa do larapio e a faca do assassino davam então a lei nas estreitas ruas da capital, a despeito das medidas energicas de Sebastião de Carvalho.
Era aquella pois a habitação ordinaria de D. José de Mascarenhas, marquez de Gouvea e duque d'Aveiro.
O embuçado mirava-a por entre as sombras da noute, apurava o ouvido junto ao portão principal e, a não ser o ruido monotono d'uns passos cadenciaes e pesados que pariat a do pateo, nada mais lhe affectava os tympanos auditivos.
Silencio sepulchral.
-- Seria um logro? (interrogava-se o noctivago em soliloquio.)
E affastando-se dos muros do palacio, deu alguns passos para sitio opposto e ficou meditabundo.
A magestosa habitação do duque d'Aveiro assimilhava-se n'aquella noute a um d'esses castellos da edade media, ponto objectivo de mil contos de almas pennadas inventados pelo vulgo.
As suas ameias e torreões pareciam outros tantos seres extraordinarios, segredando por entre as trevas horrorosas prophecias.
Samuel, -- pois que era este o embuçado --, quasi que tinha medo.
Abeirou-se de novo do portão do palacio, collou segunda vez o ouvido na fechadura, e o mesmo silencio... os mesmos passos.
-- Deverei bater? (interrogava-se elle.) Talvez. E' provavel que o duque me aguarde. Mas... que me quererá elle?
E outra vez se affastou d'alli tomado d'irresolução, para meditar profundamente sobre as palavras que o cortezão lhe dirigiu junto ao palacio de EI-Rei.
Até então não havia pensado maduramente sobre aquella especie ds mystério.
Quando recebera o suspirado ouro das mãos do titular, pensou apenas em sua pobre irmã, e correu a levar-lhe a feliz nova de que n'aquelle dia lhe não fôra adversa a sorte.
Extinctas tão agradaveis impressões, e descendo agora ao positivo, via através o veu da duvida como que um phantasma colossal, pretendendo esmagal-o em troco d'algumas horas de ventura que lhe tinha facultado.
Samuel, -- apesar da prostração moral que tem. o antes lhe creava a mais ampla indifferença por tudo que não fosse sua irmã, -- teve conhecimento das intrigas que lavraram no paço contra o fidalgo que n'aquella noute procurava.
Tambem sabia que, não poucos nobres, votavam um odio figadal a Sebastião de Carvalho, ministro do reino, o qual, por seu turno, estudava com vantagem, aperfeiçoava e punha em pratica o systhema esmagador de D. João II no tocante á fidalguia.
Comtudo o orphão de Bernardim Barbeita estava bem longe de conhecer o que ia de verdade n'estes zuns-zuns do povo, e o que se concertava de hediondo entre os nobres despeitados.
Mudo e concentrado, permaneceu assim alguns minutos, até que o rodar aspero e apressado d'um enorme vehiculo, o veio despertar.
Samuel, observando o andamento da sege, viu que esta parava junto ao palacio do duque e que, abrindo-se o portão, alguém se apeára e dera entrada no pateo.
Então deu dous saltos em direcção da inexpugnavel porta, e em breve tempo encontrava-se face a face com um sujeito magro, alto e mal encarado, que exercia as funcções de porteiro do palacio.
-- Quem procura? (perguntou ello ao orphão n'um diapasão atroador.)
-- Procuro o nobre duque de Aveiro (respondeu Samuel seccamente.)
-- S. ex.ª não falia a estas horas De mais a mais tem hoje reunião...
-- Perdão (observou o mancebo.) Eu sou um dos convidados.
O guarda-portão arregalou os seus pequeninos olhos, mirou o orphão de alto a baixo e, por muito favor, lhe não fechou na cara a porta.
-- Convidado?... O senhor?... Pois que demonio de creatura é, que mais me parece um pedinte do que gente de qualidade? Nada. O senhor ou se enganou na porta, ou está a brincar comigo.
-- Lacaio! (bradou cholericamente o filho de Bernardim.) Não desrespeites a desgraça. Na tua presença está um fidalgo honrado mas infeliz. Annuncia-me ao duque e diz ao demonio o que sabes.
Foram pronunciadas com tal energia estas palavras, que o serviçal de D. José de Mascarenhas deu dous passos á rectaguarda e levou a mão tremula ao seu enorme bonet de cinta prateada.
-- Mas (perguntou elle com brandura), quem deverei eu annunciar ao senhor duque?
-- Samuel de Alencastre (respondeu o mancebo ainda impressionado com a grosseria do serviçal).
Depois, emquanto este partiu ao seu destino, Samuel aproximou-se da rua e viu que a não grande distancia girava um coche sobre as suas rodas descommunaes.
-- E dirige-se para aqui (monologava o orphão tomando nota da direcção do vehiculo.) Que extranha reunião será esta? Sarau de certo não, pois que o palacio se assimilha a um sepulchro. Depois... este ar mysterioso que deslisa de tudo isto... Conspirar-se-ha?
Mal tinha elle chegado ao fim d'estas acertadas supposições, quando a carruagem chegou ao pé do portão.
Depois recolheu-se a um dos cantos do pateo e cravou vistas penetrantes sobre os novos recem-chegados.
Eram elles dous individuos ainda moços, esbeltos e prefulgentemente vestidos, precedidos d'uma senhora já edosa, cujo porte magestoso denunciava uma d'essas velhas aristocratas de que hoje só ha memoria.
Subiram vagarosamente a escadaria sem repararem em Samuel, e quando iam a meio encontraram-se com o insolente guarda-portão, que, curvando-se até ás plantas, regougou em tom de servil veneração:
-- Senhores marquezes...
E assim ficou em fórma de arco, até que os viu desapparecer.
Depois desceu a escada, aproximou-se do filho de Barbeita com o immenso bonet na mão, e repetindo a mesma servil mesura, disse:
-- Senhor Samuel de Alencastre: O duque, meu senhor, espera a v. s.ª
Samuel, sem responder, subiu convulsamente a escada e penetrou numa espaçosa sala allumiada por duas velas de cêra.
Aqui chegado, encontrou-se com um creado de libré que o acompanhou silenciosamente e por entre sombrios corredores e desertos salões, até á presença do muito poderoso e muito nobre senhor duque de Aveiro.
Ao findar do anno de mil setecentos e cincoenta e oito era voz geral que a nobreza d'estes reinos de mãos dadas com os jesuitas, tramava a occultas contra a corôa, em virtude do alto valimento que ella dispensava ao ministro d'estado Sebastião José de Carvalho.
Se descermos ás ultimas esmerilhações ácerca do motivo ou motivos que determinaram a attitude hostil da fidalguia e clero, a despeito da segurança de D. José, encontral-os-hemos, no dizer das chronicas, no facto da arrogancia e menos favor com que o valido do soberano tratava os nobres, e no odio de exterminio que nutria pelos filhos de Loyola.
Foi este ultimo, a nosso vêr, o motivo mais poderoso que lançou parte da nobreza de Portugal no precipicio da mais esteril conspiração contra o soberano, a qual, tendo por exordio as miragens mas seductoras c irresistiveis, acabou pela tragedia mais dolorosa e sanguinolenta de que ha memoria nos annaes das sociedades cultas.
Adiante o provaremos.
Sebastião de Carvalho, fanatico pela escola politica do principe-perfeito, não podia a bons olhos divisar as demasias dos nobres, que, sempre orgulhosos e altivos e sempre parasitas no maximo numero, só provavam a sua vitalidade intellectual pela critica de soalheiro que faziam contra o monareba e seu ministro, e, por consequencia, contra os actos administrativos d'aquella época.
Mas, embora occorram opiniões contrarias, temos que os nobres conspiradores nunca haveriam suggerido a idéa de rebellião contra a corôa, se os jesuitas -- obedecendo aos seus interesses -- os não seduzissem e tão mal aconselhassem.
A este tempo já elles, os sotainas, esperavam o golpe, que apressaram pela mal aconselhada tentativa dos fidalgos contra a vida do soberano.
Bento XIV, a instancias de D. José, -- o que equivale a dizer-se por intervenção do ministro, -- havia já encetado a reforma da Companhia de Jesus, em Portugal, -- reforma que era summamente desfavoravel aos interesses do jesuitismo.
D'aqui a raiva, o desespero no seu auge, a idéa de reacção e o supremo desejo de triumpharem do simples mortal, que, -- filho d'um pobre capitão das tropas de cavallo de D. João V, e exhausto de precedentes e pergaminhos, -- tentava pisar a cauda do leão, que se sabia exhibir indomito entre os povos mais avançados, tendo por poderio a unidade da ordem em todas as manifestações do seu programma, e por guarda-costas as fogueiras da inquisição com as suas espiraes de fumo asphixiante.
Subtilissimo foi o projecto abraçado pelos filhos de Loyola, para a realisaçao dos seus damnados fins.
Mais do que nunca lhes importava agora affastar de si suspeitas e evitar a acção da lei, de que sempre escarneceram....
O duque de Aveiro, D. José de Mascarenhas, nutria dupla má vontade contra a gerencia de estado de Sebastião de Carvalho.
D'um lado a inveja pelo accesso a que lhe deram jus os seus actos de sublime estadista, -- consequencia irrecusavel a sua alta sabedoria; -- do outro o sentimento que elle duque experimentava pelo ministro, desde que este aconselhára El-Rei a negar lhe certa commenda que com empenho requeria: abstrahindo já da forma como o ministro se impunha aos grandes, os quaes em todos os tempos se imaginaram, pelo numero e importancias relativas, como que em estado de poderem abaixar a cerviz ás proprias realezas.
Os jesuitas, acercando-se do pobre duque, sombrearam-lhe tanto estes feitos do ministro, deram-lhe tal cunho de repugnancia a seus olhos, dessiminaram taes intrigas, o aurificaram-lhe taes esperanças, que D. José de Mascarenhas com um olho fito na corôa e o outro n'um bacamarte, imaginava-se ao mesmo tempo desfeito de D. José e seus satelites, e senhor do sceptro de Portugal, não sabemos porque bulas!...
Talvez... porque o duque de Aveiro associava no mais desmedido orgulho, a mais revoltante ambição.
Deixemos aqui o duque e sigamos os jesuitas.
Os sotainas tendo catechisado este martyr da vaidade e da ambição, continuaram no seu caminho e foram bater á porta da heroina mais formidavel do século XVIII .. idolo dos portuguezes de Azia, após as proezas que praticára alli, quando seu marido exercia os poderes de vice-rei da India pelo meiado d'aquello seculo.
Era ella D. Leonor de Tavora, mulher do D. Francisco d'Assis, marquez d'aquelle titulo e general inspector das cavallarias d'El-Rei.
D. Leonor, ferida egualmente nas suas vaidades de mulher nobre pela sombria altivez do ministro, já ha muito que em excesso odiava este homem: mas esta antipathia subiu de ponto desde que, -- como no duque de Aveiro,-- fôra indeferida pelo paço uma certa pretensão de D. Francisco seu esposo.
Pouco tinham que caminhar os jesuitas, para realisarem a conquista da marqueza e seu marido.
Comtudo, e como que para satisfação aos seus creditos de intrigantes, não tardou que imaginassem e déssem vulto a uns enredos amorosos em que faziam figurar El-Rei e a mulher de Luiz Bernardo de Tavora, tambem marquez d'este titulo.
Ao ouvir similhantes revelaçães dos padres, D. Leonor ficou-se como uma hydra.
O seu magno desejo desde então consistiu sempre em vêr um tragico fim ao seductor de sua nora, me áquelle que elle reputava o seu primeiro amigo.
Os da Companhia de Jesus ficaram radiantes de jubilo em face da terrivel sanha da marqueza, que, com razão, haviam por fructo sazonado das suas vis lucubraçôes.
Ganho o magnifico duque de Aveiro, conquistada
D. Leonor de Tavora, -- que dominava seu marido, -- o certa a victoria sobre seu filho Luiz Bernardo, os mais viriam sem esforço ao chamamento d'estes, já por lavarem affrontas de familia, já por anniquilarem um reinado que os affrontava e deprimia.
Os jesuitas abraçaram-se no seu antro maldito, e caracterisaram-se de novo ao sabor da hypocrisia.
Se a conspiração sortisse os effeitos porque andavam, o proveito ser-lhes-hia certo.
Se a mão da fatalidade pesasse sobre ella, nem por isso (julgavam) se teriam compromettido.
Como elles se illudiram!...
Mas... consagremos attenção a Samuel d'Alencastre.
O filho de Bernardim Barbeita sentia que o sangue se lhe coalhava, toda a vez que atravessava um sombrio corredor, e dava entrada n'um dos desertos salões.
Por toda a parte um silencio mysterioso, que lhe prendia a alma nos ergastulos da mais cruel meditação.
Já no seu espirito estava feita a convicção de que n'aquella noute se conspirava contra alguem no sumptuoso palacio de D. José de Mascarenhas; mas esse alguem estava longe de conhecer com acerto.
Pelos seus ouvidos, como o dissemos, tinham passado umas vagas revelações do vulgo, que lhe davam o monarcha e seu ministro como alvos a que a nobreza mirava.
Todavia, não confiava na voz do povo cujas versões differiam.
Esta incerteza, estes mysterios, creavam-lhe sensações tão estranhas, que o obrigavam a oscillar como um pendulo.
Não era porque lhe faltasse a coragem:
É que via o presente e o futuro de sua irmã associado ao seu, e tremia se pensava nas suas proprias adversidades.
Comtudo já não era tempo de retroceder.
Fôsse o que fôsse, era-lhe impossivel fugir d'alli para se aproximar da triste orphã que o aguardava no melancholico albergue.
Acompanhado pois pelo homem de libré, andou bastante até se aproximar da pessoa que procurava.
Alfim deu ingresso n'uma ampla sala perfeitamente quadrada, onde sobrava a luz e deslumbravam os atavios.
Samuel ao encarar tão estranhas prefulgencias, recuou machinalmente, levou as mãos aos olhos, e, quando ia a soltar uma interjeição de justo espanto, encontrou-se abraçado pelo poderoso duque de Aveiro, que suavemente o arrastou para o centro do salão.
-- Senhores (disse D. José de Mascarenhas apresentando Samuel aos personagens presentes), mais um novo conjurado, que, como nós, tem desforços a exercer.
-- Bem vindo seja (responderam em côro os da sala).
-- O seu nome? (perguntou um jesuita).
-- Samuel Barbeita d'Alencastro (respondeu o duque).
Um ligeiro sussurro produzido por cadeiras que se arrastavam, e pelo som d'algumas vozes imperceptiveis, deu a entender que naquelle instante todas as attenções se occupavam do mancebo.
Este, por seu turno, conservava-se confuso o oscilante.
Ha momentos na vida em que o homem se convence de que existe só porque sente o bater energico do coração.
O orphão de Bernardim encontrava-se n'este caso.
Depois que o duque o apresentára á assembléa e que divisou de relance os individuos que a compunham, experimentou a mais perfeita embriaguez da propria vista e audição.
Mas, se aos dous primeiros sentidos, -- filhos mais intimos da alma --, lhes faltava a energia, a acção, nem por isso deixava de avaliar o perimetro da sua propria situação, de medir a altura do abysmo que abordára e de perceber uma voz occulta -- a da consciencia --, que o aconselhava a fugir d'aquella estancia, que, em breve, o facho inexoravel da lei queimaria desde o chão ao vigamento.
Um suor frio como os roscios glaciaes, banhava a fronte de Samuel.
Em seu espirito estava feita a certeza de que no palacio de D. José se cavavam os fundamentos de um crime de gravidade.
Comtudo, já não podia recuar.
Pediu mentalmente perdão á honrada memoria de seu pae, recordou-se com lagrimas da alma, da sua pobre irmã e resignou-se a tomar parte nos trabalhos horriveis d'aquella noute.
Arrastado pois suavemente pelo duque, para o meio da sala que já vimos, cumprimentou os circumstantes e tomou assento n'uma magestosa poltrona de pau brazil, trabalhada com esmero pela mão habil de Paulo Gonçalves, artista de merecimentos, de quem as historias se esqueceram com a facilidade com que se olvidaram de Pero d'Alemquer, audacioso piloto de Vasco da Gama, a quem de direito cabe a maior parte da gloria da famigerada descoberta das terras de India.
A historia tem d'estes baixos.
Nem sempre é a photographia do passado: ou porque na jornada a surprehenderam as trovas, ou porque a indifferença ou o servilismo a viciou.
Foi por isso que a sciencia do povo creou aquelle venerando aphorismo: «Soldado faz a guerra, general lhe colhe os louros».
Passadas as primeiras impressões produzidas pelo ingresso de Samuel, o duque de Aveiro aproximou-se de um bojudo jesuita e com elle segredou alguns minutos.
Seguidamente acercaram-se do mancebo, apresentaram-lhe um pequeno livro onde se via gravada a imagem do Crucificado, e, a um signal do sotaina, todos os circumstantes rodearam o grupo.
-- Juraes (dizia elle a Samuel), que haveis de concordar com todas as resoluções da junta e de as seguir cega e mudamente por mais difficeis e arriscadas que sejam?
Samuel estendeu a mão sobre o Christo, envidou um inaudito esforço e respondeu:
-- Assim o juro.
Depois, ficou meditabundo.
Se bem que não duvidava já da existencia da conspiração, e conhecesse o alvo a que ella se dirigia, ignorava comtudo a resolução dos conjurados no tocante á fórma de a praticar.
Esta incerteza torturava-o.
Mil pensamentos horriveis lhe trabalhavam na mente.
Ora se convencia de que a elle ia ser commettida a missão de regicida, ora se julgava sob as mãos do carrasco, ora finalmente se suppunha perseguido pelo punhal dos conjurados se prejurasse por amor de sua irmã, a quem devia protecção.
Alguns momentos apoz esta lucta intima, sentiu pela segunda vez o contacto da mão do duque, que o empuxou com brandura para um dos angulos da sala, onde a conversa se tornava acalorada.
-- Senhores: É tempo de darmos começo aos trabalhos d'esta noute, e de transmittirmos a Samuel d'Alencastre os segredos da junta.
-- Que dizeis sr. duque? (respondeu D. Leonor de Tavora). Pois o conjurado d'esta noute não estava iniciado?...
-- Perdão, senhora marqueza (tornou o duque). Distingamos. Samuel d'Alencastre é inimigo irreconciliavel do ministro, e como tal o aproveitei. As iniciações não podiam ser-lhe feitas senão depois de introduzido aqui.
Samuel, sentia comprimir-se-lhe o circulo do ferro, que, desde ha muito, lhe apertava o coração.
Alfim, enviou nas azas da viração da noute um
profundo ai a sua irmã, resignou-se com o seu
destino, acompanhou os conjurados á sala de armas
do duque de Aveiro e tomou parte nos ultimos e
definitivos trabalhos da memoravel emboscada contra a real e sacratissima pessoa do senhor rei D. José.
São onze horas da noute do dia trez do setembro de mil setecentos e cincoenta e oito.
Grossas nuvens forram a abobada celeste e interceptam á lua os seus opacos clarões.
As ruas estão desertas.
Silencio tumular.
Pela porta da real quinta denominada do Meio, em Belem, sabe um vehiculo particular, que entra depois no amplo recinto do velho palacio real, a que nos referimos em um dos anteriores capitulos.
No interior d'este coche veem-se sentados El-Rei D. José e o seu valido Pedro Ferreira, por quem a nobreza, clero e povo experimentavam não vulgar antipathia.
-- Que soubeste hoje que nos interesse, Pedro Ferreira? No paço sabe-se já dos nossos ultimos amores? Que se diz ácerca dos ciumes da rainha?
-- Nada que eu saiba, meu senhor. De sobra conhece Vossa Magestade o quão hei sido dedicado e espontaneo nas minhas communicações.
-- Nós o sabemos, Pedro Ferreira; nós o sabemos. Todavia, revelações ha que assás nos custam...
-- Perdão, meu senhor. Nunca escrupulisei perante Vossa Magestade, a quem de tanto sou devedor...
-- E que se rosna com relação aos fidalgos? Continuam elles a enfadar-se comnosco?
-- De certo, meu senhor. Mil vezes hei dito a Vossa Magestade, que se precavenha contra Tavoras e Aveiros. O duque e a marqueza hão de tirar desforra condigna da recusa que soffreram...
-- E que desforra suppões tu que se nos tire?
-- Ignoro-o, meu senhor. Certo é porém que D. José de Mascarenhas não crusará os braços em presença do seu orgulho offendido.
-- Razão te damos Pedro Ferreira. O duque de Aveiro é altamente orgulhoso e em excesso ingrato. Mas não nos arreceamos. Quando nos constar que se agita demasiado, saberemos reprimir-lhe as demasias.
-- Mal vos irá, Real Senhor, se lhe esperardes manifestações apparentes. D. José de Mascarenhas saberá occultar-se e tramará nas trevas.
-- Vel-o-hemos. E que se diz de Sebastião de Carvalho?
-- O que já tive a honra de informar a Vossa Magestade: Conserva despeitado o melhor do clero e da nobreza...
-- Pouco é isso, Pedro Ferreira, muito pouco. A nobreza e o clero são dous inseetos sociaes, cujas azas faz mister arrancar.
-- Razão vos faço meu senhor.
-- E que diz o povo?
-- O povo... o povo nada diz, porque tem a consciencia de que nada vale. Pois que ha de dizer o povo, ou que valor teria o que o povo dissesse?
-- Enganas-te, meu amigo. O povo é a principal escora das nações.
Este dialogo, como acima dissemos, passava-so entre El-Rei D. José e o seu valido Pedro Ferreira.
Sahia o trem, repetimos, da real quinta do Meio e penetrava no recintho do palacio queimado, quando se fez ouvir uma energica detonação produzida por alguns bacamartes ou roqueiros que sobre elle se dispararam.
Os cavallos, espantados pelo estampido dos tiros, retrocederam desgovernados até ao largo da Junqueira junto ao Forte que servia de habitação ao marquez de Angeja, desde que o terramoto de mil setecentos e cincoenta e cinco lhe desmoronára o seu palacio á Sé.
El-Rei, ferido gravemente no braço esquerdo, e quasi desfallecido em virtude do muito sangue que perdia, vendo-se proximo da morada do marquez, manifestou ao seu valido a necessidade que havia de receber alli o primeiro curativo, pois que soffria horrivelmente, além de que o sangue lhe corria profusamente de duas feridas que recebera.
Pedro Ferreira, tremulo e amedrontado, correu para fora do coche, -- cujo espaldar se encontrava destruido pela carga dos roqueiros , -- e bateu anciosamente á porta do titular.
Em derredor do Soberano, seu valido e cocheiro fazia-se um silencio aterrador, interrompido de quando a quando por um gemido prolongado que sahia do interior do vehiculo, e que vinha arrancar os dous serviçaes d'EI-Rei ás mais laboriosas cogitações.
D. José, abandonado no trem, via abeirar-se-lhe o final momento.
Palido, anciado e com as vestes ensopadas no proprio sangue, não formulava uma idéa nem possuia a consciencia da sua horrivel situação.
No Forte todos dormiam a somno solto, se julgarmos pela calada que alli reinava.
Segunda, terceira e quarta vez pegou Pedro Ferreira no descommunal martelo do portão e fez ouvir um ruido atroador.
-- Quem bate? (perguntou então alguém n'um diapasão de arremetter, deixando passar atravez as fendas da immensa porta, os tibios reflexos de uma luz escassa.)
-- Abra (respondeu o valido com decisão.)
-- O seu nome?
-- Pedro Ferreira, particular de El-Rei.
Nem depois d'este annuncio, o guarda-portilo do marquez de Angeja se resolveu a correr os enormes ferrolhos, e a franquear a entrada ao valido do Soberano, que de sobra conheceu.
Por favor especial, limitou-se a encolher as iras que revelára na voz, e a dizer-lhe com esforçada brandura:
-- Corro a dar parte ao meu senhor.
Depois, ouviu-se interiormente o retumbar d'uns passos, que se extinguiu pouco a pouco.
Decorridos que foram alguns minutos, El-Rei dava entrada no Forte, encostado ao valido e boleeiro, e a muito custo conseguiu aproximar-se da propria cama do marquez.
O muito sangue perdido e a fadiga resultante do andamento desde o coche até ao leito, lançaram o Monarcha n'um deliquio assustador.
-- Chame-se um physico... chame-se um physico... (gritava o marquez de Angeja).
Em seguida, chamou de parte Pedro Ferreira.
Até áquelle momento ignoráva tudo que se passára.
O valido, ainda tremulo e attonito, narrou-lhe fielmente o succedido.
-- Traidores! (bradou o fidalgo raivosamente.) E eu que aconselhei o Monarcha a prevenir-se contra alguém...
-- Como? (balbuciou o valido com reservada intenção.) Pois vós, senhor marquez, já nutrieis desconfianças?...
-- Sim (tornou o titular sem dar fé de que tratava com Pedro Ferreira, figadal inimigo do clero e da nobreza, e o mais habil intrigador do paço.)
-- E podereis dizer-me, senhor marquez, a que alvo mira a vossa desconfiança?
-- Talvez não sacrificasse a verdade se vos dissesse vêr n'isto as mãos de Tavoras, jesuitas e Aveiros...
-- Jesuitas?!...
Pedro Ferreira, após a resposta do marquez, como que sentiu a apparição d'uma alma nova.
Mais velhaco que intelligente, não tinha suspeitado ainda dos honrados filhos de Loyola como associados ao plano de regicídio.
Colhida pois tão preciosa revelação, começou desde logo a urdir uma teia assás horrenda, que, além de o elevar no animo de El-Rei e seu ministro, lhe traria seguramente generosa recompensa.
O marquez de Angeja, altamente inquieto, ora se abeirava do real enfermo, ora expedia novos creados em procura dos physicos, ora finalmente analisava de perto as feridas do Soberano, cujo sangue corria sem cessar.
-- E' mister soccorrel-o promptamente (dizia elle de si para si).
E tomando a fimbria d'um lençol de linho, passou a ligar o braço esquerdo de El-Rei.
Quando terminava esta ligeira operação, foi surprendido por dous medicos, que passaram a soccorrer o ferido, fazendo-o remover depois para o paço com todas as cautellas que o seu estado exigia.
Retrocedamos um capitulo.
Na sala d'armas do duque d'Aveiro, encontram-se reunidos os conjurados.
Um dos jesuitas arenga aos circumstantes, em sentido desfavoravel á vida do Soberano, e á segurança do seu principal ministro.
D. José de Mascarenhas, lisonjeado em extremo com as expressões laudatorias do irmão de Torquemada, observa o auditorio, cujas impressões o satisfazem.
Entre os ouvintes, porém, existia um que se apresentava desanimado e frio.
Era Samuel.
A um dos congregados, frade dominico, não escapou esta occorrencia.
-- Fr. Onofre (segredou elle a um outro frade): Não vos parece contrafeito o conjurado d'esta noute?
-- É certo (respondeu este, fitando detidamente o orphão de Bernardim).
-- Será este homem um espião disfarçado?... Que suspeitaes, fr. Onofre ?
-- Os anjos que vos respondam.
Samuel, não percebeu o dialogo.
Absorvido pela repugnancia que lhe creavam no espirito os factos que occorriam, era-lhe impossivel dar fé do que em torno se passava.
Os dous frades continuaram a segredar.
De instante a instante o dominico suspendia a funcção dos lábios, carregava o sobreôlho e ficava-se como que aguardando a occorrencia d'uma idéa, que depois transmittia a fr. Onofre, mirando ao mesmo tempo o rosto de Samuel.
Que trama combinariam?
Aguardemos os capitulos que vão seguir, e prestemos attenção ao jesuita -- orador.
«Senhores (dizia elle aos da junta): Os conjurados teem tudo a ganhar e nada perderão com a morte do Soberano. Senão, vejamos: D. Maria, cujos sentimentos religiosos vão acima do que pensaes, ao empunhar o sceptro será obrigada pelo sagrado tribunal da penitencia, que profundamente venera, a despojar Sebastião de Carvalho de todos os seus empregos e poderes. D'est'arte cahirá por terra o fructo malefico d'esses projectos que já vingaram e os que tem em mente realisar á custa do supremo abatimento do clero e da nobreza.
«Isto é: O poder dos grandes não será por mais tempo offendido na sua recta latitude; os autos de fé de que tanto ha mister a nossa santa religião, não serão banidos; a Companhia de Jezus, de que sou indigno filho, continuará desassombradamente a derramar no seio da humanidade orthodoxa o balsamo sacrosanto das suas sãs doutrinas; e finalmente todas as congregações religiosas hão de triumphar do desprestigio e reducção a que o impio as levou».
Um ligeiro murmurio soou na sala.
Seguidamente o jesuita, retomando a palavra, continuou:
«Mas ainda ha mais senhores; muito mais. Certos deveis estar de quanto vale a intelligencia, a fidalguia e mais virtudes que concorrem nas pessoas dos muito nobres duques d'Aveiro e marquez de Tavora, D. Francisco d'Assis; virtudes que teem sido menoscabadas e offendidas pelo estulto e devasso chefe da monarchia e seu infame sequaz»...
N'este ponto D. Leonor de Tavora mordeu os labios de raiva, e D. José de Mascarenhas fez um gesto cholerico.
O orador concluiu:
«Pois bem. O duque de Aveiro empunhará um dia o sceptro, e D. Francisco de Assis será o seu principal ministro. As retortas do nosso venerando collegio dirão o resto.»
Segunda vez se callou o Torquemada, emquanto que a nobreza illudida combinava em sua mente o plano de emboscada.
Mas não tardou muito que o maldito filho de Loyola proseguisse no seu discurso dissolvente.
A sua missão alli, e a dos seus confrades, consistia em converter os fidalgos em instrumentos cegos dos seus caprichos e vinganças.
D'este modo ensinavam elles a religião de Christo, toda paz, toda amor e caridade!!!...
O duque d'Aveiro, perdido pela tôla ambição de ser soberano um dia, iria com o seu roqueiro aleivoso até onde aos proprios monstros repugnaria chegar.
-- «Senhores (continuou o jesuita). São horas d'evaccuar esta casa, pois que prestes virá o dia. Disponhamos, por ultimo, o modo d'ataque á pessoa d'El-Rei.
«As perseguições que nos fazem, haverão fim ámanhã, se vós outros fizerdes cahir o impio aos golpes das vossas armas. E'mister pois que aponteis firmemente, para que o perigo de vossas pessoas não surja após a dissolução da nossa esperança.
«Para que triumphemos de similhante adversidade, devereis dividir-vos em tres grupos: O primeiro, que será composto de Antonio Alvares Ferreira, João Miguel, José Polycarpo de Azevedo, Manoel Alvares Ferreira e Braz José Romeiro, -- todos serviçaes de vossas casas, -- collocar-se-ha a curta distancia do portão da Real quinta do meio, e terá junto um fidalgo conjurado. Este grupo como aquelles a que vou referir-me, deverá achar, se bem montado e armado de mui firmes bacamartes.
«El-Rei, sahirá por aquella porta, cêrca das onze horas ou meia noute, como é seu uso o costume: Então os emboscados desfecharão a um tempo contra o coche, cujas paredes deixarão facilmente penetrar os estilhaços.
«Mais além, no caminho ordinario do Soberano, postar-se-hão a espaços os dous restantes grupos (compostos da nobreza conjurada), os quaes desfecharão tambem por sua vez na passagem da sege, se tanto fôr mister.
«Firmeza, disciplina e valor, nobres conjurados.
«Nós, os religiosos associados a esta santa empreza, encontrar-nos-hemos a essa hora entoando preces á Providencia, que hade lançar vistas protectoras sobre a nossa justa causa».
Quando o perverso jesuita punha ponto no discurso, ouviam-se cinco horas nas torres de Belem.
O dia começava a despontar turvo e melancholico, como que impressionado pelas ultimas palavras do jesuita, que promettia dirigir as suas preces a Deus, para que, por sua intercessão, houvessem bom emprego os estilhaços dos assassinos!!!...
Christo!... Christo!... Como se teem seguido os teus exemplos!...
Penetremos no palacio d'Ajuda, após o ingresso d'El-Rei.
Os cortezãos, aturdidos, interrogam o valido sobre a causa dos ferimentos.
Pedro Ferreira, responde enigmaticamente, e segreda depois com um moço estribeiro.
Decorridos alguns momentos, galopava elle n'um fogoso cavallo em direcção a Lisboa.
Se o seguissemos, vel-o-hiamos penetrar na habitação ordinaria de Sebastião de Carvalho.
O ministro de D. José, mal ouviu a narração dos successos d'aquella noute, cerrou os punhos e deixou que um maligno sorriso lhe despontasse nos labios.
Pouco tempo depois, partiam ambos para o paço.
Sebastião de Carvalho, mudo e concentrado, combinava mentalmente o mise-en-seme da tragedia mais hedionda, á medida que o seu vehiculo percorria veloz as ruas de Lisboa em direcção a Belem.
Deixemol-o agachar-se perante os instinctos da vingança, que muitas vezes lhe embaciaram os limpidos crystaes d'aquelle homerico espirito.
Deixemos que a natureza humana, mesmo no zenith da grandeza, se affirme pequena e vil quando despenhada nas alcárcovas da paixito.
Não ha quadro sem luz e sombras.
Ao gigante que deu a conhecer ao mundo que
Portugal continuava a ser nação, -- que fez brotar d'entre o marasmo da indifferença indigena as vigorosas hastes dos melhores systhemas economico e colonial, -- que converteu em exercito respeitavel uma cohorte de poltrões armados, -- que deu vida á industria, á navegação e ao commercio, -- que abrogou leis impossiveis e creou outras necessarias,-- que deu a liberdade aos indios, -- que aniquillou os autos-de-fé, -- que dissolveu odios mil vezes peccaminosos entre christãos velhos e novos, -- que abateu o orgulho da nobreza, -- que expulsou os infames jesuitas, -- que limitou o poder papal,-- que protegeu a instrucção,-- que fez erguer de sobre os fragmentos d'uma cidade amalgamada, essa outra que so deburça hoje sobre as aniladas aguas do Tejo... ao Titan do passado seculo, emfim, era mister sombrear essa tela grande, sublime, admiravel, por meio do fumo das fogueiras mais horrorosas, que, após uma série de supplicios incriveis, transformaram em pó os corpos massacrados d'innocentes e criminosos.
Deixemol-o pois e não o despertemos d'aquella horrivel meditação.
O dia ia prestes apparecer, quando o ministro chegou ao paço.
Reinava alli a confusão, o tumulto.
Escudeiros, pagens e fidalgos, tudo se agitava.
A' cabeceira d'El-Rei velavam os medicos da camara.
D. José, desanimado e livido, gemia d'instante a instante.
Os intrigantes agaloados, os mexeriqueiros servis e estultos, os reptis ascorosos, que em todas as épocas se teem consagrado apenas a gangrenar os thronos,-- a camarilha, emfim, -- avultava em todos os angulos do palacio, e discutia o caso dos ferimentos por mil fórmas inverosimeis.
Aquellas almas nojentas e immundas como as feridas purulentas, bem diziam de si para si as trévas que occultavam a regicida mão, e affagavam a negra esperança de realisarem seus fins....
Havia tal, que pensava já em sacrificar á intriga o proprio pae, para mais cêdo lhe cahir nos bens!!!
Eram os corvos matreiros em de redor da presa desprecavida.
Depois d'isto, que haverá de mais eloquente na tela das supremas monstruosidades?
A sangrenta epopéa de Nero onde avultam os nomes de Britannicus e Aggripina, não foi arremeçada aos bronzes da historia por mãos mais carnivoras, mais brutaes.
Sebastião de Carvalho, apenas visitou o real ferido, fez-se rodear da camarilha e dos pequenos serviçaes.
Todos lhe obedeceram.
-- Chamei-os (disso elle em tom cadente e magestoso), para lhes ordenar em nome das conveniencias da justiça o mais profundo silencio acêrca do succedido. A cidade deve ignorar o facto altamente criminoso occorrido ha poucas horas.
Depois, encetando já o seu programma estrategico:
-- E' preciso descobrir a mão, que tão traiçoeiramente feriu a El-Rei.
Questões de ciúmes foram o movei da acção.... Pois bem. Será descoberta de prompto, se da vossa parte houver prudencia. Aos que pela sua qualidade official houverem entrada aqui, dir-lhes-heis que a uma queda desastrosa se devem os ferimentos do Monarcha...
Ia o ministro a terminar o seu pequeno aranzel, quando um reposteiro annunciou o nobre marquez de Tavora, D. Francisco d'Assis.
A um signal de Carvalho todos dispersaram e desappareceram em seguimento.
D. Francisco entrou na sala.
O gesto franco, a voz em regra, a naturalidade d'acção, aquelle todo, emfim, por onde se traduzia a mais cabal tranquilidade, eram testemunhos eloquentes da sua innocencia com relação ao crime d'aquella noute.
Mas Sebastião de Carvalho não o julgou assim:
Imaginou-o um réu convicto, disfarçado em bom actor.
As grandes perspicacias também se illudem.
No entanto era o marquez o unico dos da casa dos Tavoras, que tudo ignorava acêrca do succedido.
A marqueza fiava pouco de seu marido para emprezas d'esta ordem....
Seu filho, José Maria de Tavora, mancebo de poucos annos e de bondades inexcediveis, frequentava as reuniões do duque, tão sómente por acompanhar sua mãe.
Já o mesmo se não dava com o filho primogenito, Luiz Bernardo de Tavora, também marquez d'este titulo, o qual, deixando-se arrastar pela intriga jusuitica, nutria como sua mãe um odio excessivo pelo Soberano e validos.
D. Francisco d'Assis, e seu filho José Maria, eram pois dous innocentes.
Trocados que foram os cumprimentos do costume, o ministro assestou a sua enorme luneta, mirou D. Francisco e, deixando-se sorrir enigmaticamente, poz-se á espera de que elle lhe dissesse os porquês que o levaram ao paço.
Esta insolita visita que condemnou o titular, pesada hoje na balança da consciencia, sem resentimentos de paixões, tem o peso da prova mais inconcussa do quanto D. Francisco não fôra cumplice nos ferimentos do Soberano.
Pois quem seria o imbecil, que, depois de realisado um crime de tal monta, não buscasse esconder-se ao mundo, com receio de que elle o accusasse de criminoso após algumas d'essas fataes manifestações, que á consciencia chagada não é dado evitar?
Porque não appareceu também seu filho Luiz Bernardo?
Porque se occultou D. José de Mascarenhas?..
Perguntemol-o ao primeiro que buscar encobrir seus crimes.
Mas não lh'o perguntemos, não:
Colloquemo-nos antes em face d'elle, fitemol-o apenas, porque o desgraçado raro deixará de dizer na fronte, no gesto e na palavra, o que d'affrontoso lhe residir na alma.
D. Francisco, que passára a noute do delicto em uma festa de parentes, só no regresso a sua casa soubera do occorrido.
Quando sahira para o baile, ficava sua esposa ligeiramente molestada...
Concitado pelo desejo de conhecer minuciosamente o facto, e compelido ainda pelo dever, fez rodar para a Ajuda o seu vehiculo, afim de offerecer os seus serviços ao rei.
Mas, Carvalho, não lho consentiu que se abeirasse do Soberano, fazendo valer n'esse momento as tolices da pragmatica, e convencendo-o de que o Monarcha precisava de repouso.
Depois, e porque das palavras do marquez não transpirasse aquillo que pretendia, pediu-lhe licença para expedir algumas ordens, declarando-lhe alfim, que os ferimentos não eram graves e que os attribuia a manejos da rainha...
E separaram-se.
Sebastião de Carvalho, ficou-se com o maligno sorriso a saltitar lhe nos labios, e o velho titular sahiu do paço com a consciencia tranquilla.
Quando os cavallos do real vehiculo retrocederam espantados até ao largo da Junqueira, o grupo que desfechára contra o Monarcha correu a reunir aos outros de que o leitor já tem noticia.
O duque d'Aveiro ardia em desejos de conhecer o resultado da criminosa acção.
Não menos desejosos se achavam Luiz Bernardo e sua mãe, que montada n'um famoso ginete e de roqueiro em punho aguardava o momento de disparal-o contra El-Rei.
Mas, qual não fôra a sua raiva quando os primeiros conjurados lhes relataram o que havia acontecido?!
-- Pelo inferno! (bradou o duque de Aveiro com voz de Stentor).
-- Quantos desfechastes? (interrogou convulsamente a marqueza).
-- Eu, João Miguel e José Polycarpo (respondeu Antonio Alvares).
-- E teu irmão? (continuou a titular mordendo os labios).
-- Senhora (accudiu Manoel Alvares): o roqueiro que se me deu, trahiu-me a meu pesar.
-- Maldito! (bradou D. Leonor n'um accesso de desespero). Agora é fugir d'aqui. Ámanhã procederão a mil pesquisas, e ai de nós se nos descobrem!
Pronunciadas estas palavras pozeram-se a caminho.
Era horrivelmente magestoso o espectaculo offerecido pelos conjurados.
Montados em corpulentos solipedes com as patas embrulhadas em grossas telas, plenamente disfarçados, armados de bacamartes, silenciosos como rochedos, -- as suas presenças fariam medo aos proprios sicarios das Bardenas.
A noute com o seu manto de trévas completava esta tragedia d'Eschylo.
A' medida que os noctivagos se aproximavam dos seus palacios, entravam n'elles mediante precedentes precauções, para não serem vistos por pessoa alguma.
D. Leonor de Tavora, chegada que foi á primeira sala da sua vasta residencia, arremeçou o bacamarte e começou a expandir-se n'uma série d'imprecações.
A não larga distancia, escondidos n'um quarto contiguo, escutavam-a uma serva da casa e seu amante...
Realisava-se n'este momento aquelle velho aphorismo: Demonio faz e Deus desfaz.
A marqueza de Tavora foi eloquente de cholera durante o pouco tempo que se conservara alli.
Depois, ergueu-se, empunhou uma lanterna e dirigiu-se á sua alcova.
A serviçal e companheiro, tão depressa tomaram nota da sahida da fidalga, emergiram da confusão que os surprehendera; e abrindo depois paulatinameute a porta da pequena camara, divisaram sobre o tapete da sala o bacamarte ou roqueiro, que por milagre se não disparára quando a marqueza o repeliu.
-- Que significará isto? (interrogavam-se mutuamente os dous homisiados).
Depois, recordando-se e traduzindo sem esforço o monologo da titular, acabaram por convencer-se de que ella era cumplice n'um crime de gravidade.
Algumas horas após os factos referidos, toda a cidade sabia da emboscada, não obstante Sebastião de Carvalho fazer propalar que os ferimentos do Soberano se deviam a outra causa.
Deixemos por um pouco o ministro de D. José proseguir nos seus terriveis planos; deixemol-o actuar com toda a força do seu prestigio sobre o tribunal processante; deixemos os conjurados entre a incerteza e o receio da vindicta da lei; deixemos que o duque d'Aveiro se retire com licença para o campo, e passemos a occupar-nos dos dous primitivos personagens d'esta historia.
Apenas D. José de Mascarenhas déra por findos os trabalhos d'aquella noute de conspiração, a que o leitor assistiu, o orphão de Bernardim correu para sua casa com ligeireza indizivel.
Quem lhe fitasse a fronte aos primeiros alvores matutinos, que surgiam palidos e melancholicos, tomar-lh'a-hia pela fronte d'um cadaver.
Oscilante e horrorisado pelo que vira e ouvira... quasi fóra do mundo positivo... não déra por dous frades inquisidores, que o seguiram desde o palacio ducal até á casa da Pampulha.
Chegado junto de sua irmã, não teve poder em si que evitasse o lançar-se-lhe ao pescoço e beijal-a loucamente.
Branca, mais pallida e abatida que Samuel, pois que gastára a noute em mil receios, recebeu com lagrimas a apparição do mancebo.
Depois fitou-o detidamente.
A incerteza do olhar, a profunda tristeza que revelava, a ausencia d'uma noute, aquella bolsa com ouro, ernfim, tudo a levava á crença de que elle se perdera.
Comtudo nem um queixume.
Resolvida d'antemão a seguir-lhe os passos, esperava em silencio o momento proprio para lhe pedir perdão d'erradas conjecturas, ou então para incital-o a trilhar melhor caminho...
Como Branca se illudia!
Samuel não passava d'um desgraçado.
Se um dia o desespero o levou a pensar no roubo, foi porque a sociedade, negando-lhe o trabalho, lhe apontou tal recurso.
As sociedades cultas são assim.
N'outros tempos quando a civilisação residia na penumbra, quando os homens se distinguiam dos brutos apenas pela fórma, quando finalmente a noute da ignorancia envolvia a todos nas suas espessas sombras, as sociedades -- tão á mingoa de leis ejaculadas de observação e saber, -- faziam consistir no amor reciproco o seu codigo, e tinham no coração o seu supremo areopágo.
Batalhões de sabios juncaram a crôsta do globo:
Desde então o coração dos velhos povos foi substituido pelo craneo dos modernos legisladores.
E em cada paragrapho das actuaes leis um freio, e no conjunto d'ellas um absurdo.
Punem e não evitam!
Soberba sapiencia!
Se o homem furta como ultimo recurso para matar a fóme que o crucia, ergue se d'alli um codigo com aspecto de tyranno e observa-lhe: -- És um ladrão!...
Depois repelle-o para a athmosphera venenosa das enxovias, ou remove-o para os páramos d'um exilio.
Se, ao contrario, esse homem cruza os braços, curva a cabeça perante a espada da miseria e se deixa morrer emfim, surge d'além outro codigo e, com esgares de tragedia, adverte-lhe: -- És um suicida. O inferno vae tragarte!!!...
E em seguida, como se fôra pouco o medonho supplicio das avernaes fogueiras a que a alma é condemnada, pega-se-lhe no corpo e nega-se-lhe um buraco em seis palmos de sagrado!
Tenebroso dilemma!!!...
Se tudo isto não fosse baixamente estolido e grotesco, seria altamente desanimador e cruel.
Á humanidade infeliz restaria apenas um meio para não cahir no inferno e livrar-se da cadêa:
Desfazer-se do estomago, que tem atulhado o paiz do Bonga e o imperio de Satanaz!
Regressemos á nossa historia.
Samuel, como de costume, relatou a sua irmã todos os acontecimentos da noute, o declarou-lhe que nunca entrára em seu espirito a negra resolução d'erguer mão armada contra reis ou plebeus.
Branca, que pouco a pouco sentia dissipar as suspeitas que injustamente nutrira, ouviu a narração de Samuel com horror indescriptivel.
-- Socega (lhe disse elle serenamente). Tenho uma idéa que decerto nos salvará.
-- Oh! falla !.. falla!., por Deus t'o peço.
-- Olha: Embrulha os poucos trapos que possuimos e fujamos de Lisboa. Esse ouro com que o duque quiz comprar o fructo d'uma torpeza chegar-nos-ha para a jornada.
-- Graças! (bradou a orphã erguendo as mãos ao ceu). Fujamos, sim... fujamos já, que Deus ha de proteger-nos.
Pouco tempo depois, quando os dois jovens se dispunham a partir, foram surprehendidos por dous irmãos negros , que, em nome do Santo Officio, intimaram Samuel a acompanhal-os á inquisição.
O infeliz ficou petrificado.
Branca, quando o mancebo sahiu, soltou um grito agudo e cahiu desalentada.
A inquisição, horrivel tribunal que se intitulava do Santo Officio, onde milhares de desgraçados soffreram tratos do inferno em nome de Jesus -- modelo de amor e paz --, foi introduzida em Portugal poucos annos depois do primeiro quartel do século XVI, a rogos do Soberano mais cruel, estupido e impostor, que Portugal tem produzido .
Este monstro coroado, esta fera, que os zoologos não saberiam classificar, era tillio do venturoso D. Manoel, monarcha um pouco injusto e até ingrato, mas não tão estolido nem tão feroz.
Chamava se aquella hydra D. João III, a quem os velhos chronistas baptisaram de piedoso!
Estupenda mentira, se não foi supino escarneo!...
Dez annos apoz a sua acclamação (1521), impetrou elle de Roma o estabelecimento d'aquella monstruosidade, n'estes reinos, admittindo n'elles ao mesmo tempo a nefanda companhia de Jesus, de medonha recordação.
Instalou-se a primeira inquisição n'uns velhos cazarões do Rocio denominados Paços dos Estáos , mandados construir em mil quatrocentos e quarenta e oito pelo infante D. Pedro, quando regente e defensor de Portugal, afim de facilitar pousada aos embaixadores estrangeiros e fidalgos das provincias, que se encontrassem na côrte.
D. João III, levou tão longe as provas da sua inexorabilidade, que, abandonando os paços da Ribeira, fez habitação ordinaria no palacio do Santo Officio, não o incommodando nem dolorosos clamores, nem o som baço e horrivel dos torniquetes applicados por mãos brutaes contra os corpos dos desgraçados!
Não o incommodavam, não.
Cada grito que soava, e que traduzia como que um mundo de soffrimento, transformava-se em seus ouvidos n'um bello hymno de gloria pelos serviços que prestava á igreja a despeito da impiedade!
Infernal selvagem!
Por occasião do pavoroso terramoto de mil setecentos e cincoenta e cinco, desappareceram de sobre o chão do Rocio os velhos Paços dos Estáos, para no mesmo sitio se edificar identica estancia de supplicio e dôr.
Carlos Mardel, architecto de fama, foi o encarregado d'esta infame construcção, não se esquccendo de satisfazer aos desejos dos inquisidores no tocante á segurança das masmorras, de sociedade com o que de mais crú e pavoroso se lhes podesse imprimir.
A contrastar com as prisões do palacio, exhibiam-se as bellas casas dos santos padres do tribunal, todas luz e ornamentos, possuindo mais um excellente jardim com seu lago, gondollas e estatuas, para recreio dos bons servos do Senhor tão massacrados de torturarem milhares e milhares de infelizes, cujos principaes delictos contra a Santa Egreja consistiam quasi sempre no facto de possuirem alguns bens, ou não possuiam nada mas tinham bellas esposas e filhas tentadoras...
Era justo pois que apoz tamanha faina em proveito da fé catholica, lhes fosse dada uma mansão de fadas para seu goso e as odorosas exhalações de alguns mimosos vegetaes para satisfação do olfacto, tantas vezes offendido pelo cheiro da carne humana queimada no Rocio.
Embalados pelos zephyros matutinos que lhes beijavam as faces rubras dos cangyrões, -- chegando-lhes aos ouvidos os ultimos ais das victimas trituradas nos calabouços como derradeiras notas d'um langôr d'agonia, -- os malditos emergiam sempre d'aquelle mixto d'effluvios agradaveis, auras môrnas e arruidos de dôr, ou para o confissionario -- seu principal ponto estrategico -- ou para o lume dos autos-de-fé, ou para os serralhos, emfim, onde eram verdadeiros sultões por mercê das fogueiras em que queimavam as familias de mil forçadas concubinas!
Ao tempo em que a nossa historia se passava, achava-se em construcção a nova casa do Santo Officio.
Comtudo, funccionavam já não poucas enxovias para proveito dos inquisidores, massacre dos infelizes e vergonha da humanidade.
Samuel foi pois conduzido a este antro de torturas pelos dous familiares.
Durante o tansito cobrou animo desde que pensou nos seus crimes, e ouviu á consciencia que não era criminoso.
No entanto, toda a vez que lhe lembrava o duque, descórava e até tremia.
Longe andava elle da traição que se lhe armára.
Chegado á inquisição, viu que sobre si se fechavam as grades d'uma cadeia e que um dos irmãos-negros que o acompanharam era um dos frades dominicos, com quem estivera em Belem.
Samuel ficou confuso.
Debalde apellava para o proprio racciocinio, no empenho de resolver semelhante enigma.
Por mais d'uma vez se convencia de que era victima d'um logro.
Mas de repente, taes juisos caducavam em presença d'outros, que o levavam á crença de que alguém buscava experimental-o no tocante ao regicidio.
Então o mancebo socegava.
Submerso na profundeza das trevas que lhe innundavam o carcere, e rendido ao poder do cansaço, que o prostrava, encostou-se por ultimo a uma tarimba de carvalho e pouco a pouco adormeceu.
Duas horas de somno levava já, -- somno cortado por amiudados estremecimentos, -- quando a porta da masmorra gemeu sobre os seus gonzos.
N'este momento despertava o infeliz.
Depois, levou as mãos aos olhos, ergueu a cabeça e olhou em de redor, como que para certificar-se do local que habitava.
Julgava um sonho a sua estada nos carceres do Santo Officio.
Esta feliz ambiguidade cedeu prestes o seu dubio logar á mais limpida desillusão:
D'um lado os gritos lancinantes de mancebos e anciãos a quem em nome de Jesus se lhes quebravam os ossos,-- do outro o rumor roufenho das machinas de tortura no seu mister infernal, -- aqui os altiloquos juramentos d'uns, -- acolá as forçadas confissões de outros, -- e em toda a pare a dôr cruenta na plenitude da sua ferocidade!
Este desconcerto de clamores horrisonos, associado ao som cadente e monotono das exhortações dos frades, feriram depressa os ouvidos do mancebo, imprimindo-lhe no espirito a tenebrosa certeza da sua horrivel situação.
Comtudo restava-lhe a consciencia de que não era delinquente para merecer taes castigos, e tinha esperanças de que em breve se lhe daria a liberdade.
Como elle se enganava...
Não era delinquente?!...
E quantos o foram no meio d'essas milhares de hecatombes com que os frades deliciaram os olhos do fanatismo brutal?
Os factos que o respondam.
-- Irmão (disse um frade penetrando na enxovia e abeirando-se do mancebo) : É chegada a hora dos vossos interrogatorios. Acompanhae-me. Sois accusado de um grave crime.
Samuel, fitou estupidamente o frade.
O enigma do seu inesperado encarceramento nas prisões do Santo Officio, assumia agora as proporções de um mysterio.
Aquellas ultimas palavras proferidas pelo frade, vinham, como enorme camartello movido por mão gigante, destruir-lhe a ultima esperança de liberdade.
-- Um grave crime?!... (dizia elle em soliloquio). Qual?... A reunião do duque?... Mas a inquisição também lá estava!... Oh! meu Deus!... meu Deus!... que desgraçado que sou!...
Samuel, desalentado e lacrimoso, caminhou lentamente para fóra da prisão.
Dous alabardeiros da casa o esperavam á porta silenciosa e friamente.
Depois caminharam.
Na rectaguarda do grupo marchava o frade a grande custo, mercê da sua obesidade.
Decerto não era esta a melhor prova de aturadas penitencias e repetidos jejuns.
O mancebo e companheiros desceram e subiram cenienares de escadas e percorreram uma infinidade de corredores ladeados de masmorras, em demanda da casa do julgamento.
Na passagem através este horrendo labyrintho, grande numero de individuos mais palidos do que a morte se approximavam das grades dos seus ergastulos, e pediam em alta grita o fim dos seus martyrios!
Outros não appareciam, mas soltavam gemidos tão lacerantes, que abalavam e compungiam.
O frade, não se incommodava com isto!
Para elle estes lamentos de alma não possuiam valor.
Eram-lhe cousas familiares.
Após seis minutos de caminho penetraram na casa do tribunal.
Sobre uma especie de proscenio, que se elevava do chão pouco mais de meio covado, e refastelados em negras poltronas de sola, viam se alguns frades de S. Domingos, tendo na sua frente um venerando crucifixo, testemunha silenciosa de mil horriveis cannibalismos.
N'uma meza separada da do grupo de inquisidores, mas collocada tambem n'um extremo do tablado, encontravam-se alguns notarios do Santo Officio, manejando grossas pennas de ave com que traçavam alguns exoticos caracteres em papel ou pergaminho.
N'outro nivel da casa sobresabiam alguns equuleos ou pôtros, apparelhos de suspensão, pyras, funis e outros hediondos petrechos de pavoroso supplicio.
Junto d'elles divisavam-se tres ou quatro algozes, que aguardavam mudamente as ordens do tribunal.
Todos estes infames (frades e carrascos), tinham estampada na face a maldade dos seus instinctos.
Dir-se-hia uma porção de demonios fugidos do inferno para flagello da humanidade.
Samuel, foi obrigado a abeirar-se de um dos juizes.
Uma folha myrrhada exposta ao sopro de um tufão não oscillaria raais.
-- Irmão (começou o frade com embusteira brandura): Sabeis que santo logar é este?
Samuel fez um signal de aflirmação.
-- Pois bem. Em nome de Deus Padre, de Deus Filho e do Divino Espirito Santo, vos emprazo a responder-me.
Depois, continuou:
-- Sobre vós pesa a culpa de um delicto enormissimo. Que os anjos vos insinuem a confissão, afim de que os nossos corações não hajam de confranger-se ante o espectaculo da tortura a que sereis dado, se acaso vos recusardes a ser sincero. Dizei, meu irmão, fostes hontem a Belem?
-- Sim. Fui. (Respondeu o orphão persuadido de que havia de acabar pela absolvição).
-- Muito bem. Estivestes então no palacio de D. José de Mascarenhas?
-- É verdade.
-- E que se passou alli?
Samuel ficou silencioso.
Desde que se convencera de novo de que o Santo Officio desejava apenas experimental-o, -- o caminho a seguir era só este.
Todavia, a razão do seu interrogatorio era outra.
-- Respondei, meu irmão (bradava o frade). Vêde que se proseguis n'esse silencio vos esperam custosos tratos.
Samuel não descollava os labios.
Esperava sempre que em presença do seu silencio o mandassem d'alli para a rua.
-- Que dizeis? (tornou o dominico trocando um olhar de intelligencia com dous carrancudos algozes).
Seguidamente o infeliz foi arrastado para um equuleo.
Então, assaltara-o novamente uma horrivel confusão.
Alguns minutos depois soltava elle pungentes gritos.
-- Por Deus! (murmurava o perverso Torquemada). Confessae, meu irmão, que assás nos doa tanto soffrer.
-- Confesso tudo (disse alfim a victima na impossibilidade de aturar tamanhas dôres).
O dominico deu signal ao verdugo, e suspendeu-se a prova.
Samuel, concitado pela tortura, fez confissão exacta de tudo quanto se passára na reunião do duque, não se olvidando de affirmar a sua adhesão á causa dos fidalgos, contra El-Rei e seus ministros.
Os inquisidores trocaram um olhar significativo.
Depois suspenderam os interrogatorios por alguns minutos, até que entrou na sala um novo personagem.
Samuel reconheceu no recemchegado um dos companheiros na reunião de Belem, não obstante o bem disfarçado que vinha.
Era um outro frade de S. Domingos.
Pertencia a este algoz entrar em scena.
Persuadido, sem fundamento, de que o mancebo
era espião, jurára exterminal-o, por mais claras que a sua victima exhibisse provas de indubitavel innocencia!...
A justiça do Santo Officio era assim!...
Recomeçada a audiencia, Samuel foi accusado de espionar o clero e a nobreza, de mãos dadas com Sebastião de Carvalho.
Esta accusação collocou-lhe no espirito a mais intensa cholera, ao mesmo tempo que lhe fazia baquear a ultima esperança de salvação.
O pobre moço comprehendeu então que era victima de uma intriga de gravidade.
Soffria muito.
De um lado a affronta de espião cuspida á sua dignidade -- affronta que lhe não era dado fazer limpar --; do outro a dissipação total das suas esperanças e a quasi certeza de uma pena tão injusta como tremenda; e, no meio de tudo isto, a recordação permanente de Branca, cujo desamparo lhe custava mil torturas.
Horrivel situação.
Negar o facto que falsamente se lhe attribuia foi a resolução do mancebo.
Este caminho indigitava-lh'o a consciencia e a nobreza do seu caracter.
Por seu turno o malvado dominico não cessava de perguntar-lhe:
-- Confessaes que fostes á reunião do duque, tão sómente por conhecer os segredos da conspiração e transmittil-os depois ao impio ministro de El-Rei?
-- É mentira! (respondia o orphão tremulo de raiva).
-- Confessae, meu irmão (tornava o frade). Pela Virgem poupae-nos ao desgosto de vermos as vossas carnes assadas n'aquella pyra.
-- È mentira! (trovejou ainda o moço).
-- Á pyra!... Á pyra!... (bradou o infame Torquemada).
Breves instantes depois, o desgraçado soltava gritos altisonantes, concitado pelo fogo que o queimava.
Os inquisidores reviam-se na sua obra destruidora, e de momento a momento pediam á pobre victima, em nome da Mae Santissima , que confessasse o facto que não havia praticado!!!...
Passemos sem uma unica consideração por esta scena monstruosa...
Samuel, compelido pelo fogo, confessou tudo quanto o frade desejava.
Depois, suspendeu-lhe a prova.
A um aceno do Torquemada, entraram novamente na sala os dous mal encarados alabardeiros que já vimos, os quacs acompanharam Samuel á sua horrenda masmorra.
Quando os passos do mancebo soaram no corredor, disse um dos dominicos ao que estivera na reunião do duque:
-- Enganaste-vos. O homem não é aquillo que se vos affigura.
-- Não o creio (respondeu este, sorvendo com estrépito inaudito uma eterna pitada). Sc vós o visses como eu o vi... Se lhe lesses no palôr do rosto a prova mais evidente do seu ruim intuito, decerto emendarias a vossa errada supposição.
-- Quem sabe? (replicou o primeiro, buscando ler nos respectivos semblantes a opinião dos companheiros).
-- Esperemos o tempo (acudiu um terceiro inquisidor). Esta noite verificar-se-ha o encontro com El-Rei. Se a felicidade nos sorrir, abrir-se-lhe-hão as portas da masmorra ; mas se a adversidade nos colher, é forçoso que seja lançado á fogueira, que assim o pede a segurança de nós outros.
Os restantes dominicos escutavam com attenção.
O frade concluiu:
-- Este homem, sahido hoje d'aqui, seria um perigo da nossa causa, sem embargo de preteritas adhesões.
Um gesto harmonico, demonstrou claramente que todos se encontravam de accordo.
Poucos minutos apoz o referido, Samuel dava livre curso ao pranto no seu carcere, ao mesmo tempo que outros desgraçados eram conduzidos á sala do tribunal e, em seguida, submettidos ás provas!
E chamava-se a esta furna de bestas-feras -- tribunal do Santo Officio!
Ah! frades, frades! que maldita historia a vossa.
-- Samuel, Samuel... (balbuciou Branca depois de recuperados os sentidos).
Mas, Samuel, não respondia.
Interrogasse ella a branda viração do Norte, e talvez que a seus ouvidos chegassem os debeis echos de mil ais que o infeliz desferia.
Branca ergueu-se então de um pulo, abriu desmesuradamente os seus grandes olhos negros como o ebano, levou as mãos aos cabellos em desordem e percorreu com a vista os quatro cantos do cazebre.
As ultimas nebulosidades da razão produzidas pelo deliquio, iam quasi extinctas, e a desgraçada creança media bem a sua situação na amplitude de toda a sua infelicidade.
Recordava-se dos irmãos-negros da inquisição e da captura de Samuel.
Um esforço grandioso, assás incrivel da sua delicada organisação, lhe evitou o desvairar-se.
Meditou:
Era-lhe necessaria toda a vida e lucidez para se encontrar com seu irmão, e empregar depois forças heroicas qne o arrancassem das masmorras do Rocio.
Esta altiva resolução (por onde manifestava a grandeza do seu amor fraternal) deu-lhe a coragem precisa para despresar todos os perigos e caminhar.
Começava a noute a expandir-se em sombras.
A filha de Bernardim, -- bella como o ideal de Pompilio,-- firme em seus propositos como um fanatico intransigente, -- encaminhou-se para o Rocio.
Não ia em busca de um acaso, que lhe facultasse o encontro com seu irmão, porque fôra isso um milagre...
Era-lhe necessário vêl-o, fallar-lhe e tiral-o das masmorras em que jazia.
Mas como conseguil-o, ella, a fragil creança, que apenas se fortalecia nos affectos que votava a seu irmão?
Comtudo não fiava de qualquer caso fortuito o seu ingresso no Santo Officio....
Já ha muito que suggerira e aperfeiçoára uma idéa...
Havia de penetrar na succursal do inferno... n'esse infame tribunal inventado pelos inimigos da luz e do bem!
Havia de entrar e sahir incolume do meio d'aquella horda de assassinos e ladrões auctorisados pela Egreja, pelo Throno e pela supina ignorancia das suas victimas.
A occasião faz os heroes...
Quando o mar ergue o seu colo de espuma, e, trovejando por sobre as rochas, accommette os frageis barcos, -- é n'esse momento horrivel que o nauta se desacovarda ante a magestosa furia da natureza, e se resolve a disputar-lhe a vida ameaçada.
A timida andorinha tambem se defende e lucta pelos filhos, se o milhafre tenta arrebatar-lh'os.
Quando Branca chegava ao Rocio, batiam oito horas na Sé.
Rendida ao cansaço e ás vigilias, assentou-se entre um montão de pedras de granito, destinadas ao acabamento do palacio da inquisição, e pouco depois adormeceu.
Pelas ruas da cidade era pequena a concorrencia.
A illuminação publica, introduzida em Lisboa em mil setecentos e noventa e um, pelo famoso intendente da policia Pina Manique, existia ainda em mente do celebre engenheiro Castro, cujos candieiros inventou pelos annos de mil setecentos e oitenta e oito.
Era por isto e pela impotencia das rondas de policia, que mais dormiam do que velavam, que n'essa epocha o assassinio e o roubo se acoutavam nas differentes ruas da capital, a despeito da energia da justiça cujas sentenças de morte proferia em profusão.
A noute foi pois seguindo o seu curso, e já raro se ouvia o gemer da areia sob os pés dos transeuntes.
Branca dormia ainda.
Nem o tocar dos sinos chamando os frades ao côro, nem tão pouco os gritos dolorosos de tres ou quatro miseros arrastados á inquisição, a tinham despertado.
Dentro do tribunal do Santo Officio, a poucos passos do sitio onde Branca repousava, ia um bulicio infernal:
As victimas gemiam nos seus carceres, os alabardeiros arranjavam as suas armas o vestimentas, os inquisidores comiam e emborrachavam-se em fraternal convivio, os algozes preparavam sambenitos, lenha e alcatrão, e, finalmente, tomavam-se todas as precauções para que algumas horas depois nada faltasse ao costumado luzimento d'um auto-de-fé monstro!...
E os santos padres comiam e emborrachavam-se em fraternal convivio!!!
O programma d'aquella festa de canibaes já estava feito.
O auto-de fé devia ser precedido de procissão pelas ruas do costume!
Era uma dupla barbaridade e duas vezes a negação dos sentimentos humanos.
Como se fôra pouco o espectaculo do fogo, os gritos dos padecentes e os psalmos dos frades, era mister ainda aquella vil exhibição das victimas e dos terrores inquisitoriaes, para prestigio d'estes e supplicio d'aquellas.
O povo, ávido sempre de sensações variadas, aguardava impaciente os dias d'estes sahimentos infames.
De madrugada estacionava nas ruas da passagem da procissão, acotovelava-se mutuamente e esperava ancioso o séquito hediondo!...
Uma cruz alçada, ladeada por dous frades, abria o cortejo maldito. Seguiam depois duas alas tambem de frades, resmungando monotonamente o quer que fosse em latim. Ao centro, erguiam-se alguns paineis de santos e santas. Logo depois appareciam as pobres victimas vestindo sambenitos (especie de tunicas brancas cuidadosamente guarnecidas de demonios de papel de côr); e fazia o couce d'esta infernal palhaçada um grosso numero de alabardeiros (policia da inquisição), ostentando um arreganho de soldados pretorianos.
Percorridas as ruas do programma, recolhia a procissão infame e selvagem ao palacio do Santo Officio, -- levando por alvo das mil imprecações e maus tratos da ralé estupida e fanatisada, os infelizes coudemnados pelo monstruoso tribunal!!!...
Depois, já quando no logar do supplicio estava tudo a postos, abriam-se de novo as portas do Santo Officio e sahia o séquito já descripto, sem que d'esta vez viessem outros infelizes, que não fossem unicamente os condemnados á fogueira!!!...
A turba-multa, que franjára as ruas do transito da procissão, corria agora vertiginosamente para junto dos postes alcatroados, e empenhava-se por poder vasar um olho ou remetter um trato mais feroz aos desgraçados, que se encaminhavam lividos e atterrados para a fogueira que os aguardava!!!...
Ponhamos ponto aqui.
Se o leitor quizer melhor conhecimento do similhantes canibalismos, continue indifferente aos manejos da reacção, que tenta erguer o colo, e pouco tardará que as fogueiras da inquisição se não accendam para proveito da seita, introducção do fanatismo e da treva, e desmoronamento da civilisação.
Por emquanto os indifferentes vão soffrendo apenas os raptos das filhas e a fanatisação das esposas: Pouco é...
Mas, regressemos ao local onde deixamos Branca.
Santo Antão, Sé, S. Domingos e outras torres da cidade, já deram a meia noute.
A joven filha de Bernardim Barbeita dorme ainda profundamente e sonha com seu irmão.
Paira-lhe nos labios côr de rosa um sorriso angelical.
E' que o sonho é sereno e limpido como a sua alma.
...Que feliz idéa suggerira ella para salvação de seu irmão, que o somno prejudicava?
Se a tivessemos ouvido ao sahir da pequenina casa da Pampulha, saberíamos que o seu plano a concitava a caminhar.
Que plano seria pois?
Aguardemos a opportunidade.
Pena é que ainda durma, e que não haja encetado a sua obra bemfazeja.
Desviemos agora as nossas attenções para outro lado.
Olhemos para a Calçada do Carmo, ingreme e sinuosa, e vejamos como a descem tres individuos embuçados em amplas e negras capas.
Serão irmãos-negros?
De quando a quando fallam a meia voz e observam o caminho.
Chegados á extremidade da rua, e antes de penetrarem no Rocio, pararam por momentos, applicaram os ouvidos e continuaram nas suas observações.
Depois entraram no largo e esconderam-se entre algumas pedras, a curta distancia do local onde Branca repousava.
-- Aqui... (disse um d'elles).
-- Seja Virá a ronda? (interrogou outro).
-- Não é provável.
-- Pois bem : tratemos dos quinhões. Optimo ouro que tem o tal senhor...
-- E bons creados...
-- Que se entendem comnosco...
-- Coitado...
-- Quando pensava ser rico...
-- Ficaria elle bem morto?
-- Por Satanaz!.. Eu creio que doze punhaladas não são para taes receios.
Occioso será dizer-se que os personagens d'esta scena eram outros tantos malfeitores, constituidos em quadrilha, os quaes acabavam de perpetrar um assassinio e um roubo.
Branca, que tudo ouvira, ficou tomada de susto e desatou a tremer.
Os sicarios que se julgavam a sós, ficaram surprehendidos e atemorisados quando o orphã se denunciou.
Branca não pôde evitar um grito de terror.
-- Estamos descobertos (disse um dos bandidos). Existe alli alguém que tudo ouviu.
E apontava para o local onde a orphã se revolvia confusa e atterrada.
-- Vejamos (accudiu um dos outros faccinoras arrancando um punhal).
E abeirou-se de Branca.
Por Lucifer! (bradou elle). Aproximae-vos e vê-de o que a fortuna nos deparou.
Os restantes malfeitores aproximaram-se da donzella.
Branca, na sua posição supplicante, vista á luz do luar que havia pouco apparecera, ostentava tal formosura que só nas virgens d'Appelles encontraria rivaes.
-- Levemol-a... levemol-a... (disseram os trez em coro).
E erguendo á força a donzella de sobre as pedras de granito aonde adormecera, taparam-lhe a bôcca com um lenço e em seguida caminharam.
Ao romperem os primeiros clarões do dia treze de dezembro de mil setecento e cincoentas e oito, appareceram affixados pelas esquinas das ruas mais publicas de Lisboa e de Belem dous editaes regios, noticiando o facto da emboscada contra o Soberano e effeitos resultantes; e prohibindo a sahida para o estrangeiro a qualquer pessoa portugueza, toda a vez que previamente não houvesse provado a sua identidade perante as justiças competentes.
N'estes editaes se promettiam elevadas recompensas, -- taes como pensões, honras, titulos e logares publicos -- a todo aquelle que, em verdade, revelasse o que soubesse acêrca do delicto.
Aos que ne'lle houvessem collaborado, não sendo principaes motores, promettia El-Rei o perdão, se conscienciosamente delatassem o que a tal respeito soubessem.
A este tempo já andavam em movimento os trabalhos do processo.
Aveiro, Tavoras e alguns dos seus creados estavam irremediavelmente perdidos.
Na madrugada d'aquelle dia, grossas forças de cavallaria prenderam aquelles conjurados e alguns fidalgos que se achavam implicados; exceptuando o duque d'Aveiro e respectivos serviçaes, que foram capturados n'uma quinta d'Azeitão.
D'entre todos os que figuraram na emboscada de Belem, só José Polycarpo d'Azevedo poude evadir-se; por cuja cabeça davam depois as justiças grossas sommas, que orçavam por uns vinte mil cruzados.
O marquez de Tavora, D. Francisco d'Assis, foi preso nos proprios paços reaes, á voz de Sebastião de Carvalho, indo queixar-se alli, ao sahir d'um baile, da desconsideração que se lhe fizera, desde que se poz em movimento, sem sua ordem, a cavallaria de que era inspector.
A's oito horas da manhã do mencionado dia, já todos os criminosos (e innocentes) se encontravam reclusos, se exceptuarmos D. José de Mascarenhas e seus creados.
Os fidalgos deram entrada no pateo dos Bixos em Belem; os serviçaes implicados, ficaram custodiados nas prisões ordinarias, e as familias d'aquelles foram distribuidas pelos differentes conventos da capital, onde permaneceram até depois do encerramento do processo.
Pouco tempo depois, o duque d'Aveiro e D. Leonor de Tavora eram tambem remettidos ás pavorosas prisões do pateo dos Bixos, a que acima nos referimos.
Deixemos correr o processo á feição de Sebastião de Carvalho, aguardemos o resultado e occupemo-nos dos jesuitas.
Os seraphicos filhos de Loyolla maldisseram da emboscada, quando souberam do succedido.
Não lhes valeram as suas preces ao Altissimo, pelo feliz exito da traição premeditada.
E' que Deus não protege o crime, nem tão pouco podia attender aos mais perversos de seus filhos.
Cain e Judas foram dous entes virtuosos, comparados com estes impios.
No collegio de Santo Antão (antiga residencia dos jesuitas, e actualmente hospital da Misericordia sob a invocação de hospital de S. José) bem como no palacio da inquisição, tocou-se a capitulo no dia immediato á noute do delicto.
N'uma e n'outra casa, que de sobra se entendiam, era geral o desanimo.
A mão potente de Sebastião de Carvalho, que já tantas vezes as havia espancado, estava de novo suspensa como a espada de Democles, e d'um momento para o outro as poderia esmagar.
Esta idéa incutia-lhes mais terror do que o leão de Neméa que lhes surgisse de subito.
De mais sabiam que o ministro de D. José havia de procurar os criminosos, no inferno que estivessem.
Muito subtilmente andaram elles, os jesuitas, na questão do tratado de limites de 1750, tratado relativo ás fronteiras de Portugal e Hespanha na America Meridional, e ainda assim lá os encontrou o Colbert portuguez como intrigantes das duas cortes; -- não menos disfarçadamente se introduziram e animaram os tumultos do Porto, na questão da companhia dos vinhos do Alto Douro, e apesar de tudo lá foi doscobril-os a prespicacia do grande homem.
Sebastião de Carvalho, era a eterna atalaya dos filhos de Loyola, e o constante farejador dos seus delictos.
Repugnava-lhe a treva n'estas paragens da Europa, quando a luz do progresso já resplendia a dous passos.
Era-lhe mister encaminhar os raios vivificantes d'esse astro sublime, para esta pequena tira de terreno perdida no Occidente, que n'outras eras de gloria produzira lição ao mundo.
Restituir-lhe prestigio e nome foi o seu constante anhelo.
Lançou mão pois da pesada alavanca do rigor, e, como Sansão, desmoronou o templo onde se encontrava a hypocrisia, o egoismo e o mais torpe fanatismo.
E derrubou um Estado parasyta d'outro Estado.
D. João II também cavou assim os alicerces do seu reinado, cousubstanciando n'um poder mil poderes que revoltavam.
Mas...
As versões que corriam na cidade, depois da perpetração do crime, mais desanimaram os santos padres.
João Alexandre e João de Mattos (jesuitas), que mais haviam colaborado n'elle, andavam exquisitos e cabisbaixos, e por vezes sentiram tentações de fugir de Portugal.
Na inquisição não havia menos pavor por parte dos implicados.
De sobra sabiam todos que se o dedo do ministro os indigitasse como cumplices, pagariam caro os seus serviços sem remissão nem aggravo.
Como preservativo d'este mal que os affrontava, envergaram as vestes de Tartufo e tentaram por meio do embuste desnortear as justiças d'El-Rei, nas suas aturadas pesquizas.
A todos os momentos se abeiravam de Paulo de Carvalho, inquisidor geral, e irmão do ministro -- e depois de deplorarem o crime se offereciam e fingiam auxiliar a justiça no descobrimento dos criminosos,-- os quaes, segundo as suas opiniões, já se tinham escoado para o estrangeiro.
O irmão de Sebastião de Carvalho, ria-se lá por dentro de semilhantes estratagemas, e, velhaco como elles, não perdia ensejo de vêr se lhes podia apanhar ponta que a seguro os condemnasse.
N'estas traças e sobresaltos andaram os padres por muito tempo, dando-se a pêrros por verem assim desfeitas todas as suas esperanças...
Dos fidalgos conjurados não temiam nada; mas pesava-lhes devéras a cumplicidade dos populares.
Por muito felizes se davam elles em razão de conservarem sob ferros o infeliz Samuel.
O desgraçado mancebo, esse... lá curtia no centro do seu carcere as saudades e o receio por sua pobre irmã, ao mesmo tempo que temia pelo proprio futuro, que se lhe antolhava medonho.
Não ouvira as ultimas palavras dos seus algozes quando sahira das provas,-- palavras que importavam uma sentença de morte,-- mas fiava pouco do mysterio em que se encontrava envolvido.
-- Se não fôra Branca, melhor me fóra morrer! (dizia elle).
Mas... que seria da triste orphã se morresse Samuel?
Esta lembrança inextinguivel dissuadia-o a toda a hora de apagar a existencia.
Longe estava elle de que a infeliz creança fôra victima da sua immensa dedicação.
Nem sonhava sequer que a desgraçada se debatia áquellas horas entre os braços de ferro de tres infames sicarios, e que a corôa da sua virgindade estava em risco de tombar nas alcárcovas da deshonra!...
Deixemol-o pois entre as sombrias paredes do seu carcere acurvado á desgraça, e vejamos o que succedeu á donzella.
Quando os malfeitores a conduziam amordaçada para local apropriado... e quando já se approximavam das bandas da praia, ouviram elles um pequeno barulho, que partia de uma das ruas que desembocavam no largo do Corpo Santo.
Os tres bandidos ficaram contrariados.
Branca, já sem forças, não empregava um único movimento de resistencia, e limitava-se apenas a emittir uns tenuesinhos gemidos, cujos sons a mordaça interceptava.
Pouco depois o arruido deixou de ouvir-se.
Então, os bandoleiros, cobrando animo, proseguiram na sua marcha.
Quando penetravam no largo do Corpo Santo, na intenção de se internarem na praia , deram de frente com alguns familiares do Santo Officio (vestindo negros farricocos), os quaes conduziam á inquisição um miseravel cigano, que encontraram durante a ronda.
Bandidos e irmão negros pararam por seu turno.
Eram os tigres e as pantheras, que se miravam desconfiadas.
Branca, percebeu o encontro, e envidou um esforço desesperado para sahir das garras que a prendiam.
Aos do Santo Officio não passou desapercebido o facto.
De sobra viram elles que um dos malfeitores sopesava uma mulher.
Era tempo de operar.
Os irmãos-negros eram cinco e bem armados para aquellas excursões nocturnas, em beneficio da fé...
-- Em nome do Santo Officio, acompanhae-nos (disse um d'elles com voz atroadora, dirigindo-se aos bandidos).
A resposta d'estes foi abandonarem a presa e escoarem-se para a praia.
Branca estava salva.
Se para realisar a sua idéa com relação á soltura de Samuel, devia começar por apresentar-se na inquisição, é de crer que a presença dos inquisidores lhe fosse agradavel e até certo ponto lhe aproveitasse...
Mau tarde o saberemos.
Um dos familiares abeirando-se de Branca e reconhecendo-a, abraçou-a febrilmente e murmurou umas palavras imperceptiveis.
A orphã ficou estupefacta.
O irmão-negro, aproximou-se em seguida dos companheiros, segredou com elles o que quer que fosse e separaram-se.
Branca e o seu conhecido viram caminhar os outros familiares, em direcção do Santo Officio, levando quasi de rastos o desventurado cigano, que se esforçava por fugir.
Depois encaminharam-se também paulatinamente para o Rocio, e estabeleceram um dialogo em que avultavam as interrogações do familiar da Inquisição.
Vejamos quem era este ultimo personagem da nossa historia:
Se lhe despissemos o comprido farricoco de irmão-negro, ver-lhe-hiamos o habito de S. Domingos.
Era pois um frade, que contaria cerca de cincoenta annos: -- baixo como ura esquimau, obeso como Vitelio e porco como os pauns.
Vira Branca, depois da morte de Bernardim, n'aquella casa de Alfama de que o leitor já tem noticia, e escreveu-lhe um dia confessando-lhe ardente amor!!!
A filha do magistrado corou de pudor, queimou a carta e respondeu-lhe com o silencio.
Dous dias depois recebia ella uma outra carta do punho do dominico, ameaçando-a de pagar caro o despreso que lhe votava, nas prisões do Santo Officio.
Branca comprehendeu que o frade era inquisidor; mas nem por isso se arreceiou d'elle, pois que continuou a tratal-o como até ali.
Samuel, ignorava tudo.
O dominico por seu turno andava louco.
Da ameaça passára a meios brandos, e n'uma terceira epistola offerecia á orphã em troca do seu amor, tudo quanto um velho apaixonado e ridiculo póde offerecer á escolhida dos seus olhos.
Foi então que os filhos de Barbeita tiveram de mudar-se para a Pampulha.
O inquisidor ficou apatetado quando viu fechada a casa de Bernardim.
Debalde perguntou noticias da donzella, e mais debalde tentou apagar o fogo d'aquella paixão enorme que o consumia.
Nos labios roxos e viscosos, ninguem mais lhe vira perpassar um sorriso de alegria.
Deparar com ella agora... n'aquelle sitio... n'aquella noute... tendo por unica testemunha dos seus idyllios de amor o tepido sopro da brisa, que convidava os mortaes áquellas lucubrações da alma -- fôra para si uma ingente felicidade.
Depois do tantas sandalias rotas com desproveito, veio o bom fado em seu auxilio e removeu-a dos braços lubricos dos assassinos para junto d'aquelle peito onde batia um coração apaixonado.
Branca, essa, dava graças a Deus por lhe ter deparado o ridiculo inquisidor, pois que fazia consistir n'elle toda a sua esperança com referencia á soltura de Samuel.
Procurar, pois illudil-o, conseguir os seus fins ácerca da salvação do mancebo e abandonal-o depois como se abandona uma cousa immunda e perigosa, fora este o projecto da donzella.
O frade não lhe podia ler no espirito similhante resolução; e cada vez que ella lhe dirigia uma palavra, ou lhe remettia um olhar dos seus grandes olhos negros, sentia-se como que transportado a um mundo de delicias.
Pouco a pouco chegaram ao Rocio.
Em derredor d'elles reinava o silencio dos sepulchros.
Nem no palacio da Inquisição, nem no hospital de Todos os Santos , que n'essa epocha demorava a um dos lados do terreiro, se ouvia o menor rumor.
Então o inquisidor, ardendo em lascivia, abriu-se francamente com a donzella.
Não era ainda ensejo para Branca o repellir.
Nesta conjunctura relevou ella que o monstro lhe babasse a mão de jaspe, não sem lhe fazer um nojo indescriptivel.
Depois, dando-lhe algumas esperanças que o coração não ditaram, falou-lhe largamente em Samuel.
O dominico, deu um pulo.
Dir-se-hia que uma cobra o picára fundo.
Pela face rubra passára-lhe um suor tão frio que o gelou, quando soube que a mulher que amava, era irmã do desgraçado que pouco antes tinha ajudado a massacrar.
Um silencio profundissimo succedeu então ás palavras da donzella.
Alguns instantes depois, o malvado, sempre propenso ao mal, ergueu a immensa cabeça e dirigiu-se á orphã:
-- Pois bem (disse elle). Samuel vae ser posto em liberdade. Acompanhae-me. Não devo deixar-vos a sós n'este local exposta aos ataques dos malfeitores. A curta distancia possuo uma pequena casa: Esperar-me-heis alli, emquanto chego a abrir o carcere ao vosso irmão.
Branca, crente das palavras do Torquemada, acompanhou-a a uma casinha da rua da Bitesga, cuja chave elle possuia.
Mal sabia ella que o infame pensava apenas em satisfazer os seus desejos; e que, longe de libertar o mancebo, assentára ao contrario em desfazer-se d'elle como de cousa inopportuna e perigosa.
Não descreveremos a scena que se passou então...
O miseravel apenas se encontrou sob telhas com a sua victima, preparou-se para desfolhar-lhe as rosas da innocencia!
Mas de repente soltou um rouco altisonante e tombou no pavimento.
Uma apoplexia, talvez filha do esforço, acabava de arrancar-lhe a vida!
Era a mão de Deus que descia do ethereo, a evitar que o reptil immundo gangrenasse a viçosa flôr.
Curtos instantes depois, encontrava-se sob o chão uma mulher desmaiada, junto ao cadaver do um frade.
Estamos no mez de janeiro do anno de mil setecentos e cincoenta e nove.
No dia 11 proferia-se a primeira sentença, que degredava os conjurados de todas as honras, grandezas, regalias e privilegios que até ali lhes competiam;-- no dia 12 lavrava-se outra, condemnando-os á morte ; -- e no dia 13, (hora e meia da madrugada), assignava-se a ultima, desnaturalisando-os.
Já poucas horas lhes restavam de existencia.
No largo de Belem avultava sobre o solo, como medonho phantasma em noute de procella, um enorme cadafalso com dezoito palmos d'alto, trinta e seis de comprimento e vinte e oito de largura.
Nas quatro faces do feroz patibulo divisavam-se oito rodas para collocação dos cadaveres dos justiçados, bem como differentes utensilios de tortura.
Alguns corpos de infanteria e cavallaria circulavam o local do supplicio, de modo a obstruirem as extremidades das ruas que dão sahida para o largo.
Esbirros e outra gente de justiça, rigorosamente uniformisada, rondava as ruas de Lisboa e Belem, e tomava todas as precauções para evitar qualquer tumulto.
As restantes tropas achavam-se de prevenção nos quarteis.
Rompe o dia treze, sombrio e triste .
Dir-se-hia que o rei dos astros se escondera horrorisado do tremendo espectaculo, que ia prestes começar.
O famoso reinado de D. José celebrisou-se mais por este feito hediondo, do que por todos os rasgos d'excelsitude que caracterisam aquelle periodo de prosperidade nacional.
Em toda a parte onde a civilisação tinha um templo, e até onde chegára a nova do incrivel facto, todos á porfia soltaram interjeições de admiração e horror.
A terrivel execução de Roberto Damiens , -- grande escarro cuspio á face da humanidade -- some-se nas sombras da pequenez perante a incommensurabilidade dos supplicios de Belem.
Não obstante, constitue ella um dos traços mais pronunciados da horrenda tela onde a historia desenhou as supremas monstruosidades d'uma besta coroada que se chamou Luiz XV.
Vejamos:
São seis horas e meia da manhã, aproximadamente.
Uma escolta de dragões de Aveiro, precedida d'alguns frades, ministros do crime dos differentes bairros de Lisboa, e de dois ou tres algozes, penetram n'uma das prisões do pateo dos Bixos, e trazem de cadeirinha a marqueza de Tavora.
Era ella uma senhora de regular estatura, porte nobre e varonil, cabellos alvos, -- cujo rosto accusava ainda grande copia de passadas bellezas, que o tempo e os desgostos anniquilaram.
Trajava vestido de setim azul, uma capa de seda alva, e trazia na cabeça um toucado da mesma côr.
Chegada ao pé da escada do cadafalso, subiu a custo, amparada por dois frades, e deu ingresso na vasta quadra onde era esperada pelo meirinho das cadêas e alguns verdugos.
Dragões, frades, algozes e justiça, recolheram de novo ao pateo dos Bixos, emquanto a infeliz marqueza percorria forçada a superficie do patibulo, onde lhe eram mostrados e explicados os instrumentos que lhe haviam d'arrancar a propria vida, bem como as de seus filhos, marido e mais coreus!!!
-- Por Deus! (bradava a misera suffocada de dôr e pranto). Poupae-me a essa horrivel descripção e abreviae o meu martyrio!...
-- Ainda não, senhora. Hoje tambem eu sou fidalgo e vós ralé. Olhae: Vêdes agora aquella maça de ferro que ali jaz cahida como serpente que dorme?... Se a visses despertar do seu somno, saberias como ella ha de esmagar os ossos de vossos filhos, marido e parciaes.
Estas palavras cruas o deshumanas, eram pronunciadas por um dos carrascos em tom de mofa.
D. Leonor de Tavora, quando ouviu falar em seus filhos e marido, sentiu que o coração lhe estalava.
Que momentos horriveis por que passou a desgraçada durante o tempo em que o algoz lhe explicou as torturas por que haviam de passar os entes mais queridos da sua alma!!!
Depois, quando o verdugo já não tinha mais dôres moraes a ejacular n'aquelle espirito extenuado de soffrimento, ergueu o fatal cutelo e decepou a cabeça da desventurada fidalga.
Os espectadores, descobrindo-se, encommendaram a Deus a alma da heroína.
Seguidamente, appareceu segunda vez a cadeirinha, conduzindo um dos mais innocentes dos condemnados:
Era elle um mancebo joven e formosissimo -- José Maria de Tavora -- filho segundo dos marquezes d'este titulo, e capitão de dragões de Chaves.
Trajava vestes de veludo preto e meias côr de perola. O seu farto e louro cabello annelado, cahia-lhe em desordem sobre o rosto desbotado.
Amparado pelos frades, subiu a escada do cadafalso e foi mostrado ao povo.
Depois, pediu com voz debil a frades e seculares, que lhe rezassem pela alma.
Dos olhos da multidão rebentou o pranto a jorros.
Os proprios algozes, encanecidos n'aquellas lides malditas, sentiram o quer que fosse de dó quando fitaram o infeliz.
O vulto gigantesco de Sebastião de Carvalho, agacha-se como um reptil e confunde-se com a lama em presença d'este facto de suprema ferocidade.
Não se diga que a sentença dos Tavoras e coréus, foi consequencia fatal da recta justiça, porque n'este processo só se attendeu aos caprichos do ministro.
A verdadeira historia ahi anda por sob o pó das estantes.
Pouco custa procural-a e vêl-a.
Alguns momentos depois estava traçada a segunda estrophe d'este poema de sangue.
José Maria de Tavora soffrêra garrote vil, ao mesmo tempo que n'uma aspa , lhe quebravam inexoravelmente os ossos!!!...
Terceira vez appareceu a infernal cadeirinha, conduzindo um outro joven.
Era Luiz Bernardo de Tavora, também marquez d'este titulo, e filho primogenito de D. Francisco e sua esposa.
Vestia fato de veludo preto e meias da mesma côr.
Chegado ao patibulo, assás pallido e tremulo, soffreu morte identica á do infeliz seu irmão.
Finda esta horrivel execução, appareceu D. Jeronymo d'Athayde, conde d'Athouguia.
Trajava tambem d'escuro.
D. Jeronymo, incontestavelmente innocente no crime da emboscada, fôra preso e condemnado por ser parente dos Tavoras!!!...
Subindo furiosamente as escadas do patibulo e dizendo algumas justas imprecações, foi compellido a estirar-se na aspa onde soffreu garrote e massa.
Houve alguns minutos de demora.
E' que os algozes já vergavam physicamente á fadiga d'esta tarefa selvagem.
Precisavam refazer-se de novas forças para recomeçarem n'este espectaculo feroz.
O corregedor concedeu-lhes o tomarem algum vinho e alguns outros alimentos .
Concluida a refeição, chegaram por seu turno ao patibulo os plebeus Manoel Alvares Ferreira e Braz José Romeiro.
Vinham de calções, descalços e em mangas de camisa!
Em seguimento foram torturados como os miseros precedentes.
Quando se consummava esta ultima execução, percebeu-se um pequeno borborinho entre o povo e a tropa.
Depois rufaram destemperadas todas as caixas de guerra que se encontravam presentes:
Era o desgraçado D. Francisco, que passava em caminho do cadafalso!
Era o infeliz marquez de Tavora, que ia pagar innocente por crimes que não fizera!
Aquelle rufar estupido das caixas, não era um signal de dôr:
Significava a ultima expressão do despreso votado pelas tropas ao que fôra seu general.
Mas, que importava esta formula alvar, ridicula, se todos á porfia experimentavam a oppressão da dôr, traduzida em lagrimas d'inequivoca sinceridade?
D. Francisco subiu as escadas do patibulo.
Vestia fato de veludo negro.
A cabeça, povoada d'alvos e venerandos cabellos, pendia-lhe para a frente.
Quando as suas vistas serenas mas frouxas, se encontraram com os cadaveres dos entes que mais queridos lhe foram, arrancou do seio um d'esses ais dolorosos em que se despende a melhor parte da existencia.
Depois limpou os olhos razos d'agua, e estendeu-se resignadamente na aspa.
Garrote e massa lhe arrancaram a vida no meio de torturas indescriptiveis!...
Era agora um dos maiores criminosos n'esta serie d'infelizes, mas nem por isso o menos deplorvel, que vinha pagar em tratos do inferno o crime que commettera.
Chegava a vez ao que fôra marquez de Gouvêa, duque d'Aveiro e quiçá o mais excelso fidalgo do seu tempo.
D. José de Mascarenhas, orgulhoso em extremo, tornava-se antipathico a nobres e plebeus. D'uma ambição e vaidades extraordinarias e loucas, jámais faria côro com populares, se n'elles não visse os degraus que sonhára para ascender a um zenith imaginario.
Comtudo, tinha virtudes tambem.
Era esmoler como poucos, generoso em extremo, ás vezes intelligente, e energico quasi sempre.
Ainda novo e agil, subiu sem exforço as escadas do patibulo.
Vestia um roupão de veludo avermelhado e calçava meias da mesma côr.
Quando lançou os olhos ás rodas e divisou pendentes os cadaveres dos justiçados, não pôde deixar de curvar a cabeça e d'exhibir-se horrorisado.
Depois estendeu-se na horrivel aspa, e a ensanguentada massa empunhada peta mão musculosa do algoz, cahiu-lhe quatro vezes sobre os ossos, n'um fragor medonho e basso!!!...
O garrote não lhe deu morte rapida e o infeliz soffreu penas infernaes!!!...
Que acaso maldito compeliu a pobre victima a soffrer tamanhas dôres?
Que motivo obstou a que o desgraçado não perdesse logo a vida!?
A historia limita-se a attribuir a causa d'este incidente a um erro do algoz!!!...
Depois do duque d'Aveiro, veio o seu creado João Miguel.
Em seguimento appareceu a estatua de José Polycarpo de Azevedo (que conseguira fugir), a qual foi collocada n'um poste que se erguia sobre o chão do cadafalso, e entre os cadaveres dos plebeus.
Por ultimo exhibiu-se o infeliz Antonio Alvares Ferreira, o que mais soffreu entre todos.
Vinha como o desgraçado João Miguel, quasi nú e com o corpo coberto por um capote!!!....
Assás brutaes e deshumanas eram as justiças d'então.
Hypocritas sem coração, sem consciencia, nem crenças!...
A vingança e a torpeza tinham n'ellas os seus servos dedicados, toda a vez que a torpeza e a vingança reparassem em seus serviços.
Quando vier o tempo do verdadeiro ajuste de contas, esses malvados -- que são hoje montões de estrume no pó das campas -- hão de ter a sua devida deificação.
Pouco tardarão os homens que se hão de consagrar á escriptura da verdadeira historia.
Elles baixarão a muitas sepulturas o penetrarão por toda a parte com a espada da justiça em uma mão e a balança do direito n'outra.
N'essa excursão desapaixonada e austera; pisarão mil sceptros confundidos com os punhaes dos sicarios; calcarão pergaminhos de nobreza manchados no sangue de muitas victimas; descobrirão innumeros crimes encobertos nas sombras da ignorancia; destruirão as corôas de muitas virgens, que não passaram de rameiras; e até hão de fazer tombar na lama do desprezo, milhares de monumentos e imagens consagradas á embostice, ao roubo e a crápula.
O misero plebeu, vinha pois quasi nú e embrulhado n'uma capa!
Os carrascos abeirando-se d'elle, amarraram-lhe os pés com umas grossas gargalheiras.
Nas mãos, como os outros justiçados, trazia algemas de ferro!
Depois, cobriram-lhe o corpo de materias inflamaveis, lançaram-lhe ao pescoço um sacco com alcatrão, e pegaram fogo a tudo!!!
Ao mesmo tempo que isto se fazia, descarregava-se um barco que desde o começo do supplicio, vergava sobre o Tejo, e junto ao caes, á acção do peso da lenha resinosa, breu e pêz, que depois passou para sob o cadafalso.
Seriam trez horas da tarde quando começou o cruento supplicio do ultimo desgraçado, e ás quatro (pouco menos) era ainda pasto das chammas!
Custa a acreditar similhante perversidade!
O assassinato de Antonio Alvares fôra o mais cruento, em razão de haver sido o unico dos conjurados que ferira a Magestade!!!...
O infeliz, voltado de proposito para o Norte, d'onde a briza soprava brandamente, não podia morrer asphyxiado!!!...
Até aquella formosa companheira do lyrismo, eterna Egéria dos trovadores apaixonados, abandonava n'esse dia arroyos e vergeis para vir dar vulto ao martyrio e tormento ao desgraçado!
Ás 4 horas precisas da tarde, terminava a infernal tragedia.
O cadafalso envolto depois em chammas como vulcão revolto, elevou em negras espiraes de fumo as cinzas dos justiçados.
Era a expressão ultima da vingança!
D'esta scena medonha, ficou a immorredoura memoria para commiseração d'uns e eterna maldição d'outros.
Entremos segunda vez n'aquella pequena casa onde deixámos o frade morto e a donzella desmaiada.
As torres de Lisboa já tinham dado duas horas, quando o facto se ultimou.
Branca permaneceu prostrada por espaço de meia hora.
Quando recuperou os sentidos, viu-se envolta em trévas e deitada sobre o chão.
Invocou então toda a força da sua reminiscencia, e conseguiu reunir no cerebro, ainda enfermo do deliquio, todas as idéas concernentes ao sucesso que pouco antes se havia dado.
Tremeu de medo.
Comtudo era-lhe forçoso sahir d'alli.
Ergueu-se.
Percorreu os quatro angulos da sala em procura da sahida, mas debalde a procurou.
Depois, encontrou uma das janellas que davam para a rua.
Abriu-a.
Aos palidos clarões da lua, divisou distinctamente o dominico no chão.
Coberta de pavor, com os cabellos hirtos... encaminhou-se para a porta da rua, que encontrou fechada.
A chave não apparecia.
Lembrou-se então que o inquisidor a tinha guardado nas algibeiras, quando entrou na sala.
Branca, confusa e amedrontada, nem sabia que fazer.
Saltar pela janella, custar-lhe-hia a vida fatalmente.
Esperar pelo dia e pedir soccorro, importar-lhe-hia damno á sua reputação.
Só a poderia salvar um atomo da coragem, que pouco a pouco lhe falleceu.
Por fim, fez um esforço.
O tempo urgia:
Aproximou-se do cadaver, levou-lhe a mão de mansinho a uma das algibeiras, -- como que com medo de despertal-o, -- e tirou-lhe alfim a chave que tanto anciava.
O frade tinha despido o farricôco de irmão negro, pois que existia sobre o chão.
Branca, quando colhêra o pretendido objecto, abeirou-se da porta, abriu o cadeado e desceu ao patim.
O portão da rua, encontrava-se unicamente encostado.
Apenas se viu cá fóra, tomou um hausto de ar gigantesco.
Depois, encaminhou-se para o Rocio.
Era derredor de si occorria um silencio sepulchral.
Quando penetrou no largo, parou.
Os terriveis acontecimentos d'aquella noute haviam-n'a impressionado tanto, que a custo tomava uma resolução qualquer.
Ainda assim a lembrança de Samuel e a idéa de salval-o, eram-lhe inseparaveis.
Mas... como valer agora ao infeliz recluso, se o dominico tinha fallecido, e se n'elle depositava toda a sua esperança?
Quando Branca sahiu de casa, no intuito de promover a sabida de Samuel dos carceres do Santo Officio, tinha (como o leitor já sabe) urdido com precedencia um projecto que julgara infallivel:
Recordando-se dos requestos do inquisidor, entendeu que fingindo escravisar-se-lhe, sob condição de dar fuga a Samuel, veria realisados assim os seus desejos. Depois, para eximir a sua honra da baba immunda do sotaina, bastar-lhe-hia a mão possante de seu irmão.
Alfim, tudo perdido.
Comtudo a donzella, affeita já a milhares de contratempos, não se deu por vencida.
Resolvera luctar pela salvação do mancebo, e, ou havia de conseguil-a, ou morreria ao pé d'elle.
Mas, como salval-o?
O querer é poder.
Depois de curta meditação, ergueu a bella cabeça, e manifestou nos olhos o supito contentamento que lhe ia n'alma.
Na pequena casa onde jazia o frade, existia um farricôco...
Se o vestisse (pensava ella)... se se apresentasse assim ao porteiro do Santo Officio... as portas d'aquella casa maldita ser-lhe-hiam abertas como a qualquer inquisidor...
Depois, ser-lhe-hia facil aproximar-se de Samuel...
Branca, não hesitou.
Decorridos alguns minutos, subia ella as trinta escadas da casa da Bitesga e penetrava na sala onde estava o dominico.
Apalpou... procurou... e por duas vezes se encontrou com o cadaver.
Quiz fugir de novo, mas a idéa de Samuel lhe restituiu a coragem.
Abriu então as tres restantes janellas da saleta e por effeito de um farto jorro de luz opaca, encontrou sob a cabeça do morto o negro balandrau, que se assimilhava a um enorme milhafre prostrado aos pés da presa.
Dez minutos apoz o succedido, batia um irmão negro á porta da Inquisição.
Era Branca.
Lá dentro ouvia-se de quando a quando o caminhar grave e monotono dos alabardeiros (policias do Santo Officio), de mistura com não poucos gemidos dos miseros encarcerados.
A porta abriu-se subtilmente e a donzella entrou.
Um suor frio lhe banhou a face, occulta pelo capuz do habito.
Depois, com voz disfarçada e imperiosa, ordenou ao porteiro que a acompanhasse até ao carcere de Samuel.
O velho empregado, em presença d'aquella intimativa, entendeu que tinha junto de si um dos primeiros inquisidores; e, sem fazer qualquer reparo, lançou mão de um enorme montão de chaves e caminhou na frente do irmão-negro.
Alguns minutos depois, paravam elles ao pé de uma grande casa, que servia de oratorio aos infelizes condemnados á fogueira.
Cá fóra estacionava um alabardeiro armado até aos dentes.
Penetremos dentro.
Sete ou oito desgraçados, mais palidos do que a morte, e vestidos de sambenitos, aguardavam o romper do dia para serem queimados no Rocio.
Samuel estava alli á mercê dos successos de Belem, e prohibido de privar com outra gente, que não fosse aquelles miseros.
Ser queimado ou não, dependia da morte do Soberano.
Por conseguinte, a sorte do mancebo seria horrivel, se sua irmã não fosse uma heroina.
Branca, reconheceu-o entre esta mó de infelizes, que gemiam abandonados nos cantos da prisão.
Depois, approximou-se d'elle e collocou-lhe a mão sobre um dos hombros.
Samuel, altamente desanimado, ergueu-se com presteza, persuadido tambem de que tratava com qualquer inquisidor.
A um aceno de Branca, o mancebo e o carcereiro evacuaram a masmorra, e seguiram-n'o em silencio através dos corredores.
De repente, e quando já se approximavam da sahida do Santo Officio, correu, para o grupo um outro irmão-negro que o obrigou a parar.
Branca, ficou petrificada.
Funesta estrella perseguia os desgraçados.
A memoria do dia 4 de setembro de mil setecentos e cincoenta e oito, ficou indelevelmente gravada na mente de jesuitas e inquisidores.
Faltava aiuda a estes, o caso da morte do dominico e o impenetravel mysterio que o revestia, para-lhes dar mais tratos aos espiritos irrequietos.
Debalde destacaram gente sua afim de fazerem luz no facto: O mais que conseguiram foi descobrir que o dominico fôra assassinado durante a noute!!!...
Os que conjuntamente com elle se encontraram, horas antes, face a face com os raptores de Branca, espalhavam que a morte do frade se devia á vingança dos bandidos; e confirmavam esta tôla opinião narrando o facto do roubo da donzella a que elles obstaram.
Já muito crentes d'isto estavam todos, quando um caso extraordinario occorrido no interior da Inquisição, lhes desviou as attenções para outro lado.
Samuel, tinha fugido do carcere!
Diziam os serviçaes, que, altas horas, se lhes tinha apresentado um dos do tribunal a reclamar-lhes o mancebo.
Mais tarde, -- depois d'innumeras investigações, -- era do dominio dos inquisidores que um profano qualquer tinha abusado da boa fé do carcereiro....
Quem elle fosse, só recapturando-se Samuel se poderia saber.
Pouco tardou que o pessoal disponivel da Inquisição se pozesse em movimento em procura do fugitivo.
Estava d'antemão resolvido que seria queimado, apenas cahisse nas mãos dos inquisidores.
Deixemol-os pois na sua faina desesperada, e regressemos ao capitulo anterior.
Quando o irmão-negro se aproximou de Branca e seu irmão, no momento da shbida, a donzella, -- como o dissémos -- ficou petrificada.
Pensou ella que a tinham descoberto, e que a sua obra ia cahir por terra.
Samuel, esse, estava mui longe de conhecer o pseudo-familiar.
Felizmente, para ella, taes receios dissiparam-se, quando o agente do Santo Officio lhe dirigiu a palavra:
-- Tudo perdido!... (disse elle referindo-se aos successos de Belem.)
Branca não respondeu.
Fez um gesto de comprehensão e desanimo.
Depois, o importuno caminhou e desappareceu ao longo d'um corredor.
Aberta a porta da rua, Branca e Samuel sahiram, não sem plena admiração do carcereiro, que attribuiu o facto a conveniencias do tribunal.
Os dois orphãos caminharam silenciosamente.
Samuel perdia-se em conjecturas.
Não atinava como áquella hora era arrancado do seu carcere, e sobretudo compelido a acompanhar o irmão-negro pelas ruas da cidade.
Por vezes teve idéas de fugir.
Todavia, conteve-se.
No seu espirito já estava feita a resolução de não voltar ás masmorras do Santo Officio, embora houvesse de jogar a vida.
Após alguns minutos de caminho, o familiar parou.
Samuel, parou tambem.
A lua ainda envolvia a terra no seu manto côr de prata.
O pseudo irmão-negro, não pôde por mais tempo sustentar o incognito.
Despiu o feio balandráu e abraçou-se ao mancebo.
Samuel, entre timido e estupefacto, ficou quêdo como um roble.
Depois levou as mãos aos olhos, certificando-se se dormia.
Houve então um breve espaço de silencio, alterado apenas pelo respirar offego dos dous irmãos.
A mutação d'esta scena foi pathetica, singular.
Samuel, beijando loucamente a orphã e apertando-a febrilmente contra o seio, ficaria eternamente naquella expansão d'alma, se ella o não fizesse caminhar.
Dirigiram-se á Pampulha.
Não era seu proposito continuarem n'aquella casa, porque se continuassem seriam presos fatalmente.
Durante o transito, os dous jovens contaram mutuamente o que lhes havia acontecido.
Samuel, via em sua irmã uma heroina, ao mesmo tempo que Branca via n'elle um pobre martyr.
Quando os primeiros clarões do dia começavam a apparecer, os dous irmãos davam entrada na cazinha da Pampulha.
O primeiro cuidado de Branca, foi juntar a pouca roupa que possuiam.
Depois, partiram em busca d'uma outra habitação, que facilmente encontraram.
As moedas d'ouro offerecidas pelo duque, existiam ainda intactas.
O caso da evasão de José Polycarpo d'Azevedo (um dos conjurados,) foi a origem de não poucas perseguições, e de torturas enormissimas .
Antes e depois do supplicio de Belem, as prisões de Lisboa atulharam-se d'individuos suspeitos de serem o fugitivo.
A mira nos premios offerecidos por edital regio a quem o capturasse, levou bastantes miseraveis a arrastarem aos carceres um bom numero de innocentes.
Foi uma época de terror.
Os magistrados, indifferentes ao injusto soffrimento das victimas, deixavam decorrer bastante tempo e só depois é que tratavam da justiça de cada um.
Branca e Samuel, habitavam então n'uma casa do Bairro-Alto.
Do trabalho da donzella suppriam-se ambos, visto quo o mancebo se occultava com receio da Inquisição.
A este tempo já os santos-padres haviam desistido do projecto da captura, suppondo que o orphão se havia refugiado em terras do estrangeiro.
Cuidados de mais tinham elles na tempestade desfeita que de perto rumorejava...
Viam-se de frente com o perigo de darem não pequeno contingente ao minotauro da justiça, pois que já bastantes jesuitas se achavam iniciados como cumplices no attentado contra El-Rei, e já de Roma tinha chegado um breve de Clemente XIII, concedendo licença para serem relaxados os padres implicados ao braço secular.
Valeu-lhes comtudo a falta de prova para a sua condemnação, aliás os seus ossos estalariam também sob o peso das massas movidas pelos carrascos no largo de Bolem.
Ainda assim os jesuitas não passaram sem punição:
Expulsos de Portugal em mil setecentos e cincoenta e nove, e confiscados os proprios bens para a corôa, viram depois o seu total desprestigio e a sua quéda fatal.
Sebastião do Carvalho (já então conde d'Oeiras e mais tarde marquez de Pombal), não cessava de envidar milhares d'esforços no sentido da dissolução da Companhia de Jesus.
Auxiliado por seu primo e amigo Francisco d'Almada, nosso ministro junto á Santa Sé, viu por fim coroada a sua obra, a despeito da repugnancia do proprio Ganganelli, que, com o nome de Clemente XIV, ascendeu ao solio pontificio como successor de Clemente XIII, amigo confesso dos sotainas.
E' comtudo urgente asseverar-se que o famoso breve «Dominus Redemptor» que dissolveu a Companhia, não fôra promovido apenas pelo conde d'Oeiras: A França, Hespanha e Napoles repetiram com energia os rogos e exigencias de Portugal junto á Santa Sé: e o Pontifice, em face das relações politicas d'estas potencias que se iam anuviando , foi forçado a dar o golpe desejado na congregação jesuitica.
Antes d'isto porém, e para que a perseguição se ajustasse o mais possivel com os erros e malignidades dos filhos de Loyolla, já de França os havia enxotado o duque de Choiseul; e a Hespanha e Napoles os tinha feito escoar pelas raias como cousa que empestava.
A questão dos jesuitas, levantou pois ao apogeo da gloria o energico conde d'Oeiras.
Pena foi que elle se conspurcasse no sangue de Belem, e mais tarde no do misero Malagrida, ancião e demente, que, se não fôra padre da Companhia, deixaria decerto de ser immolado á vingança do ministro .
Tamanhos canibalismos, nunca lh'os perdoará a historia e a humanidade.
Samuel, como o dissémos, vivia encarcerado na propria casa.
Os miseraveis, ávidos dos premios promettidos, denunciavam e prendiam ás cégas, desejosos d'acertar com o celebre foragido .
Como a ambição tranforma o homem em féra!
O encarceramento voluntario do mancebo, já tinha dado nas vistas d'um dos infames pretendentes do regio premio.
Por este facto rondava elle com frequencia a porta dos dois orphãos.
Uma noute, quando Branca costurava á frouxa luz de uma candea, soaram tres argoladas na porta.
A orphã estremeceu.
Samuel, receioso do Santo Officio, ficou tambem perturbado.
As argoladas succederara de espaço a espaço, e afinal a porta gemeu á força de alguns hombros, rendendo-se em seguida.
O filho de Bernardim, apercebeu-se para a defeza.
Branca pedia de joelhos á Virgem que os soccorresse.
Depois, soaram alguns passos na escada, e seguidamente davam entrada no cubiculo seis mal encarados agentes de policia, que em nome d'El-Rei intimaram o mancebo a acompanhal-os.
Samuel, em face do numero de captores, renunciou á defeza, e limitou-se a perguntar as razões porque o prendiam.
-- Na Intendencia o saberá; (respondeu um dos policias, cujo arreganho fez tremor de susto a alvenaria da casa).
O mancebo á vista da letra da resposta, ficou um pouco mais tranquillo, pois que a captura não partia da Inquisição.
A posição supplicante de Branca, enchendo de dó o mais graduado dos seis agentes, concitou-o a dar-lhe esperanças:
-- Não se arreceie, senhora (disse elle). A prisão d'este mancebo não terá valor algum, se acaso se não chamar Polycarpo d'Azevedo...
-- Oh ! não, não... (accudiu a orphã desfeita em lagrimas).
-- Perdão, senhora: E' preciso proval-o; não basta a negativa. Na Intendencia ha uma denuncia assignada, que o dá com os signaes do réu que se procura. Comtudo os carceres estão pejados de individuos, que se diz serem o foragido. Coragem, pois, e tenha esperança...
Samuel, animado em extremo com as palavras do agente, fallou por seu turno a Branca e abraçou-a ternamente.
Depois, -- recebendo das mãos d'ella uns restos de dinheiro e uma pequena trouxa com roupa -- despediram-se mutuamente.
O desgraçado já andava familiarisado com o infortunio.
Quando soaram na rua os passos do mancebo e companheiros, a pobre Branca desatou n'um pranto mudo e convulso.
Deccorrem dias, semanas, mezes, e Samuel não apparece!
Debalde a orphã pergunta novas d'elle.
Entaipado nas cadêas, ninguem o chama, ninguem o interroga.
Eram muitos os presos a inquerir, e a justiça, vergada ao peso do desanimo, encarregou os alvares carcereiros de massacrarem os reclusos até elles confessarem ou não o que as justiças pretendiam!!!...
De sorte que os infelizes, porque nunca se prestavam á desejada confissão que os levaria ao cadafalso, viam passar o tempo atravez das grades da prisão, sem esperança de soltura.
O século XVIII, se abunda em feitos explendidos, tambem foi farto de vilezas.
Branca começou a ter medo de que o seu pobre irmão succumbisse ao sofrimento.
Aquelle silencio prolongado (nascido da incoramunicabilidade dos reclusos e da vigilancia dos guardas), era-lhe motivo sobejo para similhantes receios.
Alfim, a desgraçada creança, rendida ao trabalho e soffrimento, cahiu doente.
N'aquella solidão extrema, onde lhe faltava o pão e a luz, sentia que se lhe aproximava o final momento.
Milagrosamente resistia á morte.
Se lhe destruissem a tenue esperança de ainda ver Samuel, cortar-lhe-hiam assim o debil fio da vida.
Comtudo, Deus enviou-lho um Ceryneo:
Uma pobre familia, que vivia perto, encarregou-se de tratar a infeliz.
As poucas roupas que lhe restavam foram vendidas para o tratamento, e em pouco tempo já não havia um ceitil.
Era um quadro de miseria.
Felizmente uma noticia agradavel, que andou de bôcca em bôcca, arrancou do leito a orphã e deu-lhe as forças precisas para triumphar da doença:
Dizia-se que as justiças de Hespanha haviam prendido o regicida, e que os innocentes reclusos eram postos em liberdade.
Branca esperou por largo tempo o regresso de Samuel, mas infelizmente o seu desejo nunca foi realisado.
Decorridos já eram nove mezes depois do relatado, quando chegou aos seus ouvidos um annuncio atterrador:
Nas prisões de Lisboa tinha fallecido um preso de nome Samuel, o qual, momentos antes de fallecer, se confessára a um frade Arrabido.
A donzella ficou surprehendida.
Ainda assim não quiz capacitar-se da morte de seu irmão.
Era-lhe necessario illudir-se a todo custo.
Uma voz desconhecida lhe segredava que era vivo e que era breve o abraçaria.
Que importava que nas prisões de Lisboa houvesse fallecido um mancebo d'aquelle nome?
Pois entre os presos, que eram tantos, seria crivel que só o orphão se chamasse assim?
Todavia a donzella, ardia em mil desejos de apurar toda a verdade.
Mas como conseguil-o, se os reclusos não podiam communicar, e se o cadaver já fôra dado á sepultura?
N'esta pugna d'espirito, Branca teve uma idéa:
Procurar o frade Arrabido, que assistira ao passamento do recluso.
No convento da Serra, tarde ou cedo realisaria o seu desejo.
Porém, como introduzir-se alli sem offensa da sua honra?
Comtudo, esta nova contrariedade não a podia vencer.
Quem foi heroina a ponto de zombar do Santo Officio e d'arrancar-lhe o innocente, não devia trepidar nunca ante a pequena difficuldade que naturalmente se lhe exhibia.
Irei!... (disse ella resolvida a caminhar).
E caminhou.
Quarenta e oito horas após o facto referido, a communidade dos franciscanos d'Arrabida recebia em seu gremio um novo irmão-leigo, que deveras apreciava por seu saber não vulgar...
Regressemos ao capitulo primeiro d'esta historia.
Frei José, seguindo o rastro luminoso da lanterna dos bandidos, conseguiu acompanhal-os até a gruta, sem que delles fosse visto.
Por seu turno os malfeitores, caminhando sempre a muito custo por entre sebes e penedias, aproximaram-se alfim do desejado abrigo.
-- Por Satanaz!... (bradou um d'elles). Este buraco é por força o caminho que desemboca no inferno!...
Uma gargalhada impia, brutal, coroou a graça do assassino.
Frei José, occulto nas sombras, ouvia os impios e enviava a Deus algumas preces.
-- Companheiros (exclamou um segundo malfeitor): Estendamos as nossas capas e juntemo-nos sem demora, quo este frio é de matar.
Os bandidos obedeceram.
Cá fóra o santo monge, suspendeu a reza e soltou um ai abafado, mal o sicario fallára.
Depois, ficaram todos em silencio.
O franciscano quiz entrar na gruta, mas conteve-se.
Por sobre a sua cabeça reinava ainda a tempestade.
O vento, continuando a invadir a lapa, impedia o somno dos assassinos, que se expandiam em horrendas imprecações.
-- Vamos lá... (disso aquelle a quem os outros intitulavam de capitão): Quem nos mata o tempo com uma historia?... Se ahi estivesse o frade, seria elle o compelido...
-- Sêde vós, sêde vós... (bradaram os tres em côro).
-- Muito bem (respondeu o capitão). Vou dizer-vos o meu romance. Não vos admireis se n'esta face crestada pelos soes das serranias, apparecerem por vezes algumas lagrimas. Essas poucas que possuo, pertencem á memoria dos que na vida me foram caros. E' por ella que as reservo e que as hei de reservar. Para a vil sociedade que me atirou á deshonra e que collocou no meu espirito a tréva e a descrença, -- para essa o meu punhal e a minha raiva.
O assassino calou-se.
Na lapa reinava um silencio tumular.
Cá fora, o frade, com a respiração oppressa e dando passos machinaes na sua frente, ora levava a mão aos olhos, ora a levava ao coração.
O sicario rompeu o silencio, alterado tão sómente pelos rugidos do vendaval.
-- Amigos (proseguiu elle): Houve um homem que creado na abundancia e educado com esmero, viu um dia rolar nas fauces da sepultura seu velho pae, que lhe era arrimo. Esse velho honrado, esse martyr da dignidade, preferiu as privações á opulencia grangeada com desdouro da nobreza de seu caracter. Morreu pois ralado de desgostos, legando a miseria a seu filho e com elle uma pobre creança sua filha também.
O bandido curvou a cabeça e calou-se por instantes.
Os tremuluzentes clarões da lanterna, deixavam vêr-lhe nos olhos duas lagrimas como punhos.
Depois, continuou:
-- Eram dous desgraçados que se viam a sós no mundo, recebendo por herança o bom nome do seu pae. Um dia o mancebo, apertado pela fome, sahiu d'um triste cazebre sem luz nem ar, em busca de trabalho que os furtasse ás privações. Caminhou... bateu a todas as portas offerecendo o seu suor em troco d'alguns vintens, e não foi ouvido... Debalde fez saber que o torturava a fome... que era honrado... o que tinha uma desventurada irmã a sustentar, que, como elle, pugnava com a miseria...
«E nem supplicas, nem lagrimas, demoveram os malvados que o escutaram!!!...
«Depois, regressou triste e desalentado á pobre casa. Sua irmã, semi-prostrada pela fome, esperava-o com umas magras sôpas que ganhára durante o dia. O mancebo comeu-as de mistura com farto pranto. Em seguida, sentiu-se rendido ao cansaço e adormeceu profundamente.
«Mais tarde, quando se ouviam as ultimas notas da musica d'um festim, despertava elle d'um horrivel pesadêllo e entregava-se desanimado á contemplação do seu futuro.
«Sua irmã, pallida como a morte, dormia junto d'um labor. A' sua beira ardia uma luz melancholica, que dava ao cazebre um aspecto de catacumba.
«De facto, morava alli a morte lenta, -- essa morte horrivel, traiçoeira.
«Veio o dia. O mancebo sahiu de novo em busca de trabalho. Animára-o ainda a esta nova peregrinação as palavras d'uma santa... as palavras de sua irmã. A esperança em Deus, que se lhe exhaurira, voltára de novo ao seu espirito, ao som magico d'aquellas exhortações.
«Caminhou pois para o seu Calvario, levando por cruz a privação e por Ceryneo os consolos da infeliz. Illudira-o ainda a sua esperança.
«Algumas horas depois, hesitava entre o roubo e o suicidio. Outra vez a recordação da donzella lhe serviu de lenho salvador entre estes novos escarceos da sua vida amargurada.
O bandido curvou a cabeça e limpou os olhos.
Cá fora o franciscano de joelhos e mãos postas remettia ao céu algumas preces ungidas d'ardente pranto.
A tempestade proseguia rugidora.
O assassino continuou:
«-- Resignou-se ainda. Iam em caminho do precipicio as suas crenças... a sua fé. Pedia ao céu amparo que o deffendesse do crime, e o céu respondia-lhe com o despreso. Elevava a Deus os seus lamentos, os seus gemidos, e Deus enviava-lhe em premio d'este holocausto, mais torturas, mais espinhos.
«Preso na Inquisição... n'esse antro maldito onde se queimava a humanidade em nome do Jesus, appareceu-lhe uma noute a pobre irmã a dar-lhe a liberdade com risco da propria vida!... Foi na vespera do dia em que o desgraçado tinha de ser lançado na fogueira, sendo o seu crime a innocencia!...
«Pareceu-lhe um sonho aquella angelica apparição.
«O mancebo, já livre das garras dos seus verdugos, quo se trocaram pelos braços amigos de sua irmã, olhava em derredor de si e via em tudo inquisidores e carrascos; -- escutava o que se passava na natureza, e ouvia no proprio murmurar do Tejo, no ciciar da briza e até no gorgeio das avesinhas, como que o gemer dos potros, o arrastar dos grilhões e o estalir das fogueiras!...
«Teve de se occultar dos abutres da fé, e procurar para si e sua irmã um abrigo, um mausoleo. Sepultados em vida largos dias, -- eis que o mancebo é preso pelas justiças de El-Rei e obrigado a jazer em prisões infectas, só porque o seu rosto se assimilhava ao d'um triste fugitivo, que devia ter sido morto em Belem como foram os seus coréos.
«Um dia, abriram-se-lhe as portas da cadeia depois d'enorme soffrimonto. Veloz como a scentelha, correu ao pobre albergue em busca de sua irmã. Entrou, mas não a viu!... Procurou-a por toda a parte, mas tudo em vão!... Pediu ao ceu que lh'a mostrasse, mas o ceu despresou os seus pedidos.
«D'aqui á descrença, e da descrença á perversão, não ia nada...
«E o infeliz, que Deus e os homens perverteram, é hoje uma fera sem rival, que soffre tratos do inferno se um dia passa que não veja tinto o seu punhal em sangue humano.
«A sociedade, assim o quiz, assim o tem.
«Maldita...
«Negou-lhe o pão; perseguiu-o ; torturou-o; desfez-lhe as crenças uma a uma, e por fim assassinou-lhe a pobre irmã!...
«Oh!,.. minha Branca!... minha Branca!...
E o assassino ergueu ao céu uns olhos blasphemos como os de Ajax.
Depois, escondeu o rosto entre as mãos e ficou a soluçar.
Os companheiros contemplavam-o commovidos, n'um profundo recolhimento.
O frade, esse, dava livre curso ás suas lagrimas.
Depois, penetrando vagarosamente na gruta, parou em frente do malfeitor.
O bandido, ao vel-o, ergueu-se de um pulo, levou a mão convulsa ao punhal e retumbou:
-- Infame... hypocrita... treme. Comecei já a grande obra do exterminio da tua raça. Este braço, que estalou ao aperto dos vossos potros, pagar-vos-ha com usura o muito que vos deve. Agora serás tu: Amanhã, depois, e sempre, serão todos os que o inferno me enviar...
E o assassino -- excitado e terrivel, deu dois passos para o frade.
-- Samuel!... Samuel!... (bradou elle amedrontado).
O bandido maravilhado e confuso pela acção magica d'aquella voz, ergueu do chão a lanterna e abeirou-a do franciscano.
Um grito eloquente, indiscriptivel,-- derradeira expressão da surpresa, escapou dos labios do malfeitor.
Poucos instantes depois, assassino e monge unidos em estreito amplexo, pranteavam mutuamente.
Os outros circumstantes assistiam silenciosos a esta scena, como se fossem de chumbo.
CONCLUSÃO
N'uma das pobres e acanhadas cellas do mosteiro de S. Francisco d'Arrabida conversavam a meia voz o monge e o bandido, no dia que succedeu ao dos factos referidos no capitulo anterior.
Escutemos o dialogo:
-- Samuel, meu pobre irmão... (dizia o frade) -- sou feliz porque te encontro, quando te julgava um cadaver. Se até aqui a nossa vida tem sido cheia de perseguições e soffrimentos, diz me Deus pelos labios do coração que d'ora ávante fruiremos mais ventura. Oh!... mas que a negra recordação de teus crimes te inspire o arrependimento.
-- Sim, sim... Branca. Eu me arrependo e peço a Deus perdão por não ter sabido resignar-me com o meu destino. E Deus ha de perdoar-me porque é bom e misericordioso. Esta mão mil vezes tincta no sangue das minhas victimas, pode e ha de purificar-se no Jordão da penitencia.
-- Oh!... sim... sim, Samuel: Busquemos um logar ermo onde possamos viver serenos em serviço do Senhor. Partamos já, meu irmão, e que o exercicio do bem nos restitua a tranquillidade da consciencia.
Depois do anno de mil e oitocentos e trez ainda viviam n'um dos pontos mais escusos da famosa serra d'Ossa, dous velhos ermitões a quem os povos d'aquelles sitios veneravam pelas suas muitas virtudes.
A sua principal tarefa consistia em curar os enfermos que profusamente os procuravam.
Chamavam se elles Branca e Samuel, cuja santidade era questão indiscutivel vinte leguas em redor.
FIM
Depois do terramoto de mil setecentos e cincoenta e cinco, El-rei D. José fez construir no local onde hoje se encontra o magestoso paço d'Ajuda um extenso barracão para habitação provisoria da familia real. Este barracão foi pasto das chammas no começo do actual seculo.
O palacio do duque d'Aveiro, cujo chão foi salgado e arrasaco em virtude da sentença de 12 de janeiro de 1759 --, occupava todo o espaço comprehendido entre o chafariz que se encontra junto ao largo dos Jeronymos, e a travessa que fica proxima da calçada do Galvão. Sobre o terreno salgado se levantou uma memoria para assignalar o crime e punição do duque. Esta memoria tem a forma d'um cylindro de cinco metros d'alto, em cuja extremidade inferior se lê a inscripção seguinte:
Aqui foram arrasadas e salgadas as casas de José de Mascarenhas: exautorado das honras de duque de Aveiro e outras. Condemnado por sentença proferida na suprema junta d'inconfidencia, em 12 de janeiro de 1759. Justiçado como um dos chefes do barbaro e execrando desacato que na noute de 3 de setembro de 1758 se havia commettida contra a real e sagrada pessoa de D. José I. N'este terreno infame não poderá edificar-se em tempo algum.
Tem graça esta tôla prohibição.
Hoje vê-se o chão salgado povoado de pequenas casas, por consentimento da camara de Belem a quem o mesmo chão pertence, tendo estado abandonado durante o reinado de D. Maria I.
Historico.
Familiares do Santo Officio. Usavam uns negros farricôcos (especie de balandrau), que os tapavam desde a cabeça aos pés. Foi da côr das vestes que lhes resultou o nome.
A inquisição foi introduzida em Portugal no reinado de D. João III, a pedido d'este monarcha, com o fim de fazer opposição ao lutheranismo, e de reprimir os excessos dos marranos ou christãos novos. Foi um tribunal sanguinario, cujo principal fim mais consistia em realisar desejos e caprichos peccaminosos do que castigar os inimigos da religião. O primeiro auto de fé em Portugal teve logar em 1540. Os religiosos da ordem de S. Domingos foram sempre os principaes empregados d'aquella horrenda casa. No reinado de D. José, foram abolidos os barbaros supplicios das provas e fogueiras, bem como o direito dos sequestros. Desde então o infame tribunal ficou anemico, moribundo. Depois da constituição de 1820, o povo entrou nlaquella casa hedionda e terrivel e, soltando os poucos presos que existiam ainda nos sombrios carceres, destruiu instrumentos de tortura, desmoronou prisões e por pouco a não incendiou.
Estáos, segundo Duarte Nunes de Leão e outros escriptores antigos, significava estalagem, hospedaria, etc. É substantivo desusado presentemente.
Historico.
No bairro de Belem comprou D. João V por grandes quantias diversas casas de campo, para de todas formar uma regia residencia. Com effeito, pelo artefacto da principal, sita no largo de Belem, se deprehende haver sido irregularmente edificada por elle e por seus successores: entretanto, contém a melhor collecção de pinturas de todo o reino, assim como um espaçoso jardim bem arvorisado e uma formosa e vasta sala de manejos de cavallos, ou dos picadores da casa real. Do lado do sul, tem o largo e o bello caes de Belem. Tambem continha o conhecido pateo dos bichos ou receptaculo de feras vivas pertencentes ao estabelecimento do Museu da Historia Natural. (Portugal e seus dominios).
Além d'este collegio, os padres da Companhia possuiram outros em Lisboa.
Actual Atterro da Boa Vista, construido n'este seculo. Não ha muito que estava substituido aquelle formosissimo caes por uma praia d'areia lodosa, juncada de pequenas embarcações, que os catraeiros arrastavam na vazante das marés. Esta praia foi um dos sitios mais perigosos de Lisboa, em razão do grande numero de malfeitores, que se acoutavam alli.
Era situado na parte oriental no largo do Rocio. Foi destruido pelo terramoto de 1755.
Na manhã do dia 13 de janeiro de 1759, pelas 6 horas e um quarto, aproximadamente, começou no nosso horisonte um eclypse da lua, que terminou ás 8 e meia horas da referida manhã.
Roberto Francisco Damiens, nascido em Tieulloy, e filho d'uma modesta familia, vendo o cahos a que o cynico e corrupto Luiz XV reduzia a França, encheu-se de justa indignação e foi-se ao encontro d'elle a Versailles, com o intuito de o concitar pelo medo a trilhar melhor caminho.
Com effeito no dia 5 de janeiro de 1757 armando-se d'um pequeno canivete d'aparar pennas, conseguiu picar levemente a região dorsal do monarcha.
Preso Damiens, passou por tormentos inconcebiveis durante o longo tempo da prisão, até que em 28 de março d'aquelle anno foi horrivelmente suppliciado.
Principiaram os algozes por lhe queimarem, por seu turno, os differentes membros do corpo, servindo-se de ferros em braza e materias inflammaveis; esquartejando-o depois d'algumas horas d'indizivel soífrimento.
Não obstante tamanho canibalismo, o supplicio de Belem excedeu este em monstruosidade, desde que o compeliram uma pobre mulher -- mãe e esposa -- a percorrer os quatro angulos do patibulo onde lhe eram mostrados e explicados os differentes instrumentos de tortura, que lhe haviam de arrancar a propria vida e as de seus filhos e esposo. E' a nossa opinião.
Dous paus cruzados em fórma de X.
Historico.
Historico.
A sentença proferida pela suprema junta d'inconfidencia, assignada pelos tres secretarios de estado Sebastião José de Carvalho e Mello (!!!) do reino; D. Luiz da Cunha, dos estrangeiros e guerra; Thomé Joaquim de Costa Côrte Real, da marinha e America; -- e bem assim pelos desembargadores Pedro Gonçalves Cordeiro Pereira; João Pacheco Pereira; João Marques Bacalhau; Manoel Ferreira de Lima; Ignacio Ferreira Souto, e José d'Oliveira Machado, condemnou os fidalgos e plebeus a que nos temos referido n'este livro, pela seguinte fôrma:
D. José de Mascareuhas, duque d'Aveiro : -- «Exautorado das honras e privilegios de portuguez, de vassallo e creado; degredado da ordem de S. Thyago de que foi commendador; e relaxado á junta secular, para que, -- como um dos tres cabeças ou chefes principaes da infame conjuração, e do abominavel insulto que d'ella se seguiu, -- seja levado com baraço e pregão á praça do cáes de Belem e que n'ella em um cadafalso alto, seja rompido vivo, quebrando-se-lhe as oito cannas das pernas e dos braços, etc. ; findo o que será o seu corpo reduzido a cinzas. As suas casas serão demolidas e arrasadas, as suas armas picadas e seus bens confiscados para a corôa, etc., etc.
D. Francisco d'Assis, marquez de Tavora : -- «Condemnado na mesma pena, como cabeça da conjuração convencido pela sua mulher. Nenhuma pessoa, desde a data da sentença, poderá usar do appellido de Tavora sob pena de perdição de bens, etc.
D. Leonor de Tavora, marqueza d'este titulo: «Degolada e queimada depois.
Luiz Bernardo de Tavora, José d'Athouguia, João Miguel, Braz José Romeiro e Manoel Alvares: «Vide duque d'Aveiro e D. Francisco: exceptuando-se por parte dos tres ultimos, o perdimento de grandezas e previlegios, que não tinham.
Antonio Alvares Ferreira e José Polycarpo de Azevedo: -- «Queimados vivos, bens confiscados, etc.
Historico.
O padre Gabriel Malagrida, tendo sido accusado de cumplice na tentativa de regicidio, bem como os jesuitas João de Mattos, João Alexandre e outros, foram absolvidos por falta de prova; vindo depois aquelle a ser queimado em pleno Rocio, pelo crime de heresia!
Sebastião de Carvalho, -- inimigo figadal da inquisição, -- serviu-se d'ella para supplicio do pobre velho! O seu fim foi desprestigiar aos olhos das massas fanatisadas as doutrinas jesuiticas, de que o padre Malagrida era apostolo fervoroso.
Os assassinatos de Belem, do padre Gabriel, dos sediciosos do Porto, de João Baptista Pele, e muitos outros, enchem de horrendos capitulos a historia do estadista insigne, onde brilham outros que o elevam e eternisam.
José Polycarpo d'Azevedo, nunca foi preso. Depois da morte de D. José appareceu em Lisboa e crê-se que morrera no hospital, durante o reinado de D. Maria I.
Alguns individuos parecidos com José Polycarpo, foram presos e perseguidos em tempo do marquez de Pombal, suppondo-se que fossem elles o foragido.