OLIVEIRA MARTINS
FEBO MONIZ
ROMANCE HISTÓRICO PORTUGUÊS
DO SÉCULO XVI
PREFÁCIO
DE
F. A. D'OLIVEIRA MARTINS
LISBOA
GUIMARÃES EDITORES, LDA.
1988
Eram contados os séculos de existência do ciclo gótico. O feudalismo estrebuchava decrépito, porque a aristocracia militar prestável nos tempos da conquista, era odiosa na paz. As suas demasias, além de enfastiarem o rei, incomodavam o povo, que com alguns séculos de vida municipal se havia feito homem. A par disto a igreja em campanha permanente durante toda a Idade Média contra o poder civil, seu rival sentia exaurirem-se-lhe as forças, para prosseguir no rito austero da antiguidade. Sob o exterior severo, com que impunha respeito aos adversários, cega veneração as massas, a igreja militante estava roída de podridão. O cilicio, a sombra das catedrais, a nudez e severidade da ogiva mascaravam a orgia, o veneno, a crápula, o assassinato. O crime, na sua mais hedionda manifestação, soltava os cabelos desgrenhados e com eles varria os átrios e as salas dos paços papalinos. Eram as saturnais do Cristianismo.
Urgia uma transformação. Levantava-se em Roma um destes homens, que são colossos. Bizâncio derramava pelo mundo os tesouros de erudição antiga. Apareciam a luz as maravilhas de tempos quase ignotos. As tradições clássicas deslumbravam tudo: Leão X mede as forças, convoca os reis; e a igreja e a sociedade vão retemperar-se nas instituições do passado. Sela-se a paz entre Deus e César. Ambos se sentam sobre o trono, unidos pelo prineipem dat Deus.
Na igreja substitui-se à austeridade, a doçura; à singeleza a profusão. Tomam as cerimónias um aspecto esplêndido revestem-se de uma solenidade quase pagã, que contrasta com a severa nudez da igreja gótica. Aos templos sombrios, em que os coros de frades macilentos, acompanhados pelos sons do órgão, escondido em profunda nave, onde só os reflexos de lâmpada fúnebre rasgam fracamente o véu impenetrável da sombra, -- substituem-se a luz transbordando, as cores garridas, as flores, os instrumentos, os fatos de púrpura, ouro e diamantes. Era a religião vitoriosa, elevada ao mando omnipotente, sentada com os reis nos tronos, vestindo nas festas do triunfo as clâmides cesáreas.
No império a revolução, derrocando pela base as instituições góticas, esmagou aos pés do trono o feudalismo e os concelhos. Aquele, velho, corrupto, para quem a morte era inevitável. Estes, moços, fortes, contendo em si o embrião de todas as liberdades, o gérmen de toda a força e de toda a riqueza. O clássico aniquilava na política e na arte a feição nacional de cada país. As tradições do império, e a ambição da monarquia reclamavam o poder completo, e por isso o feudalismo e os municípios tinham de morrer do mesmo golpe.
Mas a restauração da igreja abriu mais fácil campo aos desvarios do clero. O crime excitado pelos prazeres da nova era de maravilhas, riquezas, e esplendores, alargava os braços, crescia, ia engrossando caudalosamente, correndo entre as margens doiradas do trono e do altar. Com a depravação subia a ferocidade, perseguindo quem ousava protestar contra ela, em nome do mais sagrado de todos os direitos, o da liberdade da consciência. Ao mesmo tempo a centralização abso- luta do poder no trono degenerava em opressão e tirania. Assim enquanto o rei ia agrilhoando os braços, a intolerância dos omnipotentes sardanapalos do clero ia agrilhoando os lábias. Submissão e silêncio, eis a lei de ambos. Unidos no mesmo empenho ao império dizia o papado : jugamus dexteras et gladium cum gladio copulemus.
Não obstante, o progresso caminhava sempre; e os mesmos séculos, que viram a monarquia pura levantar-se ao lado da intolerância religiosa, viram surgir a imprensa. Enquanto Leão X talhava o manto pelo molde dos do império romano, enquanto se levantava uma montanha de pedra chamada o Vaticano, para simbolizar a nova soberania de Roma; estupenda ideia, que só o génio era capaz de vazar em pedra; enquanto, sob um céu perenemente sereno e azul, os pintores, os escultores, os arquitectos desenterravam todas as maravilhas esplêndidas das eras clássicas, o povo, esmagado havia pouco, dobrada a cerviz pela tirania da igreja e do rei, o povo, abraçado às suas santas tradições de liberdade municipal, aprendendo a avaliar os homens, que o deslumbravam pelo poder e ainda mais pela monstruosidade; o povo, soltando o primeiro grito de sedição e guerra na Reforma, pre- parava, com a emancipação da consciência a manifestação terrível, que séculos mais tarde havia de julgar e condenar todos os crimes do passado.
Interrupção na marcha do progresso, cuja alavanca é a liberdade, a Renascença, esmagando-a, estremecia logo no berço pelos gritos da Reforma, para acabar às mãos carregadas de raios dos revolucionários de 89.
Em Portugal a execução dos duques de Bragança e Viseu, trágico episódio da luta entre o rei e a nobreza, é a Renascença na política; a embaixada de D. Manuel a adesão formal ao novo império de Roma; Santa Maria de Belém, Ferreira e Sá de Miranda a Renascença na arte.
O princípio absoluto, a absorção da liberdade pela autoridade, o governo de todos por um, achou em D, Manuel um virtuoso e são carácter. A família teve um patriarca. Mas já a esse tempo a intolerância religosa baixava o seu voo terrível sobre Portugal, encetando na perseguição israelita o primeiro passo para o vasto caminho, que havia de percorrer depois, João III, educado nos princípios puros da nova lei religiosa e política, foi digno filho deles. -- Ao despotismo em todo seu terrível fulgor aliava-se a intolerância religiosa alargando as garras de um canto a outro do país e seus vastos domínios. Juntai a isto a sociedade entorpecida por tal religião e por tal política, corrupta e fraca pelo ouro das índias e pela sua ocupação militar permanente, e tereis o verdadeiro quadro da herança, que o filho de D. Manuel deixou a seu neto.
Dizei-me agora, que educação poderia dar sociedade assim ao rei infante; lembrai-vos, de que os educadores eram pagos por Castela, para formarem ao rei um carácter tal, que breve lhes largasse nas mãos a cobiçada herança; e pensai se a queda de Alcácer Quibir é um destes sucessos, que se chamam providenciais, porque a ciência lhes não descobriu ainda as causas; -- ou se se pode julgar um aconte- cimento natural, lógico, corolário dum facto vivo, duma destas tempestades terríveis, que levam anos a formar, e quando estalam, destroem, esmagam, aniquilam: facto quádruplo, que se denomina: -- intolerância religiosa, -- despotismo mo-nárquico, -- ocupação das índias, -- e por último, como incidente, ambição castelhana.
A aclamação de D. Henrique foi uma lúgubre festa: o rei personalizava a nação; com a morte dele a herança caía em disputa, e Portugal não era então país, que, como fizera já, escolhesse para si um rei e o sustentasse.
O filho de Carlos V apressou-se a cativar a simpatia dos portugueses, intervindo no resgate dos prisioneiros de África, e ao mesmo tempo mandou Cristóvão de Moura dar os pêsames ao Cardeal e preparar o campo para a contenda, que ia empenhar-se. D. Henrique prometia pouca duração. Era doente, decrépito, odiento, arrebatado, medroso e inconstante; fraco rei em qualquer tempo, desgraçado na época em que subiu ao trono. O seu reinado não impediu, não alterou, antes talvez apressou as trevas medonhas da noite de sessenta anos, que devia cair sobre o país. O cardeal-rei aterrou-se com as intimidações do emissário de Filipe II; odiava com violência o Prior do Crato, amava extremosamente a duquesa de Bragança; mas o medo venceu o amor.
Eram os três os principais pretendentes da numerosa lista (na qual o Santo Padre também inscreveu o nome), dos que ambicionavam o cadáver do potentado do Ocidente.
Filipe II, ao mesmo tempo que impedia por meio dos seus embaixadores, que o Cardeal cedesse aos pretendentes nacionais, e muito especialmente à duquesa de Bragança, de quem sobre todos receava, ia comprando, comprando pagando a peso de ouro o merecimento absoluto, o merecimento relativo, as exigências abdominais, de cada um, que se vendia. E vendiam-se todos.
Dominado pelos embaixadores castelhanos, D. Henrique, a quem a consciência forçara à convocação das Cortes, assegurava-lhes o voto delas, e, no louvável intento de cumprir a sua promessa, violentava as eleições; anulava-as, quando o eleito lhe não convinha; perseguia tenazmente os poucos, que conservavam ainda nas veias alguma gota de sangue puro. Não obstante porém os seus esforços, se o Clero e a Nobreza se confessaram vendidos, o Povo não o serviu, e se não teve força para sustentar o edifício, que desabava, não se manchou assentindo ao iníquo concerto.
Entre os procuradores do povo avulta a figura de Febo Moniz, como um destes clarões esplêndidos, que o sol despede morrendo.
Foi esse o homem, que escolhi para herói deste romance. Foram estas a época e a sociedade, que intentei vivificar, pondo-as em cena.
Simbolizar, não só no pensamento geral, como no andamento e desenlace do enredo, o carácter dominante de uma época; fazer-lhe sobressair as suas máculas e a sua glória, as suas sombras e a sua luz; fazer enfim a crítica de uma sociedade; é, creio, o princípio exacto do romance histórico.
Dar aos personagens verdadeiros os traços, com que a história os desenha, sem mais arrebiques, sem mais ornatos, singelos na virtude ou no vício, na grandeza ou na pequenez; -- dar aos personagens de fantasia formas, feições e cores do tempo, fazendo representar neles os diversos grupos, as diversas crenças, em que a sociedade possa estar dividida, é, creio também, o direito caminho, para se chegar ao fim de tal género de trabalhos literários.
Uma obra vazada dentro destes moldes, quando o escritor é tão elevado como o princípio, é um livro bom.
O estudo da vida doméstica, assim como a relação dos episódios, mais ou menos extraordinários, referidos pelas crónicas, devem ser para o romance histórico simplesmente um me o de atracção e interesse, porque os homens em geral se prendem sempre a tudo o que é fora do comum, porque as crónicas, tantas vezes mentirosas, respiram poesia, formam a parte legendária da história dos povos; -- mas nunca, podem formar por si só o assunto do romance, porque ele se me afigura dever ser a expressão ideal da ciência histórica, a vivificação de uma época, cujas tendências, cujos usos e constituição social ela estudou e descobriu.
A literatura, província da arte, como a ciência, como a política, é um instrumento de organização e aperfeiçoamento social; a arte pela arte, é absurdo, e corrupção.
A arte é braço, a sociedade é corpo.
A literatura, que tende a ensinar, a corrigir, a literatura útil; aquela que consigo leva o facho de luz intelectual, que rasga as trevas, e, como o sol, faz surgir o dia, aquela que guia e impele a sociedade para o seu estado perfeito físico e moral -- essa é pão do espírito, que vivifica, alimenta, corrobora.
A que não fala à razão, mas só ao sentimento (a que fala aos sentidos não é digna de menção) tinha lugar na mão dos menestréis e trovadores, era apropriada às trevas intelectuais da Idade Média, não vinha fora de lugar na Renascença, ficava bem. à sociedade corrupta e idólatra, não destoa entre as pompas sumptuosas, o sensualismo desenfreado das cortes de Luís XIV e D. João V; mas agora, que se abrem os esplêndidos peristilos do templo do futuro; agora, que o poeta de fâmulo na Idade Média, de áulico na Renascença, se tornou homem; agora, que a sociedade se reconhece rei e reclama da religião -- caridade, da política -- pão, da ciência e da arte -- luz!... agora tal literatura é absurda. Hoje pode ser aplaudida; pode brilhar com o esplendor efémero duma estrela cadente, para amanhã morrer, mas é como um destes manjares deliciosos ao paladar, que não alimentam o corpo, antes destroem o estômago e enfraquecem o sangue.
O verdadeiro poeta, o homem, a quem a natureza dotou com a perfeição do sentimento ; -- o verdadeiro pensador, aquele, a quem deu a razão mais esclarecida; -- reunidos num só corpo: eis o que é o génio.
Retraí o olhar para os monumentos literários, que têm fulgurado e fulgurarão sempre através dos séculos, e, do que é mais, das transformações radicais das aspirações das sociedades, e dizei-me, se não vedes em todos o poeta dar o braço ao pensador, e o livro, reproduzindo o pensamento, a ambição, a crença de sociedades diferentes, ser ao mesmo tempo manifestação social e artística, ser uma flor e urn fruto, um perfume e um alimento.
Lembrai-vos também, de que a literatura será para os vindouros a expressão artística dos sentimentos da nossa época; porque as outras províncias da arte, a escultura, a arquitectura, a pintura, pode afoitamente dizer-se, vivem hoje só pelo espírito de imitação servil dos modelos e escolas antigas; e assim vegetam, e não podem existir doutro modo, se uma nova escola, inspirada pelos pensamentos sociais modernos, não vier substituir as antigas (não estaria para a pintura o embrião desta escola na flamenga, de que Rembrandt é patriarca?) exactamente como sucedeu na literatura; porque é passada a época própria de cada uma delas: -- assim como a estatuária grega era a expressão ideal do culto da forma dos pagãos, assim como a arquitectura gótica a do ascetismo cristão da Idade Média, assim como a pintura a do misticismo sensual católico da Renascença -- assim a literatura será a da sociedade da revolução.
E da elevação desta província da arte a expressão do pensamento moderno pode deduzir-se mais uma evidente manifestação da ideia socialista do século XIX; porque as belas-letras não podem ombrear com as belas-artes na facilidade de alcançar o fim da arte -- a ilustração.
Fazei pois do livro o instrumento, o guia, no caminho do progresso; fazei com que ele contribua para a perfeição: o reinado da justiça e da verdade, da ciência e da consciência; aspirações da sociedade de hoje e seu futuro, mais ou menos remoto e sereis beneméritos, verdadeiramente grandes!
Onde eu fui! e tudo para falar dum pobre escrito, que não paga talvez o tempo, que se consome lendo-o! mas a verdade é, que, o que escrevi, pensei-o, e do pensamento nasceu o livro.
Afigura-se-me ele como um destes fidalgos, que de si nada prestam, para nada valem, mas a quem o berço deu títulos, brasões, riquezas e honras.
Se a benevolência do leitor lhe permitir o correr as páginas destes volumes avaliará o modo, porque pretendi pôr em prática a doutrina expendida; verá quão grande distância vai do pensamento ao desempenho, muito maior por certo, do que se o pensamento fosse ruim ou mesquinho.
Valha-me o atrevimento!
Lisboa -- Maio, 1866.
O. M.
(^) Era em 2 volumes ai.* edição desta obra. -- N. do E.
Por uma fria manhã de Inverno, em que, num céu azul puríssimo, o sol brilhava esplêndido, estavam dois rapazes conversando animadamente na praça, que se abria em frente dos reais paços de Almeirim. Era o ano 1580, o mês Janeiro, o dia 11. Remoinhava o povo pelas quelhas tortuosas e escuras da vila, e falava cruzando-se animado; velhas e moças descerravam as estreitas gelosias e adiantavam as cabeças, para indagarem, o que ia pela rua; as faladoras gralhavam de janela para janela, de porta para porta, interrogando quem passava; as sisudas e devotas cerravam cuidadosamente os postigos, persignando-se. Estranho burburinho!
Dos dois rapazes, que conversavam, era um alto e bem talhado, bem vestido e arrogante; o outro um tanto mais baixo, mais modesto no trajar, menos orgulhoso de aspecto. O primeiro chamava-se D. Alonso Domingues, o segundo Fernão da Silva; aquele era castelhano este português. Conheçamo-los.
O castelhano era esbelto; louros cabelos em anéis lhe caíam até a nuca; tinha a pele branca e pálida, os beiços rosados, os olhos azuis, mas azuis vivos e expressivos; a testa alta e bem talhada, o nariz aquilino, a mais bela forma de narizes, que a natureza inventou; farto bigode da mesma cor do cabelo lhe assombrava os lábios, e uma pêra comprida acabava graciosamente o rosto. Era airoso de maneiras, como de quem usa a boa sociedade e dela conhece as regras. O seu vestuário indicava, senão opulência, abastança ao menos ; o gibão, que vestia, era de veludo bordado a prata, a capa também de veludo e carmesim, tinha o chapéu ornado por uma comprida pluma com um fecho, onde se via luzir o quer que fosse, que se poderia tomar por uma pedra preciosa, e no dedo trazia um anel com um brilhante de sofrível valor.
Infelizmente o retrato moral de D. Alonso não pode ser escrito com tão brilhantes cores, como o foi o físico; não distanciava contudo por isso o dos seus compatriotas, que tão mísero papel representaram naquela época em Portugal. D. Alonso era um Cristóvão de Moura em ponto pequeno (^). Dissimulado e cortês por fora, corrupto e devasso por dentro, tal era ele, como o emissário castelhano; e além disso D. Alonso reunia às qualidades políticas de Moura, o ser fanfarrão e petulante, predicado que os filhos de Castela bebem no berço com o leite das mães.
Fernão da Silva tinha um aspecto menos brilhante, que o seu companheiro; seria algumas polegadas menos alto; tinha o rosto comprido e macilento, es olhos pretos encovados, o cabelo liso, o nariz comprido, a boca rasgada, bigode e pêra da mesma cor dos olhos, e dela eram os cabelos, o corpo um tanto curvado para a frente, o gesto desairoso, o ar pouco de infundir paixões. Trajava modestamente; filho segundo de um morgado de província, se possuía um nascimento talvez ilustre, não lhe abundavam os cruzados no bolso.
Quanto ao carácter do rapaz, Fernão dizia-se entusiasta da liberdade portuguesa, mas era louco, pueril, desarrazoado, fantasiador, e no fundo egoísta, como o eram os homens do partido, em que se filiara, como o era o seu chefe o Prior do Crato, como em gerai o era então, digamo-lo por uma vez, a sociedade portuguesa.
Isto sabido, a história mostrará o resto.
-- Com que então -- dizia D. Alonso, batendo, mais que familiarmente, no ombro do seu companheiro -- , com que então, Fernãozito, o Cardeal abre hoje as Cortes...
-- É nova, que já enfada.
-- Dize-me cá uma coisa... E como vão agora esses arrufos entre o velho e o Prior?
-- De mais o sabes D, Alonso.
-- Ora se o sei! sei-o melhor do que tu meu rapaz!... mas para que hão-de vocês estar com essas tontices? Melhor fora de uma vez entregar isto a quem o terá a bem ou a mal...
() Vide nota A.
-- Vê-lo-emos.
-- Assim dizia o cego, e nunca via.
-- Não via ; mas nós é que não somos cegos. Vemos bem. Tu e os teus se desenganarão.
-- Desenganar de quê? do que já está visto, sabido, tornado a ver e tornado a saber? Ah! Ah! Era curioso, se os terços de Itália e Flandres haviam de morder a terra, neste miserável torrão!
-- Vê, o que dizes, D. Alonso... miserável? E Aljubarrota -- tornou Fernão, como quem não pode esperar resposta. O castelhano mordeu o bigode, girou sobre os calcanhares em ar de desprezo, e voltou retrocando com enfado.
-- Outros tempos !
Sem o querer, o castelhano dizia a mais profunda verdade. A Espanha de João I não era a que Carlos V deixara por sua morte; o Portugal do Mestre de Avis era outro, muito outro, outro em tudo, do Portugal de 1580. Qual seria o moço português do tempo do Mestre, do Condestável, de Álvaro Pais, que deixaria impune a afrontosa prática do arrogante D. Alonso?
-- Depois também -- tornou o castelhano, passado um momento de silêncio -- , que mais pode querer este pobre Portugal, do que fazer parte da gloriosa monarquia de Espanha, da monarquia universal, a quem o mundo inteiro beija os pés?...
-- Ser livre.
-- Loucuras, loucuras são... Demais pouco importa, o que quereis. Exigimos para nós Portugal. Portugal será nosso. Esta é a verdade. Levantem quantos exércitos levantarem, assim que a primeira bombarda estalar em Elvas não haverá em Lisboa um só com pinga de sangue nas veias. Passe a raia um mosqueteiro daqueles, que estiveram em Itália, em Flandres, que viram a cara aos herejes, e o demónio me leve, se houver algum português que não tenha a tais horas embarcado já para as terras de Santa Cruz. Lá iremos depois. Quando o primeiro galeão espanhol salvar saindo o porto, já os míseros se terão metido no mato transidos de susto. Tu verás, Fernão.
-- Verei, que o que dizes é loucura. Aos teus mosqueteiros opor-se-ão mosqueteiros; aos teus canhões, canhões; aos teus exércitos, exércitos; o povo se levantará como um só homem, com o braço armado, com o peito ardente, con- victo o espírito, dedicado o coração! A hora da salvação soará! Todos seremos soldados, todos salvaremos a pátria! O Prior estará à nossa frente como outrora o Mestre de Avis.
-- Mas não te lembras -- tomou D. Alonso chegando-se ao ouvido de Fernão e falando-lhe em segredo -- , que o Mestre de Avis nunca se nos quis vender?
Aqui Fernão caiu do alto da exaltação poético-patriota onde o seu entusiasmo pelo Prior o levara. D. Alonso dizia a verdade. A profecia havia de ser bela se não fosse o herói. O Prior do Crato à frente da revolução era como jorro de água lançado sobre carvões acesos.
-- Vamos lá, homem -- tornou o castelhano vencedor convicto agora -- ; anda connosco, que irás melhor, e demais o futuro te dirá se, o que te dou, não é conselho de amigo. Bolsa cheia: entendes? E parece-me, que a tua não está na melhor maré, hein: barriguinha farta, boas moças, boas folias, regalos a rodo, vestidos ricos, como os meus, olha! Que mais queres?
-- Muito mais, muito mais! Quero ser livre, quero ser, o que portugueses foram sempre!
Fernão era sublime sem o saber. Aquelas palavras saíam-Ihe da boca quase maquinalmente, e assim saíam da boca de todos os meio-parvos. Os espertos uns vendiam-se, outros negociavam caro a venda, e enquanto negociavam iam-se intitulando salvadores da pátria ; os bons -- e mal de nós eram bem poucos -- choravam, choravam arrancavam as barbas e os cabelos, mordiam-se desesperados, olha.vam para o céu pedindo um milagre, por não poderem sustentar o edifício, que se minara, aluídas as paredes, com muitas chuvas, com as águas da decadência!
-- E eu a querer meter-te siso nessa cabeça de burro. Fernão, e tu a teimares. Algum dia te arrependerás, que to digo eu, mas então será tarde. Não vês, que tudo está podre, tudo vendido; que um olhar do duque de Ossuna, ou uma ordem de D. Cristóvão, fazem tremer o Cardeal? E enquanto ele viver ainda isto se aguentará, porque el-rei Filipe o quer, mas deixa-o morrer, o que não pode demorar muitos dias, e então veremos. Tenho brincado, mas agora falo-te sério. Não vês, que te digo a verdade pura? Os governadores são nossos, menos D, João Telo, esse, como disse D. Cristóvão, já que se lhe não pode mudar o ânimo, haver-se-Ihe-á a cabeça. Quer-lo mais claro? Deita-lhe água. O Prior é lá homem para isto! Tolo, isto é um mercado; queres tu vender-te?
-- T'arrenego maldito -- e Fernão deu dois pulos para trás. O castelhano desatou a rir a bandeiras despregadas. Entre os froixos do riso dizia, repetindo:
-- Queres vender-te? Queres vender-te, homem?
É triste, mas é verdadeiro: Portugal era um mercado.
Fernão estava pálido, mais pálido, que o costume; ia fugir. Aquela intimação à queima-roupa fora vibrar-lhe uma fibra da alma, que ele tinha como quase todas, sã. A venda dos grandes, que era pública e notória, não lhe fizera grande impressão no ânimo, já porque na progressiva decadência da sociedade o caso não tomava grande reparo, já porque a sua inteligência, um tanto curta, nunca lhe formara uma ideia verdadeira, do que seria a venda de um homem, a venda de um país; quando porém viu levantar-se-lhe a víbora debaixo dos pés, quando lhe examinou a língua pestífera, quando receou, que a peçonha o maculasse, estremeceu; parece, que o coração lhe pulou no peito, que um relâmpago lhe iluminou o cérebro, e, visão terrível! Julgou, que diante dos olhos se lhe representava o quadro, que a sua mente não pudera ainda formar. Ia a fugir, disse, mas um grupo, que a hilaridade ruidosa do castelhano atraíra, cercando-os, impediu-lho.
A isto o castelhano, composto o rosto, pousava-lhe de novo a mão sobre o ombro e dizia-lhe amigavelmente:
-- Anda Fernão, não te assustes, que o caso não é para tanto. As Cortes devem estar a abrir-se; vamos ver.
E voltando-se para o grupo, que se acercara deles, sorrindo com graça, e, apertando a mão a um conhecido, disse-lhe :
-- Não queres ver D. Diego! Este rapaz, que é um excelente moço, ficou horrorizado, quando eu lhe referi uma das passagens mais simples da minha vida. Em duas palavras to conto. Voltava de Salamanca para Madrid; na estrada assaltaram-me quatro bargantes; pedem-me a bolsa ou a vida; pago ao primeiro com uma estocada, tiro um olho ao segundo, com o pé derrubo o terceiro, e com um murro esmago a cabeça ao último. Viam-se-lhe os miolos de fora!
E todos riram, e partiram todos a ver a abertura das Cortes.
Era o dia solene da abertura das Cortes, convocadas pelo Cardeal para decidirem, a quem de direito competia a régia herança. Nos paços de Almeirim e na sala chamada da rainha, estavam reunidas os três braços. Clero, Nobreza e Povo, representantes da sociedade portuguesa, A sala era aparatosa e nobre; rasgavam-se seis janelas espaçosas sobre os jardins, no topo levantava-se um trono forrado de tapeçarias do Oriente, nele a cadeira do rei e sobre ela um brocado franjado de ouro.
O Cardeal não aparecia ainda: constava publicamente o desanimador estado da sua saúde; os representantes da nação agrupavam-se conversando; o povo lá fora burburinhava formando um sussurro de vozes indistintas, como o vento faz, quando, alta noite, açoita as copas de arvoredos longínquos.
Viam-se na sala o duque de Bragança; o bispo de Lreiria, D. António Pinheiro, um dos mais fiéis sequazes de Filipe II; D, João de Mascarenhas, o herói de Diu, que não quis morrer sem manchar os loucos de soldado com a nódoa da traição; o duque de Ossuna, embaixador plenipotenciário do rei de Espanha junto ao Cardeal; Cristóvão de Moura, o hábil corretor, a que Filipe II cometeu a compra dos portugueses; Jerónimo Osório, o bispo erudito, que tão bem aconselhara D. Sebastião, o autor De rebus Emmanoelis, vendido não, mas ligado ao partido castelhano, provando assim, que soma de corrupção girava nas veias da sociedade, que aos mais sãos não perdoava; e outros, muitos mais; os do Clero e da Nobreza castelhanos quase todos, os do Povo alguns.
Depois de curta demora os toques de trombetas e atabales anunciaram a abertura da sessão. O Cardeal conduzido do leito numa liteira penetrava na sala; no rosto trazia pintado profundo desalento, pesado sofrer; a doença era aguda na alma e no corpo, O ódio pelo Prior do Crato, a amizade paternal por D. Catarina de Bragança, o medo de el-rei de Castela, eis os sentimentos violentos, que se lhe debatiam no espírito, espírito de natureza fraco.
Era um velho que infundia compaixão sem promover simpatia, o Cardeal; a cabeça calva, o rosto macilento, enrugado e cadavérico, os olhos amortecidos, os braços descaídos, o corpo todo ele sem vigor, formavam um conjunto, que mais pertencia já à cova, do que ao trono.
Trazia as vestes esplêndidas de cardeal e de rei: púrpura, oiro e rendas: um cadáver trajando galas! triste mas verdadeira analogia entre o príncipe e o país.
O bispo de Leiria, encarregado de proferir o discurso de abertura em nome do monarca, ergueu-se e arengou uma prática, lisonjeando o dedicado amor do príncipe pela nação, limitando-se a manifestar indirectamente, o seu apoio à causa seguida pelo Cardeal, e a aconselhar os deputados, a que se provessem com auxílios espirituais, para melhor deliberarem acerca dos temporais.
Manuel de Sousa Pacheco, um dos representantes de Lisboa, tomou então a palavra, e em lisonjas e banalidades, consumiu algum tempo mais, estafou a laringe, e nem atou nem desatou, como diz o povo. A peripécia do drama não era ainda chegada.
Calado que foi Pacheco, ergueu-se de entre os deputados de Lisboa um vulto majestoso. Febo Moniz. Majestoso pelo aspecto. Alto, nobre de formas, a cabeça orgulhosa, uma testa larga, um diadema de cãs, um rosto de anjo, uma voz terrível! Sublime pelo carácter. Uma alma de herói, com um coração de virgem!
Febo, reprimindo a violenta comoção, que lhe fazia arfar o peito, sopeou a voz e começou dizendo (^) :
(^) Vide nota B.
-- Pesa-me muito chegarem as nossas coisas a tais termos, que, ou havemos de desesperar do remédio delas, ou, se o procurarmos, há-de ser com moléstia de Vossa Alteza; assim não lhe quisera eu responder, por lhe não dar pena, e o remédio das coisas cometê-lo a Deus; e posto que me dói muito ver, como as coisas vão guiadas, é cuidarmos todos, que elas se encaminham a tirar-nos a nossa antiga liberdade; todavia por mais importante havemos a saúde e gozo de Vossa Alteza, que tudo o mais; e pois Vossa Alteza me quis para este lugar, há-de-me dar licença, para dizer livremente, o que entendo e convém ao serviço de Vossa Alteza e bem desta terra...
Uma bomba, que rebentasse na sala do concílio, não produziria tantas sensações, tamanho pasmo, como o exórdio do discurso de Febo. O sexagenário, como o roble da floresta, conservava-se impávido e sereno, vendo estremecer as ervas e os arbustos que olhava sobranceiro; corria com os olhos a assembleia e como um riso de desprezo lhe tremia nos lábios, firm.ava depois a vista no Cardeal e podia-se-lhe ler no rosto uma profunda expressão de mágoa e dó.
Era uma curiosa cena: Febo, eleito em lugar de Salema, que fora rejeitado como tantos outros pelo Cardeal, por se não sujeitar a votar pela entrega do reino a Filipe II, Febo era tido como homem seguro; o desengano foi cruel e tardio.
O grupo castelhano olhava-se entre si e mutuamente inquiria a explicação de tão singular linguagem; o Cardeal a custo ouvira, mas as palavras soaram-lhe tão estranhamente, que duvidou da pureza do órgão e continuou reclinado em prostração, como se a assembleia prosseguisse um curso ordinário; os do Prior e os do duque de Bragança olhavam para Febo como para um homem, que vinha ligar -se-lhes; a questão era saber a qual dos dois grupos, por isso ambos se esforçavam por lhe atrair, com gestos e olhares, a simpatia.
Febo retomou a palavra depois de breves instantes, continuando assim : -- Eu, senhor, estava metido no meu canto, no qual, posto que me lastimava muito ver estas coisas, parte de consolação me era, ver posto o remédio delas nas mãos de Vossa Alteza, e o ofício de advogado nas de outrem; mas não sei, que pecados foram os meus, que não quis Vossa Alteza, que lograsse muito tempo esta quietação, em que estava; mandou-me Vossa Alteza vir por procurador deste povo, e justamente, donde esperava remédio, veio a sair o perigo. . . Queira Vossa Alteza a concessão pela estrada direita, ouvindo as partes e o que alegam por si, porque de tal maneira só teremos a chorar a nossa sorte e render-nos-emos aos juízos de Deus; mas levar negócios por caminhos não habitados e escuros faz-me crer, que a justiça é nossa, mas não aproveita, pois não há leis nem respeito, que inclinem Vossa Alteza a esta opinião...
Um murmúrio de desagrado ecoou da direita, que era o lugar dos castelhanos; vozes de aprovação da esquerda, onde tomavam assento os parciais do Prior e do duque de Bragança; o Cardeal desenganara-se, de que o ouvido estava em perfeito exercício das suas funções, e, na palidez do rosto, viam-se de tempo a tempo enrubescer as faces de cólera, tremer os lábios de despeito; mas Febo era a tudo impassível, era uma estátua divinamente inspirada!
-- Eu, senhor, não saí do meu buraco, para fazer, o que não devo à liberdade do reino, em que nasci, e que de mim o confiou; não sou eu homem -- continuou, alçando a voz, ao mesmo tempo que o rosto se lhe purpure ava de entusiasmo -- , não sou eu homem, que se haja de dobrar por ameaças nem medos, porque mais pode em mim o receio de faltar um ponto à minha obrigação, do que tudo, quanto no mundo há; e assim, Senhor, não sei, para que me- fizeste cá vir, se quereis dar o reino a Castela; e se julgastes, que eu seria nisso consentidor, vos enganastes! Não sei, quem me desacreditou convosco, que infamou tanto a minha honra e lealdade, Senhor! Só eu vos pareci digno de me fazeres ministro de tamanho estrago de Portugal! E, se de mim o suspeitastes, hoje mostrarei ao mundo o vosso engano, e quanto hei-de estimar, sofrer antes perder a vida pelo serviço da pátria, do que ir contra o bem dela...
Aqui o Cardeal, rubro de cólera, estremeceu na liteira, e o seu rosto pintou um quadro medonho do ódio, que lá dentro fervia. Febo, sossegado o entusiasmo, continuou, cândido como um anjo:
-- E Vossa Alteza poderá fazer deste corpo, o que quiser, que em seu poder está, mas na alma não tem jurisdição; nem ela virá nunca a dar tal consentimento. E não cuide Vossa Alteza, que esta opinião é só minha: é de todo este reino, que aqui está junto de altos e baixos, e velhos e moços, e será de todos, os que não pretenderem mais que o bem comum do reino e o serviço de Nosso Senhor; e se os que andam a par de Vossa Alteza e lhe aconselham o contrário, se despissem de suas pretensões...
O rumor quase abafava a voz do orador; Febo continuava com maior veemência:
-- E não quisessem alcançar comendas... também seriam do mesmo parecer, mas não me espanto de não haver quem aconselhe a verdade, porque a grandeza da terra é propriedade do estado real, porque os príncipes mais andam cercados de lisonjeiros, que de amigos, que de vassalos verdadeiros... e se alguém há, que fale verdade, o tomais tão mal, que a uns tirais das eleições, e a outros depois de eleitos, e a outros suspendeis os ofícios...
O tiro ia certeiro: feriu o alvo. D. Henrique não podia conter-se; era demasiada afronta; porém que fazer? A moléstia não lhe permitia sequer levantar um braço, quanto mais o corpo; olhava implorante para os seus, como quem dizia : acabem-me esse malvado ! -- mas os prudentes castelhanos sabiam de mais, que sempre no fim de muito falar se cansa, e que aquela era a mais imprópria ocasião para dar azo a um tumulto. Febo continuou pois sobrepujando com a voz o rumor da assembleia:
-- Que foi isto, senhor ? Quem vos mudou em outro ? Quem vos tirou o ân:mo de vossos antepassados, o retrato do seu esforço, o ser imitador de suas glórias, que pelo receio de uma guerra justa quereis fazer injusto concerto?
E se el-rei D. Filipe é cristão, não quererá mover uma guerra entre cristãos...
-- Certo! Certo! -- disseram afectando seriedade, mas com ironia transparente, Ossuna e D. Cristóvão.
-- Por causa duvidosa contra a justa sucessão -- continuou Febo dirigindo-se veementemente ao Cardeal -- ; porque bem sabe, que sendo assim não terá bom sucesso, e Deus não será em seu favor; e quando o quisesse fazer, faremos o que sempre fizemos; bem sabemos perder a vida pela liberdade, e posto que sejamos poucos e desarmados e ele poderoso e apercebido, esperanças tenho em Deus Nosso Senhor que ajudará e efectuará uma sentença dada por um rei tão católico e tão santo, e que não permitirá sermos vencidos, pois levamos a verdade e a razão por guia. Atónito estou de ver que, sendo a justiça igual e estando ainda o parecer de Vossa Alteza tão duvidoso, se incline antes a Castela!
Como poderá Vossa Alteza extinguir uma nação, que os reis seus antecessores trabalharam tanto por enobrecer, um reino que eles ganharam aos inimigos de nossa santa fé? Não sei como Vossa Alteza poderá acabar aquelas cinco chagas que Jesus Cristo Nosso Senhor deu por armas no campo de Ourique a este reino; poder-se-ão elas sem receio ou temor meter entre os leões de Castela?... Este negócio é maior do que todos os do mundo por árduos que sejam! Que falta é esta de amigos, que pobreza de vassalos leais? Porque não tenho por amigos do vosso serviço, nem por criados leais, quem tal coisa vos aconselha. Porque quereis, que vos estale o reino nas mãos? Não vê Vossa Alteza a nódoa, que põe em seu nome? Aonde se dirá com honra, que se entregou este reino a Castela por temor de se defender do seu poder?...
Pelas lágrimas dos órfãos, que vivem das esmolas do reino e de seu rei natural, pelo remédio dos fidalgos, que ides entregar a um rei estranho, pelas necessidades das viúvas, pelas misérias dos pobres peço-vos, senhor, que conserveis este reino na liberdade, em que os reis vossos antepassados, puseram; representai ante vossos olhos, que todos comigo dão vozes: a quem nos deixais, senhor! Porque nos cativais?!... aonde nos levais? Clama o povo, clama a nossa consciência, clamam a justiça, a razão, e os nossos clamores hão-de chegar ao céu! Dai-nos liberdade, e se vos parecer, que a não merecemos, tirai-nos juntamente a vida, para que com ela se acabe o nosso cativeiro; que antes queremos, os verdadeiros portugueses, entregar de boa vontade a vida, do que perder a liberdade: Disse.
Febo sentou-se; caía-lhe o suor em bagas pela fronte. A sua eloquência um tanto rude, mas sincera, mas verdadeira, conseguira o que as mais das vezes não conseguem os palavreados estudados, que fazem de um parlamento uma academia. A assembleia -- e que assembleia! -- dobrou a cerviz à veemência do orador; -- no Cardeal o espanto domou a cólera; os castelhanos estavam como petrificados, os do Prior e do duque de Bragança boquiabertos, extasiados, diziam entre si : -- Temos homem!
Atabales e trombetas anunciaram, que era findo o auto, retirou-se o Cardeal, dispersaram-se os fidalgos, os clérigos e os procuradores do povo; o discurso de Febo impressionara todos; parte da assembleia viu nele um adversário para temer, parte desejava associá-lo a si, parte, vacilante antes no campo, que lhe cumpria pisar, cedeu à veemente prática do deputado por Lisboa. São estes os louros da tribuna, que não os aplausos comprados de maiorias corruptas.
Fernão e D. Alonso temo-los de novo connosco; acabada a cerimónia o castelhano travara do braço de Fernão e trouxera-o através da multidão a uma taverna, que era, entre tal espécie de lojas, aquela onde se reunia a sociedade escolhida, numerosa, como é de ver, naquele tempo em Almeirim pela dupla reunião da corte e dos três estados.
Decaíam as sombras da noite e dentro da quadra escura e afumada luziam já bastantes lâmpadas. O concurso era grande, o burburinho da conversa maior; momentoso assunto trazia checas as cabeças de todos; aqui se discutia bradando, acolá se segredava em mistério; noutra parte ria-se, bebia-se, trocavam-se ditos e chufas.
Fernão e D. Alonso ocupavam uma das mesas na parte mais escura e despovoada da sala; tinha cada um defronte de si um copo do suculento vinho do Ribatejo, e conversavam em amigáveis termos,
-- Pois é como te digo, meu Fernão -- dizia o castelhano sorvendo alentado trago e limpando com os beiços os bigodes -- ; pois é como te digo; não fiquemos mal por isso, mas Febo Moniz é um sandeu, como há poucos na sua espécie.
-- Bem poucos! -- volveu o outro distraidamente. A cena, que precedera a abertura das Cortes e o discurso de Febo, tinham sensivelmente impressionado o espírito de Fernão; habitualmente contente, falador e aloucado, desde algumas horas se tornara misantropo, distraído, pensador. Pesava-lhe ver a hipocrisia, com que o seu amigo mentira à boa-fé do pobre D. Diego, porque no fim de tudo Fernão era bom ra- paz; pesava-lhe mais ver a rematada basófia do castelhano; como cuspia nas faces desta terra, que o mesmo pensava quase que era cuspir-lhe nas dele, filho seu. Seguindo o curso dos seus pensamentos, Fernão chegava a imaginar que aquela conversa podia talvez simbolizar o afrontoso diálogo, que povo a povo se trocava. Estas ideias todas que sem ordem, sem forma, indistintas, nebulosas (é palavra da moda) se lhe revolviam na mente, tinham achado como uma explicação, e um sentido na prática de Febo Moniz. A não serem os lamentáveis acontecimentos, que formam parte desta história, e de que Fernão foi vítima, a não ser também que o moço era por si incapaz de corrigir, o que era vício duma sociedade inteira, e a não ser sobretudo a inconstânc'a e volubilidade do seu carácter, talvez o nome obscuríssimo de Fernão da Silva estivesse hoje elevado em pedestal honorífico à veneração do seu país.
-- Bem poucos! -- tornou o rapaz maquinalmente encostando a testa sobre a mão, como para amparar o muito peso de desusados pensamentos, que se lhe revolviam no cérebro; depois, erguendo soberanamente a cabeça, disse com profunda melancolia:
-- E mal de nós !
-- E mal de quem -- tornou sisudo o castelhano -- , de ti ou de mim?
-- E mal de mim! e mal de nós portugueses!
-- Vocês portugueses são uns asnos!
-- Não repitas, Alonso ! Uns anos de amizade não pagam uma injúria!
-- Como estais guapo e bravo, D. Cavaleiro!
-- Ris!... dantes não riam vocês, quando lhes afogavam em sangue o riso.
-- Vens fúnebre agora, Fernão... Mas deixemo-nos disto, não venho buscar querelas, e sabes que mais? Tenho dó de ti; nunca mediria armas contigo, porque te estimo, e sabia ao certo, que seria mais um além de cento e tantos, que a minha espada tem varado!
-- Caspité, que é bonita conta! -- tornou Fernão, não podendo deixar de rir à espanholada do companheiro.
-- Tão verdade, como o Cardeal ter fugido de Lisboa por causa da peste.
-- Sim, sim, D. Alonso, eu bem conheço a tua bravura.
-- Ora ainda bem -- tornou o castelhano, que uma vez não contrariado, não era susceptível sobre a seriedade do assentimento; e bebendo novo trago de vinho, levantou-se, correu com CS olhos a turba que se cruzava na vasta quadra, com as mãos o bigode, mirou-se, porque era presumido, e foi sentar-se ao lado de Fernão; passou-lhe depois um braço sobre o ombro, encostou quase o rosto ao do companheiro e disse-Ihe, com voz melíflua, ao ouvido:
-- E os amores como vão ?
-- Como vão? Vão bem -- tornou o rapaz com enfado. O seu estimável amigo tinha em poucas horas perdido muito no seu conceito e afecto, Repugnou-lhe o doce tom, com que lhe falava, e muito mais ainda lhe repugnou falar-lhe ele em coisa, que Fernão às vezes presumia guardar no peito, como os judeus no templo guardavam a Arca.
Anda aqui um segreedo, que eu podia aproveitar para ocasião de mais efeito, mas é despretensiosa esta história. O ídolo, a quem Fernão queimava incenso, era uma das duas filhas de Febo. -- Influiria isso no ânimo do rapaz para lhe exaltar mais o patriotismo?
O castelhano que levava outro intento, e sobretudo não lhe convinha espantar a caça, viu que por ali se lhe não abria caminho; era bom fisionomista e observador atilado D. Alonso; retirando, pois o braço de cima do ombro do rapaz, pegando-lhe na mão e apertando-lha confidencialmente, disse-Ihe em tom misterioso:
-- Não falemos mais nisso ; cada qual guarda para si, o que lhe pertence; muito podia eu dizer nesse artigo, mas entendo também que é bom, melhor até, calar; perdoa Fernão. Deves ver -- continuou -- , que um homem, como eu, tem aventuras de sobejo, amores à farta; tantos... tantos, posso-te dizer... que lhes nem sei o número!
-- Creio -- tornou Fernão sorrindo.
-- Mas vamos ao que importa, meu rapaz, isto não é vida, isto assim não é vida...
-- Não compreendo o que queres dizer na tua.
-- Já vais compreender. Devagar se vai ao longe. Ouve -- tornou D. Alonso, falando quase em segredo e apertando tanto a mão do rapaz, que este de mais lhe agradecia o cumprimento e desejara vê-lo acabado. -- Ouve, mas ouve com atenção e cuidado, o que vou dizer-te; não te exaltes, que o caso não é para isso...
Além de tudo o castelhano era maçador.
-- Isto que te digo, Fernão, é para teu bem; estimo-te como se foras meu irmão...
-- Bem, dize depressa -- tornou o rapaz a quem doíam vivamente os nós dos dedos.
-- Meu caro, tu tens uma vida sem futuro, quer dizer que a tua vida não apresenta um futuro brilhante...
-- Compreendo; então?
-- Então?... quero dar-to, como convém a um bom amigo.
-- Muito obrigado. E que necessito para isso?
-- Que necessitas ? Muito pouco.
-- Se pouco é... mesmo bastante que seja, possa-o eu, e tens-me ao teu dispor.
Fernão pensou àquela hora na filha de Febo Moniz.
-- Pouco, muito pouco, repito. Deixa-te dessas ilusões parvas e liga-te à nossa causa.
-- É mais do que eu posso, D. Alonso, tenho pena de não aceitar.
Fernão falava debaixo das impressões do discurso, do que ele pretendia para sogro; e além disso sabia que aceder ao castelhano era afastar-se quanto possível do amoroso futuro, que sonhava.
-- Deixa-te de asneiras te repito. Olha que o amor não paga dívidas -- retorquiu intencionalmente o tentador, que conhecia demais os amores do seu amigo, a sua pobreza e o seu carácter -- ; depois, com dinheiro tudo se vence; o velho não dura muito, e se ela te ama deveras, quem se importa, que tu sigas este ou aquele partido?
Fernão cismou esta circunstância, que não pensara ainda, e pareceu-lhe ajuizada; aqui se esvaeceram os fumos de patriotismo verdadeiro, que no começo deste capítulo vimos, se tinham apoderado dele, aqui esqueceu o recato, que tanto a princípio pretendera inculcar acerca dos seus amores; o castelhano sabia que uma das mais sensíveis cordas duma alma pequena, medíocre mesma, é o interesse. Mas Fernão lembrou-se logo de que nas conversas, que tivera com Maria, esta se mostrara sempre digna filha de tal pai. As esperanças portanto tão breve se tinham formado, como desfeito. Colocado em terreno falso não sabia, como andar para trás. Era um pobre homem! Tomando o melhor partido agastou-se e volveu ao companheiro:
-- É indigno isso que dizes!
Mas o castelhano, que se não doía com insultos, contentou-se com apertar-lhe mais a mão, a ponto de Fernão dizer: ui! e continuou:
-- Deixemo-nos de asneiras, digo-to outra vez. O que vale cá na vida um gibão bem bordado, uma capa com ricos galões, um chapéu com vistosa pluma e rica presilha? O que iguala a ter a barriga cheia de bons petiscos, e levar vida regalada? Nada, escusas de responder. Aceita, senão és um asno.
Fernão tinha amor-próprio, e aceitar ficava-lhe mal, Fernão amava e aceitar era perder a amante; Fernão pois não aceitou; não aceitando melhor lhe ficava levar a mal o injurioso epíteto; o rapaz não era valente, mas olhando para o concurso, que povoava a sala, viu, que uma pendência não podia ter consequências fatais; tomou pois uma posição magnífica, levantou-se e atirou às faces do castelhano uma série de desconchavos, entremeados de bastantes insultos; atirou-a tão alto que todos ouviram, e D. Alonso não podendo engolir a seco a afronta, como usava, partiu na cara do companheiro o canjirão de vinho; Fernão com o rosto e o peito como é de supor, correu furioso a mão ao lado para desembainhar a espada, mas não a achou.
O castelhano por cautela havia-lhe tirado.
-- Ah ! -- bramiu o rapaz -- ; quiseste levar-me de assalto e não pudeste; vieste de emboscada, mas mostrei-te, que os portugueses de agora são como eram os de outro tempo: não se vendem!
O castelhano ia sorrindo à socapa, porque o conhecia.
-- Desarmaste-me então vilmente, maldito ! É assim que usam os teus! É assim! É assim! Mas nós os ensinaremos!
E ia atirar-se ao castelhano -- Deus sabe com que pena sua! -- porém felizmente intervieram os assistentes e a pendência terminou aqui, rompidas as relações entre os bons amigos, que tinham sido, Fernão da Silva e D. Alonso Domingues.
O lugar das sessões do braço popular nas Cortes fora transferido de Almeirim. Na corte tinham ficado o Clero e a Nobreza. Febo Moniz com os outros procuradores das vilas e cidades passara para Santarém, onde vamos tornar a encontrá-lo.
Febo Moniz, cumpre dizê-lo, era homem conhecido já na cena política do país. Sumilher-de-corpus de el-rei D, Sebastião fora um dos que com mais veemência se opusera à desditosa jornada de África; depois, velho, doente e desgostoso de ver o caminho, que este país seguia, não o encontramos como homem público senão na abertura das Cortes, e até aí julgado como parcial seguro dos desígnios de D. Henrique,
Numa saia do seu aposento da Ribeira, sentado numa antiga cadeira de couro lavrado, com os cotovelos apoiados sobre uma mesa de pau-santo, sobre as mãos abertas a cabeça, Febo meditava; era noite; e lá fora a tempestade ia rija; a luz da lâmpada iluminava-lhe a fronte rasgada e majestosa; lia-se-lhe nos olhos profundo sofrimento; o ruído do temporal ecoava no aposento, mas o velho como insensível, não atendia aos furores da natureza; encapelada procela se lhe combatia no espírito!
Levantando a cabeça, deixou pender os braços sobre a mesa com gesto de desalento, e murmurou:
-- Estes homens! Estes homens!
Depois, como se se arrependesse de ter falado, tornou à sua posição anterior.
Nisto soou na rua o ruído compassado dum cavalo galopando. Febo assestou o ouvido, como para se afirmar, e disse consigo:
-- Será ele que volta?... Vem bem! Que pobre homem! E pretende cingir a coroa de D. João I! Ah! Portugal, Portugal, não és já, o que foste! Um Cardeal, um duque de Bragança, um Prior do Crato! Em que mãos caíste!...
Assomava então à porta um vulto singular. A cabeça descoberta mostrava uma cabeleira farta e negra, o rosto era trigueiro e largo, os olhos pretos e expressivos, a boca fina e maliciosa. Trazia uma larga capa donde a água escorria em bicas; na mão um sombreiro alagado, uns guarda-matos de pele, botas grosseiras e esporas. Era alto e bem apessoado.
Febo não pôde suster um grito de espanto ao encará-lo, levantou-se e foi direito a ele:
-- Aqui, Sr. D. Prior!
-- Aqui sim! E que vos admira? Cuidais que se me dá muito das loucas ordens de meu tio? Está demente, coitado! Não sabe, que em cada português tenho um amigo, em cada lar uma guarida! Sou neto de el-rei D. Manuel, Sr. Febo Moniz! Sou infante de Portugal!
Febo não retorquiu à presunçosa apresentação do Prior do Crato, não tinha palavras para retorquir. Andavam os seus pensamentos tão longe das ambições do príncipe, que melhor entendeu calar, do que romper desde logo com ele. O Prior continuou:
-- Estranhais ver-me, não é assim? Pouco importam as ordens do Cardeal, mas o que ma^s admira é que com tal tempo me atrevesse a uma jornada. Pois atrevi! Daqui vereis que não desminto de meus avós. Desculpai vir assim; alagou- -me a chuva...
E nisto, desafivelando a capa, deitou-a e ao chapéu sobre um contador; sentaram-se os dois.
O velho estava na verdade surpreendido da inesperada aparição do Prior do Crato. Sabia que não se lhe dava muito das ordens expressas do rei, que em Almeirim mesmo constara a sua estada, mas nunca tinha imaginado receber-lhe a visita. É de pensar como Febo avaliaria o carácter do Prior, porque tinha sobeja prática dos homens, e juízo bem claro para c conhecer. Febo adivinhara já o intento da visita; contava que se ia empenhar uma luta, preparou-se para o combate. O Prior chegando-se a ele com gesto amigo, começou:
-- Eu como todos, Sr. Febo Moniz, fiquei surpreendido com a vossa arrojada prática no auto da abertura das Cortes. Eu talvez mais que todos, porque tenho em demasia conhecido quão poucos homens temos hoje de rija têmpera e dedicado amor pátrio. Muito vos louvo e do coração; contai-me por vosso amigo. Sobremaneira estimei congraçar-me hoje com o que fora já meu adversário. (O Prior tinha sido um dos que mais instigaram D. Sebastião na jornada de África). Estimo ter a meu lado homens como vós, Sr. Febo Moniz; cedo serei rei, e então hei-de mostrar-vos, que sei esquecer ressentimentos antigos, e pagar como merecem ser pagos os leais servidores da pátria e do rei. Acreditai, que não serei ingrato... -- acabou intencionalmente o infante.
-- Ingrato! Ingrato em quê? -- tornou Febo quase colérico.
-- Ainda o perguntais? Pois não vos devo a fala enérgica, que fizeste?
-- De todo vos enganais -- replicou orgulhosamente Febo -- , de todo em todo ! A minha missão, o que os povos me encarregaram, não foi, nem podia ser, o ligar-me a facções mais ou menos justas, mais ou menos poderosas, mais ou menos felizes! Sr. Prior, enganaste-vos pensando que com lisonjas me vencíeis, iludiste-vos ainda mais se pensastes atemorizar-me com o vosso sonhado poder. Digo-vos o que ao Cardeal disse: do meu corpo podereis fazer o que vos aprouver, na minha alma não governais! Governo eu só, governa a minha consciência, governa Deus!
-- Estranho pensar é o vosso, Febo! A justiça é só uma; quem deseja o bem do seu país deve desejar a elevação do seu legítimo rei. E quem é mais legítimo do que eu? Quem tem maiores direitos?
-- E o duque de Bragança (1), Sr, D. António?... Não é para nós esse ponto; isso é caso para jurisconsultos.
-- Não falemos neles -- tornou o Prior -- , que D. Filipe os comprou já...
-- Como a muitos, que o não são; como a quase todos teria comprado, se não fora o preço!
Era uma afronta violenta, mas para o Prior ferir-se era acusar-se; corou de leve, mordeu os beiços e prosseguiu: -- Esse é o nosso mal.
-- Dizeis certo.
-- Mas ouvi-me : se não quereis ligar-vos a facções, se pretendeis não me reconhecer direitos...
(1) Vide nota C.
-- Tal não disse, perdoai.
-- Bem, bem... Quem pois, ou como julgais decidir a questão?
-- Sr, Prior, pouco falo por hábito, e entendo que melhor é calar, do que falar desacertadamente. Em poucas palavras vo-lo digo e francamente, perdoai-me se me exceder, uma vez falando, uma só coisa sei dizer, e essa é a verdade, Lembrais-vos do que sucedeu, quando, por morte de D. Fernando, o trono era disputado?
-- Lembro! Lembro! -- tornou o Prior jubiloso -- , lembro-me de que o Mestre de Avis, como eu bastardo, subiu ao trono...
-- Pelo voto popular, dizei! D. António empalideceu.
-- Pelo voto popular, sim! Pelo querer do povo, que os reis são os depositários do seu poder! O que eu d'sse nas Cortes, digo-vo-lo a vós, di-lo-ei sempre, porque é a verdade, 6 a verdade é absoluta e uma! Não fiz mais do que cumprir o encargo, do que desempenliar-me da confiança que os povos puseram em mim. Cumpri o dever de cidadão, de procurador dos meus pares. Nunca me ligarei a este ou àquele, repito-o; a eleição do povo, o voto popular deve somente decidir a questão. Quando tivermos escolhido rei, que venham estranhos, e lhes daremos outra Aljubarrota!
O Prior estava pasmado, e temeroso ao mesmo tempo, esperava encontrar um amigo, adivinhou um adversário mais temível, que os próprios castelhanos, porque com ele não havja transacção possível.
-- Mas -- continuou Febo, adormecida a voz, contristado o semblante -- , doloroso é que o povo, que os nobres, que os padres não sejam hoje o que eram então! Perdoai-me dizer-vos a verdade.
-- Não digo o contrário, Sr. Febo Moniz; que também os séculos apagam muitas manchas, fazem irradiar mais a glória. O bem esconde o mal.
-- Quando o bem sobrepuja o mal.
-- É certo, mas sempre o oculta. Ainda há hoje portugueses e vós sois disso a prova. Vós e outros. Chegue a hora e ver-se-ão. Dois caminhos só podem separar os bons portugueses e esses estão unidos. O duque de Bragança e eu formamos agora um só e único partido; fora dele não pode haver bom trilho a pisar, para quem deveras ama o seu país.
-- Certo vos enganais, Sr. D. António -- tornou Febo -- , talvez o que foi já não é; talvez vós: de certo, vós cuidais que é, mas enganai -vos. Pouco antes de chegardes, daqui saía o duque de Bragança e dele soube, que o projectado concerto estava desfeito.
O Prior tomou a empalidecer. Era colhido em flagrante mentira. Estava infeliz. A astúcia que empregara para ligar a si Febo Moniz fora descoberta. Desistiu da conquista, mas jurou vingar-se mal pisasse os degraus do trono sonhado.
-- Pois digo-vos -- tornou Febo, fingindo não reparar na triste posição do seu interlocutor -- , que esse era o único meio de salvação para este país, que vejo ir a pique numa vergonhosa calmaria. É que as madeiras estão podres, as cordas gastas, o leme partido! Onde temos espada como o Condestável, onde pena como João das Regras, onde voz como Álvaro Pais?
Febo esquecia-se de si próprio.
-- Qual de vós -- continuou inflamado o gesto, alçada a dextra, erecta a fronte -- , qual de vós pretendentes ao trono ousa cingir a coroa do Mestre de Avis? Ê o duque de Bragança? Pobre homem! Sois vós Prior do Crato?
-- Sou eu sim, velho traidor! -- tornou D. António erguendo-se furioso -- ; sou eu! Comigo vos havereis! Serei rei!
E nisto arrebatadamente saiu.
-- Traidor -- ficou murmurando Febo -- , traidor!... Deus nos livre de tal rei! Ah Portugal, Portugal! que desta vez te não salvas das garras do leão!
Baixava o sol por uma daquelas serenas tardes de Inverno, em que o céu, puríssima cúpula azul, se espelha no mar, em que a atmosfera, transparente como límpido cristal, descobre o horizonte até aonde a vista alcança. Corria uma viração fresca roçando com as suas asas invisíveis a superfície do Tejo, onde os raios do Sol doiravam miríades de pequenas ondas, que brilhavam como escamas.
Estamos em Lisboa, em casa de Febo Moniz. Passada a rua Nova, tomando à esquerda ia-se ao largo da Sé, de lá pelo lado direito do velho templo sobe uma íngreme calçada, que vai encontrar no topo os antigos paços de a par S. Martinho, transformados hoje na cade-a civil do Limoeiro.
Nesta calçada morava Febo. Elevava-se a casa em dois andares; no mais alto eram os quartos de Ana e de Maria as duas filhas do velho patriota. Das janelas gozava-se o belo panorama da cidade descendo até à beira do rio, e para lá a vista esplêndida de larga bacia do Tejo serena, meiga e bela como os lagos de Itália.
Maria, a filha mais nova de Febo, estava sentada na janela e alongava a vista pelo amplo espectáculo, que a natureza lhe desenrolava diante dos olhos. O quarto denotava abastança e sobretudo bom gosto: viam-se sobre um contador de ébano marchetado de marfim e madrepérola duas preciosas jarras do Japão, resguardavam as portas e as janelas, cortinas e reposteiros de seda da índia; a menina estava sentada numa cadeira estofada de seda carmesim, que fazia parte da guarnição do quarto; pendia-lhe do colo, abandonado hava pouco, um caprichoso lavor e tinha nas mãos um livro. Deitava os olhos ao céu, ao mar, às terras de além, volvia-os depois à sua leitura, abstracta e pensativa. Fixando-os no livro ia lendo:
Ele leva o seu pesarE só vai sem companhiaQue os seus fora ele leixar.Querer cantar suas mágoasSeria areias contar...
-- Dizes bem, poeta. Querer contar minhas mágoas seria areias contar! Que triste livro, mas que meigas palavras! bem se sentem as lágrimas, bem se ouve o bater do coração! Oh quem tal livro escreveu, amava!... Quanto mais não vales, Bernardim, do que os poetas de agora, tristes mas frios sábios, que põem o amor ao serviço das letras e não as letras ao serviço do amor. Tu não. Porque tu não escreveste, para seres rdo e aplaudido; escreveste, porque a tua alma angustiada necessitava um confidente. Falaste com a pena, e nas linhas confusas da escrita ias pouco a pouco vazando tudo o que te afhgia lá dentro... Amo-te, amo-te por isso.
Maria era formosa, ou antes talvez, era bonita. Quem lhe fosse medir as formas e as feições segundo as regras esculturais havia de encontrar defeitos, mas quem de um relance a encarasse havia de sentir-se sobressaltado. O conjunto das suas feições, sobre as quais dominavam uns olhos negros, cintilantes e meigos ao mesmo tempo, tinha um não sei quê fascinante. A sua estatura era mais baixa do que alta, mas dotada duma elegância, dum requebro natural, duma nobreza, que, acompanhadas pelo bom gosto, com que sabia vestir-se, e dispor certas pequeninas coisas, que valem tanto numa mulher, encantava. É esta a expressão que mais lhe convém; era encantadora (O seu carácter tinha uma certa mistura de criancice e de juízo, que completava a sedução). Ê a coisa mais insuportável para ver fingida e a mais atraente sendo natural esta mistura de mulher e criança. Em Maria como era completamente natural vencia todos. Quando num excesso de zelo pelo bem-estar do pai, este lhe não cumpria as ordens, ela primeiro zangava-se, erguia veementemente as mãos, accionava com ardor, mandava, e, não se vendo obedecida, saltava-lhe ao colo, abraçava-se-lhe ao pescoço, beijava-o, ameigava-o, dizia uma infinidade de tolices encantadoras e acabava por ganhar a batalha. Quando numa ocasião angustiosa era necessário firmeza de ânimo, da boca de Maria saíam sempre as palavras de mais verdadeira resignação, os pensamentos mais seriamente aceitáveis.
Febo adorava-a, e, se é pecado exceder em amor um filho a outro, Febo neste ponto pecava.
Contava Maria dezanove anos, a idade de todas as crenças, de todas as esperanças, a idade de amor, a Primavera da vida.
Sensibilizara-a a leitura do choroso livro de Bernardim Ribeiro, e quando, afastando com as mãos do^s anéis de cabelo, que lhe assombreavam a testa, a qual, seja dito de passagem, era uma espaçosa bem feita e acetinada testa, queria varrer do pensamento as nuvens tristes, que o livro lhe levantara, sua irmã, a formosa Ana, entrava no quarto.
Tinha Ana (já agora esbocemo-las ambas), quatro anos mais do que Maria, e diferia dela como uma rosa difere duma sensitiva. Ana era bela na rigorosa acepção da palavra. Tornada estátua, Fídias deporia o cinzel e deixá-la-ia intacta por a achar perfeita. Mas se Maria valia mais pelo espírito do que pelas formas, Ana ao contrário valeria tudo pelas formas, pouco pelo espírito. Bela como Galateia era insensível como a obra-prima de Pigmalião. Quando a natureza lhe dera o ser esqueceu-se de lhe fabricar o coração, mas deu-lhe em troca o amor da riqueza, o desejo da ostentação, as ambições, tudo enfim quanto compõe a face exterior da vida.
Longe, nmito longe de pensar que Ana era má. Ao con- trário, era boa. Fora um defeito da natureza aquela falta de sensibilidade, e aquele vício do luxo. Remediar-se-ia? Talvez, se não morresse da cura para se salvar da moléstia; porque só muito violento remédio conseguiria mudá-la. Mas ao mesmo tempo que nos seus sonhos ia devaneando casamentos fidalgos e ricos, a sua vida era empregada no cuidado da administração doméstica, em que se tornava distinta, e sobretudo numa atenção sistemática e paternal, filha de muita amizade, pela pequena e aloucada irmã.
-- Sempre cismando, Maria! -- disse Ana batendo-lhe ao de leve no ombro.
-- Não te aflijas por isso. Que queres? -- tornou Maria meia sobressaltada e fechando à pressa o livro. -- Loucuras de rapariga!
-- Aposto, que é esse o teu Bernardim.
-- Acertaste.
-- Pobre livro e pobre homem. Tudo lamúrias.
-- Nem sempre falas tão verdade em coisas destas, Ana.
-- Quem tem o coração frio fala melhor.
-- Quando fala.
-- Fala. Digo-te eu. O muito ardor transtorna o juízo...
-- Abrasa-o, e o fogo ilumina.
-- Mas com luz vermelha, que não alumia bem.
-- Seja como quiseres -- tornou Maria. -- Disto não entendes.
-- Asisim será. É escusado teimar contigo.
Enquanto as duas de tal forma conversavam encostadas ao balcão da janela, um grupo de rapazes parara na rua olhando para elas. Um dizia:
-- Quem são aquelas gentis lisboetas?
-- As filhas de Febo Moniz -- retorquia outro.
O primeiro bateu então significativamente com a mão na testa, e disse:
-- Estás certo?
-- Certíssimo.
-- Obrigado. Por favor afastem-se agora. Dentro de meia hora estarei com vocês na rua Nova.
Separam-se e D. Alonso, porque era ele, mirou-se todo, e vendo que o seu luxuoso traje não tinha um senão, sorriu-se satisfeito. Devassemos-lhe as intenções. D. Alonso, verdade é dizê-lo. ficara picado da cena com Fernão. Custava ao seu orgulho o modo porque o caso fora resolvido, e mordia-se por se não poder vngar. Procurar matá-lo, e isso era na verdade para a boa espada do castelhano pouco difícil obra, não lhe era lícito, porque as instruções, que ele como os outros agentes da política castelhana mais ou menos graduados, haviam recebido, seguindo o plano geral adoptado pelo rei, proibiam expressamente entrar em querelas, pendências, questões ou duelos, antes ao contrário determinavam adqurir simpatias e adesões. Ã imaginação viva de D. Alonso apareceu um meio de aliar as instruções recebidas com os seus vingativos desejos. Sabia que Fernão amava e era amado por uma das filhas de Febo. Roubar-lhe a desejada noiva, era coisa, que, além de ser grata ao amor-próprio do castelhano, devia ser muitíssimo triste para o pobre Fernão. Assim o pensou D. Alonso, e ao mesmo tempo discorreu, que se as instruções, que tinha, lhe proibiam querelas, uma questão de amor não podia ser tomada como tal, e contra a sedução de uns olhos bonitos não havia instruções possíveis. Até Sansão fora vencido.
Depois de amadurecido este plano e disposto a pô-lo em prática, ocorreu-lhe uma circunstância, que o deixou vivamente perplexo. Eram duas as filhas de Febo, qual delas a que Fernão cortejava? A empresa esteve a ponto de ser abandonada, mas não o foi por fim. Deixou-se o caso à ventura.
Meditando, D. Alonso descera até o largo da Sé, e meditando olhara e tornara a olhar para a velha catedral com aparências de arqueólogo; depois, firmando o plano de ataque, mirou-se de novo, sacudiu alguns grãos de poeira, que lhe sujavam o brilhante gibão, assentou o chapéu com donaire e partiu com passo afidalgado. Estava Ana então debruçada à janela. O castelhano encarou-a com sorriso sedutor, andou alguns passos, tornou a encará-la, repetiu mais adiante a manobra, e foi seguindo rua acima.
Ana voltou a cabeça para a irmã, e disse-lhe:
-- Não queres ver. Maria, o casquilho que ali vai?
-- Tem cautela -- tornou com modo zombeteiro a menina -- , quem desdenha quer comprar.
-- Eu? Sabes bem que não uso.
-- Mas ainda assim -- continuou seguindo a direcção dos olhares da irmã -- , vejo que te não desagrada.
-- Tanto me agrada como qualquer outro.
-- Será. Mas porque ficas então na janela?
-- Porque não vale a pena tirar-me.
-- Entendo, entendo... -- disse Maria, rindo. -- E olha que vai ali um bom marido para ti.
-- Bem ; não rias.
-- Pois o caso é sério? Nunca julguei. Ao que parece é rico, tem fidalgas maneiras: deve convir-te.
-- Cala-te criança. É já sabido que nunca havemos de concordar, tu com as tuas lamúrias, eu com as minhas ambições, como tu lhes chamas.
-- Não seremos por isso menos amigas, não é assim, Ana?
-- Não, por certo... Tinha boa aparência o rapaz. Parece castelhano. Sê-lo-á?
-- E não te importa?! Que faria se te importasse! Mas não sei se fazes bem. Parece castelhano. Basta parecê-lo, para não ser boa coisa... não achas?
Maria era na sua alma angélica e infantil o espelho das rígidas crenças do pai; Ana era diferente. Que lhe im- portava a ela que fosse castelhano, navarro ou português um marido fidalgo e rico?
Por isso encolheu oe ombros à pergunta da irmã.
-- Vamos lá, Ana -- continuou Maria com um ar meio repreensivo -- ; tenha juízo, como seu pai havia de gostar de lhe ver encolher os ombros!
-- Pois sim, pequena, deixa estar, que me hei-de emendar. A verdade é que os modos fidalgos e o luxo de D. Alonso, tinham feito impressão no ânimo de Ana,
-- Mas -- continuou a filha mais velha de Febo -- , queres saber? Temos notícias do pai.
-- Notícias ! -- exclamou a outra, com um destes pequeninos gritos tão sedutores nos lábios de uma mulher.
E, saltando num pulo da cadeira, foi com a irmã encontrar o portador.
Alguns dias se passaram, nos quais o castelhano executava sempre a prática da véspera: percorria de alto a baixo, de princípio a fim, o espaço que se avistava das janelas de Ana, e era quase certo vê-la, do que Maria muito folgava, atacando a irmã com os seus ditos picantes e zombeteiros. D. Alonso aprimorava-se no trajar; elegante e luxuoso era na verdade sedutor para quem oom coisas tais se seduzisse; o castelhano desenvolvia toda a táctica desta espécie de cam'panhas, e na verdade ele sabia-a muito, mas não conseguira ainda lograr uma entrevista; lisonjeava-o pouco o platónico amor que até ali animara aquelas relações, e os seus desejos tendiam a mais positivos fins. Era justamente o que Ana não podia imaginar; não sabia crer como um homem antes de ter sido abençoando esposo diante do altar, se atrevia a pensar em obter um beijo furtivo, um abraço apertado; por isso achava o proceder do castelhano perfeitamente natural e só esperava que, mais hora menos hora, a névoa se aclarasse e da névoa nascesse o dia -- o brilhante casamento. Já vemos que os dois mutuamente se não compreendiam; com a diferença que Ana julgava alcaçado o seu fim, e o castelhano, muito longe dele, trabalhava quanto possível para alcançá-lo.
Devo dizer que, D. Alonso, movido somente a princípio pelo pouco caridoso empenho de pregar um ferro ao que fora seu amigo, tinha achado um novo e forte excitante; enamorara-o a beleza de Ana; simpatizou com os louros cabelos da filha de Febo; os olhos azuis da lisboeta faziam-lhe tais sensações, animavam-lhe tais desejos, que jurou não abandonar a empresa, sem que ao menos tivesse provado num beijo, uma gota do néctar divino, que de longe adorava, lambendo os beiços em suspiros, como o pobre que comia o pão com o cheiro dos guisados.
Uns após outros os planos de campanha se abandonavam logo depois de imaginados; a fortaleza a entrar era forte e bem guarnecida, as muralhas altas, o fosso profundo. D. Alonso mordia já os beiços de impaciência e estava disposto a deixar em paz a sua intentada conquista, quando uma vez, que, depois de muitas era determinada pelo castelhano, ser a última, voltando-se na rua, D. Alonso deu com os olhos num vulto seu conhecido.
A expressão de alegria que se lhe viu no rosto foi extrema; estimou mais encontrar aquela triste figura, do que os belos oilhos e os louros cabelos da menina Moniz. O vulto, que tamanha impressão produzira no ânimo contristado do castelhano, saía de casa de Feboi, e caminhando calçada abaixo foi até ao largo da Sé, aí tomou por uma das tortuosas e estreitas vielas que penetravam no coração da cidade, triste coração chamado Alfama.
Escusado é dizer que nesse dia o castelhano acabou desde logo o seu costumado passeio e largou na pista do vulto, que era um vulto de mulher. Apenas fora do alcance das vistas da janela de Febo, o castelhano dobrou o passo e deu afinal com a mulher, que era uma velha, penetrando na estreita e íngreme travessa; D. Alonso julgou cair num poço, mas prosseguiu: em poucos minutos tinha topado a caça.
-- Olá, tia Margarida ! Então anda um homem a quebrar as pernas por estes malditos becos, a sujar-se nestas lamas, e você corre que nem um ganso! Ouça cá, mulher.
-- Por aqui?, meu fidalgo! Venha na santa paz de Deus, a Virgem Santíssima o abençoe e preserve de maus olhados, e feitiços e quebrantos...
-- Bem, bem...
-- Que são coisas muito para temer. T'arrenego, cruzes demónio! Deus o livre, meu fidalgo! Todas as noites rezo por sua intenção um rosário à Senhora dos Olivais, que cá para mim é da maior devoção, e merece-a, que muitos milagres lhe devo.
-- Obrigado, tia Margarida. Quantos cruzados me custa cada rosário?
-- Não diga tal, fidalguinho! No céu lhe levarão em conta as esmolas que deu à pobre serva de Deus.
Assim continuando nesta edificante prática o castelhano e a velha tinham chegado à casa da última. Creio bem que pouco valeriam a D. Alonso os rosários da velha à vista do sem números de pragas vociferadas cada vez que metia as botas num lameiro, cada vez que as imundícies despejadas do alto das janelas lhe salpicavam o luxuoso gibão.
Entraram os dois; D. Alonso sentou-se sem mais cerimónia numa cadeira de pau, e Margarida correu ao fundo da casa, onde havia na parede um nicho com uma N. Senhora, e muitas fitas e muitos laços e muitas flores velhas, tudo empoeirado, tudo enegrecido; ajoelhou -se, murmurou umas rezas; no meio delas voltou-se mesmo de joelhos, e disse ao castelhano :
-- Esteja à vontade, meu fidalgo. É sua esta casa.
E tornou a voltar-se para o oratório, e continuou a ladainha de orações, batendo com estrondo no peito e beijando o chão.
Margarida era encarquilhada, feia, repugnante, negra e suja, como digna habitante da Alfama, como hipócrita, como velha, que era. Mísero fim a que levam a ignorância e a miséria, os dois únicos verdadeiros demónios, que há neste mundo.
Acabada a reza, Margarida veio para ao pé do castelhano, e disise-lhe com voz melíflua:
-- Então que traz hoje por cá o meu fidalgo? Ih! Como vem casquilho! Pena é que se sujasse por estas imundícies de becos... Com a ajuda de Deus espero, que hei-de servi-lo como sempre, naquilo para que prestar...
E Margarida calou-se, esperando a confidência do suposto fidalgo; adivinhou logo que andava ali empresa amorosa, porque era para ta-s negócios que D. Alonso usava buscá-la e neles, força é dizê-lo. Margarida era prática, expedita e assisada como poucas.
-- Ouça cá, tia Margarida, quero encarregá-la de uma comissão...
-- Novos amores, hein, fidalguinho?... descanse, que se há-de fazer o que quiser, com a ajuda de Deus e N. Senhora, e o trabalho e manha desta sua criada.
Era justa a velha.
-- Novos amores sim, mas amores sérios agora, Margarida.
-- Sempre são sérios... nestas alturas.
-- Quando são para rir então?
-- Quando! Quando!? Noutras ocasiões que V. mercê muito bem conhece... Com seriedade e temor de Deus é que se governa o barco, para que chegue ao porto, meu fidalgo.
-- Engana-se, tia Margarida, o caso é agora outro. Trata-se de maior negócio, e por isso a espórtula será também maior.
-- Anjo bento! Virgem Santíssima! Deus do céu! Quem lhe fala nisso! Para que quero eu dinheiro senão para ter a minha candeiazinha ali no meu oratório, e de tempos a tempos comprar um vestidinho novo à minha Senhora, que muito rica não pode andar, tenha ela paciência; os cobres não chegam... mas para mim, para mim... nada!
-- Sossegue, mulher, não lhe digo o contrário. O dinheiro é a paga do trabalho, se há mais trabalho a paga...
-- A esmola.
-- A esmola deve ser mais avultada. A velha concordou mentalmente.
-- Depois dê-lhe você lá o destino que quiser, que com isso nada tenho. Mas vamos ao caso. Eu quero ter uma entrevista com uma das filhas de Febo Moniz.
-- Oh!
Este grito de espanto, espantaria a outro que não fosse D. Alonso, usado na convivência com Margarida. O oh! Não era mais do que táctica especuladora.
-- Não se espante, mulher ; para mim não pegam essas espertezas. Vamos a isto pronto e limpo, que me não posso demorar muito.
A velha franziu o rosto numa careta medonha, e disse:
-- Senhor D. Alonso, Deus me leve em conta de meus pecados o que lhe sofro! E a minha Senhora, que veja bem por quanto me custa essa pobre luzinha que a alumia.
-- Não se zangue, mulher; não estejamos com estas coisas. Veja lá: quer? Senão...
E D. Alonso levantou-se.
-- Oh meu fidalguinho, eu não me zango ! Não me zango ! Ora sente-se, está de pé, descanse o seu chapéu! E que lindo ele é! Deixe mirar-lho bem! Então dizia o meu fidalgo -- continuou Margarida, com o chapéu nas mãos e os olhos fitados avidamente na presilha de brilhantes pedras -- , que estava perdido de amores por uma das filhas de Febo... e qual delas? que eu a ambas conheço e decerto com uma seria obra muito mais dificultosa... ora diga-me, é alta?
-- Também não sei.
-- Má vai ela. Boas mulheres são as mulheres altas, Deus nos livre das baixas. A Virgem Santíssima era bem alta; diga-me, tem cabelo louro ou preto?
-- Louro e olhos azuis.
-- Bem, bem, acertou, é a alta. Gentil menina! Aquela sim, que é uma boa dona da casa de seu pai, muito devota da Virgem Santíssima, muito temente a Deus...
-- Á sua moda, tia Margarida?
-- E muito minha amiguinha -- acabou a velha fingindo não ouvir a interpelação do mancebo. -- A outra -- continuou -- , a outra essa não, que é desdenhosa e soberba como o pai : isto só aqui para nós anda sempre entregue a leituras de livres ímpios, ouço até que não é boa cristã... Mas diga-me, diga-me Sr. D. Alonso, que eu não quero falar nas vidas alheias, mas conte-me como foi isso. Olhe que o negócio é sério, e o Sr. Febo Moniz é muito capaz, mesmo velho como está e doente, de lhe pôr as tripas ao vento... Veja lá em que se mete.
-- Não tenha medo. Margarida, deixe isso comigo.
-- Deixo, mas não sem receio! Deus o defenda e o proteja, e a Virgem Santíssima o cubra com o manto da Sua divina graça.
-- Diga-me, Margarida, a menina alta e loura como se chama?
-- Ana.
-- E a outra?
-- Maria.
-- Obrigado... Agora veja lá, tome bem cuidado no que lhe disse. Desejo uma entrevista com Ana, e acredite que hei-de pagar bem.
-- Outra vez meu fidalgo! Quem lhe fala em paga? E não é para paga, é esmola. Vá descansado, que será servido. Com Ana posso tudo, fosse com Maria, que o caso mudava de figura... não quero dizer com isto que se não arranjasse. O poder de Deus é para tudo, e a minha Senhora e os meus santinhos, haviam de ajudar-me.
-- Bem, Margarida, tome, guarde... para a candeia e para o vestido...
-- De Nossa Senhora.
-- Pois sim.
-- Oh meu fidalguinho, tenha dó de mim! O Inverno tem sido tão frio...
-- Também mata o bicho, tia Margarida?
-- T'arrenego, cruzes! Bebidas, eu!
-- Julguei... pelo cheiro.
-- Quê?! Cheirava? Pois olhe que havia já bastante tempo... e, mais, foi uma serva de Deus que se amerceou de mim... que nas tavernas Deus me livre de pôr pé.
-- Ás claras.
-- Nem às escondidas, Sr. D. Alonso.
-- Bem; lembre-se do que lhe recomendei, e logo que haja novidade vá-me avisar. Adeus.
-- Então, meu fidalgo e a pobre velha fica a tremer de frio com uma vasquinha que já não tem pele, que é mesmo uma rede de pardais?
-- Ah, ah ! Tome estes cruzados, ande ; estes agora são para si?
-- São, são; como há-de uma serva de Deus viver? Alonso saiu. Margarida ficou afagando os cruzados, os de N. Senhora, e os seus, e murmurando:
-- Com Ana não me dá cuidado. Ela é ambiciosa, faço- -lhe do castelhano um rei, e tenho-a caída.
D. Alonso, fechado a porta, ia a pôr o chapéu, quando viu que lhe faltava a presilha ; começou a gritar : Ladra ! -- e esteve para tornar, mas depois lembrou-se, de que era de pedras falsas.
Fiel no cumprimento do ajuste e esperando novos cruzados para vestir e alumiar a Senhora, Margarida não perdera tempo para pôr em execução a incumbência de D. Alonso.
Naquela mesma tarde, porque a visita do castelhano teria sido pelas onz horas da manhã, a velha saiu de Alfama e passou pela casa de Febo Moniz.
As duas irmãs trabalhavam juntas na salmha em que encontrámos Maria lendo o seu Bernardim, como ela lhe chamava. A beata, que pela sua hipocrisia tinha ganho simpatia e certo respeito principalmente à boa Ana, era recebida como familiar; entrou portanto, e entrando dizia o costumado :
-- Deus seja nesta casa ! -- pondo as mãos e levantando as pálpebras e as pupilas ao tecto, à falta de céu,
-- Boas tardes, Margarida -- disseram-lhe as duas ; e Ana, que era mais devota, ajuntou:
-- Venha na paz do Senhor.
-- Estão lavrando, não é assim? E que bonitos lavores, minhas pombinhas! Faz gesto ver meninas assim! Benza-as Deus!... Ora digam-me, há notícias de vosso pai? Dizem-me que passou de Almeirim para Santarém, onde são as Cortes agora, será verdade?
-- Ê verdade, é.
-- Deus o tenha na sua santa guarda; e o livre de maus enredos! Má coisa são aquelas voltas de Cortes... Ora não era o verdadeiro dizer Sua Alteza o que quer, que o Sr. D. Henrique é homem de são juízo e muito temente a Deus, e amigo de seus filhos... que seus filhos todos nós o somos. Que acha, menina Maria? Está tão séria, tão sisuda...
-- Não estou, Margarida.
-- Mas, diga-me, o que acha? Não lhe parece que era melhor? A menina às vezes conversa nestas coisas com seu pai... e nos seus livros há-de ler muita coisa de instrução... não é assim?
-- É assim, é; -- tornou Maria enfadada.
-- Não me quer dizer então o que acha?
-- Quero, quero... acho que sim; -- respondeu, e, largando o lavor, saiu.
A velha astuta tinha logrado o seu fim, que era afastá-la.
-- A modo que foi zangada comigo... Deus me perdoe se a ofendi.
-- Não foi, não -- tornou Ana -- ; desculpe-a, ela é assim, tem um mau génio, mas é boa rapariga e muito sua amiga.
-- Muito boas são ambas, são uns anjinhos, mas eu cá sempre tenho mais uma queda para a menina...
-- Obrigada, Margarida.
-- Obrigada, não tem de quê. Quando eu converso com a minha Nossa Senhora, porque eu converso horas e horas com ela, sempre lhe digo: olhe por ambas. Virgem Santíssima, a ambas proteja mas à menina Ana dê mais um bocadinho do seu manto...
-- É injusta. Eu não mereço mais do que ela.
-- Merece. Eu receio muitas vezes pela sua mana. Aquelas voltas de livros e de papé"s com que se intromete, que mais são para homens que para mulheres, não sei se lhe farão bem... vê-se tanta coisa! Deus me defenda, se quero dizer mal com isto, Maria é uma pomba, mas gostava de a ver ma.is como a menina é... mais...
-- Não diga, Margarida, minha irmã é uma santa. Margarida tinha camihado em mau terreno, a lisonja ia mal cabida, porque Ana era sobretudo amiga da irmã.
-- Perdoe-me, e não ralhe comigo; -- tornou a velha com a quarta parte de uma lágrima -- fora o mais que pudera arranjar nos cantos dos olhos.
-- Perdoo, mas não me torne a dizer coisas assim. Sabe quanto a estimo. Margarida, tendo-lhe encontrado bastante desvelo, bastante amizade; e vejo que é uma boa cristã e boa alma.
-- Deus lhe pague, o que me diz.
-- Não falemos mais nisso... Ora diga-me, como acha este lavor? Parece-lhe bem acabado?
-- Oh se está, e como não havia de estar, feito por essas mãos? Há-de um dia fazer-me o que lhe pedir, sim?
-- Não o faço sempre?
-- Faz, faz há-de bordar-me um manto e um vestido para a minha Senhora.
-- Pois sim, Margarida.
-- É pena, que uma menina tão bonita, tão prendada, tão virtuosa, queira ficar sem companhia... sozinha!...
-- Não diga tal, Margarida, não me é bastante companhia meu pai e minha irmã, que me amam ambos como se pode amar?
-- Não sei, Deus me perdoe, mas às vezes peço bem devotadamente à Mãe Santíssima para que a veja casada com um fidalgo bem lindo, bem rico, bem seu amigo... não faço bem?
-- Faz bem, faz; -- tornou Ana sorrindo. Margarida sorriu também, mas lá por dentro.
-- Quem me dera, e que fosse já! Prometo rezar quantos rosários puder, prometo um vestido novo e um manto...
-- Que eu hei-de bordar.
-- Que há-de bordar, sim, que há-de bordar!... Só este pensamento me dá anos de vida! Vê-la aoi lado dum moço airoso, trajando galas, fidalgo... enfim tudo o que a menina merece, muito menos do que merece!
-- Você engana-se. Margarida. Nem tanto mereço, nem também espero. Para que me está aí a pintar o que não posso vir a ter?... para me fazer depois ter pena de ser, o que sou?
-- Quem lhe diz tal?... E também, ouça: se a pobre velha fosse quem talvez ajudasse, para que o sonho se tornasse verdadeiro?
-- Que diz Margarida? -- tornou Ana meia assustada, meia alegre pensado no gentil castelhano.
-- Digo-lhe, que talvez a divina providência me tivesse fadado para um dia ainda fazer a felicidade de alguém.
-- E esse alguém seria eu?
-- Quem me dera que fosse!
-- Ouça, Margarida... diga-me por uma vez... ele falou-lhe?
-- Falou, falou -- respondeu misteriosamente a velha que num momento adivinhou tudo o que o castelhano lhe não contara.
-- Então que lhe disse?
-- Ora que havia de dizer? O que namorados sempre dizem! Disse-me que a estimava, que a adorava, que a quer a para si. Admira-se? Os castelhanos são assim!
-- Ele é castelhano ? -- tornou Ana lembrando-se do pai. Margarida que não contara com este barranco, julgou o caso perdido, mas não desanimou.
-- É castelhano, é, o que não impede que seja muito temente a Deus, muito boa pessoa, que a estime muito... e que também seja podre de rico e fidalgo como os que o são! É mesmo o noivo, que a merece.
-- O que me admira -- tornou Ana confusa da feição importante que a conversa tinha tomado -- ; o que me admira, é ser ele tão pouco recatado, que tantas coisas lhe dissesse: é uma ofensa.
-- Não é ofensa, não menina ; pelo contrário é amor. Eu lhe conto. D. Alonso, porque ele chama-se D. Alonso, foi criado em Lisboa e eu fui sua ama de leite. Já vê que sou quase sua mãe.
-- Sendo assim... mesmo assim, parece-me, que melhor teria feito não falando.
-- Não tinha, não. Se ele também me contou como lhe queria, era porque desejava outra coisa e foi isso, que me pediu.
-- Que lhe pediu ele, Margarida?
-- A coisa mais simples, mais natural, deste mundo. Disse-me que como a menina não recusava a corte que lhe fazia, era para ele a maior felicidade vê-la e falar-lhe. Eu tornei-lhe que não contava alcançar isso, porque sabia quanto era de si tímida e recatada, mas prometi não deixar de cumprir o pedido, e é isso o que me traz hoje cá outra vez.
-- Fez bem de responder assim. Margarida, porque eu nunca deixarei tal, e você andou muito ruim passo, encarregando-se da incumbência.
-- Bento Deus! Bento Deus! Aqui está para que eu quero ser boa para todos e a todos servir!
-- Não se zangue, mulher!... diga-me uma coisa mais, o castelhano, D. Alonso, é fidalgo?
-- É fidalgo e grande fidalgo.
-- Que título tem, Margarida?
Aqui a velha atrapalhou-se com esta pergunta à queima-roupa,
-- Ora eu não sou forte nisso, tornou como enleada, mas se me não engano, parece-me que D. Alonso é filho do marquês de Belgaro, ou o quer que seja, que me devo enganar no nome; mas o que lhe afianço é que é fidalgo e rico como poucos.
Ana murmurou: -- Um marquês! E voltando-se confidencialmente para a velha, disse-lhe:
-- E ele é estouvado, jogador, libertino?
-- Nada disso, minha menina, é uma pomba sem fel, mesmo até um pouco Alonso, talvez.
Ana sorriu e tornou:
-- E como poderia eu vê-lo e falar-lhe, Margarida?
À velha luziram os olhos, viera-lhe a fortuna donde esperara a ruína.
-- Em qualquer parte, minha menina, mas deixe isso comigo que eu tratarei, e descanse, que não há-de acontecer nada mau com a ajuda de Deus e de Nossa Senhora.
Nisto sentiu-se tremer o reposteiro, e Maria entrou. Ana estremeceu toda, a irmã viu-o e encarou terrivelmente a velha; esta, receando daquele lado a procela, dobrou humildemente a cabeça e saiu dizendo:
-- Deus as guarde, minhas meninas, até outro dia.
Maria reparando na singular expressão da fisionomia da irmã, disse-lhe:
-- Que tens, Ana?
-- Eu nada, não me sinto boa.
Era a primeira vez que entre elas se mentia, e Maria conheceu-o.
Poucos instantes depois Margarida cruzava-se no largo da Sé com D. Alonso, e dizia-lhe:
-- Está o negócio arranjado com a ajuda de Deus! Quando quiser a verá. Não merece a velha para uma vasquinha nova? Ande lá, vá contente, que não suei pouco.
D. Alonso lembrou-se do caso da presilha, mas como era falsa deu-se por contente da peça, que sem o querer pregara à beata, e foi-lhe dando alguns cruzados.
D. Alonso estava alegre.
D. Alonso e Margarida concertaram habilmente a rede em que Ana havia de cair. A primeira ideia fora escolher um lugar recôndito, aí preparar convenientemente uma sala onde a menina fosse encontrar o castelhano, e onde este, é claro, se apoderaria dela. Era o mais fácil, o mais pronto, o mais verosímil; mas Ana transtornou esse plano. Quando a beata lhe pintou com as cores, de que usava, a disposição tomada, Ana ofendeu-se e disse-lhe, que nunca tal faria, e Margarida que era esperta conheceu, que remava contra a maré, sem poder domá-la. Dirigiu-se portanto o leme para outro norte. Combinou-se que um dia em que Maria fosse a Almada visitar Manuel de Sousa e Madalena de Vilhena, pessoas muito das relações do pai e a última extremosa amiga da filha mais nova de Febo, combinou-se digo, que se afastaria de algum modo a ama, velha companheira que vira nascer as duas meninas e lhes supria o lugar de mãe, e na presença de Margarida, Ana receberia o castelhano. Foi o máximo que se alcançou. Ana, boa no fundo, não suspeitava a mais pequena maldade, no arriscado passo que ia dar, mas tremia, tremia instintivamente porque a razão lhe segredava o erro, e porque receava que o pai alguma vez viesse a saber o que ela fizera; Ana imaginava o castelhano como a velha lho pintara, e quando depois de muitos sustos, de muitas lágrimas, vinha a reacção, dizia consigo:
-- Posso errar; erro talvez; mas com um erro que não terá funestas consequências, logro uma posição brilhante, um futuro como sonho, como sempre tenho sonhado!
Quanto se enganava!
Era chegado o dia; Maria fora para Almada porque Madalena a viera buscar, Domingas, que assim se chamava a ama ou aia saíra e devia demorar-se bastantes horas na compra de previsões de boca e vestuário para a família. Só restavam em casa Ana e um velho escudeiro, bom e pobre homem, submisso e fiel companheiro de Febo havia muitos anos.
D. Alonso exultava. Tudo se combinara às mil maravilhas, e nem um só ponto falhava; para cúmulo de felicidade o tempo, que nos últimos dias se conservara límpido e sereno, amanhecera chuvoso e de tempestade ; e assim evitava a perigosa vigia das vizinhas curiosas e dos passeantes importunos.
Era já dado meio-dia quando D. Alonso chegava acompanhado pela beata.
Ana estava sentada numa marquesa com o corpo reclinado numa almofada; tinha nas mãos uma viola, e quando o reposteiro se levantou murmurava ainda as últimas notas de um romance.
A tristeza, que tinha impressa no semblante, dava-lhe uma nova beleza, como que sensibilizava o seu rosto frio e impassível: era na verdade formosa a filha de Febo; a vaidade fizera-a vestir com esmero e distinção maiores que o usual: um rico firmai de brilhantes realçava-lhe a brancura da pele, segurando-lhe no peito o vestido de seda azul, que caía em fartas pregas; os cabelos louros e encrespados elevavam-se-lhe sobre a fronte em do:s bandeaux presos no alto por uma rica pluma de pérolas e ametistas. A posição sedutora aviva-Ihe a beleza. D. Alonso vendo-a, e vendo-a tão de perto esqueceu a sua primitiva ideia, isto é a peça que queria pregar a Fernão, e ficou arrebatado, verdade ramente seduzido pela formosura da sua conquista.
D, Alonso adiantou-se com um porte senhoril e modesto, com aquela refinada afectação, que à força de estudo, deixa de o parecer, e se confunde com a naturalidade. O castelhano também se não esmerara menos na perfeição do traje. Vinha ostentoso, mas elegantemente rico. Chegado próximo da menina, curvou a cabeça, tendo numa das mãos caídas ao longo do corpo o chapéu, e pousando a outra sobre o peito.
Ana reparava nos anéis, que lhe ornavam os dedos, e eu não sei se ele os trouxera expressamente. Tremia como varas verdes, mas não deixava por isso de examinar atentamente o castelhano e lisonjeava-se do exame. Homem assim não podia deixar de ser marquês. D. Alonso representava magnificamente o seu papel, era rematado actor; o deslumbramento que a beleza de Ana produzira nos seus sentidos, ajudava poderosamente os seus dotes naturais. Via-se-lhe no rosto uma modéstia, um recato! Nos olhos meio cerrados, brilhar através das pestanas um tal ardor, que Ana creu nele e deu graças a Deus de o haver encontrado.
Margarida sumira-se, compreendendo que deixando-os sós mais facilmente o seu cliente se haveria no trabalho.
-- Peço-vos perdão, senhora, do que pedi e dou-me por feliz de o ter alcançado. Nunca na minha imaginação poderia crer em tão grande sorte, mas o que sinto por vós, fazia-me crer que outro tanto sentireis por mim. Por isso esperei, e fiz bem. Vejo agora coroada a minha esperança e com ela rematada a minha ventura...
Ana estava confusa e perplexa, não sabia que respondar. D. Alonso conserva va-se de pé; ela replicou-lhe:
-- Por que se não senta...
O castelhano puxou um tamborete e sentou-se.
-- Não sei se me arrependo do que fiz -- tornou Ana -- , creio porém que vós, cavalheiro, mo não fareis arrepender.
-- Não decerto, Ana, não sei mentir às tradições de meus avós, sou o que eles foram; se os homens são hoje outros, eu sei julgá-los pelo que valem e portar-me como devo.
-- É uma obrigação.
-- Uma obrigação e um instinto. O sangue dos cavaleiros não desmerece, nem se turva.
-- Ainda bem. Não me enganei quando vos vi. Adivinhei-vos. É mau passo o que dou. Desgraçado seria se encontrasse outro que sois.
-- Descansai.
-- Descanso, descanso por isso concedi.
Era difícil para ambos, e muito mais para a menina, a posição; tudo o que se dissera não tinha passado de prólogo; ambos o sabiam, e o assunto apresentava-se custoso de tratar.
-- Tangíeis ? -- começou o castelhano,
-- Tocava, sim; é minha companheira a viola em horas de tristeza! A melodia dos sons amortece as penas. Toca também, Sr. D. Alonso?
-- Pouco sei, mas amo a viola, e nela encontro consolação tão meiga como acabais de dizer.
-- Querereis ser bom ?
-- Que posso eu querer, mais que servir-vos?
-- Obrigada. Tocai pois.
Ana viu uma nova prorrogação à batalha, e, cobarde, aceitou-a. Tomou a viola, e voltando-se deu pela falta de Margarida. Tremeu. D. Alonso deixou cair no chão o chapéu e experimentando as cordas, foi ao mesmo tempo examinando o rosto da sua conquista. O castelhano era bom tocador e tinha uma bela voz; começou:
Que encienden pechos de hielo, Suben por el aire ai cielo, Y en legando son estrelas.
D. Alonso ia examinando a fisionomia da menina, esperava dominá-la pela música e a outra qualquer dominaria, que não a ela fria e pouco sensível como era. Ana tinha pintado no rosto o temor, porque dera pela falta de Margarida. O castelhano adivinhara-o já e continuou:
Falsos loores os dan, Que essas oentellas tan raias No son nel cielo mas claras, Que en los ojos donde estan. Porque cuando miro en ellas Lo como alumbran ai suelo, No sé que sean nel cielo Mas sé que acá son estrellas. Ni se puede presumir Que ai cielo suban senora; Que la lumbre que en vós mora, No tiene mas que subir; Mas pienso que dan querellas A Dios nel octavo cielo. Porque son acá en el suelo Dos tan hermosas estrellas.
D. Alonso acabara. Ana admirara a letra, a música e a execução, mas não lhe pudera a admiração dominar o temor; não se iludiu o castelhano, e vendo que não ganhava com aquele jogo, desistiu.
-- Bonita letra, bela música e melhor execução, Sr. D. Alonso.
-- Não o mereço, senhora, não o mereço; louvai o poeta, que vos louvais a vós.
-- A mim não, a Portugal sim.
-- A vós sim, bela portuguesa. Só olhos como os vossos poderiam ter inspirado versos assim.
-- É lisonjeiro, Sr. D. Alonso?
-- Não são lisonjas, são verdades, Ana. Dá-me licença que lhe chame: minha Ana?
-- Sua, porquê ?
-- Porque a amo, não o sabe ?
-- Disse-mo já?
-- Não com a boca, mas com o coração... e do coração lhe digo hoje... que a amo, Ana!
-- Como provar-mo ?
-- Oh Ana, Ana! Oh minha Ana! Como provar-lho? Quer mais? Deito a seus pés o meu nome, a minha fortuna... aqui os tens!...
E nisto o castelhano dobrou o joelho defronte da menina.
-- Levante-se, senhor!
-- Não, não me levanto, Ana, deixa-me falar-te assim! Deixa-me dizer-te o que há muito me escalda o sangue, me faz pular o coração! Amo-te, Ana, amo-te como nunca homem amou! Oh amo-te como o teu Camões amou Natércia! Sinto-me pequeno, mesquinho, nulo ao teu lado! És o sol que me alumias, és o ar que respiro, a água que bebo! Ana, Ana! É-me impossível existir sem ti; por ti vivo, por ti morrerei...
A menina estava aterrorizada, o ardor do castelhano era como um incêndio, em que receava lhe ardesse a ventura.
-- Levante-se, senhor, levante-se! Assim usavam seus avós? Eram assim com uma pobre donzela indefesa e fraca?
-- Eram -- tornou o espanhol -- , eram quando amavam, como eu te amo!
Ana ia descobrindo a traição, em que caíra, e caíra de modo, que não se poderia salvar. Gritar por socorro era perder-se. Tomou ânimo e continuou:
-- Levante-se homem, seja honrado e leal!
-- Eu o sou, eu o sou! Leal no amor, honrado no amor! Deixa-me beijar-te esta mão, Ana; num beijo te dou tudo o que sou, tudo o que tenho! Estou a teus pés, dispõe. Escravo serei feliz, liberto matar-me-ei. Serás marquesa, serás rainha, deslumbrarás tudo com a tua riqueza, com o teu esplendor! O castelhano não previra, que as cordas muito estendidas partem, e a corda sensível de Ana partira; a oferta não lhe fez efeito.
-- Deus acudi-me, acudi-me Virgem Santíssima! -- gritou Ana, com um daqueles gritos que são vibrantes dentro da alma, e os lábios proferem baixinho.
-- Para que imploras Deus e a Virgem ? Ana, atende-me e serás feliz, ama-me e serás grande entre os grandes da terra! Ana, o teu amor te salvará, serás rainha no céu, rainha do amor!
O castelhano adiantara os braços e com eles cingira o corpo da menina; esta pendia-lhe quase desfalecida sobre os ombros. Arfavam convulsivamente os peitos de ambos, misturavam-se as respirações; D. Alonso estava inebriado de sensualismo, beijava os cabelos e o rosto da menina, beijava-Ihe as mãos e o colo, e apertava-a, apertava-a contra o peito como se quisesse devorá-la!
Nisto sentiram-se falas e passos, como de quem se aproximava, e D. Alonso empalideceu; julgou-se preso no laço em que viera prender. Ana como que acordou, ergueu-se num salto, desprendeu-se dos braços do castelhano, e disse-lhe baixinho :
-- Se me ama, salve-me!
D. Alonso disse-lhe que sim, porque salvá-la a ela, era salvar-se também a si.
-- Que fazer? -- perguntou. Ana apontou-lhe a janela.
D. Alonso foi até ao parapeito, e medindo altura, pensou que não valia a pena, e também que ficando estendido na rua estava o caso do mesmo modo descoberto. Voltou portanto e ficou imóvel. Ana disse-lhe:
-- É valente, cavaleiro! Eram assim seus avós? D. Alonso sorriu, mas não respondeu.
-- Ali, senhor marquês, ali! Esconda-se com os meus vestidos. Por piedade! Não há perigo, descanse, não parte as pernas!
D. Alonso entrou e efectivamente se escondeu entre os vestidos, pensando que mais macio encosto eram sedas, do que as lajes da calçada.
Era tempo já, porque Maria entrava, como o anjo da guarda, na hora do perigo.
-- Por aqui, mana? Julgava-te mais longe. D. Madalena voltou?
-- Voltou sim ; estava tempestuoso o rio e não nos atrevemos a passá-lo. Mas que tens tu? Vejo-te tão singular, tão pálida, parecendo tão assustada!
-- Não é nada, minha irmã. Adormeci sobre as almofadas tive um sonho terrível.
-- Julguei ouvir-te falar.
-- Talvez... é possível... que o pesadelo me fizesse falar dormindo.
Ana com efeito julgava um pesadelo o que lhe sucedera, mas a existência de D. Alonso no guarda-vestidos era-lhe prova bem evidente de realidade. Maria saiu, limpando e escondendo as lágrimas.
Tomé se chamava o escudeiro de Febo Moniz. Há pequeninas coisas, que muitas vezes destroem ou concorrem para grandes empresas. Napoleão, dizem, que devera a coroa a umas botas. Parece também, que não há maldade, que não deixe sempre um rastilho para a denunciar. Tem o diabo uma capa, com que cobre e uma campainha, com que descobre.
Tudo isto vem a propósito da cena precedente, mirífico resultado das enredadas maquinações da tia Margarida e do imaginário marquês. Os dois esqueceram o criado, e o criado deu pela coisa como diz o povo na sua poética e expressiva linguagemi. O facto é que Tomé, deitando-se às horas do costume, mal tinha pregado olho, acordou sobressaltado sem ter a que atribuir a interrupção do sono nele por uso tão sossegado e profundo; tornou a embrulhar-se na manta, mas breves horas eram passadas quando acordou de novo, e então ouviu cantar os galos nos quintais vizinhos; deu ao diabo os matutinos cantos, e outra vez se enroscou na manta cha- mando o sono, mas então pareceu-lhe ouvir um certo rumor de passos, que desciam a escada; Tomé levantou-se e assestou o ouvido contra a porta. Se fossem ladrões! Pensava ele e tremia todo, porque nunca fora belicoso; mas, tornava logo: subiam, não desciam; descer para quê?... só se fosse para virem ter comigo! E tremia de novo.
Assim pensando ia ouvindo os passos aproximarem-se cada vez mais, e com alegria conheceu, que eram de um homem só; instantes depois via atravessar diante de si, com as tábuas da porta de intermédio, o vulto do castelhano. Tomé não ousou crer, esfregou os olhos porque se julgou vítima de algum sonho, mas conheceu bem, que estava acordado; o frio, com que lhe tremiam as pernas, eram-lhe prova mais que evidente disso. Sentiu então, tirar cautelosamente a tranca de carvalho, encostá-la junto à parede, correr o ferrolho, levantar a aldraba, descerrar a porta e fechá-la depois. Tomé abriu com cautela a sua, correu de novo o ferrolho, tornou a pôr no seu lugar a tranca, persignou-se, voltou ao quarto, embruIhou-se na manta, quis dormir, mas escusado é dizer, que o não pôde.
A este tempo D. Alonso caminhava contente por se ver livre do embaraço, em que estivera, mas desgostoso ao mesmo tempo por nada ter adiantado, antes ter perdido muito, na conquista cobiçada da formosa menina.
Mal rompeu a alvorada, Tomé estava fora da cama, abafava-se contra o frio e saía. Vamos com ele.
Chegando ao largo da Sé, o velho estacou jubiloso e caminhou direito a um frade, que parara também, ao vê-lo.
-- Bom madrugador é você, Tomé.
-- Não melhor que vós. Sr. fr. Marcos; julguei que só mais tarde viria dizer a sua missa à Sé; ia nesta hora procurá-lo a Belém.
-- Temos então pecado grosso, ou nova de importância?
-- Nada, nada; -- tornou Tomé replicando à pergunta intencional do frade.
Tomé era quem de tempos a tempos fazia diferentes visitas, levava certas prendas e socorros a diversas pessoas, que o frade Jerónimo tinha sob sua imediata protecção.
-- Nada -- tornou Tomé -- ; é verdade que há dias a Anica se me queixou, e quem sabe se a estas horas existirá já algum novo afilhado de v. reverendíssima.
-- Estimo, e como a achastes? Estava boa e gorda?
-- Mesmo guapa, e de bom parecer. Só me disse, que muito desejava uma visita sua, porque necessita muito falar-lhe; bem vê que, como o outro que diz, há despesas de enxoval ...
-- Et cetera, et cetera... -- replicou o frade.
-- Justamente, Sr. fr. Marcos.
-- Ora bem, meu velho, então que mais me queres?
-- É um caso sério, Sr. fr. Marcos, um caso que necessita pensado, e por isso desejo uma consulta muito em segredo.
-- Se é assim, entremos aqui na Sé; a estas horas ainda os cónegos dormem o sono dos justos; deve estar deserta a igreja a não ser alguma velha beata...
-- Deus nos livre das beatas.
-- Porquê, homem, fizeram-te algum dano?
-- Não sei, logo ouvirá.
E assim, entraram no templo e penetrando numa das naves laterais, coseram-se com um feixe de colunas e começaram falando:
-- Pois Sr. fr. Marcos vou-lhe contar o que me sucede ; anda aqui por força obra do cão tinhoso...
-- Toma água benta, Tomé, e persigna-te.
O velho obedeceu.
-- Bem, de que te ele não mora no corpo estou eu certo; vamos ao caso.
-- Eu lhe conto. Como sabe, o Sr. Febo anda metido nessas voltas de Cortes...
-- Tão tolo é.
-- Em suma, nisso não entro, o facto é que anda e deixa por cá abandonada a sua casa e as suas duas filhas, que são ambas uns anjinhos de tentar o mais santo...
-- Isso sim! -- tornou o frade com um gesto concupiscente.
-- E o Sr. fr. Marcos que é entendedor!
-- Vamos, homem, acaba.
-- Pois como lhe digo o Sr. Febo dexa tudo ao Deus dará, para se entregar a essas coisas de Cortes, e o facto é que, como o outro que diz, parece-me que temos mouro na costa... e bem na costa.
-- É só isso?
-- E queria mais vossa reverendíssima?
-- Bem pouco é. Para que são elas bonitas ?
-- Ser bonitas é uma coisa, galantear mesmo é coisa que eu não levo a mal a ninguém; a menina Maria vai fazendo das suas, e eu nunca fiz escarcéu nenhum por causa disso... agora aquela sonsa da menina Ana! Olhe, que receber um homem e mandá-lo embora alta noite, quando canta o galo, olhe vossa reverendíssima, que é caso mais sério,
-- É, isso lá é. Então Ana?...
-- É como lhe digo Sr. fr. Marcos. Noutra qualquer não me importava, havia de informá-lo; mas com a filha do meu bem Sr. Febo!...
Cumpre dizer que Tomé embebido todo o dia da infeliz entrevista de D. Alonso na leitura duma cópia manuscrita dum auto inédito de Gil Vicente, sabendo que Maria havia saído, não dera pela sua volta, e assim, julgando Ana sozinha em casa, acertara em parte com a verdade, do mesmo modo que podia, sem o querer, ter-se redondamente enganado.
-- Tens razão, Tomé, mas que queres?
-- Que quero? Eu lhe digo. O meu pensamento foi logo um: partir para Santarém e contar tudo ao Sr. Febo; mas vai, tornei: isto de quem leva boas novas é sempre bem vindo, mas quem as leva ruins...
-- Não, homem, vai e conta-lhe tudo.
-- Obrigado, Sr. fr. Marcos ; não obstante eu sempre voltava à minha primeira ideia, e parecia-me que era ingratidão e pecado não dizer a verdade a quem tanto devo; mas também unha algumas dúvidas e não queria ir sem primeiro consultar a vossa reverendíssima.
-- Fizeste bem, e eu digo-te que vás.
-- Ora até que daqui estou descansado.
-- Porquê, temos mais ? Olha que quero ir almoçar. Tenho hoje um petisco! E uma gotita de vinho que me mandaram de Bucelas... hei-de um dia dar-to a provar, Tomé.
-- Quando vossa reverendíssima quiser.
-- Gostas, hein?
-- Não hei-de gostar!... do que é bom... Agora Sr. fr. Marcos, pedia-lhe para ler este auto, que compus...
-- Queres arremedar então o Gil Vicente, meu Tomé? Fraco modelo escolhes ; mais que te tire da cabeça esses fumos de letrado é tempo perdido; e se ao menos te entregasses a fazer uns versos como agora se fazem... agora sim! Agora é que se fazem versos! Aquilo é que é! Não são para vocês, parvos! O mel não é para a boca do asno.
-- Lá isso é verdade, que eu, mais que os leia, os não entendo.
-- Porque és um tolo e não aprendeste latim, nem sabes mitologia, nem conheces as letras gregas, nem leste Virgílio...
-- Não, não sapientíssimo padre, mas eu não sei se Gil Vicente e Bernardim os leram, o que sei é que eles falavam português, e não esta algaravia alatmada de hoje, e a gente entende-os.
-- Porque eles eram uns asnos, como vocês são.
-- Mas, senhor, os autos de Gil Vicente não ganharam um nome para o seu autor, não os aplaudia a corte?
-- Aplaudia, aplaudia! Mas não me venhas falar de gente, que se não pejava de se dizer descendente dos bárbaros do norte, quando a nossa verdadeira origem vem do grande império romano, homem (1)!
(1) Vide notas D e E.
-- Assim será, e nisso não entro que não sei, mas o caso é que os tais versos tão estudados do Sá de Miranda e do Ferreira V) não são para mim; ainda o Camões esse muitas vezes entende-se, e então vale como ninguém! Mas o meu Gil Vicente, aquele meu português Gil Vicente! Há-de vossa reverendíssima ver, que ainda ontem estava lendo o auto das Fadas, e o diabo...
-- Não fale no diabo, homem.
-- Perdoe vossa reverendíssima; estava lendo o auto das Fadas e parecia-me ver o Sr, fr. Marcos: era vossa reverendíssima por uma pena...
-- Pois o patife fez isso?
-- Fez, mas descanse que por certo o não retratou a vossa reverendíssima. Ora é disto que eu gosto no Gil Vicente: é que vamos lendo e parece-nos estar encontrando a nossa gente: olha, aquele é fulano! E vamos a proeurar-lhe as feições e achamos-lhas todas e verdadeiras. Ora isto não é bom, não é ter um bom talento, Sr, fr. Marcos?
-- Não digas barbaridades, homem! Isso é lá talento, é lá nada! Meia dúzia de chocarrices e indecências que sujam o papel e ferem os ouvidos de quem as ouve.
-- Oh Sr. fr. Marcos, e os olhos não se ferem se as vemos?
-- És cabeçudo como um burro, e queres-te meter a falar naquilo que te não compete; as letras são para os doutos, não para vocês.
-- Assim será, mas peço-lhe que leia sempre o meu auto, e se o não achar capaz dê-lhe o uso que merecer.
-- Pois sim, tornou o frade guardando o manuscrito; adeus.
-- Adeus, Sr. fr. Marcos, não se esqueça da Anica.
-- Não; um destes dias por lá passarei.
O facto é que o auto de Tomé não chegou à posteridade, naturalmente por culpa do Jerónimo.
Já este ia a afastar-se quando viu um vulto cosendo-se com a parede, e como querendo sumir-se na sombra; o frade disse-lhe :
-- Oh lá, quem vai aí?
Tomé esperava também ver o resultado. O vulto parou e vindo ao pé do frade, disse-lhe:
-- Dê-me a sua mão a beijar, reverendíssima, e abençoe-me.
-- Deus a abençoe, mulher, e para a outra vez não fuja, e antes que tudo não esteja escutando as conversas dos outros, que o Santo Ofício não é longe.
Margarida, porque era ela, tremeu ao falarem-lhe em inquisição, e por isso, e por ter ouvido a conversa, foi dizendo consigo, enquanto saía:
-- Bem fiz eu em vir rezar aqui logo de manhã. A minha Senhora protege-me. Agora é que eu não ponho mais os pés em casa do Sr. Febo, porque, se a coisa se descobre, estou com a inquisição a voltas. Nada, nada é entrouxar e mudar de pouso; não há-de ouvir mais falar da tia Margarida.
Tomé foi praguejando contra a beata, e quando chegou a casa encontrou Maria que o procurava, e lhe disse:
-- Tomé, tenha você paciência, arranje a sua trouxa, que esta tarde há-de ir para Santarém a encontrar o Sr. Febo Moniz, e dizer-lhe da minha parte, que sem demora venha a casa. Vá ver se há barco hoje mesmo, e se não houver, tome um para si, e ajuste-o para a volta, e sobretudo guarde-me segredo até partir.
-- Sim, minha menina, como diz, farei.
Tomé partiu logo para a ribeira-velha, que eram dois pulos dali, e encontrando barco essa mesma tarde, se fez de vela, Tejo acima, para Santarém.
Enquanto Tomé vai seguindo seu caminho, nós, amigo leitor, entraremos na vila mais depressa para examinar o que há passado.
A violenta oração de Febo Moniz influíra poderosamente, como fica dito, no ânimo da assembleia dos procuradores das vilas e cidades, de que ele era presidente; parte do congresso estava apático e indeciso, e a voz robusta do procurador de Lisboa, foi avivar nuns o patriotismo sincero, que tinham adormecido, noutros a emulação.
O Cardeal exasperou-se com o belicoso aspecto, que a assembleia dos representantes do povo tomava, e julgou, num acesso de cólera senil, domá-la pela sua autoridade desprestigiada. O bispo D. António Pinheiro um dos primeiros que Filipe II agregara ao seu bando, e dos que maiores serviços talvez lhe prestou, foi o portador encarregado de uma mensagem pela qual D. Henrique, tendo na mente o seu ódio violento pelo Prior do Crato, intimava às Cortes, que o voto delas somente poderia recair no rei de Castela ou em D. Catarina de Bragança; as Cortes responderam por modo pouco satisfatório aos desejos do Cardeal; no braço da nobreza a causa de Filipe II alcançou apenas a vitória por um voto, -- pequena vitória depois de tão largos e onerosos esforços, diz o historiador; e esta quase derrota mais animou o braço popular que com Febo à frente rejeitou o iníquo concerto, como ele dizia, previamente ajustado com o filho de Carlos V.
O Cardeal, moribundo quase, acabrunhado de desgostos, de sofrimentos, resultados das suas doenças e do seu carácter, buscou de novo o fiel bispo de Leiria D. António Pinheiro, e por ele mandou uma nova mensagem à assembleia dos procuradores do povo, intimando-a clara e positivamente a que decidisse o pleito pela causa de D. Filipe porque os direitos da duquesa de Bragança eram sem fundamento. O Cardeal à beira do túmulo lavrava a sua sentença; declarava-se abertamente parcial do príncipe estrangeiro, e instrumento da sua ambição.
Febo Moniz, ouvida a mensagem do rei não pôde conter-se; aquela alma gigante necessitava deixar transbordar a dor extrema, que se lhe revolvia dentro do peito como lava imensa no seio de um vulcão! Levantou-se da sua cadeira de presidente, tomou nas mãos um crucifixo, exclamou as mais sentidas palavras, as mais veementes queixas! Tomava a Deus por testemunha, o herói! Arrancava as barbas e os cabelos, soluçava, saltavam-lhe as lágrimas, levantava os olhos ao alto como pedindo ao céu remédio para um mal, que não tinha cura!...
Tornemos a penetrar naquela sala onde assistimos à entrevista do Prior do Crato com o velho procurador do povo de Lisboa. Encontramo-lo de novo lá. Agitação visível se lhe pinta no rosto; como a tempestade iminente, que passa e vai reboando ao longe os bram dos dos trovões, assim no rosto de Febo se liam, se sentiam como os ecos da violenta procela, que aquele dia lhe passara sobre a cabeça. Viam-se muitos papéis dispersos sobre a larga mesa de pau-santo com os pés torneados em espiral, Febo passeava agitado dum lado a outro da sala; ouviam-se ainda ao longe soar os passos dos que havia pouco se tinham afastado: depois da sessão Febo convocara os seus companheiros, representantes dos povos, e fora determinado enviarem-se emissários às deferentes terras do reino, participando a intimação do Cardeal.
A reunião tinha acabado e os emissários partiam. Febo Moniz não podia crer na ousada intimação do Cardeal-rei; delirava, batia com os punhos cerrados na cabeça, arrancava às punhadas os cabelos, e percorria, percorria vertiginosamente, a sala dum topo a outro.
Bateram levemente na porta, o reposteiro estremeceu, mas o velho não deu por tal; bateram mais forte, mas os ouvidos de Febo estavam surdos; levantaram a aldraba e entraram; entrando o criado disse:
-- Perdoe, v. mercê, interrompê-lo, mas aquele pobre homem, que há tantas horas o espera, disse-me que por força havia de falar-lhe...
-- Mas quem é?
-- Não se recorda v. mercê por certo... o homem tornou a instar comigo, e disse-me que se v. mercê soubesse quem era, e a que vinha, o teria atendido já.
-- Mas quem é esse homem?
-- Disse-me chamar-se Tomé, e vir de Lisboa.
-- Tomé! De Lisboa!... que entre, e já.
Febo Moniz foi até junto da porta para mais depressa encontrar o velho escudeiro, e saber qual o motivo que o trazia a procurá-lo. Minutos depois Tomé entrou.
-- Meu bom amo!
-- Adeus Tomé, minhas filhas, como estão?
-- Boas, Sr. Febo.
-- Então a que vieste, homem ?
Tomé estava numa crua perplexidade; dizer a verdade custava; tinha um refúgio, e esse era repetir simples, categoricamente, o recado que Maria lhe dera: foi o que fez.
-- A que venho, Sr. Febo ? Saiba o meu caro amo, que haverá quatro dias, logo de manhãzinha vem a menina Maria ao meu quarto, e diz-me : Tomé, entrouxe o seu fato, e vá em busca de um barco, porque esta mesma tarde há-de partir para Santarém a encontrar meu pai. Dito e feito. Encontrei barco, mas tivemos mau vento; por isso, e porque o rio levava muita água com as chuvas que têm caído, me demorei quatro dias no mar... mas aqui estou, Sr. Febo, ao seu dispor.
-- Mas minha filha, Tomé, não te disse mais nada ?
-- Mais nada, que me lembre.
-- Então que queria ela mandando-te para Santarém?
-- Isso não sei eu, nem é da minha competência. Mandaram-me, obedeci.
-- Estranho caso! Dize Tomé; por força te esqueces de alguma coisa. Então Maria só te disse, que viesses ter comigo, e mais nada?
-- Oh Sr. Febo, perdoe, perdoe ! Sou um asno ! Então não querem ver? Esquecia o essencial... a menina Maria acrescentou: vá ter com meu pai, e diga-lhe que já, sem mais demora, venha a Lisboa.
-- Vá a Lisboa!?
-- Venha a Lisboa, foi o que me disse.
-- Tu estás certo, Tomé?
-- Tão certo, como ter agora em minha presença o meu bom amo, o Sr. Febo Moniz.
-- Mas é impossível, homem!
-- Não sei, meu amo, a menina Maria assim o disse... tal e qual.
-- Vê lá não esquecesses o recado.
-- Não esqueci; então isto são coisas para brincar?
-- Bem ; acredito, mas ir a Lisboa é impossível, as Cortes não me têm deixado um instante... quanto mais agora! Dize-me cá, homem, por que me quer minha filha em Lisboa? De cá terei de remediar o que for; partir é impossível.
-- Que lhe hei-de dizer, Sr. Febo Moniz? Eu sei, porventura, o que vai lá pela ideia das meninas!
-- Mas, Tomé, é impossível ir.
Tomé vacilava; não conseguindo, com que Febo fosse a Lisboa, quem sabe o que sucederia a Ana, e que revolução se faria na casa tão sossegada, tão modelo do seu patrão; mas ao mesmo tempo contar a verdade era difícil; esta perplexidade se lhe pintava no rosto. Febo adivinhou, que Tomé não ignorava o motivo de tão estranha chamada, e determinou-se a sabê-lo, porque queria dar as providências necessárias, pois sair de Santarém era impossível.
-- Tomé, dize a verdade, bem vês, que mal me podes fazer.
-- Vejo, sim senhor; mas se a verdade não a sei?
-- Mentes, homem ? Desde quando um escudeiro fiel usa mentir ao seu amigo?
-- Perdão, Sr. Febo, mas eu não minto.
-- Não suspeitas sequer o motivo?
Tomé calou-se; na verdade ele não mentia, porque ao certo não podia dizer, que fosse o motivo aquele, que suspeitava. Agora porém não havia evasiva possível.
-- Não respondes? -- tornou Febo -- , és assim, Tomé? Não esperei, depois de tantos anos viveres comigo...
-- Perdão, Sr. Febo, suspeito... quase que lhe posso dizer ao certo o motivo.
-- Dize então, dize depressa.
Tomé não sabia por onde começar, mordia os beiços, revirava os olhos, tremia, coçava-se, olhava espantado para o tecto. Afigurava-se-lhe a viagem a Santarém um agradável passeio; folgara de ir encontrar o centro de agitação do país; agora via que toda a medalha tem o seu reverso, e o desta era bem triste,
-- Então, homem, fala, não me impacientes.
-- Não sei na verdade, Sr. Febo, como lhe hei-de dizer coisa tão triste, tão desgraçada! E de pessoa que tanto ama! Tomé era tolo ; tomou exactamente o pior partido, começou por um exórdio aterrador. Febo estava assustado.
-- Não sei, não sei Sr. Febo ; perdoe-me, eu não posso falar. Vá a Lisboa, que lho aconselho, e doutra boca o saberá, que não da minha.
-- Da tua o saberei, Tomé. Coragem!
-- Para mim a tenho, mas receio-a por vós... suponho o que é ser pai...
-- Minhas filhas?...
-- Sua filha, uma só.
-- Qual delas Tomé? Qual delas?
-- A menina Ana.
-- Mas Ana o quê ? Está doente ?
-- Não, senhor. Pior!
-- Morreu ?
-- Ainda não, pior, pior!
-- Pior o quê, homem? Então que lhe sucedeu?
-- Nada lhe sucedeu : receia-se que lhe suceda.
-- Que lhe suceda...
-- Que lhe suceda...
-- Acabas, Tomé?... fazes-me perder a paciência.
-- Não sei, não posso.
-- Agora hás-de poder... Que lhe suceda o quê?
-- Que a encontre perdida.
-- Perdida...
-- Desonrada.
-- Desonrada !
Febo caiu sobre a cadeira, turvou-se-lhe a vista, julgou-se louco.
-- Que dizes, homem! Vê o que dizes!
-- Bem o queria eu não dizer. Deus não me deu filhos, mas suponho!...
-- Que supões, cala-te !
Tomé agradeceu; calar-se ali era o melhor, calado estimara ele ter estado durante a última meia hora. Febo acenou ao criado, para que se achegasse dele.
-- Mas dize, Tomé, é verdade ?
-- Verdade o quê?
-- O que disseste.
-- O que suspeito, é.
-- Conta-me então o que se passou, homem, que não sei onde estou! Meu Deus, meu Deus! Dai-me coragem! Feriste-me nas duas mais santas religiões que puseste no meu coração: a pátria e a família!... Conta-me, conta-me, conta-me depressa!
-- Olhe, Sr. Febo, eu sempre pensei comigo : devo ir participar ao meu bom amo, mas isto de quem leva ruins novas...
-- Maior ânimo e dedicação precisa.
-- Obrigado, meu bom amo.
-- Conta então.
-- Eu lhe conto, e perdoe-me do que disser.
Então o escudeiro relatou ao amo tudo o que o leitor sabe; como vira entrar e sair o castelhano, como no outro dia de manhã procurara fr. Marcos, e se tinha determinado a partir; não esqueceu queixar-se do modo, com que o frade lhe rebatera as fumaças de literato, e concluiu com o recado de Maria. Febo ouviu tudo, e no fim disse-lhe:
-- E Maria só te disse isso?
-- Isto só.
Febo via uma tangente por onde se salvar. Era que as suposições de Tomé fossem infundadas, e, visto o recado da filha não lhe dizer nada positivo, ser outro o motivo.
-- Então, Sr. Febo, sempre parte para Lisboa? -- pergun- tou Tomé.
-- Parto, esta mesma noite largaremos.
Meditai, leitor, no proceder deste homem, sobre quem a infelicidade descarrega a um tempo todos os golpes cruéis. Vede como ele ferido pela perda da filha, ferido pela ruína da pátria, corre a ver se ainda salva a primeira, sofre e geme por não poder acudir à segunda.
Comparai a irradiação desta fronte augusta com os louros dos guerreiros, as púrpuras da grandeza, os tronos, as batalhas, as conquistas, com todas as glórias vãs, que os homens vulgares ambicionam, que os deslumbram e dominam, e dizei-me qual deles melhor exprime a missão sublime do homem sobre a terra -- ser útil.
Creiam uns na existência dum ser infinito, digam o homem insuflado pelo espírito eterno, digam-no outros o mais perfeito exemplar da longa série da criação espontânea formada na época conhecida da existência do mundo, façam uns finalmente da morte uma transfiguração, outros um fim; -- e nestas duas enormes crenças se divide hoje o mundo que pensa; dêem assim os primeiros como incentivo e paga às boas obras a felicidade eterna, descreiam os últimos da recompensa e riam-se portanto do sacrifício, porque o egoísmo é o móbil de todas as acções humanas, a dedicação é indispensável à existência da sociedade, e por isso os que se dedicam são os grandes homens.
Roubar ao alimento, aos sentidos, dilacerar o corpo, e atrofiar o espírito, olhando para o céu, é o cume do egoísmo, é o egoísmo que sobe às nuvens. Gozar todos os prazeres que a natureza e a sociedade ncs oferecem, desprezando os sofrimentos do pobre e do aflito, comprometendo o futuro, é o egoísmo que desce ao embrutecimento.
Um e outro igualmente nos não servem. Para que dedicar-nos? Perguntarão. Mas não para outro fim, responderá de todos o mais imperfeito, senão para a nossa comum salvação, para alcançarmos uma existência feliz e farta, para a partilharmos com nossos irmãos, para a legarmos a nossos filhos, a nossos netos.
(Dirão alguns aqui, os hipócritas talvez, que se substitui por tal forma às grandes aspirações religiosas a chateza dos interesses mundanos. Engano. Com o melhor dos livros, o Evangelho, nas mãos vos apontarei o princípio pregado há dezoito séculos, que é a pedra angular de toda a nossa civilização cristã: amai-vos uns aos outros. Que maior glória, que ambição maior?)
Esperai ou não recompensa de Deus ou dos homens, o caso é outro.
Ignorais, porventura, que se não meteres ombros, todos vós que sois fortes de inteligência, à grande obra do progresso, se não deres alimento à engrenagem da civilização, a sociedade moderna ficará esmagada como templo sumptuoso abandonado em meio sob as ruínas dos seus fundamentos? Pensais no resultado da inércia?
Pois não vedes que a nossa época é uma transição, um tempo de luta entre o passado e o futuro? Não vedes que de largares as armas resultará, o que infelizmente vemos cada dia crescer: nós os pobres e os pequenos, sermos dominados pelos agiotas e pelos políticos, pelo dinheiro e pela astúcia? Restam as tradições dos séculos de exploração, que as revoluções da liberdade não conseguiram matar dum golpe. O progresso material, encaminhado como vai, conduz-nos a uma nova exploração, a do capital. Antevê-se um futuro de domínio na aristocracia do dinheiro, se o edifício da revolução não for completo. E para coroar tudo, as massas a quem a revolução armou com o direito, e a história exaltou pela vindicta, conhecendo-se fortes, mas oonservando-se ignorantes, exploradas e escravas, se tornarão, pela turbulência e ferocidade, um perpétuo elemento de anarquia.
Ontem a pedra angular do edifício social era a autoridade. A teocracia cristã, mentindo ao Evangelho, dominava sobre a escuridão das inteligências; depois, secularizado o poder, o feudal-smo dominava sobre a escravidão; mais tarde, unindo-se o papado aos reis, concentrados os poderes todos no trono, a monarquia clamava-se a si pai e senhor; à família soberana emana va-lhe o direito de Deus ; o rei dizia : o estado sou eu, enquanto a religião mandava crer às cegas, e exterminava os que protestavam e se insurgiam.
Dai resultavam a pobreza e a ignorância, e portanto o crime; a desigualdade perante a lei, a existência permanente de dois grupos distintos -- o dos exploradores e o dos explorados.
No meio de todos os desvarios humanos, embaraços que a ambição pretendia pôr ao progresso, existia o povo armado do direito com o Evangelho na mão. Uma vasta corte de espíritos, sobre os quais avulta, como formoso capitel sobre o fuste de coluna corintia, a figura de Cristo, havia amassado durante séculos es elementos que deviam servir de base à transformação da sociedade. O povo levanta-se, e, indignado pela atrocidade do fanatismo avarento de Roma, iluminada a razão pelas verdades da filosofia, protesta. Requer e obtém, sacudindo a tirania espiritual, a liberdade de consciência, o direito de pensar.
Séculos depois, roxos os pulsos pelas algemas, dobrada a cerviz pelo jugo, vê passar diante de si, como em orgia infrene de entrudo, a dança repugnante da devassidão do século XVIII, e, escutando as animadoras verdades que alguns lhe segredam ao ouvido, irrompe furioso, destemido, sedento de vingança, iluminando de cólera, e num momento derruba o minado edifício da Renascença. Reclama a igualdade perante a lei, a liberdade civil: o direito de viver, e alcança-o.
Ontem, porque o direito descia de Deus, o governo era irresponsável, e a sociedade baseava-se sobre a autoridade; era ela, feita corpo na pessoa da teocracia, da aristocracia, da monarquia, da oligarquia, quem outorgava as migalhas de liberdade que entendia necessárias ao povo faminto para o equilíbrio dos dois princípios rivais; -- amanhã porque a ciência nos ensinou que o direito emana do povo, de nós todos, da nação, a sociedade basear-we-á sobre a liberdade; será um país uma associação de homens, na plena acepção da palavra, que entre si contratam viver em comum; será a associação que a si própria imporá o sacrifício daquela porção de liberdade absoluta, que julgar necessária ao equilíbrio dela com a autoridade, equilíbrio que é a garantia firme da sua existência.
Ontem o poder centralizado ou num grupo ou numa cabeça tinha como consequência natural a centralização da propriedade, a da ilustração, a da força: os exércitos permanentes. A revolução mudou tudo. O direito antigo descia de Deus uno sobre a cabeça privilegiada, o moderno emana do querer comum de milhões de homens que são o povo. Por isso, transtornado o princípio, força é que as consequências sie transtornem. À centralização do poder pelo direito divino substitui-se a descentralázação do poder pelo direito revolucionário, e o mesmo à da propriedade, à da ilustração, à da força. Para dar unidade e vulito às moléculas do corpo social existe a associação. Centralização plena, eis o que é a tirania, o governo de todos por um ou por alguns; descentralização plena, eis o que é a liberdade, o governo de todos por todos, a associação.
Inversão completa de princípios.
Amálgama indecisio, hipócrita, ilógico e torpemente imoral de ambos eles, é o nosso tempo. Abreviar o período triste, enublado da transição onde as reacções são fáceis, o nosso dever.
Cumpri-lo-emos se os que podem trabalharem; se regularem pela ilustração e pela associação a questão suprema do capital e do trabalho para livrarem o povo do feudalismo dos mlilhões, dizendo ao proprietário que a causa do trabalhador é a sua, dizendo aos trabalhadores que a sua força está na sua união, e falando a uns e outros ilustrando ambos, e fazendo ao mesmo tempo convergir todas as leis à divisão de propriedade; se, descentralizando o poder, matarem todos os germes de despotismo, e ao luxo substituírem a economia, à concussão a moralidade, ao silêncio a franqueza, às engrenagens carunchosas dos governos centralizadores a iniciativa vivaz, forte, persistente da energia particular.
A descentralização e a escola, eis as duas grandes armas da guerra incruenta do progresso. Com elas se alcançará a transformação; à mentira se substituirá a verdade, à pobreza, que é a suprema das mentiras, a fartura de todos. De um século ostentoso, filantrópico, e podre se passará a um século, parco, são, e cristãmente caridoso. É este o edifício de que a Reforma e 89, pondo em obras as máximas de Cristo, nos deixaram cimentados com sangue os fundamentos, e a que temos de levantar as cimalhas e a cúpula gigante: todos ilustrados, livres e remediados, e portanto virtuosos e fortes, for- marem judiciosamente o pacto da parceria suprema, cujo fim é viver bem.
Trabalhai, crede, e com um espírito novo, verdadeiramente santo renovahis faciem terrce.
E tereis uma coroa, um monumento, já que a recompensa tem de acompanhar todas as acções humanas. Não será de bronze como o de Napoleão, nem de mármore como o Vaticano, Mafra ou o Louvre; mas não será também levantado, como o foram, o do guerreiro sobre cadáveres, o dos papas com o preço da superstição vendida, os dos reis com o dinheiro dos povos que morriam de trevas e de fome.
O monumento dos que trabalham é muitíssimo mais vasto, muitíssimo mais deslumbrante. Tem por cúpula o firmamento; por alicerces o âmago da terra; por colunas os livros, as escolas, as searas, as fábricas, os naviios; por tapetes, a relva e as flores dos campos; por lustre imenso o Sol; por ornamentos as famílias, as mães risonhas com os filhos sobre o colo.
Não é mais belo?
Muitas coisas e importantes sucederam durante a viagem de Tomé para Santarém: tais acontecimentos vão dar assunto para estes três capítulos.
Uma noite, justamente a primeira que o bom escudeiro passava sobre as águas do Tejo, estava Maria na janela do seu quarto. Era uma formosa noite: o céu e o mar pareciam o interior de uma vastíssima concha de prata; no céu a lua como rainha em trono de estrelas, no mar o reflexo trémulo de toda a luz do firmamento; no céu uma ou outra estrela mais intensa no fulgor conseguia vencer o clarão do luar e sobressair nele como diamante engastado em prata; no mar um ou outro barquinho com a vela desfraldada, deixando na esteira como uma fita luminosa, quebrava a deliciosa monotonia do reflexo do firmamento sobre as águas.
Maria enlevava-se nessa meiga tristeza que uma noite de luar infunde; a mansidão da natureza derramava bálsamo sobre os seus sofrimentos. Como todas as meninas da sua idade, amava; mas, como muito poucas, sabia o que é amar, sentia o que é amor.
Certo dia uns olhos meigos, uma figura melancólica, inspiraram-lhe compaixão, da compaixão ao amor, entre um rapaz e uma menina, dista pouco. Maria amou, e amar para ela significava o consórcio de dois sorrisos, o abraço de duas lágrimas, o casamento das alegrias e das penas, a união de dois espíritos; significava também mais um adepto no foro santo da sua amizade até ali por dois só ocupado, seu pai e sua irmã. Por isso Maria estava triste, porque, dos que formavam a trindade do seu afecto, o amante andava ausente, o pai estava velho, também longe, e sofrendo males do corpo e males do espírito, a irmã... essa era, verdade é dizê-lo, a maior dor que afligia a menina. Suspirava pelo amante, esperava por seu pai, e sem cessar pedia a Deus que lhes abreviasse a chegada. Mas... chegado o pai, que lhe diria? Contar-lhe o que adivinhava, sem o querer acreditar, era impossível. Pensava pedir-lhe simplesmente que as levasse para Almada, a casa de Manuel de Sousa, porque muito a afligiam as saudades e a solidão, diria ao pai; porque lá julgava mais segura a irmã, dizia consigo. Era absurdo fazer vir Febo a Lisboa por tal motivo, mas o estado de ânimo de Maria podia ser daqueles, em que as coisas se vêem razoavelmente? Tinha o lenço de finíssima cambraia ensopado em lágrimas; corriam-lhe elas pelas faces como gotas de orvalho derretidas pelo sol nas pétalas da açucena; tinha o rosto desbotado pelo sofrimento, os olhos vermelhos de chorar; arfava- lhe mansamente o peito; sentia-se-lhe bater violento o coração; o luar alumiava-lhe o rosto, e brilhava nas pérolas, que lhe pendiam das pestanas, parecendo aljôfares.
Descendo os olhos à rua a menina viu aproximar-se alguém.
Era um vulto embuçado numa capa ; saía-lhe debaixo dela a ponta da espada, e na cabeça trazia um largo chapéu com pluma que lhe tapava o rosto; caminhava devagar e chegado à parede como procurando a sombra; foi subindo a rua até que desapareceu no alto com a curva da calçada. Maria seguiu-o com o olhar, sobressaltada, e, quando o viu sumir-se, como um peso se lhe tirou de cima do coração.
Pouco depois outro vulto descia; este veio francamente diante da janela, tirou o chapéu, e disse:
-- Maria, querida Maria, como estás?
-- Ah! Tu, Fernão! -- tornou a menina erguendo-se e encostando o peito ao balcão da janela.
-- Sou eu, não me conheceste?
-- Não, decerto; nem te esperava.
-- Não há muito que cheguei de Santarém.
-- Viste meu pai, Fernão?
-- Vi, e ainda bem que o vi ! Teu pai, é um grande homem.
-- É; de mais eu sei.
-- Se tu visses, meu anjo, como ele tem andado nas Cortes! Ele só era capaz de derrotar quantos castelhanos quisessem pôr pé em Portugal.
-- Com o seu braço decerto não, que é fraco e doente.
-- Mas com a sua voz! Se visses como falou ao Cardeal. Homens assim há poucos, Maria!
-- Tens uma boa alma, meu Fernão, prouvera a Deus que todos te igualassem.
Como se vê, a menina media a alma do seu namorado pela sua, mas o leitor sabe quão diferentes elas eram.
-- Maria, Maria! E tu és um anjo. Tu, meu amor, és na tua alma celeste o espelho da de teu pai.
-- Não lisonjeies, Fernão.
-- Não lisonjeio, digo a verdade, como a sinto, como a creio. Desde que este nosso doce amor nos ligou tenho conhecido em ti a mais santa e mais perfeita das mulheres.
-- E eu em ti, Fernão, um são carácter, um amor dedicado. Prouvera a Deus que todos te igualassem, repito! Vemos hoje o mundo cheio de desgraças e de desgraçados, meu Fernão! O que será de nós? Amanhã talvez, quando acordarmos, não seremos já portugueses...
-- Seremos, seremos descansa. Não vai assim a conquista. Há moços e valentes...
-- Sê tu um deles, Fernão.
-- Sou...
-- Então, rapaz, que viste, que fizeste pela corte? Morderam-te por lá saudades da tua Maria?
-- Se morderam! E tu?
-- Eu... que te hei-de dizer, que o não saibas já? Ignoras que és o futuro da minha vida, Fernão?
-- Não ignoro, não, minha amada, e por isso sou feliz.
-- És feliz?
-- Sou feliz, sou. E tu não o és também.
-- Eu?...
-- Tu. Não te basta o meu amor?
-- Acaso nos não deu a natureza outro afecto senão esse, Fernão?
-- E qual maior?
-- Maior não, mas tão grande.
-- Tão grande ?
-- Tão grande, sim! Tão grande como o amor!
-- Tu não me amas, filha, não te iludas; não me amas, como eu te amo.
-- Dizes isso a sério, Fernão ?
-- Digo. Se me amasses não falarias assim.
-- Como falaria então? diria que não há no coração lugar para o pai que nos criou, para um pai, que é pai e santo, para uma irmã, que é irmã e... desgraçada!
-- E desgraçada.... disseste?
-- E desgraçada, disse.
Maria facilmente soubera da existência do castelhano em casa e como a noite de tal dia fora uma noite de lágrimas, como um só instante não dormiu, sentiu bem quando D. Alonso saíra.
-- Desgraçada, porquê? -- tornou Fernão.
Há coisas que se não dizem a um pai e se dizem a um amante, mas há também coisas que uma menina, como era Maria, guarda sempre.
-- Porquê? Queres que to conte? É triste. Tudo é triste agora. Estamos nas últimas horas de um grande dia. Muito me engano se não vejo breve a nossa pátria vendida. Tudo são trevas. A noite aproxima-se.
-- E tua irmã ?
-- Doida que eu sou! Minha pobre irmã!... Tu conhecerás porventura, Fernão, um tal marquês de Belgaro?
-- Pelo nome, não.
-- É um castelhano, que se diz muito rico, fala muito e bem, tem maneiras afidalgadas, traja com esmero, é alto, tem cabelos louros, olhos azuis...
-- Pelos sinais, só se for um... mas esse está longe de ser marquês. Tem os cabelos bem louros, compridos e anelados, belos bigodes e melhor pêra, os beiços rosados, a testa alta?
-- Justamente.
-- Pelos sinais, torno a dizer... só se for D. Alonso.
-- D. Alonso! D. Alonso! Ele chama-se assim.
-- D. Alonso! -- murmurou Fernão ao mesmo tempo que empalidecia e lhe tremiam de susto as pernas.
O ser noite salvou-o da triste figura que faria diante da sua namorada à luz do Sol.
-- E então ele não é marquês? Pobre Ana!
-- Qual marquês! Foi lá nunca marquês! É um dos emissários políticos espalhados pelo governo castelhano.
-- Ah!
-- Mas que tem ele com tua irmã?
-- Que tem? Tem que ela se apaixonou por ele.
-- Fez mal, porque é imoral e atrevido.
-- As minhas suspeitas !... -- murmurou Maria -- ; és tu seu amigo?
-- Amigo eu! Tenho lá amigos assim!
-- Fazes bem, Fernão; mas conhecê-lo?
-- Conheço.
-- Dissuade-o então disso. Vê lá, faze o possível. Olha que, se o alcançares, salvas-nos a todos duma grande desgraça talvez.
-- Não entendo.
-- Nem precisas, filho; vê se fazes o que te peço.
-- Pois sim -- tornou Fernão enfatuadamente, com ar de quem vai prestar um serviço de tal importância,
-- Eu verei, mas duvido. Se ele deu para aí, talvez seja difícil.
-- Sempre se deve experimentar.
-- Sempre; mas também... que grande desgraça?...
-- Chiu! -- tomou Maria sorrindo contrafeita -- , já te disse; sou rainha...
-- Minha rainha.
-- Então mando, é obedecer.
-- Farei como dizes.
-- E adeus, Fernão; o céu te ajude no nosso empenho.
-- Adeus, Maria.
-- Ah ! Ouve : sabes que meu pai deve estar a chegar qualquer dia?
-- É impossível. Teu pai pode lá abandonar agora as Cortes?
-- Crê, e verás.
-- Só depois de ver acreditarei. E a que vem ele então?
-- Segredo também.
-- Não costumas ser assim comigo, Maria.
-- São maus tempos agora; deixa ver se abonança.
-- Deus o queira.
-- Adeus, Fernão.
-- Adeus, Maria.
Maria cerrou a janela e recolheu-se; Fernão voltou-se e partiu, porém mal tinha dado um passo, quando se sentiu violentamente agarrado pela nuca; tomou a voltar-se e deu face a face com o seu ex-amigo D. Alonso Domingues.
-- Então por cá, meu rapazito ? -- disse jovialmente o castelhano -- , vi-te e não quis deixar-te passar assim. Desde quando é uso entre amigos como nós passar em claro e safar-se deste modo?
-- Vamos lá, homem, nada de graças! Largue-me.
-- Largar-te eu ! Se te amo ; se te amo, como te não ama esta gentil menina a quem acabas de falar!
-- Não graceje, que não costumo.
-- Desde quando?
-- Sempre. Largue-me.
-- Largar-te eu! Então o D. Alonso o que é? Ê velhaco, é impudente, é atrevido, hein?
-- Seja o que for, largue-me.
-- Isso não.
-- Veremos.
-- Pois veremos, meu rapaz.
E apertava-o com maior força.
-- Larga-me D. Alonso -- tornava Fernão,
-- Ah ! Está mais humano. Já se lembra de como nos tratávamos.
-- Lembro, lembro mas larga-me.
-- Ora pois bem, aí está solto. Diga-me agora : sempre persiste na promessa, que fez, de me tirar da cabeça o meu amor pela irmã da sua namorada?
-- Eu sei lá, homem!
-- Pois isso é que se quer saber.
-- Deixa-te disso, Alonso.
-- Se te deixares, deixo-me também.
-- Eu por mim já me deixei há muito.
-- Ora pois bem, façamos as pazes.
-- Estão feitas.
-- Agora anda cá, Fernão ouve: vou contar-te a verdade como bons amigos, que tornamos a ficar: eu quis pregar-te uma peça, mas fui quem ficou logrado.
-- Tu logrado! É singular!
-- É singular é! Mas que queres? Sabia que fazias a corte a uma das filhas de Febo Moniz, e um dia, passando por aqui com D. Diego e outros, vi duas gentis meninas à janela, e os meus companheiros disseram-me: aquelas são as filhas de Febo Moniz; lembrei-me logo de te tirar a namorada, meu rapaz; e o facto é que uma delas reparou em mim e sou seu amante.
-- Seu amante? Sabes o que dizes?
-- Sei o que digo. Já até passei uma deliciosa noite naquele aposento.
-- Oh, Alonso!
-- Ora tu bem vês, que as duas a um tempo era impossível, mas nenhuma também o era, uma vez que eu me dirigia a elas. A questão é que acertei com...
-- Ana, dize.
-- Com a outra sim, descansa. Mas é bonita e boa como a breca a rapariga! Fez-me perder os calções!
-- Por força mentes. Isso que dizes, é impossível.
-- É tão verdade como nós sermos outra vez amigos como dantes... E agora mais o seremos. Vas fazer-me um serviço.
-- Que temos então? -- tornou o moço português desconfiado.
Cumpre dizer, que Fernão não estava muito satisfeito da forçada conciliação, que fizera. A impudência do castelhano feria-o na verdade, porque o rapaz não era mau de todo, como se tem dito e mostrado. Era um destes caracteres fracos, que são como o termo médio entre o bom e o mau. A questão é a direcção que tomam. Se caminham para a direita fazem-se bons, se vão para a esquerda maus. Fernão não era ainda nem bom nem mau. O castelhano tratava de o encaminhar.
-- Temos simplesmente -- tornou Alonso -- , que apesar dos desejos da minha boa Ana, talvez não possa alcançar outra visita como a primeira; temos que tu hás-de ser o meu espia...
-- Espia !
-- Palavras não ferem homens. Não queres espia... serás então meu agente, meu encarregado...
-- Obrigado, não aceito.
-- Isto agora, meu amigo, é sério. Hás-de aceitar.
-- Não aceito.
-- Veremos. Escolhe: ou aceitas, e te ligas comigo, como bons amigos que devemos ser, e então as minhas promessas brilhantes serão realidades... ou...
-- Ou...
-- Ou provarás esta espada.
-- Provarei então a espada.
-- Já que o queres...
-- Provando tu a minha.
-- Por certo.
Esta decisão perentória assustara um pouco o moço português. Não lhe agradava muito a posição que o castelhano lhe oferecia, e menos lhe agradava ainda o provar a sua espada. Fernão arrependia-se já de não ter aceitado a oferta proposta em Almeirim, e muito mais se lamentava da reconciliação que fora forçado a fazer, Fernão porém fingia-se bravo. D. Alonso conhecia-o, mas estava determinado a cumprir a promessa, porque o amor exaltava-o, e fazia-lhe perder um tanto daquele cinismo completo que era a base do seu carácter.
-- Então, vamos, meu rapaz, é decidir.
-- Já decidi.
-- Preferes a espada?... Mas lembra-te, do que dizes; olha que fazes uma asneira, pois morres.
Fernão tremeu, porque pensava do mesmo modo.
-- E morres no fim de tudo por uma gente que to não merece. Febo o que é? É um tolo... não, é mais, é um velhaco; o que ele quer é apanhar para si. Ana, a minha Ana, essa... essa sei eu que é uma deliciosa rapariga... e a tua Maria...
-- Não digas mais, infame!
O castelhano errara o trilho, a muita pressa perdeu-o. A série de insultos, que D. Alonso dirigiu à família de Febo, fez-lhe subir o sangue à cabeça.
-- Já que o queres... vamos a isto.
Dizendo assim, o castelhano desembainhou a espada e deu um passo para trás. Fernão fez outro tanto. Cruzaram os ferros.
-- Lembra-te, rapaz, lembra-te do que fazes -- dizia o castelhano evitando um bote furoso, que Fernão lhe jogava.
Fernão era fraco em esgrima, D. Alonso ao contrário hábil espada. Fernão atacava violentamente, o castelhano defendia-se a sangue-frio e abstinha-se de atacar. Assim, o combate podia prolongar-se indefinidamente.
-- São doidos vocês! -- continuava D. Alonso -- ; está um homem com a sua maior paciência educando-os, mostrando-lhes o que devem fazer, e vocês (nada!) Teimosos e arredios!
-- Fala! Fala! Bargante! Que eu te afogarei em sangue as falas! Julgaste que nós éramos outros, não é assim? Muito orgulhosos sois cães de castelhanos!
-- Cães que mordem... mas não ladram.
-- Que se esmagam com o pé.
-- Queres ser então, rapaz, o herdeiro e continuador das façanhas de teus avós?...
-- Mal de mim que o não posso! As façanhas deles não eram esmagar uma víbora!
-- Nunca te vi assim, Fernãozito! Então isto é sério? Vê o que fazes; olha que, se me mexo, estendo-te.
-- Pois estende.
E nisto Fernão alcançava o braço do seu contendor e abria-lhe uma ferida. D. Alonso viu, sorriu e disse:
-- Então, rapaz, há sangue, queres acabar?
-- Acabar o quê ?
-- O combate.
-- Já morreste ?
-- Então isto é sério?
-- Ê sério, mais que sério, infame!
-- Então vamos a isso.
E começou decididamente a atacar.
-- Olha que ainda é tempo... para nos abraçarmos.
-- Para nos matarmos -- tornou Fernão.
-- É, é... chegou-te... o tempo.
Fernão cambaleando despediu ainda um golpe desesperado. Descerrava-se então a janela de Maria. A menina crera ouvir o tinir de espadas, mas duvidara; depois, afirmando-se, sentiu-o distintamente e conheceu, entre as falas, a de Fernão. Trémula de susto abriu a janela e debruçou-se. Fernão caía.
-- Fernão! Fernão! -- gritou ela da janela.
-- Adeus, Maria, que morro!...
-- É ele mesmo, gentil menina. Assim o quis assim o tenha. Lavo daí as minhas mãos. Sua mana como está?
-- D. Alonso! -- gritou Maria desmaiada.
O castelhano limpou a espada, embainhou-a e partiu.
A lua ia então no zénite, e derramava ondas de luz no espaço. O que restava da cena era um homem estendido no chão, um vulto afastando-se ao longe, e uma janela vazia.
Vê-se do capítulo precedente que D. Alonso, apesar do mau resultado, que tivera, na sua entrevista com a filha mais velha de Febo Moniz, não desistira de alcançar mais positivos resultados. Aguilhoava o suposto marquês, um desejo desenfreado; cada vez, que de longe mirava os gentis olhos de Ana, como uma labareda lhe afogueava os sentidos; não desistia de obter a posse do seu cobiçado tesouro: tornou a procurar a fingida devota, mas só lhe encontrou o poiso; a velha cumprira a tenção: entrouxara e partira. O castelhano meditava pois no meio de haver a gentil menina, que como um pássaro tivera nas mãos e lhe voara, e meditando rondava dia e noite a casa de Febo Moniz. Foi por isso que ouviu a conversa de Fernão e lhe falou; durante a conversa formara o plano de seduzir o rapaz, o que não julgava difícil, porque o conhecia, mas o leitor sabe que erro o castelhano praticou e quais foram as consequências desse erro.
Uma patrulha encontrou Fernão, e sentindo-lhe restos de vida, levou-o. Como o caso não era para estranhar, além de Maria e D. Alonso, a ninguém mais constou desde logo.
Quando a filha mais nova de Febo voltou a si era alvorada; pela janela entrava aquela fria aragem, que acompanha a aurora; as trevas rareavam no horizonte; e para lá do Tejo via-se levantar um pálido clarão azulado, ir subindo, subindo e levando de vencida as sombras da noite.
O ar frio, que ao de leve beijara as ondazinhas do rio, e nelas se humedecera, inundou o rosto da menina e reanimou-a. Maria levantou-se, correu instintivamente à janela: a rua jazia no mais profundo silencio; só ao longe se ouvia o rumorejar confuso dos barqueiros às portas do mar; relanceou os olhos para o Tejo e viu-o toucando-se e vestindo-se com o manto azul que o céu lhe desdobrava, com os diamantes que o Sol nascendo lhe derramava nos ombros às mãos cheias. Tudo era silêncio, tudo deserto. Esfregou o rosto com as mãos, alisou os cabelos, que lhe andavam em flocos anelados a brincar sobre a testa e sobre as faces, tornou a encostar-se à janela, debruçou-se sobre a rua, e viu no chão uma poça de sangue; isto acordou-a daquele entorpecimento, que sucedera ao desmaio.
-- Tende piedade da sua alma, meu Deus!
Caiu de joelhos, e diante do Sol que num trono de nuvens de fogo subia ao alto, pôs as mães e começou a rezar com aquela crença, com aquele fervor, com aquela poesia, que a natureza dá a algumas almas.
Era já clara manhã, e rezava ainda, quando Ana entrou no quarto.
-- Maria, que tens tu? Tão de madrugada e já de pé e rezando!... Não te deitaste hoje; vejo o teu leito intacto. E que parecer tens, filha!
-- Descansa, minha irmã, não te assustes, que nada é.
-- Não me enganes, Maria... dize-me a verdade.
-- A verdade? A verdade é que a desgraça nos persegue, hoje uns, outros amanhã. Deus se amerceie de nós.
-- Dizes bem; a nossa vida tão sossegada, tão feliz, que é dela? Quem me dera ver meu pai!
-- Descansa, Ana, em poucos dias o terás aqui!
-- E por que o dizes ?
-- Porque Tomé o foi buscar.
-- Mas ele não vem por certo.
-- Vem, que lho mandei pedir.
-- E porquê, Maria? Nada me disseste.
-- Julguei melhor não dizer; a tempestade passou, e talvez não volte; mal de mim, que fui eu a ferida do raio.
-- Tu?
-- Eu sim, Ana. Sejamos francas e boas como dantes éramos. Não me escondas o que não deves. Cuidas que por eu ser mais nova, sou louca ou má? Não, Ana; não, minha irmã; Deus sabe quanto me fez chorar a tua frieza.
-- A minha frieza? Frieza em quê?
-- Oh Ana, eu conheço que a minha vida não pode durar muito; o que há-de fazer a flor magoada na haste? O que há-de ser da seara quando o sol a não beija?... que farei eu, Ana, se Fernão morreu!?
-- Fernão morreu?
-- Morreu, descansa, não te assustes, que eu mesma não me assusto já. A minha vida tinha três almas: o amor de meu pai, o amor do meu noivo, o teu amor, Ana! Meu pai é velho, muito velho e doente... quando morrer, morrerei eu; tu, Ana, sentirás a minha falta, mas por certo te consolas; não tens um destes corações, que, como a sensitiva quando lhe tocam nas pétalas, murcha e morre! És ambiciosa, serás feliz. É muito mais fácil achar dinheiro do que felicidade...
-- Não sejas assim Maria -- tornou Ana com os olhos arrasados de água. -- Mereço-te? Sou porventura culpada se a natureza fez de ti um anjo, de mim uma simples mulher?
-- Perdoa-mo tu, Ana, que perdoas a quem morre.
-- Não digas tal, filha; és louca, és arrebatada, és fantasiadora; desce um momento das nuvens e fala com razão. Que tens tu, Maria, estás doente?
-- Estou doente, Ana? Tu brincas comigo. Porventura não se morre senão de doença? Não se morre de dor, como eu morro, não se morre dum golpe de espada, como Fernão morreu?
-- Mataram-no?
-- Aqui. -- E Maria indicou do balcão da janela o lugar onde Fernão caíra. Estava lá ainda a poça de sangue.
-- Vieram imolar a vítima defronte do altar -- continuou ela. -- Eu vi-o e ele disse-me adeus com a boca já cheia de sangue! Meu Deus, meu Deus!
Apertou a cara entre as mãos e chorava, chorava! os soluços afogavam-lhe a respiração. Ana segurou-a pela cintura e tomou-a no colo vivamente aflita. Julgava uma crise temível, mas passageira; na profundidade da angústia não cria, nem que dela pudesse advir a morte.
-- Maria, tem juízo. Anda cá, deixa-me enxugar-te os olhos... vamos, não chores mais... Descansa, digo-te eu agora: és tu que me asseguras que nosso pai está a chegar, ele tratará de investigar como foi... e há justiça, Maria, há justiça nesta terra!
-- Justiça para quê? -- tornou a menina levantando a cabeça e fitando na irmã uns olhos muito espantados.
-- Para castigar o criminoso! Matam-se então por essas ruas criaturas de Deus como rezes num açougue?
-- Desengana-te, minha irmã ; estou sossegada, estou resignada. Feriram-me o coração, morro; não me custa. Justiça para quê? Te repito; pois toda a justiça era capaz de ressurgir Fernão?
-- Isso é verdade; mas um caso assim não pode ficar impune.
-- Impune ficará neste mundo. E Deus alumie a alma do criminoso, para que entre perdoado na outra vida. Tu crês, que se o matador não fosse pessoa a coberto da justiça o faria, e assim?
-- Da justiça ninguém está a coberto.
-- Em melhores tempos, não nos nossos, Ana. Vê bem e repara se o que se passa connosco não é como uma imagem do que está sucedendo à nessa terra. Tudo é desgraça, a nossa tempestade formou-se mais depressa, por isso também é comparativamente muito menor, que a do nosso país. Ainda há pouco o céu nos era azul puríssimo, o futuro cheio de felicridades e esperanças como a Primavera nos campos, e já tudo se revolvia, tudo se anegrava, já os bulcões de nuvens se acastelavam, já se ouvia ao longe o assobiar do vento, o bramir do trovão sobre o pobre Portugal. A tempestade estalou ao mesmo tempo sobre nós e sobre ele.
-- São assim as almas devaneadoras, Maria; a tempestade passa, as nuvens desfazem-se, emudece o trovão, amansa o vento, e o céu volta a ser azul e os campos floridos... depois do Outono torna a Primavera.
-- É assim, mas a tempestade como o Outono ceifam muitas vidas, muitas esperanças. A tempestade de agora, acredita-o, matar-me-á, como há-de matar a nossa pobre terra... Tu e outros ficarão para ver a Primavera!
-- Deixemo-nos de loucuras. Maria, fica certa, de que o pai em voltando fará cumprir a justiça.
-- Em quem?
-- No matador.
-- Sabes quem ele é ?
-- Eu não ; a devassa o descobrirá.
-- Não carece.
-- Sabe-lo tu?
-- É D. Alonso.
-- D. Alonso!
-- Sim, ele! Aquele homem foi a desgraça que vimos. Bem te dizia eu, Ana: receia-te dele se é castelhano!
-- E era.
-- Era, era bem o sei.
-- Oh minha irmã, que série de infortúnios!
-- Não vês ainda aí outro ponto de contacto entre a nossa desgraça e a da nossa terra? Castelhanos sempre!
-- Meu Deus, meu Deus ! -- murmurava Ana confusa da serenidade da irmã, e mais ainda talvez por saber em D. Alonso o matador de Fernão.
-- Ora, Ana, como à porta da eternidade te falo, reconcilia-te comigo ; quero, antes de morrer, ver outra vez aquela irmã desvelada, que eu tinha... dize, não é verdade que viste aqui D. Alonso?
-- É verdade! Deus me perdoe, e tu perdoa-me também o que fiz. Talvez eu seja responsável pela morte desse pobre rapaz. Era ambiciosa e fui castigada, e cruelmente castigada!
-- Lembra-te do que sempre te disse de Margarida e de D. Alonso depois... Sou profeta!
-- És profeta porque és um anjo.
-- Longe disso: sou uma fraca mulher. Não me contes, Ana, o que se passou, que eu o adivinho... ou antes, sei-o.
-- Se não foras tu, que me salvaste, Deus sabe o que seria de mim nesta hora.
-- Deus me guiou, e fez a tempestade para te acudir: graças ao Senhor!... Agora, Ana, tu salvaste-te, ou antes meu pai acabará de te salvar; em ele chegando iremos para a casa de D. Madalena, e lá estarás mais a resguardo da perseguição... castelhana!
-- Que dizes, Maria? Pois ainda o infame ousa?
-- Ousa, e mais que nunca ! Toda a cautela é pouca.
-- Que será de mim ?
-- Deus permitirá que sejas feliz...
-- E tu, Maria?
-- Eu... eu sou feliz, sou; não me custa morrer, esta noite vi o céu, e encantei-me com ele!
-- Minha pobre irmã!
E Ana apertou contra o seio o seio de Maria, e abraçaram-se as duas, chorando ambas.
Algum tempo depois, Ana desprendeu a irmã, e disse-lhe:
-- Adeus, Maria, tenha juízo; eu vou-me, que tenho hoje muito que fazer...
Quando a filha mais velha de Febo saiu do quarto da irmã, parou um instante e parece que meditava. Agitavam-se-lhe na mente ambições e receios; ora empalidecia ora as faces se lhe tingiam do rosado da esperança. Partiu por fim, e ao encontrar Domingas, que, como já se disse, era a aia das duas meninas, disse-lhe:
-- Venha cá, Domingas. Quero pedir-lhe um favor.
E ambas entraram no quarto de Ana e por muito tempo ficaram conversando a sós.
A singular entrevista que Ana tivera com D. Alonso promoveu uma forte sensação no seu espírito. Agora era o reoeio de que seu pai descobrisse o acontecimento, era o desprezo por aquele que a pretendera desgraçar, era enfim o arrependimento; depois vinha a reacção: custava-lhe a perder a doirada ilusão que formara, analisava o procedimento de D. Alonso e ia, ainda que a custo, concluindo que o castelhano podia muito bem ser medroso, e não ter por isso ânimo de por amor dela quebrar as pernas, mas ser não obstante verdadeiro marquês e rico. O duplo aviso, que a irmã lhe fizera da chegada do pai e da insistência de D. Alonso, operava nos dois sentidos: o primeiro no do arrependimento, o segundo no da esperança. Longe de abrir o coração à irmã, Ana guardara bem secretamente os seus íntimos pensamentos.
A suposta morte de Fernão era porém uma nódoa de sangue que avermelhava tristemente o futuro, porque ela era verdadeira amiga da irmã.
É de supor portanto qual seria a perplexidade de espírito da pobre menina. O dia de amanhã era como um nevoeiro cerrado, que ardentemente desejava ver fendido. No espírito de Ana tinha larga morada a superstição, como em todos os espíritos em geral naquela época. Que melhor meio se lhe deparava, do que procurar uma destas bruxas, mulheres terríveis, que não obstante o seu pacto satânico, eram buscadas como a suprema instância no tribunal do futuro?
Tal foi o pensamento nascido das dúvidas e dos receios, das esperanças e das desilusões. O oráculo lhe desvendaria os olhos, lhe patentearia a estrada, lhe descobriria o fim!
Já nas torres da Sé tinham dado as avé-marias quando ela e Domingas saiam, subindo a calçada na direcção do Limoeiro: este era o resultado da entrevista secreta.
-- Não sei se fez bem, menina, em sair tão tarde; mais valera talvez esperar para amanhã... -- dizia a aia para a sua companheira.
-- Eu também, Domingas, parece que me sinto assustada; na verdade a noite vai tão escura, tão feia!... está mesmo de meter medo!
-- Voltamos? Melhor era voltarmos.
-- Nada, não: já agora iremos.
-- Nossa Senhora nos acompanhe.
Nisto voltavam para um beco escuro, onde as trevas se redobravam; o chão era cavado em profundos buracos; via-se no fundo desembocar a viela nas hortas que bordavam Lisboa; era ali menos escuro, porque as sombras das casas não aumentavam as da noite. Domingas e Ana foram seguindo tropeçando e enlameando-se; Domingas ia rezando o seu rosário, Ana toda entregue aos muitos e variados pensamentos, que lhe agitavam lo espírito. Chegaram ao fim: era na esquina a casa da feiticeira; uma das faces mergulhava-se na escuridão profunda do beco, na outra reflectia a pouca luz que através das nuvens se coava das estrelas. Assobiava o vento entre os canaviais que dançavam meneando como plumas as longas folhas, sentiam-se as ramadas das árvores murmurar como ecos de longínquos ruídos, e as nuvens corriam vetozes no firmamento, deixando raras vezes entrebrilhar o fulgor dalguns dos faróis do céu.
A casa da bruxa tinha um pavimento térreo onde ela habitava como simples mortal, e uma pequena água-furtada, para onde se subia por uma escada esburacada e velha, onde a pitonisa evocava o seu oráculo. Em baixo era a mulher, em cima a sibila.
Ana e Domingas entraram; Genebra, que assim se chamava a bruxa, veio-lhes ao encontro, e abraçou a aia, à menina deitou um olhar, e como que ficou pasmada de tão gentil formosura. Genebra era também moça e bela. Talvez isto pareça inverosímil, porque todas as bruxas, em todos os tempos, ou nasceram já velhas, ou só depois de o serem viram o anjo caído. Esta era uma excepção na regra geral das bruxas, do que nós, hoje, que já não há bruxas, podemos inferir o ser Genebra Pereira superior em malícia às suas confrades.
A ocupação de feiticeira era como a reforma ou aposentação daquelas mulheres, que em moças não tinham podido alcançar estado; era talvez com mais verdade um dos meios de vida a que em geral se agarrava a miséria. Em Genebra não se dava esse caso, porque era moça e formosa; era verdadeiramente feiticeira, mas os feitiços tinha-lhos posto a natureza nos olhos pretos, na boca engraçada, na figura airosa, na pele transparente e alva.
Sorria a bruxa encarando Ana com uma malícia incrível, pouco própria duma bruxa verdadeira; a menina moderara muito o seu terror, porque tinha imaginado o que era de imaginar, e vinha encontrar uma mulher bonita, gnaciosa e atraente. Até a casa em nada inspirava terror; viam-se os móveis, ainda que pobres, asseados e em boa ordem, respirava-se um certo bem-estar, que Ana não contava ver.
Depois de falarem um pouco, e de Domingas dizer a que Ana viera, encaminharam-se as três à feia escada; então Genebra voltou-se, e disse à menina:
-- A mulher fica aqui, lá em cima não verá senão a feiticeira, mas não se assuste do que vir.
E, tomando uma feição magnífica, ergueu a cabeça como uma rainha, arregaçou adiante o vestido e subiu o primeiro degrau. -- Genebra era uma perfeita actriz.
Domingas e Ana seguiram-na; a menina tremia de novo; nada lhe agradou a transfiguração; Genebra-mulher era muito preferível a Genebra-feiticeira. A escada tremia a cada passo, que as três lhe poisavam nos degraus; Ana julgou ter subido a uma altura imensa, porque tinha ia cabeça esvaída com o susto.
Tinham chegado: era uma pequena quadra com uma só janela que dava sobre o campo; não havia luz na casa, apenas a pálida claridade da noite entrava pela janela e a desenhava numa forma luminosa sobre o chão.
Ana e Domingas pararam junto à escada; Genebra atravessou a casa carregando nos passos para fazer efeito, e, tirando dum vão fuzil e isca, feriu lume e acendeu uma pira, que não era mais do que uma candeia de azeite sobre uma tripeça. Genebra parou um momento para deixar influir bem no ânimo da profana menina o estranho aspecto do quarto às claras. E era na verdade para atemorizar. As paredes nunca tinham sido revestidas de cal, e muito tempo, e talvez também muita arte, tinham-nas enegrecido e esburacado; viam-se nelas manchas vermelhas, provavelmente do sangue de alguma galinha, que Genebra matara aquele dia. mas que à imaginação exaltada da menina vieram lembrar a poça que vira da janela ; o tecto era formado simplesmente pelas traves que seguravam as telhas, e via-se luzir aqui e acolá pelas fendas a luz da noite, como brancas estrelas daquele céu de carvão. Uma caveira de burro e outra de cão ornavam dois dos cantos da casa, colocadas sobre duas pequenas tábuas servindo de cantoneiras; alguns ossos a um lado, muitas penas noutro, e no fundo uma cortina escura -- eis completo o desenho do templo.
Genebra estava sublime; subira a um banco, dera um aspecto terrível à fisionomia, uma tesura inflexível ao corpo, e não descravava os olhos da menina, que os tinha pregados no chão, mas sentia os da bruxa como dois fios de aço que a feriam, como duas balas de chumbo que lhe pesavam.
Desceu depois a feiticeira, tomou uma feição menos austera e disse-lhe em verso, porque a poesia é a linguagem dos deuses:
-- Vou polo alguidarinho,A candeia e o saquinho...E veredes labaredas.Se vos tremerem as pelesD'espantos e de temoresHi estão vossos servidores.Encostade-vos a elesE cobride-vos d'amores.
Sumiu-se então atrás da cortina, e ouviu-se um rumor surdo, contínuo, e ais e gemidos; o vento assobiava fora e estremecia as árvores e baloiçava as copas das canas, e entrava pela janela gótica invadindo a casa com uma friagem cortante que entorpecia os membros.
Descerrou-se a cortina; Ana, como instigada por um motor oculto, levantou os olhos: Genebra estava de novo sobre a trípode, tinha nas mãos um rosário, feito, dizia ela, de pupilas de olhos humanos que o demónio lhe trazia dos condenados; diante da profetisa sobre um estrado via-se um alguidar de barro com água, dentro dele uma panela com sangue de leão e fel de coruja, e um saquinho em cima, pleno de feitiços. Genebra, correndo as contas, ia dizendo:
-- Ó Senhora LadainhaAjudade-m'ora vós.Que já de esperar sam farta,E traga as fadas asinha...Cabra preta vai por vinha.Vai por vinha, mana minha,Te rogamus audi nos.Quando fordes à igrejaNão vos esqueça a soberba.Tomad'ora meu conselho.Ó açoutes do concelho.Que estrearam meus avósTe rogamus audi nos.Ladainha da Pereira,Escrita em pele de rata.Tinta de pingo de pata,Assada per mão de mógueira.Ó picota da Ribeira,Que estrearam meus avósTe rogamus audi nos.
Guardou Genebra então com gesto solene o rasário de pupilas humanas, e descendo da tripeça, dobrou-se junto ao alguidar, e, correndo desenfreada como uma bacante em roda dele, ia dizendo numa toada de fazer erriçar os cabelos, poisando-lhe as mãos nas bordas:
-- Alguidar, alguidar,Que feito foste ao luarDebaixo das sete estrelas,Com cuspinhos de donzelasTe mandei eu amassar:Ó cuspinhos preciososDe beiços tão preciososDai ora prazerA quem vos bem quer,E dai boas fadasNas encruzilhadas.Este caminho vai pera lá,Est'outro atravessa cá;Vós no meio, alguidar,Que aqui cruz não há-de estar.Embora esteis, encruzilhada.Perequi entrou, pereli saiu.Bem venhades, dona honrada.Vai a estrada pola estrada.Benta é a gata que pariuGato negro, negro é o gato.Bode negro anda no mato.Negro é o corvo e negro é o pez,Negro é o rei do enxadrezNegra é a vira do sapato,Negro é o saco que eu desato...
E aqui tomando de sobre a panela o saco dos feitiços, correu-lhe os cordões e abriu-o: nada continha a olhos profanos; mas Genebra foi tirando dele:
-- Isto é fersura de sapo,Que está neste guardanapo.Eis aqui mama de porca,Barbas de bode furtado.Fel de morto excomungado,Seixinhos dope da forca:Bolo de trigo alqueivadoCom dous ratos no meu lar.Per minha mão semeado,Colhido, moído, amassado.Nas costas do alguidar...
A voz da profetisa percorria nesta singular descrição toda a escala de sons que laringe humana pode produzir, desde o mais profundo baixo até ao soprano mais agudo; ora uma voz cavernosa dava um tom medonho e terrível às suas palavras, ora essa voz se mudava num assobio estridente, que irritava os nervos e pintava à imaginação escandecida o que deveriam ser as gargalhadas dos demónios, ora, passando para o contralto, com ele a esperta sibila conseguia tornar mais sensíveis o som lúgubre semelhante ao trovão longínquo, e o assobio estridulo como o vento que passa em alta noite invernosa entre as ruínas de algum castelo roqueiro.
Ana estava morta de aflição; parecia-lhe que delirava, tinha as faces rubras de febre e via indistintamente os objectos: tudo era sobrenatural! Tudo medonho! Tudo terrível! Sentiu-se então um estrondo, que a menina supôs um trovão, julgou que a casa desabava e que aquele era o último dia da sua vida! Mas a feiticeira que não contava com o demo tão cedo admirou-se também da prontidão; escutou, e interrompeu por um momento a sessão sagrada; ouviu-se depois um assobio e o rosto da profetisa asserenou-se ; Ana porém não sei qual a atemorizou mais se o trovão, se o assobio. Genebra continuou:
-- Achegade-vos a mim:Que papades meu qu'rubim?Escumas de demoninhadoQuem vo-las deu?Dei-vo-las eu.Fel de morto, meu conforto,Bolo cornudo, vós sabedes tudo,Bico de pego, asa de morcego.Bafo de drago, tudo vos trago...
Sentiam-se passos e falas no pavimento inferior e aproximavam-se :
-- Eu não juro, nem esconjuro.Mas galo negro suroCantou no meu monturo...
Os passos faziam tremer a escada.
-- Ei-lo Demo vai, ei-lo Demo vem...
-- O Demo! O Demo aqui está, Genebra!
Ana levantou-se horrorizada; mas não pôde deixar de querer ver o demo; viu-o e mais horrorizada ficou: o demo era D. Alonso.
Ele, e outro que o acompanhava, atravessaram num pulo até a pira e apagaram a chama, e cerraram os postigos da janela. Tudo era trevas. A filha de Febo desmaiou.
D. Alonso chegou-se o mais irrespeitosamente à profetisa e disse-lhe:
-- Genebra, arranja o caso como puderes, vou levar-te esta rapariga e tu guarda a velha um ou dois dias.
-- Então?...
-- Então o quê? Não te doas com ciúmes, meu amor. O caso é outro.
E os dois, D, Alonso e D. Diego, aquele que ao longe temos encontrado várias vezes, levaram Ana e, montados a cavalo, partiram, conchegando D. Alonso a menina contra o peito e beijando-a para a reanimar.
O caso foi que o castelhano na sua ronda à casa de Febo Moniz viu sair Ana com a aia; seguiu-as até que entraram para a casa de uma das suas amantes, a bruxa Genebra Pereira. Num pulo foi buscar D. Diego, e um e outro executaram o plano, que num momento D. Alonso formara.
Genebra, asserenada a tormenta, tornou a acender a pira, e deu com os olhos em Domingas que basculhava todos os cantos da casa à procura da sua menina; Genebra disse-lhe:
-- Descanse, Domingas, o demo que levou Ana é bom demo, você tem de esperar aqui até que ele volte.
-- Hei-de eu esperar, bruxa do inferno?
-- Há-de esperar, há-de, e mais vale a bem. que a mal.
Genebra então fechou com um cadeado a janela, desceu a escada, trancou a porta por fora, e deixou a velha a dizer mal da sua vida no sacro templo dos augustos mistérios.
A feiticeira, que era uma rapariga viva, começou a imaginar no caso e a ter zelos, mas, como era razoável, pensou e bem, que fidalgo, como D. Alonso, não podia pertencer-lhe exclusivamente; depois outra lembrança lhe adveio, e essa magoou-a mais: era que tinha de abandonar Lisboa, porque dentro em dois dias, logo que largasse a velha, a inquisição estava de volta com ela.
Era à noitinha; quando não resta do sol mais do que um clarão purpúreo no ocidente, quando as sombras se vão apoderando do espaço, as estrelas começam vagamente a tremer no céu, e a lua aparece no horizonte vermelha e afogueada.
Passeavam àquela hora sobre a praia que bordava o Tejo no sítio onde hoje vemos o cais de Santarém, dois vultos dos nossos conhecimentos: fr. Marcos, com a sua prazenteira e rotunda aparência levando pelo braço um mancebo, pálido e fraco como convalescente, mancebo que não outro senão o adversário do castelhano, o galã de Maria, Fernão enfim.
-- Como se sente, Fernão? -- dizia o frade -- ; crê, que o ar da noitinha lhe não fará mal?
-- Não, meu amigo; descanse, que não faz... antes pelo contrário; parece que sinto lume cá dentro...
-- Isso é da ferida.
-- E este ar fresco e húmido refrigera-me. Felizmente o que tive, parecendo muito, não foi nada.
-- Dê por isso graças a Deus.
-- Não sei se dou... mas... esqueçamos o passado... a verdade é que a ferida não passem duma arranhadura. A es- pada resvalou pelas costelas sem as ofender; foi simplesmente um rasgão na pele, que, como vê, bem depressa se curará.
-- Assim o espero, mas em todo o caso melhor é ter cautela, porque numa recaída, se a febre sobrevem, pode ser perigoso... Eu aconselhava-lhe que voltássemos a casa.
-- Já agora só por um pouco, meu padre; não vê aiém uma falua correndo aproada à praia... vejamos quem vem; talvez volte de Santarém e nos traga notícias de lá.
-- Trate de si primeiro, Fernão, e depois então se entregará a essas coisas.
-- Descanse, fr. Marcos, isto é simples curiosidade. Neste momento o barco abicava à praia e, com visível admiração dos dois, saltavam dele Febo Moniz e Tomé; Fernão lembrou-se naquele instante, do que Maria lhe dissera, e o dito da menina e a presença do velho, juntos à prática, que tivera com D. Alonso, elucidaram-no acerca dos acontecimentos, que se revolviam no seio da família de Febo Moniz.
Fr. Marcos adiantou-se para saudar o velho, dizendo-lhe:
-- Sr. Febo Moniz... aqui!?
-- Aqui, sim, fr. Marcos -- respondeu o interrogado com um modo que pintava bem claramente o doloroso motivo que o trazia, e acrescentou -- , mas por pouco, se Deus quiser!
Nisto desembarcavam da faula dois franciscanos, que ao ouvirem pronunciar o nome de Febo trocaram um gesto de espanto e foram conversando em voz baixa, enquanto desciam pela prancha da borda do barco para a praia.
Tomé fazia então os seus cumprimentos a fr. Marcos, e Fernão conservava-se afastado e recolhido, com os olhos fitos no velho procurador por Lisboa, Os dois franciscanos dista,nciaram-se alguns passos, e no breve espaço desta entrevista tinham alcançado uma mó de pescadores e barqueiros, que se agrupavam, não longe, na praia. Quando Febo Moniz se despediu de fr. Marcos, e ia, com Tomé, seguindo em direitura à rua, por onde deviam tomar, os barqueiros e Os pescadores conduzidos pelos franciscanos vieram-Ihes ao encontro; Febo parou.
-- É ele, é ele! -- gritou um dos frades. E o outro juntou:
-- O maior inimigo dos castelhanos!
Rebentou então do seio da populaça, que se juntara, e, como sucede sempre, crescia a cada instante, uma vozeria estrondosa de vivas e aclamações, em que o nome de Febo misturado com o de D. António se elevava acima de todos os gritos, em que as pragas verberavam juntamente os castelhanos, o Cardeal, e os grandes vendidos. Um dizia:
-- Má morte os leve a todos!
-- Que esperneiem nos infernos como vis condenados que são ! -- acrescentava outro.
-- D. António é o nosso rei !
-- Febo Moniz o nosso homem !
-- Real por D. António !
-- Viva Febo Moniz!
Febo Moniz estacara em frente da massa, que o rodeou depois, e num momento em que o estrondo das vozes enfraquecera, percorrendo o círculo com o olhar, perguntou com voz áspera:
-- Que me quereis, pois?
-- Que vos queremos? -- disse, adiantando-se um barqueiro de façanhudo aspecto, fazendo abrir uma clareira em redor de si -- ; o que queremos é saudar-vos! Queremos, que saibas, que o povo de Lisboa odeia os castelhanos e os repele, como vós os odeais e os repelis!
-- Isso, isso! -- gritaram com voz uníssona os centenares de bocas do ajuntamento.
-- Vimos dizer-vos -- continuou o orador -- , que estamos prontos a morrer pela nossa terra! Que os nossos braços largarão os remos, as redes, a enxada, a serra, o malho e a trolha, para empunhar um pique, ou uma lança, ou um arcabuz! Somos muitos e fortes! D. António é nosso chefe! Vós sois dos nossos, honra vos seja!
-- Honra, honra a Febo Moniz!
-- Viva o nosso procurador!
-- Morra o Cardeal!
-- Morram os castelhanos!
-- Morram os traidores!
-- Viva D. António!
E o tumulto e com ele a vozearia engrossava, como engrossam as vagas, quando o sudoeste as levanta; tremiam remos e achas e piques sobre as cabeças da turba; as sombras da noite envolviam a cena, e aqui e acolá viam-se luzir com o seu clarão rubro e enfumado bastantes archotes.
-- Sossegai, sossegai! -- gritou Febo Moniz -- : recolhei-vos e não estafeis a voz, que mais precisareis do braço. A hora do perigo não tardará e então obrareis como dizeis; todos somos portugueses, todos estamos obrigados a defender a nossa terra! Não levanteis a cizânia e a guerra entre irmãos, porque a desunião é o maior perigo. Aquietai-vos, recolhei-vos, honrados populares!
As palavras de Febo Moniz impressionaram desagradavelmente a multidão; esperava um incentivo ao tumulto que é o seu prazer, encontrou a sensatez que ela ignora o que seja; por isso, entre o silêncio prenhe de indecisão e desconfiança que acolheu as palavras de Febo, alguns mais exaltados apontaram-nos aos seus próximos, dizendo em voz baixa:
-- É como os outros! Ei-lo, que já está comprado!
E estes ditos, que primeiro se trocavam em segredo, iam tomando corpo, iam minando a turba, e o rumor crescia, e a voz engrossava, e os rostos carregavam-se, mexiam-se os piques, tremiam os remos, ondeava a multidão como o mar banzeiro prenhe de tempestade. A vida de Febo não estava muito segura; Tomé tremia de susto.
Nisto a atenção caprichosa e volúvel dessa terrível criança chamada o povo tomou outro norte por felicidade de Febo Moniz; estremeceu a massa enorme e do seio dela surgiu, como um veado saindo duma floresta, o moço Fernão.
-- Que é isto? Que é isto? -- bradou com uma voz imperiosa -- ; quem ousa aqui murmurar? Quem se atreve a faltar ao respeito devido àquela fronte pura, àquela alma imaculada ? É assim, populares de Lisboa, que pretendeis esperar os castelhanos: insultando aqueles, que vos dão o corpo e o espirito? Dizei, dizei! Qual de vós ousa lançar a pedra a Febo Moniz? Qual de vós se atreve a insultar o homem, que falou nas Cortes como nenhum outro se atreveu a falar? O homem em quem só podeis colocar a vossa esperança? O único talvez que, além de D. António, a não iludirá? Dizei, dizei e aquele que se atrever a isso ou morrerá ou morrerei eu!
Era uma criança brincando com um leão, mas assim como os naturalistas dizem que as feras não podem resistir ao influxo dominante do olhar do homem, é facto averiguado que a turba não pode também resistir ao domínio da palavra inspirada.
O murmúrio acabou, os receosos arrependeram-se, os firmes exaltaram-se. e as palavras de Fernão foram acolhidas com um estrépito de aclamações e gritos, que atroava os ares e ensurdecia os ouvidos.
O delírio da multidão tocou o extremo: todas as mas que vinham desembocar à praia, vomitavam novos bandos, e 03 barqueiros, os pescadores, os operários, os escravos, os soldados, misturavam-se, cruzavam-se. impeliam-se; pelo meio da massa compacta e negra da multidão fulguravam os archotes iluminando algims rostos, indo descobrir nestes as faces rubras, os lábios secos de gritar, naquele os olhos esgazeados, o peito arquejante, noutro farrapos, noutro nudez, noutro a bestialidade pintada na cara, noutro a insensatez retratada nos olhos; conjunto, enfim, de muitas misérias, de muitas infâmias, de muita ignorância, de muita veemência, que tudo reunido forma um vulto tremendo, peso enorme nos destinos duma sociedade revolta, tão forte quão volúvel, sempre insti-umento, nunca ideia! As turbas! Irritáveis, furiosas, mas inconstantes, como o mar que brame hoje furioso, e se despedaça em ondas como montanhas, e amanhã se espreguiça brincando com os flocos de espuma, que lhe saltam no dorso; umas vezes, como o rio, que transborda, e, quando recolhe ao leito, deixa sobre a terra as imundícies, o lodo, os limos, que na multidão são os crimes, os roubos, os assassinatos, e no seio dela o germe da colheita futura; outras vezes como a lava de um vulcão, que, quando irrompe, queima e destrói e só deixa cinzas e ruínas; agora instrumentos do progresso, logo instrumentos do retrocesso; um dia acordando, iluminado o cérebro pelas miragens da liberdade, de um sofrer de séculos, e simbolizando no arrasar de uma prisão o início duma nova era, logo depois, trocando o ceptro pela vara do algoz, desvairadas e ferozes, deificando o ami du pewple, e exultando, numa das mais terríveis orgias humanas, perante os troncos decapitados, que a guilhotina vomitava aos milhares! Hoje tapetando com palmas o caminho de Cristo em Jerusalém, e bradando pouco depois no átrio de Pilatos : crucifige, crucifige eum! Um dia vingança, outro justiça, um dia crime, outro dia protesto, sempre braço, cabeça nunca!
Protesto eram em Portugal na época desta história.
Assim como a turba é entusiasta, é veemente, é atrevida, mas é volúvel e inconstante e estúpida, assim a classe média, a burguesia, os homens presos à propriedade pelo egoísmo como os servos da gleba o eram à terra pela lei, é calculadora, prudente, astuta, e por isso firme, persistente, tenaz; a plebe tem sempre dezoito anos, a burguesia quarenta; aquela é a mocidade arrebatada e caprichosa, é a alavanca das grandes revoluções, que como marcos gigantescos indicam à história o caminhar do progresso, esta a hombridade madura, pensadora, reflectida, sempre receosa, custando-lhe a adiantar um passo, mas, quando o dá, dando-o com firmeza.
E desta curta divagação podemos conhcer, pondo em paralelo as duas épocas da nossa história em tantas circunstâncias idênticas, a diferença que separa uma da outra, quais as causas porque numa e noutra foram distintos os resultados : 1383 teve a plebe e a burguesia, 1580 a plebe só; além disto o Mestre de Avis era hábil -- e sobretudo habilidade é que é necessária com as turbas -- e D. António não a tinha. Em 1383 a sociedade estava sã, e por isso a burguesia honrada; em 1580, a sociedade estava pobre, e por isso a burguesia corrupta e indiferente...
O incêndio lavrava e as chamas crepitando com vio- lência abraçavam tudo, eram indomáveis; o motim da plebe Bubira ao maior auge : atroavam os ares os vivas a Febo Moniz e os morras ao Cardeal e aos castelhanos.
Quatro barqueiros tomaram Febo Moniz nos braços e ergueram-no sobre os ombros, outros com archotes cercavam o grupo, e a turba segui-o como a cauda imensa de um cometa.
Quando chegaram em frente da casa de Febo, Maria estava debruçada no balcão da janela e mirava com espanto a multidão; cuidou ver a figura de seu pai naquele vulto erguido sobre os ombros dos barqueiros, mas não o quis crer; porém os gritos repetiam-lhe o nome, e poucos instantes depois, à luz vermelha dos archotes, distinguiu claramente as feições queridas, pelas quais suspirava.
Entretanto Fernão, apenas calado, esquecido pela turba, seguia de perto o pai da sua amada e viu-a na janela ; foram estranhas as impressões que sentiu, e a sua posição era na verdade singular; num momento delineou um plano de conduta, talvez a obra mais sensata de toda a sua vida; disse consigo:
-- Ela julga que eu morri ; o que tem de sofrer, se alguma coisa é, já o sofreu, por isso tratemos de nós. Eu amo-a muito, e muito é verdade, mas, com o tempo que está, sobra pouco para galanteios. O verdadeiro amor não é o que se diz, é o que se sente ; quando eu tiver ganho o que mereço, quando tiver ajudado a salvar a minha pátria, então vir-te-ei buscar, Maria! Oh descansa, que hei-de vir, porque te amo!
E assim acabou a meditação a que a vista da sua amada dera lugar, meditação que talvez as almas paixonadas não julguem muito acorde com um sentimeinto vigoroso; mas o pobre rapaz era fraco, e talvez também se lembrasse, de que a última entrevista lhe havia proporcionado uma estocada. Logo na apresentação se disse que o rapaz era fantasiador, arrebatado, mas no fundo egoísta.
A este tempo já Febo Moniz tinha entrado em casa, e as turbas coalhando a rua despediam um clamor de mil vozes, que atroava os ares; a lua campeava então esplêndida no alto do céu e a sua luz iluminava os topes das torres da catedral, dando-lhes uma cor sombria, amarela e triste.
Febo Moniz entrara em casa meio embriagado pela ovação popular. Qual será o espírito forte que alguma hora se não deixasse levar, não digo já por um triunfo como aquele merecido e espontâneo triímfo com que o acolheu o povo de Lisboa, mas simplesmente por umas vozes de louvor, por um acolhimento lisonjeiro, seja ele ou não merecido, seja ele sincero ou hipócrita?
Mas triste embriaguez a dele! É terrível acordar dum sonho feliz. Que expressão tinha o rosto de Febo, quando, beijando na testa a filha querida, lhe dizia:
-- E Ana?!
Ao mesmo tempo o estrepido das aclamações reboava no interior da casa, e pelas janelas vinham desenhar-se no chão e nas paredes os reflexos avermelhados do clarão dos archotes.
Lá fora os vivas, o delírio fremente de centenares de homens, as aclamações, a alegria, a glória; cá um destes golpes da sorte, que, quando descaem, fulminam como o raio, que abre pelo meio a mais robusta das árvores.
E a multião inebriada, que é exigente, aclamava em altas vozes pelo seu ídolo, o nome de Febo, repetido por mil bocas, vinha atordoar os ouvidos do pai e da filha, que abraçados se haviam compreendido um ao outro sem trocarem palavras. Quantas vezes não tem o silêncio maior eloquência que todas as palavras juntas!
Era forçoso ceder. Obrigação cruel. O sorriso, as palavras alegres e os agradecimentos haviam de ir esmagar os gemidos, as lágrimas, os soluços que se revolviam lá dentro e cresciam de volume esforçando-se por transbordar!
Algumas palavras soltas, palavras sem vida, foi o que Febo conseguiu deitar às goelas da populaça, que, como faminta, se retirou descontente. Então os que havia pouco o tinham acusado de traição falaram de novo, e horas depois Febo Moniz nas tavernas da capital, entre um copo de vinho e uma chufa grosseira, era indicado por alguns como mais um que D. Filipe tinha conseguido comprar. Sem norte e sem guia, assistindo todas as horas à venda dos grandes, a populaça, se tinha em si a intuição da justiça, não tinha nem união nem força; daí a volubilidade exagerada, que dos seus vícios é o maior.
Despedida a turba, Febo volveu para o lado da filha, e tomando-a no colo, como se o triunfo na verdade fora um sonho, apenas passado, logo esquecido, perguntou-lhe com os lábios e ainda mais com os olhos:
-- E Ana?!
Maria encarou fixamente o pai e respondeu com duas grossas lágrimas, que tremendo serenamente na franja negra das pestanas lhe deslizaram pelas faces.
-- Não mo pergunte, meu querido pai -- disse a menina alguns momentos depois escondendo a cabeça no colo do velho.
-- Mas dize, Maria... quem sabe?... haverá talvez remédio ainda.
-- Tem razão. Deus me dê ânimo.
-- Eu de mim o tenho -- tornou Febo amargamente -- , dize-me a verdade... toda a verdade.
-- É uma série de desgraças que vou contar-lhe. Precisamos muita coragem, muita confiança em Deus, para as suportarmos.
Calaram-se ambos, aproximava-se para um e para outro um momento cruel: para ela o de dizer coisas que a matavam de pena e de vergonha, para ele o de as ouvir, porque as adivinhava. Por que será que quase sempre adivinhamos a desgraça e quase nunca a felicidade?
-- Lembra-se, meu pai, como Ana era fria, mas ambiciosa... como sonhava riquezas e esplendores?
-- Oh se lembro ! -- respondeu Febo doridamente.
-- Vem daí a sua e a nossa desgraça. Um dia conversámos na janela deste quarto, quando um homem galante e ricamente vestido a cortejou. Ana enlevou-se no traje e aceitou-lhe o galanteio. Depois... mas não me faça dizer o que não posso, meu pai!
-- Dize, Maria. E se nós salvarmos ainda tua irmã?
Maria cismou um pouco. Apoiava a testa sobre a mão e pelo braço mais bem modelado se deslizavam lágrimas cheias e sucessivas.
Já a este tempo o povo evacuara a rua. O fulgor dos archotes, o bulício e os gritos da multidão tinham cessado. Era tudo deserto, escuro e calado. Só de longe se ouvia o marulhar do rio contra o cais, e algum raio de luar, coado das nuvens que obscureciam o céu, vinha de tempo a tempo beijar as janelas e invadir a casa com a sua luz melancólica e vaga.
Pouco depois, erguendo a cabeça, Maria disse:
-- Castelhanos, castelhanos ! Para nós e para a nossa terra tomou Castela o lugar de algoz.
-- Que dizes, filha?
-- Meteu-se de permeio a hipocrisia -- tornou a menina sem atender à interrogação do pai -- ; e cavou o abismo da perdição... Margarida trouxe aqui um dia o castelhano...
-- Oh meu Deus ! -- exclamou o velho batendo com os punhos cerrados na fronte e arrancando os cabelos às mãos-cheias.
-- Estávamos eu e Domingas fora -- continuou Maria.
-- Filha! Filha! Para isto Deus ma deu?!
-- Não a crimine -- tornou Maria com serenidade beatífica -- , deite a culpa à má fortuna que lhe deu um génio assim, e a quem se encarregou de perdê-la.
-- Para que sacrifiquei eu a minha família à minha pátria?! Se a minha terra tem de morrer, por que há-de morrer também a minha honra, que é a honra dos filhos do meu sangue ? !
-- Sossegue ! As tempestades manda-as Deus como manda o bom tempo, manda a desgraça como a fortuna... para isso nos deu alma e coração e juízo!
-- Tens uma grande alma, filha.
-- Engana-se : tenho um coração que Deus moldou pelo seu.
-- Vamos, Maria, acaba...
-- Daí data, meu pai, daquela desgraçada entrevista a perseguição vigilante, que sem cessar o castelhano exercia sobre ela, até que...
-- Até que...
-- Não sei como lho diga... Ana saiu ontem com Domingas ao escurecer, e até agora não tenho mais noticias nem dela, nem da nossa aia. Que dia, meu pai! Que noite e que dia tenho passado! Vi-me completamente só, sem ter ninguém de quem me valesse; Tomé mandara-lho a Santarém... Esperava que Deus o fizesse chegar breve, meu querido pai!
-- E Deus ouviu-te.
-- Se eu lhe rogava com toda a minha fé!
-- Agora, filha, Tomé fica para te acompanhar. Eu saio. Lfevemos cada qual a cruz ao calvário. Cristo levou a sua e era muito mais pesada! Teve um cireneu, eu tenho-te a ti, minha boa filha... Paciência e coragem! Ah! Castela! Castela! Não te pagará um dia a justiça divina o mal que nos fazes?
-- Não fale em vinganças, meu pai! Sabe se os castelhanos não são simplesmente um instrumento nas mãos da Providência? Sabe se o que sofremos agora não é castigo do que fizemos? O que dirão de nós aquelas pobres gentes das índias, a quem fizemos tanto estrago?
-- Tens razão, filha! A nossa terra caminhava à perdição... destinou-nos Deus para lhe assistirmos ao funeral!... Mas das índias... das índias, não fales... não lhes levámos a religião do Crucificado, não os iluminámos com a verdadeira luz?
-- Pois é com ferro e fogo que se ensina a caridade? Quantas desgraças causámos? A quantas famílias, que viviam felizes, foi a conquista lançar numas a discórdia, noutras as lágrimas, a viuvez, a orfandade, a morte! Pagamos os nossos crimes !
-- Pagamos, pagamos, filha!...
-- Vai então?...
-- Primeiro que tudo procurar Margarida, e depois o Corregedor do crime para pôr os alvazis na pista do castelhano.
-- Deus o acompanhe.
-- E nos ouça.
Febo apertou contra o peito a menina, e saiu; Maria acompanhou-o; desceram à porta, mas aí lhes embargou o passo Domingas que entrava.
-- Sr Febo Moniz! Sr. Febo Moniz! Deus o trouxe em boa hora! Corra depressa, corra, corra a ver se ainda apanha sua filha e aquela endemoninhada bruxa, que a deixou raptar.
-- Venha cá, mulher... então a bruxa?...
-- A bruxa, a bruxa sim senhor. Genebra Pereira...
-- Então você onde levou minha filha?
-- Onde a levei, senhor? Essa, é boa! A menina saiu comigo e disse-me que queria ir ter com uma bruxa, para lhe decifrar lá umas histórias, em que eu me não meti, e de que não sei nada... Cruzes, demónio! Parece-me, que ainda a vejo!... não a menina, a bruxa, a bruxa!
-- Mas você -- tomou Febo -- , saiu com Ana, levou-a a casa da tal bruxa, e depois?
-- E depois, senhor, e depois a rapariga começou a chamar pelo demónio, e o demónio veio, mas o demónio era um rapaz galante e bem vestido, cabelo loiro, olhois azuis...
-- O castelhano ! -- disse Maria.
-- Ele! -- tornou Febo.
-- Pois assim era o demónio ; e veio, apagou a luz e falou com a bruxa, e entendiam-se os dois muito bem; tudo era negro; o demónio saiu, e eu andava às apalpadelas procurando a menina Ana, porque a não senti ao pé de mim, quando a bruxa tornou a acender a luz, mas a menina Ana tinha desaparecido, e a bruxa disse-me que o demo havia de voltar com ela e eu esperar até à volta, e para mais segurança fechou-me. Rezei a todos os santos da corte do céu, para que me acudissem, mas eles não ouviram as vozes da casa maldita. Passei ali toda aquela noite, e no dia seguinte, quando a fome me apertou, desci a escada. Pasmei de encontrar a porta aberta, basculhei todos os cantos, mas não encontrei vivalma. Saí, e vim direita aqui.
-- E você, Domingas, não desconfia para onde levariam a menina?
-- Eu sei lá, meu senhor, para aonde o demónio a levou !
-- Qual demónio, nem meio demónio! -- tomou Febo.
-- Pois olhe que era, que o demo tanto aparece debaixo duma, como doutra figura. Maldita bruxa!
-- Adeus, Maria ; -- disse Febo dirigindo-se à filha.
-- Deus o acompanhe, meu pai.
E dizendo assim a menina, pendurou-se-lhe ao pescoço, beijando-o.
Febo foi em busca de Margarida, mas escusado é dizer que a não encontrou; passou depois ao Corregedor do crime, e, como era pessoa de consideração, alcançou que a polícia se pusesse em campo para descobrir o raptor. Margarida, e a bruxa.
Quando voltou a casa era madrugada. Maria esperava-o na janela e foi encontrá-lo ao entrar. Febo disse-lhe:
-- Prepara-te, Maria. Vou levar-te para casa de Manuel de Sousa, porque hoje mesmo hei-de voltar para Santarém.
Abandonando pela causa da sua pátria, a causa sua própria, Febo praticava um dos maiores sacrifícios que o homem pode fazer à sociedade.
A feição resolutamente inimiga que a intimação do Cardeal encontrou na assembleia dos procuradores do povo assustou o velho rei, e fê-lo por um instante vacilar no trilho errado que seguia; mas a influência dos conselheiros num momento desfez a incerteza que es assustava também. O Cardeal era um espírito incapaz para domar a procela que se sentara com ele no trono; a influência castelhana tinha-o dominado desde o principio do seu governo, e conseguira tcmá-lo numa teia, donde o velho não podia fugir. A aranha prendia a vespa; mas o insecto, debatendo-se nas agonias da morte e nos ímpetos dum ódio senil, descarregava aqui e acolá uma ferroada, não alcançando com isso mais do que exaurir-se de forças e desprestigiar-se.
A luta, porém, não era tão fácil de levar, como a muitos pode parecer; a assembleia popular estava violentamente agitada ; a influência do duque de Bragança no braço da nobreza podia dizer-se importante; e o Prior do Crato encontrava apoio principalmente na classe baixa do povo, e nalguns que supunham nele um sucessor da magnífica epopeia do Mestre de Avis. Se o Cardeal fosse outro, se o Cardeal fosse um carácter firme para o bem, talvez tivesse conseguido a conciliação dos partidos e alcançado assim, melhor ou pior, a conservação da autonomia do país; se o Cardeal fosse um carácter firme para o mal. o processo para entregar o reino aos castelhanos ter-lhe-ia sido muito mais fácil, muito mais pronto; mas D. Henrique não era nem uma nem outra coisa; D. Henrique formou o plano de entregar o reino a Castela, mas como a consciência lhe bradava que era criminoso de lesa-pátria, queria também dizer como Pilatos : -- Lavo daí as minhas mãos.
Os acontecimentos, porém, não lhe permitiram levar a cabo o plano; e o velho que se entregara atado de mãos e pés à causa castelhana, não querendo romper formalmente com os partidos nacionais, encontrou-se numa perplexidade cruel, numa vacilação contínua como o navio sem leme no meio da tempestade. É esta a feição do seu reinado.
O sério obstáculo que o Cardeal via nos procuradores do povo, cujo voto assegurara aos castelhanos, era uma das coisas, que mais o afligiam; na verdade a assembleia popular, entusiasmada pelo ardor do seu presidente, era um protesto vivo contra o procedimento do rei; cada dia os procuradores do povo tomavam uma feição mais característica; o seu último acto tinha vindo agravar as perplexidades do monarca; a cerimónia a que tinham recorrido era expressiva, e não podia deixar de impressionar o rei e. o país: comungando solenemente, juraram depois que prefeririam a morte a prestar obediência ao rei de Castela...
Entremos na antecâmara do paço real e deixando os dois criados vestidos de veludo preto, tabardos de pano, e canas nas mãos, que se chamam porteiros e que conversam desenfadadamente, os maceiros com suas maças de prata onde se vê o escudo das armas reais, pesnetremos na câmara onde jaz no leito o Cardeal-rei. Era esta uma sala forrada de ricos panos de seda com lavores bordados a oiro e prata; o chão estava coberto com ima tapete finíssimo, as janelas veladas por cortinas de seda da mesma cor do forro da sala que era amarelo; fronteiro à janela via-se um leito com colcha e cortinas de brocado de oiro, ao lado uma mesa coberta do mesmo tecido, e ao pé da mesa uma cadeira de veludo carmesim franjado de oiro; no topo da sala, que era quadrilonga, rasgava-se um oratório sumptuosamente ornado, e na face fronteira sobre um estrado, coberto de tapetes de seda, havia um dooel de brocado de oiro, do mesmo tecido que as cortinas da cama e o pano da mesa, e sob o docel um aparador carregado de vasos da índia, de louça, de bandejas e copos de prata e oiro; sobre o aparador viam-se vários medicamentos, que a doença do rei exigia.
No leito estava reclinado o Cardeal-rei inquisidor-mor, na cadeira sentado o duque de Bragança.
O Cardeal quase deitado sobre as almofadas tinha pintado no rosto o profundo desalento, o sofrimento penoso, que lhe consumia e amargurava os últimos dias de vida. Aquela era a bonança; a tempestade eram o ódio, a cólera, o susto, o remorso. Triste vida! Miserável rei!
O duque de Bragança era um homem no vigor da vida, medíocre de estatura, trigueiro, e de pouco robusta constituição. Vestia uma capa de pano abotoado o capuz com diamantes e fechos de oiro, barrete de veludo com os fios de rubis, pérolas e oiro, e calças de veludo azul agaloadas de oiro.
-- Sabei, duque de Bragança -- dizia o Cardeal vivamente sobressaltado, mas fingindo-se sereno -- , sabei que me não perturbam as vossas arguições.
-- Não vos perturbam, meu tio e senhor? Custa-me a crê-lo de alma como a de V. Alteza; pois não se perturba ela vendo o que fazem os procuradores do povo? Pois não sabeis ainda como eles, depois de comungarem, juraram solenemente morrer antes do que entregar o reino a Castela?
-- Pois eles juraram ? ! -- exclamou o Cardeal, levantando-se irado sobre as almofadas e com os olhos iluminados de cólera.
-- Não o sabieis ainda?... custa-me a crê-lo; -- tomou o duque.
-- Febo Moniz! Febo Moniz! -- exclamou o rei sem atender à interrogação do duque.
-- Iludiu-se com ele ! Talvez o Salema fosse melhor, não pensa assim V. Alteza?
-- Deixe-me, duque! Deixe-me, não me importune!
-- Não quer que o importune, quando V. Alteza se entrega nas mãos dos castelhanos? Não se lembra V. Alteza como mandou sair da assembleia da nobreza o conde de Tentúgal e o comendador-mor de Cristo, como mandou prender ao mesmo tempo a D. Manuel de Portugal?
-- Como prenderei e castigarei a todos, os que não quiserem obedecer-me, ouvide, duque de Bragança!
-- Ouço, meu tio e senhor, mas parece-me que os actos de V. Alteza não são os mais conformes com o verdadeiro amor que deve haver do príncipe para as vassalos.
-- Não são? Não são, duque de Bragança? Pois por amor de quem quero eu evitar a todo o transe uma guerra com Castela?
-- Mas se V. Alteza deixasse às Cortes o decidir a quêstão livremente, já que para isso as convocou, se não estivesse cada dia a mandar-lhes novas intimações... a querer obrigá-las a votar no rei de Castela... o que nunca alcançará...
-- Nunca alcançarei?! Veremos, se alcanço, duque!
-- Se V, Alteza não estivesse violentando as eleições, não perseguisse aqueles que lhe contrariavam os intentos, não se poderia dizer, como se diz de V. Alteza... que se vendeu a Castela por medo do seu poder!
-- Duque, duque! -- tornou o Cardeal colérico, mas abatido, porque as forças físicas lhe faltavam para acompanhar a excitação moral -- ; falais-me assim ousado -- tornou deixando cair a cabeça quase desfalecido -- , porque me achais fraco e velho!
-- Meu prezado tio -- respondeu o duque sensibilizado pelos sofrimentos do rei -- , perdoe-me o que lhe disse, porque se o fiz foi em serviço de Deus. de V. Alteza e do reino.
-- Em serviço de Deus, meu e do reino dizeis! Quanto melhor não fora abandonarem essas pretensões e ligarem-se per uma vez comigo.
-- Com os castelhanos.
-- Comigo, ou com os castelhanos, ou com quem eu quisesse... do que andar aí a fazer barulhos e desordens, quando no fim de contas isto há-de ir a pertencer a el-rei Filipe.
-- Se V. Alteza assim o quiser. Dê V. Alteza a sentença a favor da sua sobrinha que tanto amou...
-- Amei e amo, duque! Catarina há-de sempre ser para mim a jóia do meu coração. Pensando nela volvem-me lembranças de tempos que já lá vão...
-- Dê V. Alteza a sentença a favor dela e verá tudo decidido.
-- E o exército castelhano entrará em Portugal.
-- Talvez não, mas quando entre...
-- Quando entre o quê ? Estão loucos ! ... E de mais as Cortes hão-de decidir.
-- Talvez não tanto a prazer como V. Alteza julga.
-- Ah! Se eu não fora desfalecido e velho!
-- Ao menos, já que o domina mais o medo de Castela, que o amor da justiça, e a afeição de sua sobrinha e minha mulher, ouça V. Alteza o que lhe digo, e digne-se aceder aos meus rogos.
-- Dizei pois.
-- Faça V. Alteza publicar o testamento de el-rei D. Sebastião...
O Cardeal ergueu a cabeça sobre as almofadas e fitou o rosto do seu interlocutor, que continuou:
-- Faça-me nomear príncipe português... D. Henrique continuava como até ali.
-- Modere a sentença proferida contra D. António.
-- Oh isso não! Isso não! -- bradou o Cardeal, que se encolerizava todas as vezes, que lhe falavam no Prior do Crato.
-- Faça V. Alteza o que lhe rogo, e ver-me-á beijar-lhe as mãos e os pés, aderir à sua causa e desistir dos meus direitos.
-- E minha sobrinha, e vossa mulher?
-- Eu farei com que ela o consinta; -- volveu o duque. Aqui pergunta o historiador: a intervenção do duque de Bragança a favor do Prior do Crato, seria resultado de negociação efectuada entre os dois, ou simplesmente astúcia do duque para coagir o Cardeal a pronunciar-se a seu favor, exactamente como D. António fizera já para com Febo Moniz?...
O Cardeal calou-se, e o duque não ousou interromper o silêncio ; alguns minutos se tinham passado, quando o Cardeal empalideceu subitamente, encresparam-se-lhe as mãos, pendeu-lhe a cabeça sobre a almofada: tinha desmaiado.
O duque levantou-se e saiu a chamar o médico que nunca abandonava o palácio. Pouco depois o Cardeal voltava a si, mais quebrado, mais enfraquecido, mais gasto sempre.
D. João, duque de Bragança e 1." duque de Barcelos era casado com D. Catarina, filha do infante D. Duarte, irmão de el-rei D. João III; o duque de Bragança, sem ser, como o Prior do Crato, um homem que punha a preço os seus sonhos e não duvidava vender o seu patriotismo, ponto era o preço por que D. Filipe lho quisesse pagar, não era um destes homens quase perfeitos, que mais ou menos existem sempre, e que numa comoção social patenteiam os seus dotes, se levantam acima do vulgo, deslumbram, dominam, vencem, e, firmado o trono, uns como Cincinato ou como Washington voltam à charrua, outros como Júlio César ou como Napoleão são déspotas, outros como D. João I ou como Luís Filipe são bons reis, tanto quanto reis o podem ser. O duque não era nada disto; era um homem vulgar; ambicionava o trono pela majestade e esplendor da coroa; mas não a podendo alcançar, fosse ela a outro, mas que ele tivesse também um quinhão; por isso quando D. Filipe entrou triunfante em Portugal o duque foi recebê-lo e beijar-lhe a mão e oferecer-lhe a casa. É natural, que a outro qualquer faria o mesmo...
À feição rebelde da câmara popular, vinha pois juntar-se, para mais enlear, afligir e piorar o Cardeal, o aspecto não menos rebelde, que seu sobrinho lhe mostrava desde algum tempo. Fácil em romper com aqueles que se não curvavam cegamente às suas vontades, o Cardeai começou a desviar de si o duque de Bragança; e quando, pelo pedido feito por ele no breve colóquio a que acabamos de assistir, desconfiou que pudesse haver um acordo entre o D. João e o Prior do Crato, passou a afastar de si o sobrinho, e daí a odiá-lo, O duque que ao mesmo tempo via as bem estreitas relações, a perfeita harmonia que reinavam entre as duas cortes de Madrid e Lisboa, apelou para um último esforço, e, quando depois da entrevista com o Cardeal chegou ao palácio, expediu imediatamente um correio para Vila Viçosa com uma missiva para a duquesa D. Catarina, a fim de que ela viesse com a brevidade possível a Almeirim. Evocando à beira do túmulo como um sonho de um afecto que doirara mais felizes tempos, conseguiria o duque de Bragança dominar por um choque violento, o medo que o Cardeal tinha dos castelhanos? Se tal acontecesse estava ganha a vitória: era isso que ia experimentar.
O espectáculo que se desenrola aos olhos do historiador durante o breve governo do Cardeal é pungente, é miserável: assiste-se ao desmoronar de uma sociedade; é como um morro de terra que desaba na quebrada duma montanha; minaram- -lhe as águas, as prisões, domina-o o peso, vai-se abrindo uma fenda que aprofunda cada hora, até que um dia se esboroa e tomba no abismo, despedaçando-se e sumindo-se desfeito na corrente volumosa que o abraça e vai correndo sobre o leito de alcantis, espadanando escuma.
As Cortes convocadas pelo rei são o último acto desse drama de vergonha, com que se nos fecha o século XVI; por um lado vemos o clero, representado nos bispos, aderir francamente à entrega do reino a D. Filipe; vemos a nobreza, parte vendida, parte corrupta e fraca, debater-se em ódios; vemos a sala da assembleia tornar-se um campo de insultos, de pugilatos, de arremesso com as armas em punho; vemos a apostasia cínica desmarcar-se cada dia em alguns rostos mais; vemos a classe média, sem alma nem força pronta a entregar-se ao primeiro amo; vemos um rei com a cabeça sob a garra do leão castelhano, um rei tigre ferindo a quem se não humilha com ele; vemos dos pretendentes à coroa, um agenciando a sua venda, regateando o preço, e intitulando-se ao mesmo tempo novo actor da obra do Mestre de Avis -- desgraçada blasfémia! -- o outro, mesquinho, pequeno, incapaz de abertamente se vender, mas pronto a reconhecer o estrangeiro, se o estrangeiro o reconhecesse a ele... Verdadeiro quadro de agonia duma sociedade, tudo trevas, tudo sombra, e nelas como relâmpagos duma luz que morre, Febo Moniz e Manuel de Sousa, D. João Telo de Meneses e poucos mais!...
Instavam os procuradores do povo pelo direito de eleição, e o Cardeal com aquela falsidade, que é a base do seu carácter, não ousando dissolver de um golpe a assembleia e pro- clamar seu sucessor aquele a quem se escravizara, fazia por meio de jurisconsultos venais negar o direito de eleição aos procuradores do povo, sem proveito algum, porque nem eles cediam por isso, nem o Cardeal tomava uma resolução definitiva no plano, que formara, de deixar a régia herança a D, Filipe, sem o que, dizia ele, não morreria descansado.
No meio destas incertezas, destes terrores, destas vinganças, destes ódios, que a posição das coisas lhe derramava como lume na chaga dolorosa dos seus padecimentos físicos, o Cardeal convocou de inovo Ossuna e D, Cristóvão, o bispo António Pinheiro, o marquês de Vila Real, D. João de Mascarenhas, aqueles enfim que com ele se tinham escravizado aos disígnios do filho de Carlos V, e com quem o decrépito rei se sentia bem, porque o não contrariavam.
Achavam-se pois todos reunidos naquela mesma câmara, onde no capítulo antecedente vimos o Cardeal e o duque de Bragança; o rei não se levantara do leito, porque havia muito que lho não permitia o seu estado.
O duque de Ossuna, D. Pedro Giron, era um homem acreditado pela sua carreira diplomática e pela sua posição social; fora já vice-rei de Nápoles, e estava ligado com a casa do duque de Aveiro, circunstância esta que mais o tomava apropriado ao encargo que Filipe II lhe confiara em Portugal.
Cristóvão de Moura, português de nascimento, mas ligado pela política aos interesses castelhanos, era o carácter que o filho de Carlos V melhor podia encontrar para levar a cabo a espinhosa tarefa da compra de Portugal; o emissário era perspicaz e dissimulado como verdadeiro diplomata; tinha juízo claro, concepção fácil e decisão pronta, era além disso dum zelo incansável, duma actividade inexcedível.
O bispo de Leiria e o marquês de Vila Real tinham sido dos primeiros a vender a sua influência a Cristóvão de Moura, ambos representam um papel importante neste desgraçado quadro; D. João de Mascarenhas, o companheiro de D. João de Castro, um desses vultos com que a Providência presenteia uma nação para sua glória, foi dos mais dedicados parciais de Filipe II, um daqueles a quem maior quinhão de responsabilidade cabe nos acontecimentos desta época pela posição importante, pelo respeito a que as cãs coroadas de louros marciais lhe davam jus.
Em todo este infame grupo de traidores, e. por nosso mal, bem numeroso grupo, não indigna tanto a adesão a um príncipe estrangeiro, porque a opinião é livre, mas indignam, mas revoltam, a dobrez de carácter, a perfídia, a má-fé, com que, secretamente ligados aos castelhanos, iam minando, minando aplanando o caminho aos estranhos, com a máscara de portugueses no rosto.
Diz Faria e Sousa que tais homens faziam uma de duas coisas ambas injustas, porque ou vendiam o reino que não era de Filipe, ou vendiam a Filipe o reino que lhe pertencia...
O rei estava reclinado sobre as almofadas do leito, mais parecendo um defunto, que criatura viva; os olhos quase se lhe sumiam nas órbitas azuladas e profundas, uma tosse seca, mas repetida, enfraquecia-lhe o peito; respirava a custo; tinha as mãos lívidas e descarnadas; com uma voz fraca e trémula dizia, dirigindo-se aos assistentes, que se conservavam de pé junto ao leito:
-- Convoquei-vos, senhores, porque me vejo às portas da eternidade, e antes de aparecer na presença do rei dos reis quero que este negócio fique decidido, e não morreria tranquilo se o não deixasse como eu e como vós todos desejais...
Aqui a tosse prolongando-se mais violentamente impediu-lhe a fala. Os assistentes conservavam-se mudos, minutos depois o Cardeal continuou, dirigindo-se ao duque de Ossuna:
-- Bem vedes, Sr. duque embaixador, quais têm sido os meus esforços...
-- Esforços -- interrompeu o duque curvando-se com rematada cortesia -- , que Deus juntará às muitas outras virtudes de V. Alteza, e que el-rei meu amo cordialmente lhe agradece. . .
-- E bem pode el-rei Filipe agradecer-me, que por seu amor sofro e padeço.
-- E por amor dos vossos súbditos ; -- interrompeu o bispo de Leiria.
-- E por amor de meus súbditos ; -- tornou o rei -- , para os livrar duma guerra trabalhosa e arriscada.
-- Arriscada, diz bem V. Alteza; -- acudiu Moura.
O velho guerreiro D. João Mascarenhas, que em Diu, com dezenas de homens de guarnição, sustentara o peso das massas incontáveis dos mouros, que fizera das ruínas do baluarte um trono, de cada soldado um herói, nessa epopeia de fogo e sangue, sorriu à interrupção de Moura.
-- Bem vedes, senhores -- tornou o Cardeal reatando o fio do seu discurso -- , quanto da minha parte tenho feito; e vedes também, que se o braço do clero está vencido...
O bispo de Leiria baixou a cabeça em sinal de assentimento.
-- Se o braço da nobreza o está também...
O marquês de Vila Real fez, como o bispo fizera.
-- Não o está o do povo. Têm sido inúteis e infrutíferas as minhas mensagens. Instam pelo direito da livre eleição.
-- Mas, Senhor -- acudiu Cristóvão de Moura -- , não o disseram já os peritos que tal direito não têm os procuradores do povo?
-- Disseram; mas que quereis? Não se sujeitam eles a isso. Têm sido muitas as mensagens, de que o bispo de Leiria tem sido portador...
-- E posso assegurar a V. Alteza -- tornou o bispo -- , que não são elas, que conseguirão dominar os rebeldes.
-- Assim o penso -- tornou o Cardeal -- , receio... estou embaraçado; Deus me é testemunha e vós todos também de quão grande tem sido o meu desejo de ver terminado favoravelmente este negócio, mas os embaraços surgem, não sei... temo... vacilo...
O Cardeal estava entre confidentes e amigos: não tinha reservas ; o seu carácter apresentava-se tal como era no fundo, tímido e fraco.
-- Não tema V. Alteza -- disse D. João de M-ascarenhas -- , não tema, não receie, não vacile, e verá tudo resolvido por uma vez...
-- Isso, isso! -- disseram, aprovando, os assistentes.
-- É melhor de dizer que de fazer -- tomou o Cardeal -- , não são poucas as violências que tenho sido forçado a praticar... mas não me exasperem, que eu não mordo -- continuou dirigindo-se mentalmente aos perseguidos.
-- V. Alteza, como nós todos, sabe -- disse Cristóvão de Moura -- , que a alma dos representantes do povo é Febo Moniz... V, Alteza sabe também, que afastado ele, os outros...
-- Sim, bem sei... mas como afastá-lo?
-- Consinta-o V. Alteza, e o mais não é difícil ; -- respondeu o astuto ministro.
-- Não, Cristóvão, não; não quero que a minha alma chegue à presença de Deus acompanhada da maldição dos homens! Deus me perdoe e não atenda àquelas, que me sobrecarregam já. Oh!, pensar na morte é horrível! Deus me perdoe os meus pecados!
-- Os pecados de V. Alteza! -- tornou o duque de Ossuna que era cortesão consumado -- ; Deus mos desse, e ia para o céu tão leve e tão ligeiro como o fumo.
-- Não ria, duque; os encargos de um rei são pesados... pesados de mais para mim.
-- Tome V. Alteza ânimo e verá que lhes alivia o peso.
-- Não posso, duque, sobrecarregar a minha consciência com um acto desses... Desejo, oh! Desejo ver terminado antes da minha morte este negócio, mas não quero que ele aumente o volume dos meus pecados... Convoquei-vos para que tentásseis sugerir-me o melhor meio de desembaraçar a dificuldade das circunstâncias...
-- Senhor -- disse Mascarenhas -- , acreditai-me ; o melhor e o mais pronto é afastarmos Febo Moniz.
-- Isso não, que temo...
-- Pois V. Alteza não se recorda como se houve com o Prior do Crato?
-- Não me fale nele D. João ! Não me fale nesse homem, que odeio ! -- exclamou o Cardeal entusiasmado pela cólera e caindo de novo exausto pelo excesso sobre as almofadas.
-- Melhor seria então, se, como diz o Eminentíssimo bispo, nenhuma esperança há de que as mensagens façam dobrar os procuradores do povo. . . -- disse D. Cristóvão.
-- Assim o creio -- tomou o bispo.
-- Melhor seria dissolver as Cortes...
-- Não, não ! -- tornou o Cardeal ainda meio desfalecido.
-- Acredita, D. Cristóvão -- disse Ossuna -- , que estão esgotados todos os meios... quaisquer meios... para fazer amolecer os senhores procuradores do povo?
-- De mais eu sei, sr. duque.
-- E Febo Moniz?
-- Menos que todos.
-- Não vejo outro remédio então -- disse o duque encolhendo os ombros e cruzando as mãos uma na outra.
-- Nem eu -- tornou D. Cristóvão.
O Cardeal estava meio desfalecido, tinha os olhos quase cerrados, a respiração difícil.
-- Nem eu -- disseram os outros, cada um de per si.
-- O único é obrigá-los -- volveu Ossuna -- , e não que- rendo eles, mandá-los para suas casas, incluindo Febo Moniz...
-- Febo Moniz primeiro que todos -- acudiu o bispo.
-- E S. Alteza proclamar então sucessor à coroa el-rei D. Filipe.
-- É isso, é isso.
-- Isso o quê ? -- perguntou o Cardeal erguendo-se no leito um pouco mais animado.
-- Repetíamos -- tornou Ossuna -- , o que há pouco tínhamos dito a V. Alteza. Não há meio de contemporizar; não há meio de atrair a maioria a votar em sentido favorável, o único expediente a tomar é V. Alteza intimá-los definitivamente; e se protestarem mandá-los embora e com os votos do Clero e da Nobreza, as partes mais conspícuas da nação, declarar seu sucessor a el-rei meu amo.
-- Duque, duque ! Não vê, que tempestade isso ia levantar?! Tenha dó de mim!
-- Mas senhor, se assim o não fizer, V. Alteza em vez de entregar legalmente a coroa a um príncipe católico e poderoso, o mais capaz de fazer Portugal feliz, e a quem de direito toca, vai rojá-la vergonhosamente aos pés dessas facções desprezíveis, vai pô-la talvez na indigna cabeça do Prior do Crato... e depois...
-- Oh, não, não ! Isso não sucederá.
-- Compare V. Alteza: decidindo a questão, deixa por sua morte, que Deus faça o mais longe possível, um reino feliz, nas mãos de um príncipe magnânimo e poderoso... não o fazendo a coroa irá parar à cabeça de algum dos preten- dentes, e depois... depois a guerra a trará à cabeça do seu dono, Senhor!
-- Meu Deus! Mas que hei-de fazer?
-- Que há-de fazer, Senhor, ou obrigar os procuradores ou dissolver as Cortes.
-- Mas isso é impossível ! Não posso tomar sobre mim o peso duma tal resolução! Deixe ver, duque, deixe ver se amansam...
-- Não se iluda V. Alteza, devemos perder as esperanças.
-- Não as percam -- tornou el-rei dirigindo-se em geral à assembleia -- , não as percam. Encarregarei o bispo de levar nova mensagem, e veremos se com esta conseguiremos o nosso fim, sem que me veja forçado a um acto de tanta responsabilidade.
-- Esperemos então -- tornaram os assistentes, que viram impossível determinar o rei a um golpe decisivo.
O Cardeal entre o temor e o remorso pretendia alcançar uma espécie de perdão para si, e por isso não se atrevia a decretar sob sua responsabilidade pessoal a sucessão; assim, queria a todo o custo trazer os procuradores do povo a uma votação favorável, e dividir portanto o crime entre muitos.
Quando o duque de Ossuna, D. Cristóvão, D. João de Mascarenhas, o marquês de Vila Real e o bispo Pinheiro desciam as escadas do paço, subiam-nas o duque de Bragança e a duquesa D. Catarina; os dois grupos miraram-se. A duquesa disse ao marido:
-- Duque, parece que voltam alegres ; perderíamos os passos?
-- Não o creio, duquesa; espero muito do antigo afecto, que o Cardeal vos tinha.
Ao mesmo tempo Ossuna dizia a D. Cristóvão:
-- A duquesa de Bragança... não é?
-- É com efeito.
-- Não a amava extremosamente o Cardeal ?
-- Amava, mas descanse V. Excelência, que o medo há-de vencer o amor.
Não obstante termos encontrado já os duque? de Bragança nos degraus do paço real, permita o leitor que retrograde e lhe pinte a entrada da duquesa na vila de Almeirim, elevada à altura de corte por encerrar o muito fraco, muito modesto, muito miserável rei, o Cardeal D. Henrique.
Era uma bela noite; fulgiam as estrelas aos milhares, a Via Láctea que o paganismo imaginara, uma gota de leite de Vénus caída do Olimpo, essa áurea sombra, que como tenuíssima nuvem atravessa o firmamento, raios de miríades de fogos, que distância incalculável funde como numa poeira de oiro, estava naquela noite mais distinta, mais clara que nunca. As estrelas iluminavam o espaço, isso a que a ciência não descobriu ainda os limites ou não pode descobrir, imensidade onde a vista se perde em camadas e camadas etéreas que, tornando-se, condensadas com a distância, impenetráveis aos órgãos visuais, apresentam um aspecto corpóreo, o que vulgarmente chamamos o céu, vácuo sem fim que nem os sentidos abrangem, nem tampouco o pensamento define!
Questão suprema! Conhece o homem e compreende como os mundos giram no espaço, quais as suas condições vitais, as leis que os regem, os elementos de que se compõem; mas pergunta: e o espaço aonde giram, aonde se movem, aonde vivem, -- aonde acaba? O que está para além?
Deus. Respondem os crentes.
Nada. Respondem os cépticos.
Aqueles respondem com um mistério. Estes com um absurdo.
Nada, o que é?...
A duquesa, recebendo a carta de seu marido, apressou-se a partir; D. Catarina era mulher de brios, carácter varonil e nobre, tinha justamente as qualidades eminentes que faltavam a seu marido. Sabendo os progressos que a doença do rei seu tio fazia cada dia, e receando, se se demorasse, encontrar um cadáver, quando assentava toda a esperança na entrevista que vinha buscar, pôs-se a caminho somente acompanhada de alguns criados, e apressou a viagem tanto quanto possível.
Durante o trajecto que vai de Vila Viçosa a Almeirim, alguns dos seus vassalos e partidários foram-lhe ao encontro de maneira que quando entrou na corte acompanhavam-lhe o cortejo o conde de Tentúgal, o comendador-mor de Cristo e o arcebispo de Évora, seguindo-a mais trezentas pessoas de cavalo e muitos peões.
O cortejo da neta de D. Manuel era singelo como o requeriam as necessidades duma jornada determinada tão de súbito, e que devia ser feita o mais breve; abriam o préstito trinta moços da câmara com tochas nas mãos; a duquesa vinha num coche pequeno de brocado com cravação doirada, rodeado de moços de estribeira desbarretados, e arcabuzeiros com as armas carregadas em morrões acesos; seguia-se a sua camareira-mor conduzida em umas andas de veludo preto, e logo depois, noutras andas, uma aia com uma filha dos duques nos braços; dois coches de veludo carmesim, conduzindo as damas e donas de serviço, fechavam o cortejo; aglomera va-se o povo em roda do préstito, e não obstante ser publicamente conhecida a política do Cardeal, ousava gritar repetidamente: venha embora a nossa rainha!
Entre a mó do povo que se apertava cercando o cortejo, via-se um homem embuçado até os olhos na sua capa, com um largo chapéu que lhe velava do rosto justamente o que a capa deixara descoberto; seguia atentamente o andamento da comitiva e com especial atenção as manifestações popula- res ; cada novo -- embora -- que saía do seio da multidão traduzia-se-lhe no rosto escondido por um gesto de cólera.
A duquesa chegando ao pé da escada, apeou-se e subiu acompanhada do seu cortejo à sala onde a esperavam cem archeiros; o vulto embuçado quando a viu sumir-se nas escadarias do palácio, rangeu os dentes e disse consigo : -- em má hora viesse!
E partiu. O vulto era o Prior do Crato. Receando muito da influência que no ânimo do Cardeal podia ter a sua amizade por D. Catarina, D. António, como ali não podia servir à sua causa, partiu para Lisboa, a fim de fortificar os numerosos parciais, que recrutara entre a plebe.
D. Catarina atravessando a sala do cortejo, entrou sem se demorar na câmara real, e foi direita ao leito onde o Cardeal jazia moribundo. A duquesa de Bragança tinha um porte majestoso, maneiras simpáticas, era cortês e era formosa. O traje realçava-lhe a figura; trazia um vestido de veludo preto afogado, com punhos e gola de espiguilhas de ouro ; o cabelo liso e levantado no alto em topete, um rosicler, pulseiras e brincos de diamantes.
Acompanhavam o Cardeal, Francisco de Sá, camareiro-mor, e Miguel de Moura o antigo amigo de D. Sebastião, e que no governo alcançara o favor do inquisidor-mor, ambos seguros parciais do rei castelhano, os quais se afastaram do leito do soberano quando a duquesa chegou junto dele.
D. Henrique ao vê-la sentiu arrasarem-se-lhe os olhos de lágrimas; a saudade de tempos felizes, a antiga afeição paternal que tivera por D. Catarina, e o remorso talvez de lhe ter roubado a coroa que lhe pertencia, trouxeram- lhe ao espírito uma sensação de pena, saudade e tristeza. Era como quando nos dias de Inverno nebulosos e carregados suspiramos pela Primavera que passou, levando, passarinho gentil, os sorrisos e as graças, as flores e a relva, os raios da aurora, a melancolia das tardes amenas ao pôr do Sol! Desconsoladora feição da vida! Penosa lei de toda a criação! Como há-de ser triste olhar-se da beira do túmulo, envolvido em gélido lençol, para o estádio percorrido, contar os prazeres, contar as mágoas, que a aproximação da morte diminui, e ver que as folhas das árvores foram uma a uma caindo levadas pelo vento dos anos, que as flores viçosas murcharam, que o Sol está no ocaso, as trevas da noite se aproximam! E além da noite ver surgir um mundo futuro, todo cheio de incertezas, de receios, de cruel angústia; tudo vago, tudo infinito!... Pobre Cardeal!
A duquesa tinha-lhe beijado uma das mãos, e debruçada sobre o leito, dizia-lhe com meiguice:
-- Meu querido tio! Como venho encontrá-lo!
-- Vieste, Catarina, vieste, e eu bem-digo a Deus por teres vindo...
-- E eu pelo ver e lhe falar! Diga-me, como se sente?
-- Eu? -- respondeu o inquisidor-mor -- , nem sei que te responda; às vezes ponho esperanças no que os físicos me dizem, mas sinto que isto cá por dentro está mal e muito mal; sinto uma fraqueza extrema...
-- Tenha esperança em Deus!
-- Nele tenho-a, e sempre lhe rogo que se amerceie de mim, mas eu na verdade creio que não posso durar muito.
-- Não desanime também desse modo... espere comigo que há-de melhorar, restabelecer-se de todo.
-- Não, não filha... não espero; Deus é soberano e judi- clcsíssimo nas suas determinações... eu preciso morrer; todos me rodeiam o leito esperando a minha agonia última... e eu... e eu conheço-o. Embaraço-cs. Que Deus me dê morrer depressa.
-- Não diga tal, meu tio e Senhor. Viverá ainda e por largos anos para felicidade de todos nós.
-- Ainda bem Catarina ; tão poucas vezes ouço palavras deitas que o dizerem-mas pare^ce que me traz vida... Mas eu nem sei! Nem sei qual seria melhor! Vão tão carregados es tempos e pesam-me sobre a cabeça tantos trabalhos e encargos que decerto bem-diria a morte como a minha libertadora.
-- Eu, tio, é pelos trabalhos e encargos que lhe pesam sobre os ombros que confio muito e muito em Deus que lhe há-de volver a saúde e a força de ânimo para que possa, livre de opressão, cumprir uma obrigação sagrada, e desempenhar uma obra grandiosa que lhe há-de dar nome e glória eternas.
-- De que falas, Catarina?
-- É V. Alteza que mo pergunta? Pois não sabe que nas suas mãos está a sorte de Portugal; pois se pensa na morte, intenta deixar a coroa prostrada aos pés do rei de Castela? Não se lembra, meu tio, das promessas que me fez sempre de decidir a causa da sua sobrinha...
-- Lembro, Catarina, mas...
-- Mas, meu tio... não se deixe seduzir ou intimidar por esses embaixadores castelhanos, criados do seu rei, e muito menos pelos fidalgos, que esquecendo o que são e o que devem ao seu país, não duvidam alugar o braço a interesses estranhos! Meu tio, meu tio! Por que faltou uma após uma a todas as promessas que me fez? Pois tem a consciência tranquila vendo que por sua morte põe a coroa e a liberdade portuguesas nas mãos dum rei estrangeiro?...
-- Para me afligir mais a última agonia é que vieste, Catarina? Não te merece dó um mísero velho debruçado no túmulo? Oh meu Deus! Tudo me angustia... todos procuram tcrnar-me amargo este custoso cálix da morte! Até tu, Catarina! Não quiseste poupar-me um suplicio mais.
-- Não é assim, meu tio. Se me vê aqui, com a alma aberta lho digo, é primeiro que tudo porque desejava aliviar-lhe o peso da doença e dos trabalhos... E vim também porque era minha obrigação vir, não por mim, que me não cegam ambições, mas por meus filhes, porque a coroa que me pertence é deles, e deixá-la rojar aos pés dum estranho era além de crime de lesa-pátria, crime de lesa-família! Vim, meu tio, porque me lembrei que no leito do sofrimento, cercado de inimigos, que seus inimigos são os que o têm aconselhado, pensei que a minha visita, lembrando-lhe o antigo amor que doirou melhores tempos e que me afagou a mm criança, lhe seria refrigério suave, e ao mesmo tempo faria com que atendesse aos meus direitos que, apesar das suas repetidas promessas, tem esquecido...
-- Não tenho, não minha sobrinha... -- tornou o Cardeal enleado pelo tom firme das palavras da duquesa.
-- Se não tem, meu tio, e eu creio-o porque um homem como V. Alteza, sobre quem pesa a dupla honra de rei e de cardeal, não mente: se não tem, repito: por que não resolve a questão de pronto? Não vê que os dias fogem, que o tempo voa, e que, enquanto vacila, os castelhanos vão cada hora firmando mais o pé no terreno falso desta sociedade de clérigos que os amam, de nobres que me não amam, de povo indiferente, de plebe que se ilude com as promessas de D. António?
-- Descansa, filha -- tornou o Cardeal suspirando e segurando amorosamente nas mãos da duquesa -- , descansa -- continuou esforçando-se por sorrir -- , que o trono será teu, se Deus me der vida bastante e as forças de que eu necessito.
-- De novo mo promete... mas cumpri-lo-á?
-- Cumprirei, Catarina.
-- Deus o ouça ; -- tornou a duquesa confiando pouco ou nada na promessa do Cardeal, promessa que desde o princípio da questão fora feita, e que ele não pensava realizar.
-- Deus me ajudará.
-- Mas, meu tio -- continuou D, Catarina dobrando-se meigamente sobre o leito do velho e dando às suas palavras uma inflexão terna -- ; por que não há-de desde já assegurar à sua filha, àquela que pequenina amou, a promessa que deseja cumprir?... Por que não há-de desde já lavrar a sentença que lhe dará nome justo e glória eterna?
-- Não posso, Catarina... não vês que as Cortes estão reunidas e que o seu voto somente há-de decidir a questão?
-- Deixe-as pois, meu tio, votar desassombradamente, assegure-lhes que sentenciará a meu favor, e verá que os seus e os meus desejos e os de todos os portugueses serão satisfeitos.
-- Veremos, filha, veremos ; -- retorquiu D. Henrique desanimadamente.
A duquesa, que estava informada das mensagens que o rei mandara aos procuradores do povo, suspirou, porque viu que pouco ou nada ganhava na propugnação da sua causa, mas, condoendo-se da miséria do rei-cardeal, miséria de corpo e miséria de espírito, abandonou o campo da discussão positiva, e buscou ver se no ardor do sentimento podia encontrar o que não alcançara até ali. Assim, apertando-lhe vivamente as mãos entre as suas, a duquesa disse-lhe :
-- Meu tio! Meu tio! Lembre-se, recorde aquele tempo feliz em que eu era criança e V. Alteza me sentava sobre os seus joelhos e me beijava e acariciava!
D. Henrique fitou a sobrinha, e como que viu passarem-Ihe diante dos olhos os quadros da ventura passada.
-- Lembre-se, meu tio -- tornou D. Catarina -- , que aquela criança é mulher hoje, e que o destino dessa mulher, a sua felicidade, a sua vida os tem nas suas mãos! Aqui venho ao seu lado, e lhe peço ardentemente em nome do amor que me tinha: salve-me, meu tio, salve-me que comigo se salva a si e salva esta nação!
-- Filha, filha! -- tornou o Cardeal soluçando -- ; quem me dera volver a esses tempos felizes que me pintaste! Hoje tudo é sombrio e triste! Vieste recordar-me o passado, e Deus te pague o bem que me fizeste. Catarina! Como te estimo!
E dizendo assim o Cardeal deitava um braço sobre o pescoço da duquesa e poisava-lhe um beijo na testa.
-- Se me estima... e estima-me, oh estima-me, bem o sinto, meu tio! Ama-me como meu pai me amava! Seja tão bom para a mulher como o foi para a criança: usava noutro tempo acariciar-me, brincar comigo... atenda hoje à minha justiça e dê-me o que é meu: faça-me rainha!
-- Sossega, Catarina ; -- tornou D. Henrique fugindo de novo a uma definitiva explicação -- ; sossega, não se tratam de súbito coisas assim ; -- continuou afectando grande prostração na voz e no gesto -- ; sinto-me desfalecido, estremeceste -me com a tão viva recordação que me trouxeste... eu não posso... estou morto... estou aflito... vai Catarina, descansa também, que a viagem devia magoar-te, vai e tem confiança em mim. A duquesa não fez repetir a intimação; conheceu que estava perdida a batalha; realizara-se o dito de Moura a Ossuna : -- descanse V. Excelência que o medo há-de vencer o amor! -- Despediu-se do Cardeal e atravessou a sala com porte altivo; Francisco de Sá e Miguel de Moura, que ambos tinham assistido à entrevista, foram-na seguindo com um olhar zombeteiro, e, quando a duquesa se sumiu atrás do reposteiro, achegaram-se do Cardeal e Miguel de Moura disse-lhe :
-- A violência da comoção piorou a saúde de V. Alteza.
-- Piorou... mas não é nada; isto passa.
-- Foi talvez mal escolhida a ocasião,
-- Decerto o foi. Se eu soubera não teria permitido a visita.
-- Isso porém seria um grave desgosto para a senhora duquesa.
-- Seria, talvez ; mas livrar-me-ia dum suplício.
-- Suplício?!
-- Suplício sim, Miguel. Ao ponto a que as coisas chegaram, como se havia de voltar atrás?
-- Diz bem V. Alteza; mas pensei que lhe seria talvez grata a presença de quem tanto amou.
-- E amo, amo; mas amar é uma coisa e...
-- Então V. Alteza?...
-- Que queres Miguel ? Havia porventura outro partido a tomar senão ceder a D. Filipe? Que forças havíamos de opor à suas?
Enquanto os embaixadores castelhanos, apoiados pelo Cardeal, iam abrindo o caminho que o filho de Carlos V devia pisar para subir ao trono, enquanto o Prior do Crato, glosando o mote de liberdade nacional, de ódio aos castelhanos, ia recrutando parciais entre a plebe, enquanto o duque de Bragança procurava aliciar a si a nobreza, que em considerável parte lhe era privadamente adversa, enquanto o país corrupto, enfraquecido, ia exalando o derradeiro suspiro da agonia última, o braço popular nas Cortes era um protesto violento, Febo Moniz a personalização desse protesto.
Era formal, positiva, invencível a sua oposição aos manifestos desejos do soberano; as mensagens do Cardeal, mais ásperas umas, mais conciliadoras outras, encontravam sempre diante de si um rochedo, em que como vagas impelidas pelo vento se despedaçavam recuando; esse rochedo era Febo Moniz, que consubstanciara em si o princípio sublime da eleição popular. O princípio aceite na Idade Média, quando a organização municipal era vigorosa esteia do trono contra o poder quase absoluto do Clero e Nobreza feudal, o princípio pelo qual o Mestre de Avis subira ao trono, pareceria arrojo demasiado, loucura até, vir invocá-lo desde que o rei, subjugando, encostado ao povo, o feudalismo, e depois, subjugando o povo, absorvera a si o poder todo e a par da igreja dizia ao súbdito : -- obedece ou morre ; como a igreja lhe dizia : -- crê ou morre.
Entretanto a rigidez do presidente não encontrava apoio firme na assembleia, e isso é natural: se todos fossem nela Febo Moniz, seria a câmara popular o mais brilhante monumento, com que a história podia doirar as páginas da vida de Portugal, as páginas da vida de todos os povos.
A última mensagem do rei resolvera a assembleia a responder, cedendo a uma transação, que desistia do seu direito de eleição logo que o soberano se obrigasse a nomear seu herdeiro na coroa um príncipe português. A resposta do Cardeal foi, e nem podia deixar de o ser, evasiva.
A cada dia a doença do rei fazia novos progressos; sucediam-se aos desmaios os espasmos, e seguramente se dizia não poder durar mais que dias talvez; nesta colisão os embaixadores castelhanos instavam pela sentença, e o rei, vacilante até a morte, não se decidia a dá-la, sem alcançar o voto dos procuradores do povo; não o desiludiam as sucessivas repulsas e queria antes de morrer tentar um esforço derradeiro; para esse fim convocou os procuradores dos cinco primeiros bancos -- Lisboa, Évora, Porto, Coimbra e Santarém.
Como procurador de Lisboa. Febo Moniz fazia parte dos convocados, e como presidente da assembleia vinha à testa deles.
Encontramo-nos portanto de novo com o rei moribundo; a moléstia agravando-se cada dia tornava-lhe o parecer mais cadavérico e abatido; juntavam-se os procuradores em grupo e de pé ao lado do leito; dizia-lhes o Cardeal:
-- De novo, vos mandei vir, senhores, para instar convosco por que ponhais termo à resistência que mostrais. É inútil. Vistes como o Clero e a Nobreza, as partes mais autorizadas da nação, votaram já... por que insistir ainda?
-- Porquê, senhor?! -- tornou Febo adiantando um passo; e continuou com voz firme e sereno gesto : -- como quereis que deliberemos quando se vê que V. Alteza se aconselha com gente suspeita e inimiga da liberdade do seu país?
-- Eu só faço justiça, e os que vos asseguram o contrário enganam-se. Quero que vos determineis e prontamente.
-- O que V. Alteza exige -- tornou Febo Moniz valorosamente -- , respeita a consciência e a alma, e dessas só Deus dis- põe: nunca aceitaremos senão rei português.
-- Que poder tendes para resistir a Castela? -- pergun- tou timidamente o Cardeal, revelando assim o medo que o coagira.
-- O que tiveram os nossos antepassados no tempo do Mestre de Avis, senhor!
-- Que quereis então ? -- tornou o rei que passara da timidez à cólera, vendo que eram perdidas as suas últimas esperanças.
-- Que V. Alteza ouça o povo e, se tiver direito de eleger, eleja rei português, porque sendo castelhano não será recebido nem obedecido.
-- Farei a minha vontade e hei-de ser obedecido! -- retorquiu o Cardeal vivamente encolerizado pela resposta do presidente da assembleia popular.
-- V. Alteza fará a sua vontade, nós cumpriremos o nosso dever.
-- Qual é o dever de súbditos senão obedecer ao seu rei?
-- Qual, senhor?! Obedecer primeiro à sua consciência! E quando a ordem do rei e a ordem de Deus estão em desacordo cumprir esta para não cumprir aquela. O homem é mais que o súbdito, senhor!
-- Febo Moniz! Febo Moniz!
-- Perdoe-me, falar assim a V. Alteza ; a isso me obriga. Como súbdito tem aqui o meu corpo, a minha fazenda, de que, como dono que é, dispõe, como homem, no foro da minha consciência, governa ela só, governa Deus!
-- Retirai-vos! -- bradou fulo de cólera o Cardeal. Febo e os procuradores, que tinham assistido mudos à tempestuosa cena. cumpriram as ordens do rei. D. Henrique seguiu-os com o olhar onde brilhava um furor violento, e vendo-os sair exclamou:
-- Ah ! Ver-me eu às portas da morte não poder vingar-me !
Depois a força da impressão trouxe-lhe uma crise imobilizaram-se-lhe os sentidos, caiu num espasmo e quando voltou a si, perdera algumas horas de vida mais...
Eis aí a última despedida que houve entre o rei e os representantes do povo; povo e rei iam morrer; este devorado pela moléstia e pelas paixões, aquele pela fraqueza e corrupção, vírus medonho que se lhe inoculara no sangue, e ao mesmo tempo que o ia matando o cobria de chagas asquerosas e pestilentas.
Violentamente despedidos pelo Cardeal, os procuradores declararam solenemente em sessão, que ao povo e só ao povo compvetia a eleição do futuro rei. Estes rugidos de fera morrendo não assustavam porém os embaixadores castelhanos; eles viam bem que. ao passo que o partido nacional estava fraccionado, a sociedade portuguesa representada em Santarém não correspondia à veemência dos seus mandatários. Exaltavam-se estes em discussões patrióticas, e o povo olhava para o que se passava com indiferença. Além de tudo, para desiludir os que sinceramente pensavam em evitar com sensatez o jugo que se antevia, o tesouro estava exausto, não havia munições, nem marinha, nem exército, que opor aos terços castelhanos, a ultima ratio para que Filipe II apelava e que por certo lhe abriria as portas já tão carunchosas e fracas do país que se determinara a possuir.
Não obstante, o Prior do Crato era infatigável; a ambição multiplicava-lhe as forças e na verdade, todas as horas via unirem-se-lhe novos parciais, parciais em quem confiava, e que, como bando de pássaros, voaram fugindo ao primeiro tiro do exército espanhol, o caçador,
O duque de Bragança procurava sarar as antipatias que o seu orgulho lhe granjeara entre os grandes, e via também com efeito aumentar-se-lhe o número dos prosélitos.
Ambos os pretendentes devaneavam, enquanto o rei de Castela ia pisando o trilho seguro, tocando a corda sensível de quase todos, acenando a uns com o purpúreo barrete cardinalício, a outros com as honrarias da corte, a outros com o mais forte e mais convincente argumento para uma alma pequena -- o dinheiro.
O estado do Cardeal piorava cada dia; fugia-lhe a vida como as nuvens fogem assopradas pelo vento, e a brisa tornava-se cada vez mais forte... quando um último sopro escon- deu o fumo no horizonte, o Cardeal morreu.
Desabava o minado edifício que até ali se sustentara sobre uma pedra comida de vermes. Começou então a despedaçar-se; hoje tomba no chão um lanço de muro, amanhã se despenha o telhado, caem depois as madeiras, some-se tudo enfim num vórtice medonho!...
Moribundo o rei, a regência caiu nas mãos dos governadores previamente nomeados e comprados já. Para selarem o seu ignominioso viver, viver de relâmpago no meio da tempestade, com uma primeira nódoa, fizeram eles levantar tro- pas para segurança do soberano, diziam; para segurança própria, diz a história, porque a plebe conhecia-os como vendidos, e a plebe quando se enfurece, quando se quer vingar, é horrível, é medonha, ataca tudo, tudo destrói, respira sangue, e vomita fogo como um vulcão!
A plebe, a multidão, a turba, a massa, esse cavalo infrene que, quando o soltam, espuma e escoiceia, larga as crinas ao vento, abre as fauces e galopa e atropela e esmaga viu-se solta... morrera o REI, mágico nome que a deslumbra e domina, e, invadindo as ruas e as praças, os becos e as vielas, levantando em trono efémero o seu ídolo, o seu escolhido, bradava, cantando com vozes miseravelmente terríveis:
Viva el-rei D. HenriqueNo inferno muitos anos,Pois deixou em testamentoPortugal aos castelhanos!
Jorrava do nascente um manancial de luz purpureando no horizonte o firmamento; começavam os pássaros a trinar nas balsas, saudando o levantar do Sol; imia aragem fresca e impregnada do perfume acre da charneca estremecia levemente as copas das árvores; as laranjeiras, vestidas com a sua aveludada folhagem, toucavam-se de flores, perfumadas pérolas em manto de esmeralda; os trigos, estendendo-se na campina, tremiam, ondulando viçosos com os sopros da brisa.
Desenrola-se ante os olhos uma extensa planície; negrejam num dos pontos as serras de Portalegre, noutro eleva-se Êvora-Monte, hoje célebre, porque aí se finou a luta entre o passado e o futuro, entre a ideia velha e os modernos princípios; avistam-se terras montanhosas de Espanha a leste: estamos junto a Estremoz.
Circundam a vila tapetes de verdura; matizam os tapetes alvíssimos casais, pequenos ramilhetes de árvores, e ao longe as moitas de sobreiros e azinheiras, as charnecas de tojo bravo e estevas enegrecem melancolicamente a superfície da terra inculta (1).
Levanta-se a vila numa eminência cercada pelo seu cinto de muralhas ameadas que num lado e noutro têm cedido à pressão do tempo, e, derrocadas, mostram entre as fendas as hastes de hera viçosa que são as cãs das ruínas; no cume da colina ergue-se uma elevadíssima torre, que, com uma interessante capelinha bisantino-gótica e mais alguns dispersos retalhos, é o que resta dos antigos paços de D. Dinis; a povoação transborda fora do abrigo guerreiro, duplamente vão pelo estado de ruína e pela descoberta da artilharia...
Penetremos na vila e, atravessando aquela parte que excede o cinto das muralhas, subamos por uma ladeira até o cume da colina, onde se levanta a torre gigante. É daí, do alto dessa torre, que a vista abraçando um circuito de muitas léguas, vê nalguns pontos tocar a planície com o firmamento, como se fora no mar largo, é daí que a vegetação artificial, tapetando o solo nos deleita a vista, enquanto ao longe a natureza desdobra uma criação árida e selvagem -- charneca brava onde se sobressaem morros de pedra, veios marmóreos de apreciável estimação... Subamos pois ao cume do monte e deixando à direita a torre quadrangular, cujo parapeito se eleva acima das nossas cabeças, encaminhemo-nos para uma rua estreita que vai descendo para a planície justamente do lado oposto àquele por onde subimos. Nessa rua deparamos com uma casa, a que uma porta e uma janela dão luz no pavimento inferior, e uma outra janela no superior. A do pavimento térreo é um tanto mais estreita e baixa do que a do primeiro andar, e ambas, como a porta, são cortadas em ogiva; reveste as paredes e as ombreiras da porta e das jane- las uma forte camada de cal. Entremos. O chão é de tijolos quadrilongos simetricamente assentes, as paredes estão alvas como se um lançol de linho usado as vestisse, o tecto é formado por quatro grossas vigas que atravessam a casa de lado a lado; cruzando-se sobre estas, assentam umas ripas, onde poisam quadrados de ladrilho que, sobrepostos por outra camada de tijolo, formam o chão do pavimento superior. Na parede da frente do interior da casa rasgam-se a porta e a janela, na do fundo vê-se uma mesa de pau e ao lado dois bancos com assentos de couro, sobre a banca estão umas contas de rezar, um lavor começado, e um lenço humedecido como de lágrimas; das paredes laterais, numa está rasgada uma chaminé e ardem no chão sobre as lájeas alguns toros de azinho, na outra abre-se uma porta que dá serventia à escada do pavimento superior.
Sentiam-se passos nessa escada e vinham descendo; num momento assomou entre os umbrais da porta um vulto conhecido, o vulto de Ana.
Era ela, a filha de Febo Moniz, que nós, mais felizes do que a polícia do corregedor, vamos encontrar na formosa vila do Alentejo, vivendo em companhia de D. Alonso Domingues.
Ana atravessou o quarto e foi à janela ; vinham da rua uns sons de cantiga acompanhados por um pandeiro. Sobre três pedras, mesmo defronte da casa, aguentava-se em pé um ramo de giesta florida tão alto como um homem; matizavam as plumas amarelas da planta campesina papoilas e murta em flor, no alto do ramo flutuava uma bandeirinha vermelha. Dançavam em roda três raparigas. Tinham os pés nus, vestiam-se de farrapos, mas sorria-lhes o rosto, folgavam. Uma poderia ter dez anos, outra cinco e outra talvez sete. Estavam todas coroadas de papoilas e marcavam a dança com uma toada plangente e harmoniosa, que uma delas acompanhava com um pandeiro.
De quem era a festa? Eu sei! De S. João, de Santo António, de S. Pedro, de qualquer dos santos folgazãos, que importa? Era a festa da infância. A infância! Dai-lhe sol, dai-Ihe liberdade, amor e carinho, e vê-la-eis rir, correr, saltar, ainda que o estômago lhe peça pão, ainda que os membros lhe peçam fatos!
Ana sorriu melancolicamente para as raparigas felizes, e, cerrando a janela, veio pensativa sentar-se junto à mesa, e pegou com distracção no seu lavor.
Depois, enquanto a agulha ia desenhando com as vivas cores dos retroses aquelas flores que debuxara, entregava-se à contemplação da miséria onde a sua desgraça a tinha lançado; recordava-se, e com que saudade! Dos tempos, que nunca mais esperava tornar a ver, tempos felizes, mas desfeitos co-mo globos de sabão dos brincos das crianças, como o fumo dum charuto dissipando-se em ondas azuladas e transparentes no ar! Arrependia-se firmemente de ter sido ambiciosa; invejava aquela doce candura, aquela angelical pureza, que, como num querubim, via, na imaginação, personalizadas em sua irmã ; pedia perdão a Deus e a seu pai de ter pecado, como se fora directamente culpada no crime... mas amava D. Alonso! Amava D. Alonso! Amava-o, e se aquele amor não tinha o meigo perfume da açucena, tinha a fragância da rosa e com ela tinha também os espinhos! Amava-o com um sentimento vigoroso, forte, varonil; a frieza e a ambição que eram o carácter de donzela, abalados pelo choque vivo de novas emoções, de estranhos acontecimentos, tinham-se transformado no fogo vivo da paixão. Os beijos ardentes do amante haviam-lhe queimado os lábios; o seu hálito inflamado, derretera-lhe o gelo do coração e fizera brotar nele o amor; não esse amor iman dulcíssimo que liga duas almas como irmãs, que lhes dá os mesmos prazeres, as mesmas lágrimas; sentimento, que sem ser a amizade só por si, é a amizade como que perfumada de fragâncias, de harmonia, de encantos... não era esse; não era assim o sentimento que o castelhano fizera nascer no peito da infeliz menina; o amor de Ana era o desejo, era a felicidade e as lágrimas, era o Sol e as nuvens, o mar sereno e as vagas encapeladas, a brisa meiga e o furacão, o estio com o sol ardente e o horizonte carregado, o Inverno com suas tremendas procelas; -- o amor da menina, o seu prazer, a sua felicidade, consistiam em beijar o seu amante, deitar-lhe sobre os joelhos a cabeça, meter-lhe entre os anéis dos cabelos os dedos mimosos, apertar-lhe as faces entre as mãos e colar-lhe os lábios contra os lábios! Oh se o mundo acabasse aí!
Mas, quando o sonho se esvaía, quando o ídolo se tornava homem, Ana encarava o homem quase com tanto horror, como encarara o ídolo com paixão; depois apertava o lenço contra os olhos e ensopava-o de lágrimas que lhe queimavam as pálpebras, e, quando escorriam pelas faces, eram como fios de gelo, porque tinha a pele escandecida pela febre!
Passavam-lhe então na imaginação delirante, como diabólicas visões, as cenas da sua ventura fugida; e a figura de D. Alonso era como o anjo perdido que segurando-a pelos cabelos a imergia num banho de lume, e a açoitava nua, e lhe rasgava os braços e o peito com os golpes dos açoites!
O rosto da pobre Ana era viva imagem do que sofria: estava cadavericamente magra, tinha os olhos encovados, a pele macilenta, os lábios sem cor.
D. Alonso, saciado o primeiro ímpeto, aquela sofreguidão de abutre que se lança sobre a presa, de lobo sobre a ovelha, sentia esfriar-se cada dia mais o lume intensíssimo que lhe abrasara os sentidos; a amante contudo naqueles momentos de loucura, em que se entregava aos prazeres duma paixão veemente, não tinha lucidez bastante para ver que aos seus extremos não correspondia ardor igual, e, passados esses momentos de embriaguez em que se achava como entre labaredas, o despeito, o horror até, não davam lugar a conhecer o resfriamento sucessivo, que o amor do castelhano experimentava cada hora,
Ana porém sentia nascer-lhe um sentimento novo, que, dominando todos os outros, derramava suavíssima alegria no meio das penas e dos remorsos que a afligiam, derramava como uma frescura meiga no ardor, na voluptuosidade daquela paixão que por momentos lhe abrasava os sentidos. Ana sentia revolver-se-lhe no seio o fruto do seu amor. Era mãe.
Contava antecipadamente as alegrias, as doçuras daquele entezinho, que, filho do crime, seria, para ela um anjo de salvação. Sonhava com o futuro ; como penduraria nos braços o filho e o beijaria, aquecendo-lhe as mãozinhas e o rosto entre as suas mãos e contra o seu rosto ; como havia de aspirar as fragâncias todas daquela florzinha inocente, beijar-lhe as pétalas e o cálix! E deitá-lo no colo, e acalentá-lo e baloiçá-lo nos braços, e achegá-lo aos peitos, e dar-lhe a beber do seu leite!
Vivamente feliz por ter um filho, quando Ana encarava o amante sorria-lhe já; perdoara-lhe; lembrava-se até de que se fosse menino podia ter do pai os cabelos louros e anelados, os expressivos olhos azuis, a tez branca e rosada. E se fosse menina?... se fosse menina, que melhor a poderia a natureza prendar, do que dando-lhe da mãe a formosura, com a alma de Maria?... Seria um anjo!
A amante pois, à proporção que sentia aproximar-se a chegada do anjo da sua redenção, sentia ao mesmo tempo diminuir cada hora aquela terrível impressão que a vista de Alonso lhe inspirava; via nele o pai do seu filho; amava o seu esposo. E era justamente quando a doçura dum verdadeiro afecto encurtava cada instante a distância que separara até ali os dois amantes que D. Alonso, conhecendo extinguir-se finalmente aquele vivido fogo que lhe queimara os sentidos, desejava com ardor, igual àquele com que suspirara pela posse da sua amante, afastar-se dela, tirar de sobre os ombros um fardo pesado.
Não era pois acabado o martírio da infeliz filha de Febo Moniz; quando o sentimento da maternidade lhe aparecera como tábua de salvação no meio da tempestade, quando um paraíso lhe sorria, o Sol com seu fulgor lhe doirava os dias futuros, as flores com seus aromas lhos perfumavam, as aves em seus trinos derramavam ondas de harmonia nesse espaço feliz que via abrir-se-lhe, era então que uma nova borrasca vinha turbar o azul do céu, empalidecer o brilho do Sol, murchar as flores e calar as aves; o que os olhos da amante não tinham podido ver, viram-no os da mãe; a desilusão foi cruel. Novas lágrimas lhe afluíam às pálpebras e pendurando-se na franja das pestanas tremiam e caíam como gotas de chuva pelas faces!
Chorara primeiro pela perda da família, chorava agora pela perda do amante. Que lhe restava para suavizar tanta dor? Esse filhinho inocente, que, nascido, seria para ela como o Sol. Quando o astro-rei levanta no horizonte o seu rosto igneo, quando despede os seus vividos raios, as rosas semimortas recobram viço e frescura e aroma!
Vamos encontrar antigos personagens, afastados, mas não esquecidos, no decurso deste romance; o primeiro é o fiel Tomé, o segundo fr. Marcos, o Jerónimo.
Tomé, voltado a Lisboa, não desanimara nas suas pretensões literárias, pretensões bem justas, bem razoáveis, já porque o criado perguntava a si mesmo de que massa Gil Vicente fora feito, isto é, se o barro donde se formara o génio da comédia popular, não era o mesmo donde ele Tomé fora formado; já porque numa época, em que via a ambição desenfreada atacar os ma-s somenos, perguntava também a si próprio, se não poderia o pobre Tomé aspirar a ser, o que o comediante popular fora.
Embebido pois, nas suas lucubrações dramáticas lem- brou-se daquele auto, em que consumira algumas vigílias, e onde vazara todo o seu talento, todo o seu chiste -- espírito, como se diz hoje -- e determinou-se, apesar da violenta e desanimadora críticca de fr. Marcos, a ir procurar o frade.
Assim, deitando nos ombros o capote e agasalhando-se com ele por causa do frio da manhã, partiu de casa, e, atravessando a Rua Nova, deitou uma vista de olhos ao paço da Ribeira deserto, seguiu avante, atravessou a cidade, e, como caminhava a passo largo, achou-se em breve nos campos de Alcântara; daí pisando a praia, enquanto o rio se espreguiçava molemente sobre as areias, Tomé foi ao longo da margem, até que se achou defronte daquele trabalhado pórtico da igreja de Santa Maria de Belém.
O exterior do monumento manuelino era então diferente do que hoje o vemos. A leste erguia-se primeiro o corpo da capela-mor apresentando na arquitectura exterior pesada, nua de ornatos, a construção clássica; seguia-se então sobressaindo para o sul o cruzeiro, depois retraindo a linha dos alicerces, rasgava-se como hoje vemos, esse pórtico esplên- dido, onde o cinzel do artista escreveu um poema, e as duas altíssimas janelas que, uma de cada lado, o acompanham; depois a torre apenas levantada à altura geral do edifício; e, formando então um ângulo recto, o templo mostrava para oeste o pórtico, principal pelo risco da edificação, mas inferior ao secundário, no arrendado dos lavores, na grandeza da concepção; do lado oposto ao da torre do sul, via-se no ângulo norte começada a outra torre; a pequena distância fronteira ao pórtico principal levantava-se o convento, que seguia num quadrilongo, cujas faces mais extensas têm a direcção leste-oeste, olhando uma fileira de janelas entremeadas de botaréus sobre o rio (1). No limite oposto do edifício, isto é, junto à capela-mor, viam-se, como se vêem hoje, as duas magníficas janelas do refeitório, nunca acabado, num lanço de parede que segue- na direcção sul-norte ao longo da Rua de S. Jerónimo, por onde se vai à pequena povoação de Arcolena (2), situada a curta distância na encosta do monte. O sumptuoso templo que marca entre nós, na construção geral, a transição da arquitectura romântica para a clássica, e que na sua capela-mor apresenta já a restauração grega em triunfo, templo que é o mais perfeito exemplar desse estilo de arquitectura particularmente portuguesa, que a arte denominou já manuelino, e cujos padrões estão espalhados em Santa Cruz de Coimbra, nas capelas da Batalha, na Conceição Velha, e outros lugares mais, o sumptuoso templo, dizia, não apresentava então, quando o bom Tomé o foi visitar, essa cor tostada que lhe deram os anos; as rendas e as estátuas, os pilares e os florões, recentemente lavrados, luziam na sua juvenil alvura com os raios do Sol de Inverno. No rio, que se balouçava brandamente e vinha desdobrando safíricas ondas beijar os pés do monumento, levantavam-se numerosos galeões, navios mercantes e de guerra, porque era ali o mais preferido fundeadouro, e na restinga de areia, que a maré cobria de todo, via-se erguer esse magnífico brinco, fantasia verdadeiramente grande que se chama Torre de Belém, como uma ninfa belicosa sobre as águas escondendo o seio num lençol de neve.
(1) Vide nota H. (2) Vide nota I.
Tomé, que era talvez um pouco poeta, não pôde deixar de admirar a opulência do quadro, e foi de si para si, enquanto descia o pequeno degrau da porta lateral do templo, imaginando como havia de compor um auto, onde agrupasse aquele conjunto de maravilhas que lhe deslumbravam a vista; depois, quando transpôs o limiar da porta e espraiou a vista na imensa abóbada sustentada sobre os elegantes pilares do corpo da igreja, esqueceu a que viera ali, e subindo até o cruzeiro, ficou extático admirando aquelas duas colunas, que a luz das janelas fronteiras iluminava em cheio, fazendo sobressair os ornamentos, que de alto a baixo as lavram; ergueu a vista ao tecto e ai a sua admiração subiu de ponto, votando no auge do seu entusiasmo um brado de louvor à obra de João Castilho.
Na verdade a abóbada do cruzeiro dos Jerónimos, maior e mais abatida que a da casa do capítulo da Batalha não tem como aquela pilar algum sobre que se sustente ; os artesãos do tecto formam uma teia surpreendente; estribando-se nos dois pilares polistilos que dividem o cruzeiro do corpo da igreja, nas mísulas, que ao pé do arco do altar-mor correspondem aos saiméis daqueles, nas dos cantos e nas duas que nascem no fecho do arco ogival de cada uma das capelas principais do cruzeiro, a junção dos artesãos especialmente nas mísulas é de um efeito esplêndido; parece que dum vaso saem as vergônteas de uma rica planta e separando-se, e alargando-se, se desunem depois, e vão assm enredando o tecto inteiro.
Tomé admirava a obra maravilhosa, onde via escrita com esferas e brasões a glória do país que rasgando es mares descobriu um mundo novo; e quando, não saciado, mas exausto, fixou a vista na capela-mor, caiu-lhe o coração aos pés, como vulgarmente se diz.
À obra da imaginação, às flores, aos ornatos, ao ideal, seguia-se uma obra fria, pautada, estupidamente clássica; uma obra, que destoava completamente do resto do edifício; o jónio substitui os opulentos pilares do cruzeiro e do corpo da igreja; as almofadas de mármore polido, os arrendados baldaquins, e as estatuetas espalhadas nas paredes do templo; Tomé um pouco filósofo ia pensando consigo como nas letras e nas artes a transformação fora idêntica; recordava o que fr. Marcos lhe dissera acerca dos poetas românticos e dos clássicos, de Gil Vicente e Bernardim, de Ferreira e Sá de Miranda, e lembrava-se de que a questão estava ali no mesmo teirenos em que estivera acerca do seu auto. O criado pensava que assim como entendia o sentimento do poeta enamorado, e compreendia a crítica do dramaturgo, do mesmo modo entendia a significação daquele templo, monumento de glória, onde em cada esfera, em cada brasão via escrito como nas páginas de um livro uma série de estrofes sublimes; -- ao passo que, do mesmo modo que não compreendia os versos de Ferreira e de Sá de Miranda, não podia encontrar significação, pensamento, ideal, nessa fria e estrangeirada massa de mármore, amontoada na capela-mor do templo nacional.
Enquanto Tomé embebido nas suas divagações deixava soltar-se-lhe o espírito por um mundo de pensamentos, tremeu o reposteiro da porta da sacristia e nos umbrais apareceu a figura de fr. Marcos. O frade reparou no pretendido autor dramático, foi direito a ele, e, poisando-lhe a mão sobre o ombro, disse rindo:
-- Em que pensas, homem? Leve a breca os cuidados!
Vivamente sobressaltado pela presença do frade, Tomé cumprimentou-o e volveu-lhe:
-- Saiba vossa reverendíssima, que vinha procurá-lo,
-- Procurar-me ?! E esperavas então achar-me no meio das teias de aranha do tecto?
-- Maravilhoso tecto!
-- Oh! Oh! Maravilhoso, ein? E aquilo? O que dizes daquelas colunas polidas da capela-mor, daqueles finos mármores, preciosos tesouros?
-- Que hei-de dizer, reverendíssimo? Sabe bem que em coisas de arte nem sempre estamos de acordo.
-- Mas dize, homem. Pois também achas que vale mais essa pedra grosseira, e florinhas, e bonitos bons para crianças?
-- Oh, se acho!
-- És um tolo.
-- Vossa reverendíssima já me disse o mesmo quando falámos um dia acerca de Gil Vicente, e...
-- Cala a boca.
-- Calo, mas se eu fosse rico !
-- Se fosses rico, o que fazias?
-- Era muito simples... pedia licença a el-rei...
-- A el-rei?
-- Ah! Por nosso mal agora já não há rei, e quando o houver...
-- Por nosso bem, dize; hoje verás o que fizemos. Hoje nós, os monges de Belém, vamos dar uma severa lição a quem a merece ! ... -- continuou o frade com ênfase.
-- Dizia...
-- Não dizia nada, cala-te; logo saberás tudo... Mas que fazias então se fosses rico?
-- Mandava desmanchar a capela-mor e fá-la-ia à antiga.
-- Adeus! Adeus, homem! Já vejo que perdeste o juízo; -- tornou fr. Marcos separando-se do velho.
-- Venha cá, senhor fr. Marcos, não se zangue por isso; isto são opiniões minhas, e pode muito bem ser que me engane.
-- Enganas-te decerto.
-- Enganar-me-ei... pois bem, não falemos mais nisso... mas o meu auto?
-- O teu auto! O teu auto! Eu sei lá do teu auto?
-- Mas, senhor fr. Marcos, não se lembra de que lho dei para mo corrigir?
-- Lembro... mas não lhe peguei ainda. Logo irás à minha cela e entre os livros e a papelada, se fores feliz, hás-de encontrá-lo... Agora -- continuou o frade, enquanto Tomé chorava quase por ver assim perdidos e menosprezado os seus trabalhos -- , agora, Tomé, vou mostrar-te um auto, que, já que te crês tão bom para isso como Gil Vicente, hás-de escrever. Toma cuidado no que vires. Anda comigo.
O frade levou então ao seu lado o escudeiro de Febo, fê-lo subir por uma escada, para um dos púlpitos que ornam o arco da capela-mor, e disse-lhe:
-- Aí sossegado; dá bastante atenção ao que vires, porque há-de proporcionar-te bom assunto para uma comédia.
E fr. Marcos voltou ao convento enquanto Tomé ficava agachado dentro do púlpito, receando muito ser vítima duma brincadeira do padre, mas resignando-se pelo seu amor à arte.
Os ódios violentos, a exaltação partidária, fermentando entre os grupos pretendentes ao poder, e a quase anarquia, em que a dobrez e fraqueza do governo constituído traziam o país, geravam tumultos, subversões da ordem pública, atentados, crimes: arrancos de desespero e delírio que uma sociedade morrendo exala, como o homem roído de moléstias, na agonia extrema.
O assassinato de Fernão de Pina por um dos parciais do Prior do Crato, os tumultos que a execução do criminoso originou, e que por pouco estiveram para o roubar ao patíbulo, são imia das cenas de desordem, de desgraça, que mancharam as ruas da capital.
O acontecimento que faz o assunto deste capítulo é mais uma dessas cenas, tantas vezes repetidas, e, posto que não atroz, é igualmente significativo do estado dissoluto e anárquico da sociedade portuguesa.
Dito isto, vejamos o auto a que fr. Marcos convidara Tomé, e seguiremos com este as peripécias da comédia.
Haveria meia hora que o bom do escudeiro estava na incómoda posição, a que o obrigava a altura do parapeito do púlpito, quando o passo de soldados e a voz dos comandantes o obrigaram a erguer um pouco a cabeça e deitar um olho por cima do parapeito. Tomé viu então, com grande admiração sua, entrarem pela porta lateral da igreja os ministros da cidade, seguidos de três bandeiras de soldados.
Estava já desde algum tempo reunida a comunidade na capela-mor; sentava-se parte dos frades em bancos juntos às paredes, e a outra parte de pé no meio da capela junto à estante entoava as antífonas do coro.
Depois, enquanto os soldados poisavam os arcabuzes nas lajes do templo e se enfileiravam dos dois lados do cruzeiro, os ministros avançaram e chegaram-se às grades da capela-mor. Tomé seguia com a vista os extraordinários acontecimentos que o seu amigo fr. Marcos lhe proporcionara, e dava- -se por feliz, esperando tirar com efeito dali assunto para um auto que desbancasse todos es de Gil Vicente. Só uma coisa lhe fazia enrugar a testa, e era a presença dos arcabuzeiros no meio da solenidade; os arcabuzeiros sob o ponto de vista artístico eram muito apreciáveis para representarem num auto com arcabuzes de papelão mas ali... ali... Tomé tinha medo.
Enquanto os ministros da cidade iam desenrolando o seu sermão, que por se perder no vácuo Tomé não ouvia e nós com ele não ouvimos também, os frades enfileirados nos bancos da capela-mor com a estante ao centro e sobre ela o monumental livro onde o canto estava escrito em letras garrafais, os frades voltavam-se para os ministros, e a cada discurso que eles faziam retorquiam com um berreiro infernal, que afogava as vozes dos magistrados e reboava nas abóbadas do templo repercutindo-se. Os soldados afagando as armas com as mãos calosas segredavam, e iam sorrindo maliciosamente sob os seus bigodes longos e em geral encanecidos.
Tomé, vivamente excitado pela curiosidade, perguntando a si mesmo a chave do enigma, tinha já planeado um auto, onde fr. Marcos apareceria com a sua desenvolvida barriga, as suas faces nacaradas, os seus olhos redondos e inchados.
Entretanto, discursando os magistrados, cantando a comunidade nas mais altas vozes os ofícios divinos, exaurira-se a paciência àqueles; e, fazendo um sinal aos arcabuzeiros, as três bandeiras de soldados, pegando desdenhosamente nas armas como de quem se dedignava dos inimigos, avançaram para as grades da capela-mor que estalaram num momento debaixo das coronhas pesadas dos quase canhões.
Então o espanto do pobre Tomé subiu de ponto ; seguiu-se uma verdadeira batalha; os frades tropeçando nos hábitos caíam em cheio nas lajes e o abdómen de alguns, vibrando contra a pedra, soava como uma bexiga plena de vento, quando bate numa parede; os soldados rindo e trocando chufas iam, não obstante, distribuindo aqui e acolá algumas coronhadas, mas deve dizer-se, que encontrando os toicinhos monásticos apenas conseguiam romper a epiderme sem perigar o osso. Dos monges os mais robustos, uns, espiritualistas, opunham aos arcabuzeiros bulas e excomunhões e monitorias, amaldiçoavam-nos com toda a sua fé e toda a força da reli- gião, outros, materialistas, achando as bulas e as prédicas pouco sensível obstáculo para homens rudes como os soldados, saltavam ao altar, despiam-no de crucifixos e de ciriais, e descarregavam impiedosamente com estas abençoadas armas bordoada quanta podiam.
Por fim depois de boa meia hora de mutuamente se brindarem com coronhas dos arcabuzes, com os tocheiros, os crucifixos, os ciriais, bulas, prédicas, excomunhões e quantas armas espirituais e temporais os frades achavam à mão, os soldados, ao brado de um que dizia: a eles rapazes! -- descarregaram vigorosamente as coronhadas, e, fechando os frades num circulo, agarraram-nos, enquantos os menos felizes jaziam entre as bancadas com a cabeça rachada ou com os braços ou as pernas torcidos; a estante central e o magno livro viam-se caídos e feitos em pedaços. Mas, apesar de vencidos, os frades não estavam dominados, e as coronhadas violentas dos arcabuzeiros que os cercavam como num cinto de ferro, faziam-nos impelir para avante quase arrastados; de tal modo foram pela igreja abaixo até que, transposta a porta principal e atravessando o terreiro que se abria diante dela, se viram obrigados a entrar no portal do convento.
Tomé, descansado já enquanto aos arcabuzeiros, desceu do púlpito, e entre a mó de gente que afluíra à igreja, seguiu de perto o tropel; o bom Tomé sentia ver o seu amigo fr. Marcos, a quem os soldados tinham rasgado o hábito e uma violenta coronhada deitara abaixo uma das abençoadas bochechas.
O escudeiro de Febo Moniz, acompanhando sempre com o olhar o seu amigo, entrou com a turba no convento, e seguindo-a por uma enfiada de abóbadas inferiores aos dormitórios foi com ela dar até a entrada do celeiro; saíam daí vozes de angústia, soluços de aflição e rogos e prantos; os arcabuzeiros largaram quatro a um tempo uma coronhada contra a porta de castanho que cedeu. Viu-se então erguer-se de cima de um monte de trigo a figura de um velho, trôpego e desfalecido, e vir correndo para a porta exclamando: Salvem-me! Salvem-me daqui!
O provincial, porque o velho era ele, libertado tomou lugar ao lado dos ministros da cidade, que a esse tempo eram entrados dentro do celeiro, e consolavam e fortaleciam o ex-encarcerado.
Cada vez mais espantado, Tomé ia de maravilha para maravilha: os soldados entrando em tropel na capela-mor, desandando depois à bordoada nos frades, os frades de castiçais e cruzes e papéis em punho pagando-lhes em igual moeda, a aparição do provincial não de dentro da campa mas do meio dum monte de trigo... tudo, tudo eram coisas tão singulares para ele, que esperava ardentemente poder falar a fr. Marcos, a fim de que o frade lhe desse a explicação dos acontecimentos, para então formar o seu auto, que não duvidava crer já muitíssimo superior aos melhores de Gil Vicente.
Pois às cenas do auto, se Tomé o chegou a escrever, ainda havia uma a adicionar, e talvez de todas a mais curiosa.
Sossegado o provincial ao lado dos ministros da cidade, cada arcabuzeiro pegou pela cachaço em seu frade e trouxe-o defronte do prelado; dobrou-o fazendo-o cair de joelhos e obrigou-o a beijar a mão ao provincial; os mais dóceis, como as mãos dos soldados não eram macias, deixavam-se vencer; mas os renitentes, e especialmente fr. Marcos, eram duros de dominar; depois de ter caído aos pés do provincial, com duas vermelhas nódoas no cachaço e a pele esfolada, depois de ter como os outros beijado a mão do prelado, levantou-se, e erguendo os braços ao alto, com os olhos injectados de sangue, a face amolgada, os lábios purpurinos, fr. Marcos exclamou :
-- Protestamos!... protestamos ! Cedemos à força mas o núncio nos fará justiça!
-- Protesta, protesta! -- disseram rindo os arcabuzeiros e um deles menos reverente, tomando-o pelo braço afastou-o num repelão indo estendê-lo sobre o monte de trigo. Furioso se ergueu fr. Marcos, soltando imprecações em resposta aos risos motejadores do povo e dos soldados...
Apaziguado o tumulto, restabelecida a autoridade, o provincial tornou a ocupar o poder, e os ministros da cidade, deixando preventivamente uma das bandeiras de soldados de piquete no convento, partiram para Lisboa.
No dia seguinte encontramos fr. Marcos na sua cela; tem a cara envolvida num emplastro, e as dores fazem-lhe de tempo a tempo soltar gemidos e ais misturados de suficientes pragas. Tomé está com ele e serve-lhe de enfermeiro.
-- Mas Sr. fr. Marcos -- dizia o escudeiro de Febo, enquanto estendia com uma espátula num bocado de pano o unguento -- ; mas Sr. fr. Marcos, muito me admira o que me conta. Na verdade foi grande atrevimento.
-- Atrevimento, Tomé! Nós fizemos unicamente o nosso dever. Ainda que não entendas nada disto, sempre te quero explicar: a igreja tem as suas leis, leis superiores à autoridade dos príncipes: lembra-te bem.
-- Vou ouvindo.
-- Os nossos prelados hão-de ser eleitos em capítulo da comunidade: entendes?
-- Entendo, sim senhor.
-- Ora pois bem ; com que direito foi o Sr. Cardeal, que Deus lhe perdoe o mal que nos fez, e o tenha em sua santa glória...
-- Ámen.
-- Ámen. Com que direito nomeou ele fr. Manuel de Évora para provincial?
-- Isso lá é verdade.
-- É verdade, e pelo ser, eu reuni a comunidade e lhe disse: isto que vedes feito é uma arbitrariedade iníqua. El-rei morreu; pois bem, insurreccionemo-nos agora e reclamemos os nossos direitos menosprezados. Ámen! Ámen! Gritaram todos à roda de mim.
-- Vai então o que fizeram?
-- Eu te conto: fomos bater à porta de fr. Manuel e intimámo-lo solenemente a que depusesse a autoridade ilegal; ele recalcitrou, negou-se por fim; nós então, soldados do nosso direito, saltámos-lhe em cima, coçámos-lhe ao de leve as costelas...
-- Ah! Ah! Sr. fr. Marcos! Muito me conta.
-- Pois coçámos, e agarrando nele pregámo-lo dentro do celeiro e fechámos-lhe a porta... Mas não obstante tudo, como Judas nunca faltam, houve quem nos traísse e o provincial teve artes de avisar o núncio, que nos intimou a que o soltássemos e repuséssemos de onde o tínhamos tirado...
-- E vossas reverendíssimas o que responderam?
-- Ui! -- gritou fr. Marcos -- ; anda Tomé, depressa, depressa! Muda o emplastro. Maldito arcabuz!
-- Aí vou Sr. fr. Marcos; mas vá contando que o caso é muito interessante.
-- Pois o núncio intimou-nos e nós respondemos-lhe, que lhe não reconhecíamos autoridade para isso,
-- Na verdade o Sr. fr. Marcos em casos de leis é capaz de dar sota e ás ao mais esperto.
-- Assim respondemos; vai quando o núncio recorre aos ministros da cidade, e aí tens a explicação do estranho acontecimento de ontem. Vieram as autoridades acompanhadas de tropa, e como nós não quisemos atender às intimações dos ministros, eles deram ordem aos soldados para invadirem a capela-mor; agora o mais viste-lo tu.
-- Vi, e mal de mim, pois vejo também v. reverendíssima nesse estado.
-- De nada vale; sofro pela religião. Os soldados entraram no teu templo, Senhor! Profanaram a ara santa dos altares, espancaram os teus sacerdotes, cuspiram nas faces da tua igreja!... Vinga-nos. Senhor!
-- Vinga-nos, Senhor! -- acompanhou Tomé caindo de joelhos.
-- Levanta-te homem, que ficas fazendo aí ? -- tornou fr. Marcos momentos depois -- ; então que tal? Não cumpri o meu dito?
-- O quê, reverendíssimo?
-- Não tens aí um auto magnífico?
-- Oh se tenho! -- disse Tomé vivamente alegre.
-- Pois bem; fica então este pelo que perdi, porque, a falar a verdade, levou descaminho.
Tomé suspirou e prometeu que a sua futura obra-prima não iria decerto parar às mãos do frade.
Dias depois da entrevista com fr. Marcos, Tomé passeava distraído no largo, que se abria defronte do convento de S. Domingos, e, deitando os olhos para debaixo do alpendre, lugar frequente de reunião, quase Chiado daqueles tempos, descobriu lá vultos do seu conhecimento e encaminhou-se para eles.
Formavam o grupo, a que Tomé se foi reunir, quatro pessoas das quais uma, orçando pelos cinquenta anos, vestia o fardamento dos arcabuzeiros; outra, indicando uns dez anos mais, mostrava no traje não pertencer à classe militar, como de facto não pertencia, porque era mercador; a terceira não devia ter mais de trinta anos, e a roupeta, o chapéu agoureiro e a fisionomia, denunciavam-na como filiado no colégio dos jesuítas; a última finalmente era fr. Marcos, a quem os medicamentos, o carinho e atenção de Tomé tinham sarado a ferida do rosto, Chamava-se o arcabuzeiro Martim Afonso, o mercador Timóteo Falcão, e o jesuíta Vicente.
-- Você por cá Tomé -- disse fr. Marcos -- ; então que novas há? E o Sr. Febo Moniz como passa?
-- Meu amo, Sr. fr. Marcos? Como há-de passar? Cada dia o vejo mais triste e definhado; parece-me bem, que este negócio das Cortes lhe há-de tirar anos de vida... e depois o que tem ido por casa... coisas de família, coisas de pasmar! Pobre Sr. Febo Moniz!
-- Conte então aqui a estes senhores o que viu por Santarém -- tornou o frade -- ; dizem-se por cá muitas coisas e é difícil apurar a verdade.
-- Contar, eu ? ! Mas eu sei lá dizer o que vi ; anda tanta coisa a baralhar-me na cabeça e demais, não tenho luzes para falar diante de pessoas...
-- Se não tem luzes, tem língua e é quanto basta; diga como puder.
-- Não quero fazer-me rogado ; -- tornou Tomé que estava morrendo por falar,
-- Ora bem -- retorquiu o frade. -- Cheguemo-nos para aqui.
E todos cinco formaram círculo junto à parede, começando Tomé da forma seguinte:
-- Pois, senhores, a morte do Cardeal, como deveis saber, parece, que transtornou vivamente os planos dos embaixadores de Castela, porque diziam todos: oh se o velho não tivesse morrido tão depressa! Mais umas horas, e estava alcançada a sentença...
-- Isso é manha de D. Cristóvão -- tornou o arcabuzeiro.
-- Será -- retorquiu o frade -- , mas a verdade é que o procedimento de Sua Alteza com o Prior autoriza a supor tudo.
-- Nisso não entro eu -- disse Tomé -- ; conto somente ; quem ouve que aprecie; se o Cardeal, que Deus haja em santa paz, não deu, é verdade, sentença por Castela, fez também quanta guerra pôde aos procuradores do povo...
-- Bravo, Tomé ! -- interrompeu Martim Afonso torcendo o bigode.
-- Foi então a regência -- disse fr. Marcos -- , à mão dos governadores, e, aqui para nós, não é temeridade dizê-lo, mas, fora dois, os outros três são castelhanos de lei; dos dois o Arcebispo de Lisboa...
-- É da sua escola, padre Vicente -- disse Martim -- , fino como um coral!
O jesuíta sorriu e continuou a ouvir atento, como fazia o mercador Timóteo Falcão.
-- O Arcebispo está como o outro que diz, a ver em que param as danças...
-- Para no fim se agarrar ao par mais feliz.
-- É assim que por lá diziam -- continuou Tomé -- , agora D. João Telo, isso que é homem! Português como ele e o meu bom amo, sr. Febo Moniz!
-- É na verdade -- disse o jesuíta -- , e sobretudo atilado e enérgico...
Estas duas eram justamente as qualidades, que faltavam ao são carácter de D. João Telo de Meneses.
-- Mas coitado -- continuou ainda o padre Vicente -- , que poderá fazer se é um só contra quatro?
-- Vê bem as coisas, padre Vicente; -- disse o mercador.
-- Para que nos deu Deus olhos?
-- Mas ainda assim -- continuou Tomé -- , até eu voltar os senhores governadores, não tinham ido avante do que o Cardeal andara: seguem-íhe as pisadas; logo depois de terem tomado posse, mandaram nova mensagem às Cortes; isto é, exactamente o mesmo que tantas vezes o bispo Pinheiro fizera por ordem do falecido rei, mas do mesmo modo que ele, ficaram corridos. Se encontraram diante de si Febo Moniz! Era vê-lo então: como lhes respondia que o povo não podia ter confiança neles, porque estavam publicamente conhecidos como parciais de Castela! E como depois dizia para os procuradores: só podeis aprovar um expediente e esse é forçar à abdicação estes homens, e eleger pessoas de confiança...
-- Uma das quais, a primeira talvez, seria ele, não é assim Tomé? -- perguntou o jesuíta.
-- Não diga tal, Sr. padre Vicente ; só quem o não conhece é capaz de o supor, como essas palavras indicam pensá-lo. Talvez meu amo aceitasse, mas creia-me que aceitar para ele seria um sacrifício, mais um, que fazia à nossa terra!
-- Assim, assim! -- retorquiu rindo com a franqueza de soldado velho o arcabuzeiro.
-- Mas... -- continuava Tomé -- ; a coisa estava já preparada; contavam com o procedimento do Sr. Febo Moniz... e...
-- A assembleia não esteve pelo parecer do cabeça não é assim? -- perguntou de novo o jesuíta.
-- Infelizmente assim foi.
-- Estava-o adivinhando -- disse o frade.
-- E eu também -- tomou o arcabuzeiro -- ; que sei por prática, que a astúcia traiçoeira vence, quase sempre, a coragem serena e descoberta; que são os trabalhos subterrâneos, a paciência, a arte, as galerias bem dirigidas e solidamente feitas, o mais seguro meio de derrubar uma cidadela. Os castelhanos são bons discípulos não acha, padre Vicente?
-- Acho, Martim, que a astúcia é o emprego que fazemos com utilidade da inteligência, que Deus nos deu.
-- E o coração? -- perguntou Martim.
-- O coração, homem -- tornou o jesuíta -- , é um dos órgãos da complicada máquina humana, órgãos todos a que domina o pensamento.
-- Será assim, vamos adiante ; -- retorquiu Martim enfadado.
-- O que eu vejo daí -- disse o mercador -- , é que os mais espertos são os de Castela.
-- Alto lá, Sr. Timóteo; deve dizer os mais velhacos -- atalhou Martim.
-- Velhacos, sim -- disse fr. Marcos -- ; imaginaram comprar Portugal a peso de oiro e vão comprando, mas ainda há alguém para lhe dar que suar pelas barbas. Esta indecisão há-de ter um termo quando se convencerem todos, de que só o Prior é homem para isto.
-- Duvido que se convençam enquanto ele for fazendo como faz... -- disse o mercador.
-- Então que faz?
-- Não sabe v. reverendíssima, ou finge não saber que se ele não é hoje castelhano como os outros, deve-o a D. Filipe não querer pagar o preço exigido pela sua adesão?
-- Injúrias, injúrias!
-- Não são injúrias, são verdades -- tornou o jesuíta colocando-se ao lado do mercador.
-- Injúrias ou verdades, não entro nisso -- atalhou o arcabuzeiro -- , mas o caso é que não é com um exército de maltra- pilhos bêbedos que se sobe pela guerra ao trono... Mas acabemos com isto, não vale azedar a questão ; não nos entendemos uns aos outros ou não queremos entendermo-nos, por isso não me fio muito no resultado de toda esta comédia; anda Tomé, que gosto de te ouvir.
-- Pois a verdade é -- continuou Tomé -- , que o braço do povo não votou o parecer do seu presidente, e nesse dia vi eu os castelhanos andarem contentes como ratos; na verdade o caso não era para menos ; por esta ocasião chegou a notícia de ter falhado o golpe com que o Prior quisera apoderar-se da capital (1), e mais contentes os vi por isso ainda. Os parciais do Prior e os do Duque, esses odiavam-se e atacavam-se mutuamente, como cada um deles odiava e atacava o pretendente estranho. Por cá deve ir o mesmo, não é assim?... Disse-se então que o Prior, vendo falhar-lhe o plano da aclamação na capital, propôs uma conciliação ao Duque, mas logo se disse também que foi repelido. O caso é que, no meio destes barulhos todos, os castelhanos já tinham levado os governadores a pensarem na dissolução das Cortes...
-- Na verdade -- acudiu fr. Marcos -- , não sei para que sirvam; triste espectáculo têm dado: es procuradores invectivam-se mutuamente, insultam-se, trovejam ameaças... no fim para quê? No seio deles não há união, nem força. Desen- ganem-se por uma vez: D. António é quem há-de ocupar o trono; queremo-lo todos; e além disso tem o apoio de Isabel Tudor em Inglaterra, de Catarina de Médicis em França... e sobretudo de Sua Santidade em Roma...
-- Não fale tão seguro, fr. Marcos -- atalhou o jesuíta -- , crê porventura que Isabel Tudor ou Catarina de Médicis se exporiam a uma guerra com o filho de Carlos V? E o Papa mesmo: acha que apesar de tudo não valem nada as guarnições castelhanas de Itália?
O jesuíta acertava; nenhum dos príncipes se atreveu a levar o seu apoio além das palavras; se assim não tivesse sido, talvez a vida de Portugal seguisse outro curso.
-- Parece-me também -- acudiu o mercador -- , que a dissolução das Cortes não há-de levantar hoje tão grande celeuma como levantaria há um mês passado; a rejeição do voto de Febo Moniz foi uma prova de confiança dada aos governadores; portanto a assembleia é hoje solidária com eles... e dissolvendo-a ficamos desembaraçados daquele tropeço de Febo...
-- Diz bem, Sr. Timóteo, tropeço em que podiam dar com o nariz e quebrá-lo, não é assim? -- tornou o arcabuzeiro -- ; pois descanse; asseguro-lhe que os governadores se não atrevem a tanto ; e se os castelhanos ou cá os discípulos do colégio de S. Antão não descobrirem alguma arte, a coisa há-de ser ainda assim dura de levar, e eu mesmo não sei quem dela se sairá melhor.
-- Será como diz, Sr. Martim Afonso -- disse o mercador -- , mas eu lhe asseguro também, que não é este estado de coisas o verdadeiro para fazer prosperar um reino...
-- Não pode fazer negócio?... é isso o que quer dizer. Ora descanse que se alcançar o paternal governo de el-rei Filipe há-de arrepender-se. Deus queira que lhe deixem a camisa.
-- Perdão, Sr. Martim Afonso -- tornou Tomé -- , deixe-me continuar, pois não é para aqui o que tenho a dizer; tinha vossa mercê dito que se não se descobrisse alguma arte não haveria meio de deitar com as Cortes em terra; pois essa arte foi descoberta... devem saber como el-rei Filipe mandou uma carta às Cortes, como o braço do clero e o da nobreza a receberam bem, e como o do povo a recebeu mal; depois disso instados pelos embaixadores castelhanos os governadores, que, como o Cardeal tremera, tremiam ao seu mais leve gesto, foram à assembleia dizer que, atendendo ao estado miserável do tesouro e às necessidades urgentes da guerra iminente, o meio único de pôr o reino em condições de segurança era subscreverem todos com um tanto... Vai então a nobreza e o clero recusam formalmente, e os do povo sem responderem fogem à formiga...
-- Vêde que dedicado patriotismo! -- exclamou rindo o padre Vicente.
-- Cada dia se contavam na sala mais lugares vazios, e a muito custo o Prior e o Duque conseguiam demorar por poucos dias alguns dos seus parciais; afinal chegou uma vez em que faltou o número e as Cortes fecharam-se. Ora se as Cortes se matavam a si próprias, que custava aos governadores dar-lhes o último golpe?
-- Mataram-nas -- exclamou com veemência fr. Marcos -- , mas não mataram por isso a sociedade portuguesa, o reino de Afonso Henriques!
-- Vãs palavras! -- acudiu o jesuíta.
O caso é que este encerramento das Cortes pode tomar-se como o pôr do sol desse dia brilhante da nação que, firmada no apoio municipal, erguera rei o Mestre de Avis, que depois no vigor da vida se ia sacrificar ao progresso da civilização, atrofiando-se nas conquistas por causa das descobertas.
-- Dissolvidas as Cortes -- continuou Tomé -- , os governadores, que não tinham cara de se mostrar o que eram, fingiram começar a tratar dos aprestos militares, porque como sabeis eram então já notórios os preparos de D. Filipe, mas escuso de lhes dizer que ninguém em Santarém ou em Almeirim acreditava na farsa; até se dizia com segurança que os planos de defesa eram todos comunicados a D. Cristóvão, e ao mesmo tempo lhe eram indicados os meios mais prontos e fáceis de penetrar no país...
-- Deve-se pensar também -- acudiu o mercador -- , em que há muita vontade de dizer mal e muito empenho em desacreditar os governadores porque eles, como o defunto Cardeal, se não dobram às ambições de D. António.
-- E ainda mal que se não dobram! -- tornou fr. Marcos.
-- Mas, como dizia -- continuou Tomé -- , a exaltação tomava cada hora maior vulto em Santarém, que era ali o foco dcs elementos partidários do Prior, e os governadores, temendo e receando a vizinhança abandonaram Almeirim, escolhendo Setúbal para residência; entretanto, enquanto o Prior via cada instante engrossarem-se-lhe os partidários, constou que o duque de Bragança mandara retirar de Vila Viçosa as alfaias e preciosidades...
-- Ora aí está quem tem juízo ! ... -- tornou o mercador -- ; nada que invadida a fronteira Vila Viçosa era das primeiras povoações a ser tomada.
-- Pois logo que constou em Santarém ter o exército do duque de Alba entrado em Elvas, a vila apresentou um estranho aspecto; não se falava senão na aclamação do Prior, e as ruas de Santarém apresentavam um quadro medonho de tumultos e desordens. Um dia em que o bispo da Guarda, que, como sabeis, com o conde de Vimioso, é o braço direito do Prior, no meio de uma missa solene, com a igreja cheia de povo, proclamou D. António regedor e defensor do reino, a plebe delirante, embriagada pelo espectáculo sumptuoso da solenidade, e demais já muito disposta e de antemão preparada para o caso, transbordou do templo e correu em tumulto pelas ruas e pelas praças da vila, aclamando rei a D, António, que das janelas do palácio lhe deitava mãos-cheias de cruzados...
-- Ah! -- exclamou o arcabuzeiro -- , tal rei é digno de tal povo!... comparai, senhores, com ele o Mestre de Avis, comparai este nosso tempo, com o tempo de Aljubarrota!
-- Sabe você lá -- tomou fr. Marcos -- , o que sucedeu há duzentos anos! Cá para mim não há salvação fora do Prior.
-- E para nós -- disseram o jesuíta e o mercador -- , nem com ele, nem sem ele; -- e o primeiro continuou -- , isto é uma loucura!
-- E aqui se acaba -- tornou Tomé -- , o que tenho a con- tar-lhes ; muitas coisas das que disse, as devíeis saber já porque são públicas, mas necessitava mencioná-las para atar o fio da narração; depois da aclamação tem-se dito que os governadores, temendo que o negócio tome vulto, instam com el-rei Filipe, para que apresse a ocupação do reino, e especialmente para que a armada do marquês de Santa Cruz, mandada a render os portos do Algarve, vá ancorar em Setúbal.
-- Creio, creio -- disse mordendo os beiços o arcabuzeiro -- , aí está onde nos levaram com as suas roupetas os de S. Roque e S. Antão, padre Vicente; vangloriem-se da sua obra, que são responsáveis pelo desastre de Alcácer.
-- Deus sabe o que está para vir; -- acudiu o jesuíta.
-- Pois que espera ainda, padre, senão a escravidão para nós, não para vós que sabeis viver sempre e com todos?
-- Por tal preço -- tornou com modo irado fr. Marcos -- , não sei qual valha mais, se viver bem, ou ser escravo.
-- Diz bem fr. Marcos; -- tornou o arcabuzeiro.
-- Peço perdão de falar -- acudiu o mercador -- , mas permitam-me que pergunte para que são motins e estragos e oposições a el-rei Filipe se ele, mesmo que venha, não poderá demorar-se aqui duas semanas... Acaso ignorais, Martim Afonso e vós também fr. Marcos, que D. Sebastião não tarda, e em ele vindo estão acabadas as questões?
-- Ah ! Ah ! -- tornou rindo o arcabuzeiro -- , que dizeis a isto, padre Vicente ? Então, Sr. Timóteo Falcão já o seduziram os nossos profetas de roupeta?... pois já que falam nisso quero dizer-lhe, alto e bom som, que são ou parvos ou impostores... D. Sebastião não morreu, mas onde está pois?
-- Onde está? -- respondeu o mercador -- ; vede as profecias de Simão Gomes e do Bandarra e elas vos dirão, como havia de fugir do campo da batalha e retirar-se à Palestina, lá fazer penitência...
-- Do erro, que não foi seu.
-- Lá fazer penitência, e, depois de conquistar toda a África em desforra, livrar Jerusalém dos turcos, expulsá-los depois da Europa, vir pousar em Lisboa; pois lá diz o profeta:
Quando vires o céuDe cruzes brancas raiado,Alegra-te, oh PortugalQue o teu tempo está chegado...
-- Ficaremos então à espera das cruzes, mas parece-me que teremos de as fazer... na boca.
-- Ria embora, Sr. Martim Afonso; mas el-rei D. Sebastião voltará e há-de formar de toda a Espanha um grande império.
-- Há-de voltar, sim... mas será o cadáver; guardado e autenticado por Sebastião de Resende e por muitos fidalgos...
-- Não lhe fica bem, Sr. Martim Afonso, dizer isso : não sabe porventura que tudo foi um estratagema, para que el-rei se pudesse escapar mais a salvo...
Meto a sovela nas viras,E vejo pelo buracoOs ossos de Pêro JacoNo movimento das mentiras.
Assim dizia o profeta.
-- Desses profetas feitos à pressa com linhas, ceróis e sovelas, não é assim, Sr. Timóteo? Ora deixemo-nos de histórias! Eu não sou ímpio, mas também ninguém me come por tolo ; não creio no Prior, como cá o meu bom do fr. Marcos, que também não sei se crê só por espírito de classe; conto com certeza, que, mais dia menos dia, temos aqui el-rei Filipe, e tê-lo-emos para muito, desenganem-se; e creiam comigo, que tudo devemos aos companheiros do nosso padre Vicente, que depois de pregarem connosco nas areias de África, querem agora emendar o mal, descobrindo sapateiros profetas e fazendo sonhar ao povo ilusões impossíveis... Que o padre Vicente queira dizer a verdade e veremos se é como eu digo ou não...
-- Eu cá, Sr. Marfim Afonso -- disse o jesuíta acudindo à interpelação -- , gosto pouco de entrar em questões destas; se o povo crê, entendo, que é porque tem razão para crer; se é certo, que alguém viu morrer D. Sebastião, não insisto nisso; mas o que lhe digo e firmemente creio é que a inspiração profética pouco se dá com a ocupação mundana dos escolhidos; lembre-se de S. Pedro e não se admirará de que um sapateiro possa ser profeta, quando um pescador pôde ser discípulo do Divino Mestre; mas, se o não convencem os profetas por sapateiros, posso dizer-lhe de um, que o não foi, e escrevia muitos, muitos anos antes deles: Ecce dies veniunt, et exurget regnum super terram, et erit timor acrior omnium regnorum quoe fuenmt ante eum; e dizia mais: Aquilam quam vidisti ascendentem de mari, hoc est regnum; o que quer dizer: naqueles dias que estão por vir se levantará um reino sobre a terra, e o temor que este reino causará será maior que o que têm incutido os outros reinos; e que: a águia que viste surgir do mar é o reino de que te falo.
-- Ora aí têm os incrédulos -- acudiu Timóteo -- , o mesmo que profetiza o Bandarra: a águia é D. Sebastião, sairá do mar, pois há-de vir em imia poderosa armada, e os mastros das naus são os paus, que o profeta via levantados na barra de Lisboa.
-- Assim será tudo -- tornou o arcabuzeiro -- , mas para mim são patranhas, que nunca os seus companheiros, padre Vicente, me farão engolir; às tais profecias em latim não lhes nego a importância, mas não me valem mais, que as dos profetas de cerol e sovela; conheço que sou incapaz de argu- mentar consigo, padre Vicente, porque não tenho o seu saber, mas o nosso fr. Marcos, talvez lhe possa retorquir.
-- Eu! -- tornou o Jerónimo -- , Deus me livre de me meter em fofas com ele, mas enquanto às profecias de Esdras sempre lhe direi, padre Vicente, que a Igreja lhes não reconhece valor canónico e não são portanto autoridade infalível da nossa crença; além disto essas, como outras passagens, por ambí- guas, podem ser acomodadas a infinitos sucessos, e têm-no sido...
-- Ora ouçam -- acudiu Tomé -- ; esquecia-me do melhor, e que talvez não saibam; desculpem-me interrompê-los, mas parece-me que há-de valer á pena...
-- Então que é ? -- disseram todos chegando-se ao escudeiro de Febo Moniz e abandonando a discussão.
-- É que o Prior, logo depois de aclamado em Santarém, partiu para Lisboa.
Esta última notícia, produzindo verdadeira alegria no ânimo de fr. Marcos, e motivando um gesto de despeito no rosto do arcabuzeiro, magoou sensivelmente o jesuíta e o mercador. Fr. Marcos, como em geral o clero regular principalmente na capital, esposara ardentemente a causa do Prior do Crato; ao contrário o arcabuzeiro, com aquela descrença do homem limado pelas vicissitudes duma existência trabalhosa, arriscada e errante, via as coisas debaixo da sua verdadeira luz e era difícil de ceder a impressões momentâneas; o mercador poderá servir-nos de curto exemplar da burguesia em geral e especialmente na época desta história, classe então mais do que nunca dominada pelo egoísmo, fraqueza de carácter, ignorância, e indiferença pelas coisas públicas; o jesuíta, por fim, era simplesmente jesuíta, e dito isto está dito tudo, embora me alcunhem de ignorante vulgar.
Febo Moniz voltara para Lisboa, dissolvidas as Cortes, profundamente desanimado do futuro do seu país. Eram decorridos cinco meses depois da morte de D. Henrique e nesses cinco meses a obra traçada pelo falecido rei prosseguia maravilhosamente ; pouco teria a viver quem não chegasse a assistir à entrada triunfante do duque de Alba em Lisboa...
Maria estava na janela do quarto quando viu seu pai atravessar o largo da Sé encaminhando-se para casa. A menina veio recebê-lo e, depois de o abraçar, perguntou-lhe :
-- Então, meu pai ? ...
-- Subamos, filha.
E ambos se encaminharam para a pequenina sala, cujas janelas se rasgavam desafrontadas sobre o rio. Febo entrando limpou com as costas da mão uma lágrima, que lhe humedecera as pupilas, e sentou-se.
-- Então, meu pai?... -- repetiu Maria fazendo com meiguice uma festa nas faces do velho.
-- Então!... mais uns passos perdidos.
-- Pois nada se soube ?
-- Ainda nada. Não obstante as diligências dos alvazis, não foi possível encontrar tua irmã.
-- Pobre Ana! -- tornou Maria, deitando a cabecinha sobre o ombro do pai.
-- Pobre filha! -- tornou Febo.
-- Oh meu pai, meu pai! -- disse a menina erguendo o seu rosto gentil onde tremiam as lágrimas. -- Deus me ouça, só Deus nos pode valer!
-- Só ele!
-- Não desanimemos, porém.
-- Não desanimo, descansa, espero ainda... em Deus, que me há-de salvar! Está preenchida a minha conta. Gozei muito; justo é que sofra agora...
-- Meu pobre pai!
-- Dizes bem, pobre pai!... -- e junta -- pobre homem! Não me queixe, Maria; se Deus me dá os sofrimentos é porque me deu o sentimento. E antes isso! Antes sentir todos os espinhos, todas as amarguras da vida, do que ter um coração de pedra, um espírito pequeno e vil. Os grandes sofrimentos são para quem os sente; e antes senti-los, que ignorá-los! Que vejo em roda de mim? Vejo a minha pátria corrompida, vejo os grandes vendidos, os pequenos ignorantes e loucos e fracos! Deus me leve antes que a desgraça da minha terra esteja de todo consumada!
-- E que eu morra abraçada convosco, meu querido pai!
-- Tu, filha? Tu, a quem a Primavera sorri com todas as suas galas, pobre flor viçosa desabrochada apenas? Tu que não provastes ainda o mel da vida? Oh, não, não tu viverás! Não é para ti a laje do sepulcro, mas o diadema do noivado, mas as flores, os perfumes, a luz do amor!
-- Eu, meu pai ? -- tornou Maria com a resignação da Virgem ao ouvir a profecia de Simeão no Templo -- ; eu, meu adorado pai? Não, não! Porventura ignora haver flores que, apenas abertas, o sol do estio emurchece e queima? Não, meu pai ! A vida é para mim como um céu toldado de nuvens impenetráveis ao mais vivido raio de Sol; sinto a morte no mieu coração, sinto o desalento, a fraqueza, a doença, estremecerem-me e finarem-me! Leve-me Deus consigo, meu adorado pai, mas Deus me dê ver Ana antes da morte!
-- E a mim, e a mim, filha !
-- Ver aquela mártir... pobre irmã!
-- Pobre filha... Deus lhe perdoe, que há muito lhe perdoei já!
-- Como eu estimo ouvir-lhe essas palavras ! Ana errou talvez, mas, oh, meu Deus! Como pagou o seu erro!
-- O céu há-de ouvir-nos! Fio-me nele que antes da morte poderei abraçar minha filha. Ai, Maria quem me dera volver àqueles tempos felizes em que tu, sentada como agora sobre os meus joelhos, brincavas, rias, folgavas e te abraçavas ao meu pescoço puxando-me as barbas e os cabelos! Ditosos tempos esses, que não mais voltam! Era então o céu azul, e azul o futuro! Hoje...
-- Hoje, meu pai... quer a imagem mais clara?... -- disse Maria apontando com a sua pequenina mão para o espaço que o vão da janela emoldurava -- ; eis aí como a vida nos é: não vê c Sol ardentíssimo dardejar es seus raios que matam queimando? Não vê o ar pesado, a atmosfera carregada, os horizontes pardos, os campos tisnados? Eis aí a nossa vida!
-- Dizes bem, filha; o sol queima; foi esse sol de glória efémera que irradiando sobre nós nos queimou. O esplendor das conquistas deslumbrava, mas breve nos vimos cobertos de ouro por fora, chagados e feridos por dentro...
-- Meu querido pai, concede um favor último à sua Maria?
-- Que podes tu querer, que eu me não apresse a cumprir? Nenhumas alegrias tenho, fazer-te vontades é para mim uma, Dize.
-- Eu queria professar... -- retorquiu a menina apertando as mãos do velho e encarando-o com indizível meiguice e amor.
-- Professar ?
-- Professar, sim, meu pai. Queria trocar esta vida pela outra, começar mais cedo essa existência que para todos se abre na beira do túmulo, mas para a freira começa ao cumprir os votas.
-- Professar? -- tornou Febo Moniz encarando seriamente a menina -- ; pois tu queres, criança como és, enterrar-te numa cela, vestir-te de estamenha, cortar as tranças dos teus lindos cabelos, filha?
-- Quero, quero meu pai !
-- Tu não sabes o que queres, Maria. A vida é longa, e na idade do fogo e do arrebatamento, e essa idade é a tua, medem-se os anos como dias. Sabes se daqui a dois, a três, a cinco anos pensarás como pensas hoje? Sabes se, passada a tormenta, quando voltarem os dias serenos, o céu azul, os prados floridos, a felicidade enfim: e então eu terei morrido já, sabes, filha, se esvaído o passado como fumo, a mu- lher se esquecerá das penas da infância, e desejará voltar ao mundo? E olha, filha, que será terrível isso! Imagina um homem desmaiado, sobre quem pesasse a lousa do sepulcro, e quando voltado a si, esforçando-se por erguer aquela fria e pesada laje, que o oprimia e o matava!
-- Não, não; tudo morre, tudo se desfaz, despem-se as árvores de folhas como no Outono, e ficam os braços e os troncos nus, o terramoto abala os edifícios, o furacão levanta a areia e atira-a em novelos pelo ar, envolvendo nela tudo e todos, destruindo, queimando, arrasando. Eu morro também. Descanse que cedo hei-de despir o hábito para vestir a mortalha.
-- Ouve, filha, minha querida Maria, mas o convento não é o céu, o convento é a sociedade, limitada a uma estrei- tíssima esfera; não te iludas pensando que os varões de ferro guardam anjos, pois guardam simples mulheres. Essa aspiração sublime que transforma a mulher no anjo, não é dado a todas sentirem-na. Se umas sobem em espírito às regiões ideais, outras ficam na terra, e bem na terra; movem-se, rezam, batem nos peitos, beijam o chão, maquinalmente! Ali, filha, desengana-te, há bom e mau; o convento não é um céu, é uma pequena sociedade, é uma grande família, tendo daquela os interesses mesquinhos, as paixões, a ignorância, a inveja, a intriga, sem ter desta os laços paternais, a amizade de irmãos que como numa cadeia unem os membros duma família.
Maria escutava atenta a verdadeira descrição que o pai fazia da vida monástica, mas a sua alma ardentemente poética sonhara para trás das grades um céu, e a verdade não era capaz de produzir, apesar de sair dos lábios do pai, o efeito necessário; a menina ouvia, mas era rebelde em se convencer.
-- Acredita no que te digo -- continuou meigamente o pai.
-- Recusa?
-- Não sei se recuse ! Parece-me que sim. Ainda que, quando passas os teus braços em roda do meu pescoço, e me pedes alguma coisa com essa tua voz, que eu tanto amo... meu Deus, meu Deus! Ê a última alegria que me resta! Desfizeram-se todas as mais em pó!... E tu, Maria, minha companheira única, queres roubar ao pobre velho, o último raio do Sol de Inverno? Não vês que sem ele morro logo de frio e sede, sozinho, desamparado?
Maria deitou a cabeça no seio do pai e calou-se...
De súbito uma vozeria de povo que, como trovoada longínqua se aproximava, estalou vigorosa; a menina saltou dos joelhos do pai e correram ambos à janela: apeava-se D. António naquele momento às portas da catedral; seguiam-no uns duzentos homens de tropa de pé e de cavalo, e as turbas inebriadas revolviam-se, como se revolvem as ondas do mar em horas de procela, bramindo, aclamando, vitoriando, com vez tremenda, o seu rei!
Febo e a filha trocaram um olhar eloquente, saltaram-lhes as lágrimas aos olhos, e abraçaram-se ; passou pela imaginação de ambos a imagem inexorável da realidade, e essa imagem representava a pátria perdida, a filha maculada!
Depois quando, separando-se, volveram ambos à janela, saía o rei do templo e montava a cavalo ; D. António viu Febo e empalideceu: talvez se lembrasse de que dois séculos antes o Mestre de Avis pisara aquele mesmo chão com Álvaro Pais a seu lado.
Ao mesmo tempo Maria via no meio do séquito do rei uma pessoa que a fez empalidecer a ela, tremer, corar de súbito, e apoiar-se ao parapeito da janela para não cair: era Fernão; Fernão que a menina supunha morto, Fernão que lhe aparecia agora ressurgido no centro do cortejo esplêndido do rei triunfante! Maria encarou de novo o séquito e a imaginação pintou-lhe tudo com menos lúgubres cores: se Fernão ressuscitara, porque não havia de ressuscitar também a pátria?
Por isso, quando, recolhidos, Febo contristado e sem esperança se deitou violentamente sobre uma cadeira, Maria lhe disse ameigando-o e sorrindo-lhe:
-- Não esteja triste, meu pai! Talvez um milagre nos salve !
Febo não retorquiu e poucos instantes depois cravou os olhos na filha perguntando-lhe :
-- Então, Maria, sempre queres deixar-me?
-- Oh não, não! Agora não, meu pai!
-- Então porque choras, Ana?
-- Eu, Alonso, eu... não chorava.
-- Bem, bem; nada de lágrimas, que sou pouco de ternuras. Cara alegre e trabalho ligeiro... vamos; são estas horas e não tenho ainda de almoçar... vamos, vamos é aviar.
-- Aí vai, Alonso, tem paciência; não sejas mau, não me fales assim.
-- Como queres que te fale pois?
-- Eu não sei, Alonso... mas não vês que sou a mãe do teu filho?
-- O meu filho... bem me importa a mim com isso! O que eu quero agora é almoçar.
E sentou-se num dos bancos junto à mesa, assobiando impaciente, enquanto Ana, triste imagem do que fora, segurando num dos braços o filhinho recém-nascido, colocava sobre a mesa o almoço; depois, indo a uma prateleira que havia sobre a chaminé, tirava de lá um copo e um canjirão com vinho. Enquanto o castelhano comia impassivelmente, Ana sentada ao pé da janela mirava o rosto da criancinha, que lhe sorria com aquela serenidade constante, que os infantes, quando não choram, têm derramada no semblante; beijava a pequenina face, aquecia-o com o hálito, e as lágrimas caindo-lhe dos olhos iam orvalhar o rosto da criança, como o rocio da manhã faz às flores.
D. Alonso, saciado o apetite, sacudiu do gibão as migalhas que lho sujavam, e, assentando o chapéu cuidadosamente sobre a cabeça e mirando-se, saiu sem dizer uma palavra sequer à pobre senhora, sem ao menos baixar os olhos sobre o seu filho.
Então Ana, cerrando os postigos da janela, ergueu-se apertando o menino contra o seio e caiu de joelhos chorando e soluçando.
Acordaram-na os gemidos do pequenino, e sentando-se de novo apresentou-lhe o peito entumecido de leite onde a criança poisou os lábios com sofreguidão.
A casa, cerrados os postigos, ficara em trevas; só os reflexos da lenha que ardia no lar, últimos lampejos de uma chama que se extinguia, tremiam e vinham poisar o seu clarão rubro, iluminando o rosto da desgraçada mãe. As lágrimas que deslizavam abundantes pelas suas faces, avermelhadas pelo reflexo, pareciam lágrimas de fogo.
E eram-no!
O pequenino calara os gritos e bebia com ardor o leite que era sangue: o sofrimento, o martírio cruel, que esmagara com todo o peso da desgraça a infeliz Ana, arruinara-lhe a saúde; nas faces lívidas, nos olhos encovados, nas olheiras grandes e roxas como violetas, nos lábios vermelhos de febre, na língua rubra como fogo e ardente como a sede, tinha a pobre menina estampado o sintoma fatal da doença que a levaria à cova...
De súbito um toro de lenha que ardia em pé tombou consumido pelo fogo, e caindo despediu, como o último suspiro da vida, uma chama alta e brilhante que iluminou num ins- tante toda a extensão do quarto; mas o clarão, apenas vivo, morreu, e a essa última luz sucederam espessas trevas, apenas quebradas na curta área iluminada pelas cinzas ardentes.
Ana soltou um grito quando a chama aluminou momentaneamente as quatro paredes, mísero quadro duma cena dolorosa, acordou daquele estado letárgico em que, estranha a tudo, embalando nos braços o filhinho, resumia o mundo em si e nele; a chama evocando-a à realidade dissipou as nuvens que lhe impediam os olhos de ver, emudeceu o assobio estridente que a ensurdecera, rasgou as prisões que lhe tomavam a língua e as pálpebras, deu-ihe voz e deu-lhe lágrimas: as trevas pareceram-lhe então medonhas, povoadas de espectros, a figura do miserável que a desgraçara aparecia-lhe saltando infernais danças, despedindo gargalhadas diabólicas, cercando-a, apontando-a a dedo, escarnecendo-a, desenhada em traços de lume, com os olhos injectados de sangue, a cabeça disforme, garrai nas mãos, o corpo de uma serpente; e adiantava os braços para lhe roubar o precioso tesouro, o filho da sua alma, o sangue do seu sangue! Então Ana, apertando o filhinho cada vez mais contra o seio, ergueu-se espavorida afastando com a mão a sombra medonha e correu a descerrar os postigos da janela.
Já então ia no alto do céu o astro ardente do estio, a temperatura era elevada, pouca a viração e essa quente ; Ana abriu de par em par a janela e as ondas de luz dissiparam num momento as sombras. Respirou.
Nisto batiam na argola, e dizendo a menina que abrisse quem era, levantou-se a aldraba, e apareceu sobre o degrau da porta Margarida, a velha beata da Alfama. Ana, encarando-a, julgou sonhar, fixou nela a vista e sem falar repeliu-a com o gesto. Margarida, porém, com aquele parecer humilhado e contrito que lhe conhecemos, avançou, veio até junto da senhora, e caiu de joelhos dizendo-lhe:
-- Perdoe-me por amor de Deus, da Virgem Santíssima, de todos os Santos da corte do céu!
-- Cale-se, mulher, não blasfeme!
-- Perdoe-me, perdoe-me que não fui culpada !
-- Não foi culpada?... quem pois?
-- Quem? O demónio, a má sorte.
-- Deixe-me, mulher; vá-se, que a sua presença vem aumentar ainda, se é possível, o que sofro; não me venha lembrar o que passou. Vá na paz de Deus e não me tente.
-- Perdão -- continuava Margarida segurando-se vivamente aos vestidos da senhora -- ; perdoe-me... peço-lhe por todos os anjos do céu... prometo...
-- Cale-se, mulher.
-- Prometo levar a minha vida a rezar por sua intenção, prometo tantas coroas à minha Senhora como estrelas há no céu... prometo...
-- Uma vez mais lhe digo, mulher, saia! Não venha insultar-me na desgraça, já que nela me afogou. Vá-se, vá-se e Deus lhe perdoe!
-- E Deus me perdoe, o mal que não fiz! E Deus e a Virgem Santíssima vêem bem quanto a minha alma está pura, quanto os meus desejos eram sãos!
-- Tenha dó de mim. Margarida, vá-se. Se é inocente Deus não tem que lhe perdoar; eu perdoei-lhe já. Que me quer agora? Não me aflija, retire-se, que lho imploro.
-- Oh não, não me hei-de retirar; peço-lhe que me perdoe; beijo-lhe os pés, beijo-lhe as mãos. Ouça-me, menina, por mercê de Deus, ouça-me por amor do seu filho?
As últimas palavras da velha que exprimia uma dor verdadeira, e a invocação feita, abrandaram a cólera e o ressentimento da senhora. Ana sentou-se e Margarida arrastando um tamborete sentou-se-lhe ao lado.
-- Como é lindo! Como é lindo! -- dizia a velha mirando o pequenino. -- É mesmo um anjo!
-- Diga, Margarida, que me quer? -- tornou Ana, ainda que lisonjeada pelos louvores da velha, dulcíssimas impressões em que a alma se lhe aprazia, repugnando pelos ver nos lábios imundos da criatura, que lhe preparara a estrada do infortúnio.
-- Eu digo, mas conceda-me que admire este menino. Deus o abençoe! Benza-o Deus e a Virgem Santíssima o proteja !
-- Sejam as suas palavras verdadeiras. Margarida, e o céu as ouça... Vamos, diga, que me quer?
-- Não me trate desse modo, menina, peço-lho por todos os anjinhos do céu; tenha dó de mim,
-- Dó, porquê?
-- Porquê?! Pois não sabe, que os castelhanos estão a entrar na vila?
-- Os castelhanos ? !
-- O Sr. D. Alonso não lho disse ? ... como os homens são !...
-- Diz bem, Margarida: como os homens são!...
-- Pois, minha menina, apresso-me a contar-lho, senão receio que entrem mais depressa do que eu diga as minhas palavras.
-- Diga então, Margarida, diga depressa.
-- Esta madrugada apresentou-se aí fora da vila para os lados da fonte sapateira o duque de Alba e o seu exército, e logo que rompeu o sol, mandou parlamentário ao Sr. João de Azevedo, honrado moço que governa o castelo, mas o enviado foi repelido; chamou-se a guarnição, e com o auxílio de Deus estão todos dispostos a não se entregarem como se entregou Elvas... contudo...
-- Diga, mulher.
-- Contudo o exército castelhano é muito poderoso; eu que fui lá ao alto da muralha pôde vê-lo; olhe que é uma soma de cavaleiros e peões e bombardas!... Ih Jesus! Só vê-los ao longe pasma e mete medo. São da Itália, são da França, de Flandres, gentes de todo o mundo! E os cavaleiros vêm vestidos de veludo e oiro e trazem umas armaduras tão polidas e plumas tão bonitas no alto dcs elmos, minha menina, que eu duvido, que por muito tempo se possa sustentar o castelo.
-- Deus nos acuda, Margarida !
-- Deus nos acuda e a Virgem Santíssima, foi o que eu logo disse!... E depois assentaram as bombardas contra o castelo, e mandaram um pregoeiro gritando, que se rendessem imediatamente, senão dariam assalto e a vila seria posta a saque...
-- A saque! -- gritou Ana.
-- A saque sim, minha querida menina!
Nisto viram-se descer correndo muitos soldados e muito povo em tropel; era a guarnição que abandonava o castelo intimidada pelo pregão.
-- Olhe, disse Margarida, lá vão eles fugindo! Ainda bem!
-- Ainda bem, porquê?
-- Eles que abandonam o castelo não haverá nem assalto, nem saque... graças. Senhor!... mas os castelhanos entram na vila, e...
-- E o quê, Margarida?
-- É que eu era confessada do Sr. fr. Jerónimo do Espírito Santo...
-- Mas...
-- Pois não sabe que o Sr. padre fr. Jerónimo foi quem aconselhou João de Azevedo, a que resistisse?
-- Não sabia; mas isso?...
-- Mas isso, menina, é que é muito natural que os castelhanos me persigam, e eu sempre pedi à Virgem Santíssima que me não fizesse morrer enforcada... Quer a menina salvar-me?
-- Salvá-la?... por certo quero.
-- Esconda-me então.
-- Em minha casa, Margarida?
-- Em casa do Sr. Alonso ; não sabe que assim estarei a coberto de tudo?
-- Pois não se envergonha, Margarida, de vir pedir abrigo a minha casa?
-- Salve-me, senhora D. Ana! Tenha dó e compaixão duma serva de Deus!
-- Não diga mais, mulher, descanse. Deus manda esquecer as injúrias. Fique.
-- Obrigada, minha menina! Deus do céu lho pague! A Virgem Santíssima a abençoe! Os santos...
-- Cale-se, mulher, de novo lho digo.
E Ana levantou-se e chegando à janela viu no alto da torre da vila desfraldado ao vento o pavilhão castelhano; suspirou e entristeceu-se...
Dois dias depois o exército castelhano deixando uma pequena guarnição em Estremoz, e ocupando Arraiolos e Évora-Monte, partia no seu passeio militar para Montemor-o-Novo.
Os castelhanos, não obstante os receios da velha, não a perseguiram, nem a fr. Jerónimo; só João de Azevedo foi mandado preso para Vila Viçosa.
Dois dias eram passados depois da pacífica entrega da vila, e neles D. Alonso não voltara a casa. Ana, aquecendo contra o peito o filhinho e beijando-o dizia-lhe, sem que a pobre criança a compreendesse:
-- Já não tens pai !
Este último golpe acabara de arruinar a saúde da pobre senhora; uma tosse continuada e violenta roubava-lhe cada dia novas forças, e o pobre filhinho, encontrando os peitos da mãe secos, chorava tiritando de frio, e com fome. Ana, com os poucos cruzados que lhe restavam ia suprindo às necessidades da família; mas, quando via que eles se extinguiriam em breve, batia desesperadamente com as mãos na fronte, arrancava os cabelos, e perguntava à Providência: que será do meu filho?
Mais alguns dias eram passados e Margarida veio uma vez, mais triste e mais hipócrita que nunca, dizer à senhora o que para ela era já uma certeza: D. Alonso não havia a esperá-lo, porque tinha partido com o exército para Montemor.
Ana desmaiou ao ouvir a notícia; adivinhava-a ; contudo procurava iludir-se e a verdade cruel feriu-lhe o coração, como a espada que atravessou o peito da Virgem.
Dias depois o pequeno tesouro voara ; e a miséria, a fome, o desamparo, apareceram batendo à porta com o seu medonho aspecto, com o seu terrível corteje ie sofrimentos, de angústias, de lágrimas e dores; e a miséria vinha encontrar uma mulher tísica e uma criancinha de poucos dias!
Ana pediu a Deus todas as suas forças do corpo e as forças do espírito; vendeu uma cruz de ouro que sua mãe lhe deixara; e tomando nos braços o filhinho disse adeus aquela triste pousada, e partiu.
Reclinado em vasta poltrona estava fr. Marcos na sua cela rezando sossegadamente no breviário, quando um leigo, batendo com os nós dos dedos na parte exterior da porta, veio interromper um dos longos becejos, com que o frade entremeava a meditação religiosa.
-- Reverendíssimo, a paz do Senhor seja convosco... não estorvo ? -- dizia o leigo batendo.
-- Não estorva. Entre.
E o leigo entrou.
-- Então que há? -- disse fr. Marcos.
-- Há que, reverendíssimo, uma dama o está esperando lá em baixo; -- tornou o leigo piscando maliciosamente os olhos.
-- Dama ? ... moça ou velha ?
-- Moça, e gentil! Através do véu pôde ver-lhe uns olhos bem bonitos, mas muito pisados e um parecer tão triste, que é mesmo de fazer chorar as pedras... Então vem?
-- Ora vamos lá com isso ; -- tornou fr. Marcos levantando-se intimamente satisfeito por largar o breviário para comissão tão agradável, mas simulando enfado.
Desceu então à sacristia, e quando entrou no cruzeiro da igreja e deu com Ana de joelhos junto à grade da capela-mor, a custo pôde conter uma exclamação de espanto, porque logo a reconheceu; a sua inteligência, pois o frade apesar da gordura não era nada tolo, pintou-lhe o quadro inteiro dos acontecimentos que tinham preparado aquele desfecho; achegando-se mansamente dela e tocando-lhe levemente no ombro disse-lhe :
-- Procurava-me, não é assim?
Ana, segurando nos braços o filho, ergueu-se vivamente, e com o aspecto de uma pessoa assustada, aflita, e meia louca tomou ao frade:
-- Procurava, procurava! Perdoe-me. Fr. Marcos disse-lhe afectuosamente:
-- Cale-se... No primeiro confessionário, e eu vou já.
Ana não retorquiu e encaminhou-se para o lugar indicado pelo frade ; então este, seguro de ter sido bem entendido, voltou à sacristia e dirigiu-se para o confessionário, que como hoje se vê ainda, não tem outra comunicação para a igreja além do ralo. Sentando-se na cadeira o frade encontrou colado contra a grade de cobre o rosto da infeliz filha de Febo Moniz.
Fr. Marcos, justiça é dizê-lo, levava no seu procedimento, além do intento de fazer com que a conversa fosse completamente secreta, a ideia de afligir por este modo o menos possível a pessoa que o buscava: a grade que o separava e a majestade do tribunal da penitência haviam de minorar o amargor de uma explicação face a face. Fr. Marcos era caridoso.
-- Sossegue, Ana... -- começou o frade procurando com a doçura das palavras abrandar os soluços profundas, que estremeciam o seio da pecadora -- ; está com um amigo e um servidor, não se aflija... não se acuse... Deus perdoa aos arrependidos... diga-me: em que posso eu servi-la?
-- Obrigada! Oh do coração, obrigada! Sr. fr. Marcos; procurei-o confiando na sua boa amizade e na sua virtude. O senhor não sabe, ninguém sabe como eu o que é sofrer!... O que é ser-se um dia arrebatada, e, perdendo o equilíbrio sobre a escada terrível da vida, tombar de miséria em miséria, de angústia em angústia, de infortúnio em infortúnio ! Oh meu Deus, meu Deus!
E Ana, tendo deitado o filho junto aos joelhos sobre as pregas do vestido, apertava com as mãos as faces; era deserto o vasto templo e pelos seus lavrados pilares subiam às abóbadas os gemidos da infeliz com um acento de amargura compungente!
-- É a história, filha -- tornou fr. Marcos -- , de todos os prazeres mundanos; doces ao beber, amargos depois. Tudo em nós e na terra é imagem da existência, primeiro Maio e as flores, depois Outubro e as ventanias, as chuvas, os trovões, as tempestades; agora o Sol, logo depois as trevas: a vida e a morte... No mundo o finito, no céu o infinito; o homem é o símbolo daquele, Deus o símbolo deste; nascer, viver e morrer; o princípio, o meio, o fim, eis tudo quanto há sobre a terra... esqueça o prazer mentiroso, arrependa-se, será feliz e será santa.
-- Arrependo, meu padre, de ter sido ambiciosa, de ter esquecido o meu dever... mas eu não pequei! Mas eu não me deixei seduzir! Mas eu fui arrastada à força como o condenado ao cadafalso! Mas eu não tive Maio, nem flores, nem Sol, nem mel!... Só trevas, só tempestade, só amargura, padre!...
-- Pobre Ana!... Deus que lê no fundo da alma há-de ver a sua e se amerceará dela. Confie Nele, Ana! Tem pai e tem irmã, eles a acolherão e tomará a ser feliz; eu sei o que ambos têm sofrido!
-- Meu pai ! Minha querida irmã ! -- tornou Ana com um chuveiro de lágrimas a embargar-lhe a voz.
-- Seu pai, sim, e sua irmã, filha, que melhor do que eu sabem como Cristo perdoou à Madalena, como o arrependimento purifica e como a desgraça martiriza... Vamos, Ana; levante-se, reze ao Senhor e venha comigo abraçar os seus.
-- Oh meu Deus ! -- exclamou a senhora pondo fervorosamente as mãos e levantando es olhos ao alto -- ; meu Deus! Meu Deus! Aplacou-se a Tua ira! Graças, graças misericórdia. Senhor!
E Ana apertava contra o seio o filho, quando a criancinha soltou um gemido.
-- Ai, padre! -- tornou ela, mirando-a. -- Como aparecerei a meu pai?... Oh não! Não posso; tenho medo e tenho vergonha! Este filho que é o meu sangue, o meu amor, a minha vida, é também a minha acusação!... Padre, pequei, sou castigada; que me resta? Fugir de todos, viver abandonada, miserável, precita, até que a morte nos chame a ambos e nos envolva no seu lençol de gelo! Adeus, fr. Marcos, peça ao Senhor por mim nas suas orações... adeus, adeus perdoe-me e esqueça-me... mas a mulher perdida não tem olhos para ver seu pai!
Assim dizendo, Ana levantou-se, envolveu o filho no manto que vestia, e atravessou como louca a igreja; fr. Marcos ergueu-se num salto do confessionário passou à sacristia e saiu em seguimento da infeliz.
Quando o frade a alcançou, estava ela de pé à borda da água; tinha os olhos esgazeados, os lábios rubros, as faces brancas, e mirava com sofreguidão ora o mar que lhe beijava os pés com as borbulhas de espuma da onda que se quebrava, ora o filhinho que a encarava sorrindo candidamente. Fr. Marcos adivinhou logo que a ideia do suicídio aparecera à infeliz.
-- Ana, Ana -- lhe disse com severidade -- , não sabe que o suicídio é um pecado, e que a morte em pecado leva ao inferno?
-- Ao inferno, padre ?! -- tomou a senhora fitando-o e sorrindo amargamente -- ; pois que é a terra senão o inferno, se eu tenho este anjinho nos braços que me sorri: não vê?, com meiguice e encanto, e não posso salvá-lo da desonra, do escárnio, da desgraça, nem que eu morra!... Acabarmos ambos, oh meu Deus, seria a ventura suprema!
-- Sossegue, senhora, não vê que se mata, que estraga o resto da saúde que tem, e, morta, que será de seu filho?
-- Meu filho padre?! Quando eu morrer, morrerá; não hão-de poder levar-mo; apertá-lo-ei nos meus braços e sufocá-lo-ei !
-- Mulher, mulher! O que diz!
-- Eu, padre -- tornou Ana desfalecida sentando-se numa das pedras que bordavam a praia -- , eu nem sei o que digo; às vezes o ardor da febre transtoma-me os sentidos e desvario... perdoe-me... deixe-me só... não careço, para viver, de ninguém mais além do meu querido filho.
-- Carece, Ana, porque a vida de seu filho não é sua, porque Deus lhe não perdoaria deixar morrer uma criatura à míngua, à sede, à fome... assassinava seu filho, Ana!
-- Assassinar-te eu, filho da minha alma! Assassinar-te, assassinar... te... assassi...
E Ana repetia esta palavra baixando a vez cada vez mais, até que por último lhe ficou em meio presa numa golfada de sangue que lhe saiu pela boca. Caiu por fim desfalecida, e fr. Marcos tomando-a nos braços levou-a à portaria do con- vento aonde lhe ministraram socorros.
Quando a infeliz voltou a si, estranhou o lugar onde se achava, e percorrendo-o com os olhos embaciados, disse com uma voz tenuíssima:
-- O meu filho?...
-- Está aqui a seu lado; -- tornou fr. Marcos que seguira com impaciência todas as fases da crise.
-- Obrigada, Sr. fr. Marcos, Deus lhe pague no céu.
-- Como se acha agora, Ana? Sente-se com forças de dar alguns passos?
-- Oh sinto ! -- tornou a senhora levantando-se,
-- Partamos então.
-- Aonde, padre ?
-- A encontrar seu pai.
-- Meu pai ?!
-- Seu pai, sim, Ana; não quer vê-lo, não o quer abraçar? Vai encontrá-lo doente, moribundo talvez, e pedindo a Deus, como a última graça antes da salvação, a ventura de a tomar a ver antes da morte... se não tem piedade para si, tenha-a para ele,
-- Vamos, fr. Marcos... meu pai doente!... E Maria?
-- Maria pensa em professar.
-- Ah!
Pela cabeça enfraquecida da senhora passou a figura de Fernão caindo, de D. Alonso limpando a espada, e pareceu-lhe ver a poça de sangue, marcando um ponto vermelho na calçada.
Correndo ambas as mãos pela testa para a refrescar, e, como querendo aclarar o pensamento que se lhe toldava em delírio, cismou um pouco, e depois, pegando no filho beijou-o, e tomou o braço que fr. Marcos lhe oferecia.
Assim atravessou a praia e entrou num barco.
Fr. Marcos dizia ao barqueiro:
-- Às portas do mar.
-- Em duas remadas lá estaremos: a maré enche e o vento abonançou ; -- respondeu ele pegando nos remos e ferindo com os dois primeiros golpes a superfície azulada e límpida do rio.
Meia hora depois estava percorrido o caminho; aproava o barco às portas do mar, e Ana, encostada ao braço de fr. Marcos, subia pela rua que leva ao largo da Sé: o frade consolava-a e fortificava-lhe o espírito.
Quando entraram em casa, a primeira pessoa que viram foi Tomé, que não pôde conter um grito de alegria e espanto ao mesmo tempo; fr. Marcos intimou-o, pondo o indicador sobre os lábios, a que se calasse, e o criado obedeceu, cumprimentando e sorrindo para Ana, espantado por lhe ver o filhinho nos braços.
Fr. Marcos disse a Tomé:
-- Acompanha tua ama, até que eu volte; -- e, como era familiar, internou-se pela casa dentro.
Ana sentou-se numa cadeira, enquanto o criado, de pé, defronte dela, não sabia que dizer.
-- Espanta-se, Tomé, de me tornar a ver, não é assim? Também eu não contava vê-lo mais, nem a esta casa, mas Deus não o quis.
-- E bendito Deus que assim foi -- retorquiu o escudeiro com osolhos marejados de lágrimas -- ; havia por cá muitas saudades suas, menina Ana, e não era eu dos que as tinha menos... acredite-o.
-- Acredito, Tomé, pois eu sei que tens um bom coração. Deixando Ana entregue àquelas suaves impressões que
a vista da casa onde nascera e por tantos anos tinha vivido lhe proporcionavam, e também ao receio cruel do momento solene, em que teria de ver de novo seu pai e sua irmã, acompanhemos o frade.
Fr. Marcos penetrara no quarto de Febo Moniz, que a rebeldia dos padecimentos tinham levado à cama e nela o conservavam havia alguns dias.
-- Bons dias, Sr. Febo Moniz -- disse o frade entrando com modo jovial.
-- Bons dias, fr. Marcos, há muito que nos não procurava, e creia que estimo vê-lo; nestas horas de desgraça e de moléstia para mim é bem agradável encontrar um amigo.
-- Obrigado, Sr. Febo Moniz... diz a verdade; nestes maus tempos a amizade é mais doce; mas por que o vejo de cama? Algum leve incómodo, não é assim?
-- Engana-se, fr. Marcos, a minha doença vem de há muito e está breve a terminar; não serei eu dos que hão-de ver a entrada do duque de Alba em Lisboa.
-- Em Lisboa?!
-- Em Lisboa, sim, fr. Marcos; acha que vem longe?
-- Concordo consigo, Sr. Febo, porque eu também não verei os castelhanos entrarem em Lisboa, nem portugueses o verão.
-- Não se iluda, fr. Marcos; a ilusão é para os bons e esses, mal de nós! São poucos; não verei es castelhanos, porque morrerei primeiro... e Deus mo conceda!
-- Não diga tal ; não se lembra de que não é só, e morrendo, deixa, além de muitos que lhe choram a memória, suas filhas que...
-- Minhas filhas, padre! Minha filha, minha filha diga; uma só... a outra... perdi-a.
-- Perdeu-a?
-- Perdi-a... ou antes roubaram-ma. Não a verei mais. Ê um espinho que sobre todos me dilacera o coração. Oh se Deus permitisse!... mas não! O cálix das amarguras deve ser esgotado até as fezes.
-- Não desanime. A misericórdia divina é omnipotente; tenha esperança na vida... e esperança de...
-- Que diz, padre? Porventura?...
-- Sossegue, sossegue ; não se exalte ; a comoção pode piorar-lhe a doença.
-- Diga-me, oh diga-me, fr. Marcos -- tomou o velho debruçando-se do leito e estendendo as mãos suplicantes -- ; compadeça-se de mim!... tem esperança?...
-- Não sei... talvez... mas deite-se, sossegue; Maria onde está, que a não vejo?
-- Meu pai! Meu pai! -- ouviu-se gritar de fora, como num trinado de passarinhos em manhã de Primavera -- ; meu pai! Meu pai! Alegre-se! Trago-lhe a sua filha, trago-lhe a minha irmã!
Febo ergueu-se sobressaltado no leito, com essa expressão de desconfiança que a nova de uma grande ventura traz sempre ao homem curvado ao peso da desgraça; mas a voz de Maria aproximava-se cada vez mais, e Febo sem poder duvidar, com uma alegria beatífica derramada no rosto, estendeu as mãos para fr. Marcos e disse-lhe com as lágrimas a embargarem-lhe a voz:
-- Obrigado, fr. Marcos... por que não quis ser o primeiro a dar-me esta notícia?
-- Tive medo.
-- Medo?
-- Medo de que o choque lhe fizesse mal.
-- Oh não faz, não faz ! Deixe-me beber um trago de alegria antes de morrer, que isto está por pouco.
Levantava-se então o reposteiro e apareciam as duas irmãs; Maria abraçada ao pescoço de Ana, com o rosto iluminado de alegria, Ana com a resignação, a placidez e o receio também pintados nas feições.
Por de trás do grupo via-se na sombra a figura de Tomé.
Maria conduziu a irmã até junto do leito do pai e disse-lhe:
-- Aqui a tem, meu pai! Sou eu quem lha traz!
-- Anjo ! -- murmurou Febo.
Fr. Marcos afastara-se conversando com Tomé. Ana chegando ao pé do leito, caiu de joelhos, e encostando a cabeça, e escondendo-a nas pregas dos lençóis, exclamou:
-- Perdão, meu pai! Para mim e para o meu filho!
-- Levanta-te, Ana -- tornou Febo debruçando-se do leito e segurando nos braços da filha -- ; o martírio purifica! Dá-me o teu filho, deixa-me beijá-lo e apertá-lo a mim. E abraça-me tu, Ana!
Ana passou a criancinha aos braços do velho, que a beijou e apertou ao peito. Quem pode pintar as dulcíssimas alegrias da pobre senhora? Quem pode pintar aquela felicidade inebriante, aquele gozo inefável, que, como o maná do deserto, lhe chovia sobre a alma esfomeada e sequiosa da mais pequena aurora de ventura? As carícias feitas a seu filho valiam-lhe mais que as próprias que recebesse; quem não sabe que o amor das mães se funde inteiro numa adoração, numa idolatria única?...
Depois Febo chegou a si Ana e com as lágrimas a tremerem-lhe nos olhos, disse-lhe:
-- Filha, padeceste muito, redimiste os teus pecados, se pecados tinhas; abraça-me. Pedia a Deus que te trouxesse, porque dos homens tinha perdido a esperança. Filha, minha querida filha, sinto que vou morrer, mas deixo-te em Maria a melhor das companheiras... Vê tu lá, minha louquinha -- continuou o velho dirigindo-se à filha mais nova -- , como podias agora ir para o convento.
-- Não, não meu pai, reconheci... separar-me era impossível... foi uma extravagância em mim pensá-lo -- acabou a menina corando.
-- Como te agradeço, minha querida irmã ! Separarmo-nos agora era-me impossível... só...
-- Só o quê, Ana? -- perguntou vivamente Maria.
-- Só se fôssemos ambas.
-- E teu filho? -- disseram a um tempo Febo e Maria. Ana correu ao pequenino e cobriu-o de beijos e de lágrimas; a infeliz senhora embora tornada ao seio da família sentia-se constrangida, envergonhada -- pobre dela! -- o carinho do pai e a candura da irmã, fazendo-lhe avultar ainda mais num a santidade, na outra a inocência, iam ao fundo da sua alma, acusando-a do estado a que descera, mostrar-lhe a distância enorme que entre si e eles via abrir-se; cada afago era um espinho, cada meiguice uma ferida, espinhos e feridas a que era obrigada a sorrir, que se via forçada a agradecer !
-- Minha querida irmã ! -- disse Maria abraçando fervorosamente Ana -- ; dê-nos a sua bênção, meu pai; de novo nos juntámos; tornámos a ser felizes!
-- Tornámos! -- murmuraram Febo e Ana, aquele sentindo no enfraquecimento sucessivo a aproximação da morte, esta reprimindo com os beiços um jacto de sangue que lhe subira à garganta!
Os governadores, sabendo da aclamação do Prior do Crato em Lisboa, tremeram; debelar a revolução era-lhes impossível, auxiliá-la também: viam-se a braços com a maior angústia, a do terror e da incerteza.
Juntavam então os seus brados e súplicas aos brados e súplicas dos embaixadores castelhanos, para que a ocupação do país prosseguisse rapidamente; mas, fugidos de Almeirim por estarem próximos de Santarém, a revolução foi colhê-los em Setúbal; o efeito da notícia, semelhante ao de uma descarga eléctrica, estimulara vivamente os primeiros personagens, e estremecera os comparsas e coristas, isto é, as massas, porque as massas são sempre -- diga-se a verdade -- coristas e comparsas.
Rebentou o tumulto e governadores e embaixadores fugiram, menos D. João Telo que era homem de bem, e o arcebispo de Lisboa que supunha a partida do Prior decidida por lhe ver algumas vazas ganhas.
Ao mesmo tempo que D. António ia receber a Setúbal as palmas do triunfo, os governadores refugiados em Castro Marim, sob a tutela e o pavilhão castelhanos, lavravam finalmente a sentença, pondo a coroa na fronte de Filipe.
A sentença, ainda atendendo a todas as circunstâncias em que era publicada, pesava desfavoravelmente para a causa nacional e vinha agravar mais as tristes condições do Prior.
Na verdade, o quadro era para desanimar; ao passo que a agitação das massas era violenta, que os seus brados atroavam os ares, como a língua da plebe é tantas vezes mais forte do que o braço, essa agitação valia pouco, porque faltavam todos os outros elementos duma revolução; faltava energia, faltava sensatez, faltava habilidade e dinheiro, e desta falta nascia a de exército, de munições, de armamento, faltava sobretudo dedicação verdadeira, abnegação nos chefes, faltava, digamo-lo por uma vez, a saúde social.
Enquanto o exército castelhano, descendo de Montemor, ocupava Setúbal, enquanto o duque de Alba, embarcando ali na esquadra, vinha desembarcar em Cascais, rendia S, Julião, enforcava Diogo de Meneses por ter cumprido os deveres de soldado, e acampava em Belém, Lisboa oferecia o aspecto medonho da anarquia; o Senado, exprimindo o pensamento egoísta da burguesia, reclamava a entrega da cidade, o Prior do Crato entabulava negociações com o generalíssimo castelhano, o bispo da Guarda e o conde de Vimioso, ambos crentes, ambos cheios de esperança e ardor, opunham-se às reclamações do Senado e às negociações com o duque de Alba, fortificava-se enfim a margem esquerda do Alcântara e aí se aguardava o último dado, a partida decisiva que havia de terminar a questão.
Sabia-o em demasia o castelhano, e por isso muniu-se de toda a sua prudência, de toda a sua prática e estudou o acampamento inimigo para formar o plano de batalha. Vejamos também o campo.
Imagine leitor úm T; prolongue a metade esquerda da linha horizontal, e terá o Tejo na direcção do nascente; tom.e o extremo da metade da direita da mesma linha e encontrará aí a foz do mesmo rio; ora, conhecido o Tejo, facilmente se conhece o Alcântara, pequena ribeira vadeável junto à própria confluência, olhando para a linha vertical da letra, que me serviu para a planta da situação relativa do rio e do ribeiro, que ambos banham Lisboa.
Suponha agora uma ponte de pedra atravessando o Alcântara na situação aproximada, da que hoje existe -- isto para quem conhecer Lisboa -- quer dizer coisa de quinhentos metros, se tanto for, acima da confluência, e a cavaleiro dessa ponte na margem esquerda uma casa; imagine a muralha duma represa cortando mais abaixo o rio, e, também na margem esquerda, uns moinhos de água ou azenhas, que a represa alimenta; lembre-se de que as margens, tanto esquerda como direita, se erguem num talude natural, nem muito escarpado, nem muito suave, que um olival veste aquela, enquanto esta se cobre de hortas viçosas; e terá o despretensioso quadro do campo, onde ia jogar-se a última partida da questão entre Portugal e Castela, ou não sei se melhor diria entre D. Filipe e D. António; por feliz me darei eu se estes traços puderem ser entendidos por aqueles que nunca viram tais sítios, quase encravados hoje no seio de um populoso bairro de Lisboa.
Cumpre dizer agora qual a disposição bélica do campo.
Na margem esquerda, a de leste e que confina com a capital, assentam os arraiais do Prior do Crato, na fronteira os do duque de Alba; e no Tejo, em frente da desembocadura do Alcântara, está fundeada a frota portuguesa.
O exército castelhano apenas se acoberta com as baterias de artilharia de campanha convenientemente dispostas nos pontos culminantes do seu campo; mas D. António, a quem cumpria defender a posição e não atacar o inimigo, fez colocar a artilharia dos navios sobre estrados nas toldas, para que pudesse jogar desassombradamente sobre a terra; além deste, que era um auxílio poderoso, o Prior fizera acertadamente fortificar a casa a cavaleiro da ponte, os moinhos que dominavam a muralha da represa, e erriçara de redutos e trincheiras artilhadas toda a encosta da margem onde assentara o seu exército.
Donde se vê que a posição do exército do Prior era magnífica, e, se a arte da guerra não estivesse sujeita a mil incidentes imprevistos, se a sorte de luna campanha não dependesse senão da qualidade das fortificações, podia dizer-se até invencível; mas, e neste mas se resume um desses incidentes que aos mais experimentados não perdoam, mas o Prior atendera principalmente à face fronteira ao inimigo, e, seguro pelo sul com a esquadra fundeada no Tejo, não o estava igualmente no flanco norte do seu acampamento, nem tão-pouco na retaguarda que dizia sobre Lisboa.
Por isto deu logo o duque de Alba, e, sorrindo da ingenuidade do seu adversário, estribou aí as esperanças da vitória.
As tropas portuguesas, na maior parte recrutadas violentamente, não eram mais do que uma aglomeração informe e indisciplinada de frades, escravos, gente da plebe e da mediania de Lisboa e algumas mas poucas bandeiras de soldados regulares, subindo no todo a sete ou oito mil homens; nem o Prior, nem o conde de Vimioso, nem o bispo da Guarda, os chefes do exército e do partido, eram generais experimentados, não obstante serem todos três valentíssimos guerreiros; -- do que tudo vemos que, com tal exército, era difícil senão de todo impossível a sustentação da mais bem fortificada posição.
Agora enquanto ao exército castelhano mudava a cena completamente de figura: tinha à sua frente o primeiro general da época, e se no meio dos pelotões se encontravam tropas bisonhas, não eram essas capazes de ceder o passo guiadas e impelidas pelos soldados velhos das guerras de Itália, para quem o cheiro da pólvora era um aroma usualmente sentido, o estridor dos canhões um murmúrio fagueiro, uma lançada, uma arranhadura, a morte o mais natural dos incidentes da vida; contudo o exército castelhano composto de gente dos diferentes países, onde a Espanha dominava e onde ia recrutar soldados, não oferecia aquela homogeneidade que se en- contraria, por exemplo, entre as tropas portuguesas na batalha de Aljubarrota, mas dominava-o uma disciplina de ferro, tinha o duque de Alba à frente, um despojo opulento a luzir-Ihe diante dos olhos, e contava cerca de doze mil homens.
Eram portanto muitas as circunstâncias desfavoráveis que a vantagem de situação do Prior tinha a debelar no exército inimigo.
Já viu, leitor, um tigre real nos palmares da Índia luzindo-lhe os olhos como- carvões acesos, estender a cabeça fora de alguma moita de verdura deitar avante a garra, ranger os dentes, lamber os beiços, e, numa eloquente inacção, demorar-se como petreficado a medir todas as probabilidades da luta, a calcular toda a certeza do salto, a indagar o sítio onde fincar a garra, a namorar a presa com receio e com amor? Pois, se já viu, parece-me que com ele achará semelhança num estratégico hábil e experimentado como era o duque de Alba; se não viu, imagine, como eu imaginei, e talvez como eu também ache parecença. O tigre, pois, ou o general na sua atitude expectante aproveitou-se do ardil; mandou rufar os tambores durante a noite precedente ao dia solene (25 de Agosto) e assim quando ao raiar da aurora abriu as fauces com um bocejo e soltou a vista, passaram-lhe diante dos olhos as míseras tropas do Prior do Crato, extenuadas por uma noite de vigília a postos. Lambeu então os beiços com regozijo, e cercado do seu estado-maior foi colocar-se no centro do exército, aí, sentando-se comodamente numa cadeira em sítio de onde facilmente dominava o campo de batalha, deu ordem para começar a função.
Destacaram então alguns pelotões da vanguarda e investiram a ponte: era uma coluna de soldados velhos tisnados pelo relâmpago dos tiros; tinham os longos bigodes encanecidos e a pele calosa e tostada; a lança, oai o pique, ou a alabarda eram nas suas mãos uma arma leve mas firme e terrível; protegia pela retaguarda os pelotões atacantes uma coluna de arcabuzeiros; a investida dos castelhanos foi terrível; as armas abriam o caminho aos soldados como a foice numa seara o abre aos segadores. O turbilhão, envolvido numa nuvem de poeira, foi rolando até ir esbarrar na extremidade da ponte com um obstáculo invencível. Suponde um cavalo correndo desenfreado e quebrando a testa nas lájeas de uma esquina, suponde um navio navegando a pano largo encalhando num banco de areia, um coche tirado por muitas parelhas desabando sobre ele a quebrada de uma montanha, e tereis a im.agem fiel da coluna castelhana estacando no limite da ponte; levantava-se ali a riba numa subida quase escabrosa, e 03 pelotões não achavam campo para desenvolver as manobras; eram atacados em frente por um corpo das melhores tropas portuguesas, eram dizimados pelos tiros da casa fortificada que vomitava fogo por todas as janelas transformadas em seteiras, eram varejados pela artilharia das eminências; e estavam conglobados, unidos, compactos, sem que um tiro poupasse algum, sem que as armas lhes prestassem; volveram, e a retirada foi fuga e carnificina: via-se a ponte alastrada de cadáveres, via-se o rio avermelhado de sangue e coalhado de mortos, de moribundos, e de fugitivos.
Do seu miradoiro seguia o duque de Alba as peripécias da luta com a firmeza impassível do homem acostumado a tais cenas e, ma's do que isso, do homem seguro de si e do seu plano; o acontecido era apenas um caso de nenhuma valia; os olhos do general até já se não prendiam sequer no destroço sofrido, mas seguiam atentamente, seguiam co-m avidez, uma coluna, que, vadeando o rio mais ao norte, ia subindo pela encosta e como serpe monstruosa abraçava o flanco e a retaguarda das fortificações portuguesas.
Foi este o pensamento estratégico do general, pensamento nascido do exame do campo: chamar a atenção ao lado mais difícil de atacar e cair então sobre a parte indefesa, espécie de calcanhar de Aquiles.
O rosto do duque de Alba era energicajnente expressivo: tinha uma testa alta, larga, e proeminente, tinha nos olhos, por serem vivos como chispas de fogo. o indício do talento, e, por serem encovados e vestidos de fartas pestanas, o indício da reflexão, tinha o nariz comprido e afilado, os sobrolhos espessos, um bigode regular que lhe encobria a boca, e uma pêra enorme que lhe vinha roçar a meia altura da couraça do peito. Somando tudo, o rosto era comprido e enrugado, os cabelos encanecidos; cãs e rugas que os anos, os trabalhos e sobretudo o exílio de mãos dadas haviam gerado; tinha uma expressão tenebrosa, astuta, e levemente irónica, que retratava a política do Escurial, terrível e cínica ao mesmo tempo, e denunciava patentemente o ardiloso invasor de Portugal e o algoz cruel de Diogo de Meneses aqui, dos condes de Egmont e de Hornes nos Países Baixos. Nas rugas profundas que lhe assombreavam passageiramente o rosto adivinhava-se o receio de que a coluna mandada a atacar o flanco retrocedesse ao presenciar o revez, mas quando viu que, em vez de retroceder, a coluna avançava sempre, o duque sorriu-se interiormente, e consigo disse: a batalha está ganha.
E estava.
Mandou então empenhar a luta em todos os pontos: viram-se mover os milhares de soldados; rufavam os tambores; estrondeava a artilharia; estalavam os mosquetes: nuvens de poeira e de fumo enegreciam o espaço; o rumor surdo, grandioso, aterrador, dos passos dos soldados e dos cavalos, dos gritos de guerra e dos gemidos de aflição, atroava os ares e reboando e repercutindo-se de montanha em montanha ia anunciar lá ao longe mais uma depois de muitas atrocidades cometidas sobre a face da terra.
A um tempo foi passada a muralha da represa, foi de novo forçada a ponte, tomados os moinhos fortificados e levada de assalto a casa baluarte; e a esse mesmo tempo, em que um turbilhão redemoinhava na margem, eram investidos o flanco e a retaguarda, eram tomados os primeiros redutos, neles se assentavam os canhões castelhanos e os seus projécteis va.rriam as segundas trincheiras.
Suponha-se uma manada de novilhos no curral atacada de numerosa alcateia de lobos; defendem-se os atacados com as armas e com os dentes, berram, pulam, escoceiam, e o cinto formidável dos animais carnívoros, com a goela aberta, uivando ameaçadores, vai derrubando as defensas, vai-se apertando, cada vez mais terrível; as nuvens no céu encobrem a lua e as estrelas, é frio o vento, traz nas asas o cheiro acre
da charneca dos contornos e leva pelos matos fora os muitos gritos, os urros terríveis, os uivos estridules, os gemidos lancinantes, dos que atacam e dos que se defendem; chega o momento, em que as trincheiras cedem, e então os lobos se precipitam no seio do rebanho e o dispersam, o aniquilam, o esmagam!
Foi assim na batalha de Alcântara. O Prior do Crato, o bispo da Guarda e o conde de Vimioso, qual deles mais valente, qual deles de menos prudência, opunham-se, combatendo como leões, às ondas de soldados que investiam como lava ardente pela encosta acima; como a ponta de um rochedo, onde chegavam, eles as suas guardas, ali as ondas se quebravam espumando raivosas e retrocedendo.
Reunia-se ao ardor dos chefes a firmeza e valentia dos soldados: estavam ali as últimas relíquias dos exércitos que haviam conquistado a África e a Ásia; tinham os chefes a loucura da mocidade e da ambição, os soldados a tenacidade e a firmeza legadas pela experiência e pela tradição. Eram porém uns e outros parcela ínfima no mar imenso do exército indisciplinado, descrente, corrupto, levantado à última hora das massas da capital.
D. António, esporeando o cavalo, ardente, vigoroso, terrível, fazia lembrar os heróis daquelas lutas sangrentas da Idade Média, em que a arte não substituíra ainda o esforço pessoal, em que uma batalha de muitos mil homens não era o choque de uma massa combinado, estudado, evitado, ou procurado contra outra massa, em que a artilharia vomitando a morte decide mais que o valor pessoal a sorte de uma batalha, mas sim, depois de um embate formidável, uma multiplicidade de combates, uma sucessão de batalhas braço contra braço, arma contra arma, corpo contra corpo! D. António não descarregava um golpe sem que um inimigo caísse dele, e bradando, exortando, intimando, vociferando e amaldiçoando, cego pelo fumo, embriagado pelo cheiro da pólvora, surdo pelo estrondear dos canhões e pelo estalar dos arcabuzes e mosquetes, via entre as nuvens de fumo e à luz do clarão terrível dos tiros a figura da vitória pousando-lhe a coroa sobre a fronte!
Mas era inútil; nunca a força é capaz de domar a ideia; os lobos tinham invadido o curral e devoravam os novilhos; soava um clamor pavoroso, um clamor de agonia e dor, e as muitas mil vozes que se uniam num grito uníssono atroando os ares diziam o flanco roto, a retaguarda forçada, o exército debandado, a batalha perdida!
D. António, já ferido na garganta, tremeu, e no rosto se lhe pintou o quadro da desilusão terrível e final; volveu a face, e viu as tropas fugindo numa carreira desordenada, atirando fora as armas para correrem mais leves, viu destroços, viu sangue, viu morte e ruínas em redor de si; deitou os olhos ao mar como última esperança, mas a esquadra rendera-se sem disparar um tiro e nos topes dos mastros flutuavam já os pavilhões castelhanos... Respeitemos agora o infeliz príncipe; respeitemo-lo porque meteu ombros a uma empresa superior às suas forças; respeitemo-lo porque era um bravo, porque bem e mal foi ele só quem se ergueu para lutar com o colosso de Castela; respeitemo-lo porque é desgraçado !
Nesta hora, em que a fronte pendida sobre o peito, o braço descaído sobre o arção da sela, contempla os destroços do edifício que tão insensatamente pensara levantar, conheceu por fim que sustentar uma sociedade agonizante pela decrepitude mórb.da não é para forças humanas; arrependeu-se da sua dobrez e dos seus muitos erros; e levantando a cabeça com um gesto de desalento e dor, abanou-a em sinal de desengano. Era impossível a menor resistência. Cravou as esporas no ventre do cavalo, e foi confundir-se entre a mó dos que fugiam desordenadamente acossados pela cavalaria castelhana.
A batalha, se batalha se pode chamar ao desastre de Alcântara, tinha acabado; depois dela começava o que sucede sempre em ocasiões análogas: a fuga e a perseguição; o terror de um lado, a crueldade do outro; uma espécie de caçada vertiginosa em que 03 cavaleiros correndo desordenados abatem, destroem, matam, não têm ouvidos, para escutarem as súplicas, os ais, os rogos, as exclamações dos vencidos, como homens transformados em feras; em que os fugitivos se humilham, se prostram, clamam piedade aos algozes, imploram clemência aos assassinos, largam as armas, abandonam o orgulho, despem-se da força, despem-se da dignidade, esquecem-se de que são homens, e, ante o espectro da morte que os persegue, fogem, correm, voam em busca da salvação!
Era assim que os portugueses fugiam na mais rota debandada; o terror dá asas e por isso os soldados de D. António corriam mais do que a cavalaria ligeira do duque de Alba.
Daquela pitoresca eminência de Alcântara, onde a vista começa a gozar o muito que a espera nas alturas de Belém, via-se correr para os lados da capital, primeiro a massa informe dos fugitivos, alastrando as campinas, esmagando as searas e as hortas viçosas, saltando os muros, coalhando as estradas, e mandando aos ares um clamor confuso de sons de aflição, depois os piquetes de cavalaria ligeira espalhados nesta e naquela direcção, correndo à rédea solta, envolvendo-se aqui no meio da turba fugitiva, alcançando-a na cauda apenas noutro lado, distantes dela ainda para outro, acossando, matando, aprisionando e despojando!
Na estrada da beira-mar, que levava de Alcântara à cidade, próximo a Santos-o-Velho, representava-se um dos muitos e repetidos episódios do dia, que, por ter ligação imediata com a história que neste livro se tem narrado, se descreve.
Um carro tombado obstruía o caminho; o tropel dos fugitivos esbarrou com ele; começaram uns a saltar os muros da estrada, outros a galgar o obstáculo; pareciam-se os muros e o carro com um pedaço de carne corrompida coalhada de vermes; os castelhanos vinham perto e alcançaram os fugitivos. Houve carnificina. Via-se o carro tinto em sangue, viam-se riscos vermelhos cortar a parda monotonia dos muros, caíam do alto deles os infelizes, como em caçada pássaros do ramo de alguma árvore. Um que levava o muro subido, no acto de galgar para o lado da salvação, alcançado por uma bala ficou atravessado, meio corpo sobre a estrada meio do lado oposto, e o jorro de sangue caindo da ferida como água da bica de um telhado fazia poça na estrada e salpicava espadanando em círculo. Por fim o carro com o peso dos que se lhe agarravam, e com os esforços dos que o impeliam, despedaçou-se esmagando bastantes dos que dele esperavam salvação: o turbilhão passou avante.
Ao último dos castelhanos tropeçou o cavalo, fracturou uma perna e caiu para se não levantar mais; o cavaleiro, ao erguer-se do tombo, sentiu-se agarrado, julgou morrer também, deu um estremeção, soltou-se, e num pulo se colocou em frente do que o agararra; quando ia descarregar um golpe de espada viu-o prostrado e reconheceu Fernão, como este havia já reconhecido D. Alonso.
O castelhano abaixou mansamente a espada e encarou, sorrindo, o infeliz; sausiava dó vê-lo: uma lasca de madeira tinha-lhe rasgado a face, os fatos estavam ensopados em sangue, dos olhos caíam-lhe lágrimas, da boca espuma, sangue e súplicas.
D. Alonso riu-se como talvez só o demónio saiba rir, desprendeu uma daquelas gargalhadas de ironia, como as de Metistófeles, ásperas, ferozes, que têm parte ao mesmo tempo do rugir do leão e do uivar do lobo; afastou-se lun passo e disse:
-- És tu ou não és?
-- Sou eu, D. Alonso -- retorquiu Fernão estendendo as mãos suplicantes.
-- Pois ressuscitaste?
-- Não, porque não morri.
-- É pena! Agradeço-mo então.
-- Oh ! Do coração te agradeço, meu bom amigo !
-- Amigo?!... e agora?
-- Tem dó de mim! Vê como estou! Salva-me!
-- Para quê ?
-- Servir-te-ei... em tudo, em tudo! Salva-me D. Alonso!
E assim, exclamando entre lágrimas, o pobre moço abraçava-se aos joelhos do castelhano.
-- Adeus, homem! -- tornou D. Alonso -- ; quando era tempo não quiseste... agora para nada me podes servir... Nós somos os senhores, vocês os escravos; entende bem!
Houve um momento de silêncio; Fernão arrancava às mãos cheias os cabelos, estorcia-se, soluçava; D. Alonso procurava desembaraçar-se; ia dizendo:
-- Foste asno... quem tem a culpa? Não te falei verdade? Olha os exércitos que vocês haviam de opor aos nossos! Não te dizia eu que tudo isto estava podre e moribundo, que tudo se comprava a dinheiro? Vai agora em busca do teu Prior do Crato! Procura agora o teu grandioso Febo! O diabo me leve se amanhã não beijam ambos os pés ao duque de Alba! Valente exército, denodada gente! O mesmo foi disparar um tiro, que sumir-se tudo no fumo da bombarda!...
-- Estás arrependido agora, não é assim? Meu amigo já não é tempo! Quem tem bons olhos vê as coisas de longe! És miope! Adeus, não me aborreças mais com lamentações e pedidos. Agradece-me não te matar já, pois podia e devia, porque és inimigo.
-- Inimigo eu?! -- exclamou Fernão, com a expressão do pecador contrito dizendo mea culpa! e batendo no peito aos pés do confessor.
-- E a batalha ? -- tornou D. Alonso no meio de nova gargalhada.
-- Não fales nisso. Agora vejo eu claramente...
-- Quão asno foste!
-- Ê isso mesmo, mas tem dó de mim ! Se me não acodes depressa não sei se morrerei primeiro.
-- Era melhor para ti.
-- Não digas tal, meu bom Alonso.
-- Onde foste desencantar doçura : é sangue ou é mel que te vejo nos beiços?
-- Por meu mal que é sangue!
-- Adeus amigo, adeus por uma vez : chega além um cavalo desmontado e o meu foi-se. Vamos enquanto é tempo visitar Lisboa! Que será feito de Ana? Deixá-la! Já me enjoavam tantas lágrimas! Olha lá! Talvez eu ainda te possa servir. Queres algum recado para a tua Maria? Conto dar-lho em mão própria, e como os cavaleiros... beijando a mão! Ficarei aí?... Oh! Oh! Oh! Um saque! Que belas raparigas!
-- Então assim me abandonas, D. Alonso? -- volveu Fernão soluçando e erguendo-se a custo -- ; tem dó de mim! Tem compaixão do teu amigo!
-- Adeus, adeus -- tornou D. Alonso, desembaraçando-se -- ; agradece-me não te deixar aqui estirado, mas não sou nem ingrato nem covarde!
E dizendo assim montava e enterrava com violência as esporas no ventre do cavalo; o animal estimulado despediu dois coices assentando em cheio as patas no ventre de Fernão.
D. Alonso sumiu-se correndo à desfilada e envolvido numa nuvem de poeira.
Fernão caiu vomitando sangue e minutos depois morreu.
Era este o mesmo rapaz que no duelo com o castelhano estivera a ponto de se regenerar estimulado pelos chascos grosseiros do adversário; era o mesmo que, depois de curada a ferida, soltara a voz às turbas e gloriosamente as dominara ; era esse mesmo; o filho de uma sociedade corrupta mas gloriosa pela tradição. Hoje imperava nele o eco do passado, envolvia-se na auréola rutilante dos navegadores e dos guerreiros das Índias e parecia grande ; amanhã visitava~o a realidade, apresentava-lhe a vida um destes problemas difíceis de resolver quando se vacila entre o bem e o mal, o egoísmo e a abnegação, e os esplendores desfaziam-se, esvaíam -se os fumos, e o homem aparecia como era: miserável.
Contudo Fernão estava longe de ser hipócrita : falava com arrebatamento de honra, de glória, de abnegação, palavras que soam agradavelmente ao ouvido e enchem a boca, como vulgarmente se diz, mas não lhes compreendia bem o sentido, nem era capaz de a pôr em acção quando as circunstâncias o exigissem; tinha metade de D. Quixote e metade de Sancho Pança.
Parecer-se-ia com D. António? Talvez.
D. Alonso perdeu um tempo precioso demorando-se com Fernão; o castelhano não era de si bom; uma ocasião de saque, como aquela que se deparava, toma os bons maus, os maus péssimos. O orgulho transforma-se em ferocidade, a espada partida no combate faz-se punhal na mão do perse- guidor; o sangue, o fumo, o cheiro da pólvora embriagam, o despojo incita, o sensualismo irrita-se: desenvoilvem-se no homem todas as parcelas brutais do instinto. É talvez este o pior mal da guerra, o embrutecimento de muitos milhares de homens.
D. Alonso não era bom, e se em tal hora os bons se fazem maus, os maus fazem-se péssimos, repito. Roubar, matar, prostituir, os três grandes atentados, a trindade horrível do crime, eis a sua ambição, o seu desejo naquele momento, a ambição, o desejo, do exército inteiro.
Mas o castelhano chegara tarde A política dos vencedores era astuta: conquistar um país, é, em certas ocasiões -- e a nossa, na época a que me refiro, era das tais -- fácil; mas a conqu'sta tem sempre uma parcela de roubo, e como bens roubados não aproveitam, não é propriedade segura. D. Filipe, a raposa do Escurial, não queria conquistar, queria entrar no gozo do que ele chamava seus direitos. Por isso dispensara a mãos largas o ouro e as mercês, por isso negociara, por isso ameaçara, por isso, quando viu a guerra inevitável, procurou quanto pôde dar-lhe um carácter de amizade, procurou vir a Portugal como vai o proprietário à fazenda, onde parte dos caseiros se desmandaram e insurgiram, assegurar a posse do que é seu, fortificar os que se lhe haviam conservado fiéis; por isso, enfim, a resistência, ainda que fraca, o irritou, e mesmo desembainhada a espada procurava quanto possível suster-lhe os golpes, porque uma guerra tenaz e sangrenta seria protesto violento.
Era mais difícil o seu plano, mas incontestavelmente mais seguro e hábil.
De onde se depreende porque o duque de Alba proibiu o saque. Grande mágoa para o exército e para D. Alonso. Tinha pena de morte aquele que infringisse a ordem.
O generalíssimo mandou seu filho, prior-mor de Castela, acompanhado de um corpo de cavalaria, receber as chaves da cidade, que os magistrados desde a manhã esperavam desejosos entregar, e guardar ao mesmo tempo a porta de Santa Catarina. Mandou o marquês de Cetona, Sancho de Ávila, Júlio Spínola, D. Fernando de Toledo, D. Garcia de Cardenas, Francisco Grimaldo e D. António Landríno para guardarem, cada um com as suas tropas, as portas da Mouraria, da Rua da Palma, de Santo Antão, da Ribeira, e do Corpo Santo, e os postigos de S. Roque, e da Trindade. Mandou o marquês de Santa Cruz oom D. João de Cardenas e D. Afonso de Leiva para com escaleres vigiarem e defenderem a praia.
A determinação do general, conforme com as ordens do rei, se não fosse mais uma expressão da política adoptada, seria um brasão de glória para o rei e para o general.
«Aos outros pôs-lhes estátua o Senado, a Catão o mundo.»
PADRE VIEIRA. Sermões.
Ao mesmo tempo que nas margens do Alcântara se decidia a sorte da contenda encetada mansamente logo à morte de D. Sebastião, se realizava enfim o plano formado pelos castelhanos muito antes dela; no coração da cidade, ao pé da catedral, representava a última cena do drama da existência o ex-presidente do braço popular nas Cortes de Almeirim.
Tudo era negro, tudo triste! O presente e o futuro: perdia o país a independência, a família o patriarca; rojava-se em terra, como o roble da floresta roído pela podridão, a árvore ramada e frondosíssima da sociedade forte de D. João I; exalava no leito da morte o último suspiro aquele que, no meio das agonias da sua terra, cercado pelos bandos, ou perversos, ou loucos, ou ambas as coisas juntas, que entre si jogavam a sorte de Portugal como os soldados da Judeia a túnica de Cristo, soubera conservar puro o seu nome, imaculada a sua honra cívica; aquele que ousara erguer a voz acusadora diante do rei-senhor, ungido de Deus, como o faziam noutro tempo os tribunos em frente do rei-chefe, irmão e mandatário representante do povo.
Era ele, Febo Moniz, o orador da abertura das Cortes.
À cabeceira do leito, sentado numa cadeira de espaldas, Manuel de Sousa Coutinho o acompanhada; dizia-lhe o moribundo:
-- No decurso desta breve tempestade em que a ura tempo me naufragaram todas as esperanças, é esta a primeira vez que nos encontramos a sós, Manuel. Será porque tu, o único talvez dos bons portugueses do passado, és a quem melhor compete o assistir aos últimos momentos do cidadão que morre quando morre a pátria?
E nestas falas a par da solenidade havia lágrimas. Soavam as palavras como parecendo já um eco, e no rosto do moribundo havia uma expressão de dor pacifica em que se transluzia uma consciência límpida.
Manuel de Sousa Coutinho, o homem que havia de protestar energicamente contra os governadores em nome de el-rei Filipe, como Febo protestara contra os sucessores do Cardeal, curvou a cabeça sobre o peito e murmurou umas palavras que eram ou uma súplica ou um voto. O orador das Cortes, morrendo, dava a última lição ao futuro herói que havia de receber com as labaredas do incêndio os traidores que lhe demandavam o palácio. Febo morria, Manuel de Sousa retemperava-se. O civismo do primeiro, quando lhe visse o corpo inanimado pela morte, havia de transmigrar para o último e incendiar-lhe o sangue ardente de patriota indignado.
Por isso à hora da morte havia um homem único para guardar a cabeceira do leito de Febo e esse homem era Manuel de Sousa Coutinho.
Mas o rosto de Febo, depois de breves momentos de silêncio, tomou uma feição dolorosa; era que o homem se sentia fraco, era que por um momento os instintos naturais tinham conseguido assoberbar um tanto o aço frio da rigidez cívica. Olhou para Manuel de Sousa e disse-lhe:
-- Manuel de Sousa, vai; chamam-te os deveres a outro lado; quero-me contigo, descansa, na hora última, mas ela não vem ainda... vai pois; aqui passaste esta noite e, com o tempo alvoroçado que está, é natural que tua mulher e tua filha estejam receando por ti...
-- Não irei, meu amigo -- tornou Manuel de Sousa -- ; já agora, ainda que espero em Deus que hás-de melhorar, e muito confio neste alívio que sentes desde a madrugada, já agora quero saber primeiro que sorte nos espera a todos...
-- Pois ainda esperas?
-- Espero, talvez... Quero saber primeiro notícias da batalha.
-- E fazes bem, e és por isso feliz. A esperança é dos moços. Nós em quem podemos esperar senão n'Aquele que está por cima das nuvens, na vida, para que se entra pela morte?
-- Oh, mas é triste morrer agora!
-- Santa palavra! Verdadeira palavra de um coração ge- neroso!... É triste é! É mais que triste porque é doloroso... que o diga eu! Morrer quando em torno de nós sorri a felicidade, se não é prazer, é pouco difícil; mas morrer agora... morrer agora, deixando a pátria e a família ao desamparo, como navio perdido sem leme, sem governo num mar revolto e tempestuoso... ai, meu Deus! É custoso, é cruel! Que será de meus irmãos, que será de minhas filhas, Senhor?
-- Sossega, Febo ; se Deus te chamar a si, livrar-te-á de assistires por mais tempo no meio desta sociedade infame que te não merece...
-- Oh, mas que importa a mim que ela mereça ou não? Quanto pior ela for, quanto maiores forças eu tiver, tanto mais me creio obrigado a dar-lhas todas, a votar-me de alma e coração ao seu serviço... por isso eu queria viver, Senhor! Por isso eu imploro a Tua misericórdia! Ergue-me deste catre, dá-me forças, dá-me voz, dá-me engenho; porque este povo esqueceu-se do que era, porque se deitou a adorar o bezerro de ouro, porque as suas chagas, os seus cancros, as suas feridas, lhe corroem e lhe putrificam o corpo inteiro!... Dá-me a vida! Antes ela com angústias sem fim, esbofeteado, escarnecido, como tu foste, oh Cristo! Antes a rua da amargura, antes o Calvário, a cruz, o martírio! Antes lutar tropeçando e chagando-me, do que morrer, como estou morrendo, da primeira queda, do primeiro golpe!...
-- É que o golpe foi profundo, meu amigo, e a queda violenta de mais para forças humanas,
-- Talvez... Que disso morro, bem o sinto.
-- E porque foram as desgraças da pátria que te cavaram a sepultura, Febo, morres mártir, e a palma florir-te-á no futuro.
-- Servir os homens e por eles morrer é obrigação; é fim e não meio, Manuel; por isso empenhei as minhas forças todas na luta em que fiquei vencido. Acredita-o, e estendendo-te esta mão leal to digo: nunca tive ambições, nunca abriguei na alma a mais pequena ideia de recompensa dos vivos ou dos vindouros.
-- Por que mo dizes ? -- tornou Manuel de Sousa beijando a mão que Febo Moniz lhe estendia. -- Sei-o em demasia, e sei-o porque te conheço. Já houve quem morresse soltando dos lábios essEis palavras divinas, que os anjos, volitando-lhes em redor da fronte inspirada, lhes segredavam: foram os mártires; esses homens, que eram lançados às feras, a quem decepavam as cabeças, que sofriam os suplícios ma:s cruéis, sem soltar um gemido, com o peito ardente de entusiasmo, com a cabeça abrasada em fé; pois entre ti e eles não vejo dissemelhança. Deus, que me ouve, me é testemunha, de que não sou adulador vil ou turibulário infame.
-- Não és, Manuel, nem tal eu te creio... e demais, se o foras, erravas o tiro disparado centra um homem com os pés na cova. O que tu és, Manuel, sei eu; és o descendente daquele antigo carácter português, forte, e justo, e verdadeiro que, ainda mal, vai perdido. Eu conheço-me em demasia; quanto pôde, fiz; pouco foi é verdade; querer elevar-me é favor. Cala-te, que to peço.
-- Não; dir-te-ei esta verdade que me inspira a tua fronte veneranda e pura; dir-te-ei, Febo; aos mártires coroou-os a igreja com a auréola de santos e deu-lhes as palmas virentes do martírio; e a sociedade venerou-os como homens crentes, firmemente crentes, que com o seu sangue selaram os alicerces do edifício da regeneração do género humano, imergido na sombra ascorosa da Roma do império. Eles eram a religião, tu o civismo. Resultado das diferenças dos tempos. Guiou porém a ambos, o princípio eterno da justiça, sol esplêndido em roda do qual giram como satélites a religião, a polí- tica, a ciência e a arte: a lei divina, e as instituições humanas. A eles deu-lhes a religião o diadema de santos, a ti dar-te-á a sociedade a coroa do justo.
-- Não dará, e não me aflijo por isso nem isso me importa sequer; os homens não podem ver as íntimas agonias, as dores excruciantes, que despedaçam e matam o mais vigoroso espírito. A igreja laureou os santos, a sociedade venera-os, mas são laureados e são venerados aqueles, a quem coube em sorte fazer público o seu martírio; quantos haverá escondidos, pequenos, desconhecidos, para quem a perseguição foi uma cadeia de cruelíssimos transes: quantas vezes tão mais custosos do que a própria morte! E que por fim numa cova ou num mísero albergue expiraram, sem terem quem lhes minorasse as penas, ou quem lhes cantasse o sofrimento? Ignoras acaso que a história conserva o nome dos guerreiros ilustres, dos reis poderosos, e desconhece os de tantos grandes homens obscuros? Que todas as bocas repetem o nome dos poetas que lhes impressionaram os sentidos, e nem sequer se lembram do nome dos sábios que lhes têm dado o pão do espírito e o pão do alimento? A justiça não mora na terra, ou, direi talvez melhor, não mora ainda.
Tudo quanto é exterior, tudo quanto deslumbra, tudo quanto domina, tudo quanto sensibiliza, tudo quanto paga, tem direito a inscrever o seu nome no grande livro da posteridade; Os obscuros morrem, como na lâmpada se extingue a chama, consumido o óleo sem ruído!
Febo Moniz cerrou os olhos, deixando cair os braços sobre as roupas do leito com uma expressão de desalento; Manuel de Sousa olhava extático para a veneranda cabeça do ancião onde os anéis de cabelos brancos tremiam coroando-o com uma coroa de alvura.
-- Mas não penses tu -- volveu como acordando e sorrindo Febo -- , mas não vás pensar que me aflijo por isso ; não, homem, lembra-te bem: morrendo, direi comigo: cumpri o meu dever! A minha dor -- continuou com uma voz áspera e vibrante -- , a minha pena, o que me rala as entranhas, e conheço que me despedaça e me atrofia, não é o despeito... é o ver a sociedade envenenada, esta nossa terra perdida, aviltada, vendida! Oh Manuel passam-me diante dos olhos visões tremen- das, visões majestosas, terríveis, imponentes; vejo um congresso de muitos homens, vejo vilas, vejo cidades, laboriosas, ricas, felizes, fortes, unidas todas como os fuzis duma cadeia, e sobre elas um vulto augusto, chefe e irmão; vejo nele a personificação da autoridade, como nos municípios a manifestação da liberdade. Vejo depois, ao passo que a sociedade forte estende os braços da ciência e da riqueza e com eles cava os mares e desentranha mundos novos, tremerem as pernas do colosso, como envenenado. Vejo a figura soberana e augusta tomar uma feição terrível, debruçar-se sobre o povo, como um lobo sobre um rebanho de ovelhas, e, tomando proporções medonhas, agitando os braços e as pernas, como o homem possuído pelo demónio, destruir tudo, absorver tudo. Vejo fogueiras, vejo incêndios, vejo forcas. O Evangelho poluído e as suas páginas benditas manchadas de sangue, como o corpo de Abel pelos golpes de Caim. A liberdade de luto, a consciência escravizada, o ceptro transformado em açoite, a espada em punhal, o governo em ladrão. Vejo enfim um trono imenso, cujo estrado abrange e oprime toda a área do país, sobre ele duas figuras horrendas, o rei-déspota e o inquisidor-mor, e sob ele ruínas e cinza e fumo e sangue!... Depois estremece o trono a um sopro de vento, desconjunta-se em pedaços e cai por terra desfeito!... Oh meu Deus, meu Deus! Aqui tombo eu também ! Caio contigo sociedade forte do Mestre de Avis, morro contigo velha liberdade portuguesa!...
Passam nuvens, sobre nuvens, os homens andam cegos e loucos e a cegueira e a loucura fá-los fracos, e de fracos se tornam servis e indignos; as sociedades revolvem-se, como os elementos no caos; por cima delas vai pairando uma nuvem transparente, formosa e terrível... Quando ela baixar, e do seu atrito pelas camadas inferiores soar o trovão, o som há-de abalar o mundo, e o relâmpago fazer surgir o dia!... Adivinho-o, pressinto-o, vejo-o: rasga-se como uma aurora esplêndida; as nuvens formam um trono diáfano e alvíssimo, e no espaço levemente tinto de azul, de cor-de-rosa, e de oiro, as cores do arco-íris, fulge a imagem ideal do futuro. Ê uma donzela formosa, cujas tranças louras lhe caem sobre os ombros, tem a fronte elevada e augusta, mas cândida, modesta e serena, tem a pele macia e branca como o lírio, os olhos vivazes e negros, os beiços e as faces rosados; envolve-a um manto branco semeado de estrelas ; tem os pés nus, das mãos abertas chovem feixes de raios luminosos... Ei-lo! É a figura da verdade ! Quando ela descer sobre a terra os homens amar-se-ão como irmãos; as sociedades serão governadas pela justiça; a autoridade não esmagará a liberdade, nem esta aniqui- lará aquela; a ciência guiará as acções dos homens, como a consciência os seus pensamentos; serão então, oh Cristo! Seguidas as tuas palavras; verás sobre a terra os homens que sonhaste, a tua crença tantas vezes sublime dominará, não nas palavras, mas nas obras, não no exterior, mas no interior, porque a tua lei é para o homem a expressão da moral e para a sociedade a expressão da justiça!...
Aqui o velho apertou entre as mãos e beijou um crucifixo de ébano e marfim...
Um rumor surdo, gritos, ais, lamentos e choros, que soavam nas ruas e vinham ecoar na câmera do moribundo como os rugidos de uma catarata interceptados pelas montanhas, interrompeu as palavras majestosas, com que Febo Moniz pintava as suas impressões de à beira do túmulo; de súbito o rubor que lhe subira aos lábios e às faces fugiu, e uma palidez cadavérica se lhe desdobrou como uma mortalha sobre o rosto; Manuel de Sousa não ousava quebrar o silêncio que traduzia uma agonia tão profunda. Via-se a espaços tremerem os lábios do moribundo, como beijados por uma viração, e passar-lhe pelas feições uma expressão de gozo e bem-estar indifiníveis. Era a bonança na consciência.
Minutos estiveram assim, quando o reposteiro tremeu vivamente agitado, e apareceram de trás dele Ana e Maria.
Vinha esta correndo com os olhos inchados de lágrimas, para o leito do pai, e, deitando-se-lhe sobre o peito, exclamou:
-- Meu pai, meu querido pai! Tudo se perdeu!
Ao mesmo tempo Ana, chegando-se como assustada a Manuel de Sousa, disse-lhe baixinho:
-- Perdeu-se a batalha, Sr. Manuel de Sousa; vêm em debandada os restos do exército.
-- Estava-o adivinhando; -- retorquiu melancolicamente o marido de Madalena de Vilhena.
E deitando os olhos ao rio, ele e Ana viram as naus portuguesas subir majestosamente pelo Tejo acima, com as velas inchadas de vento, embandeiradas nos topes dos mastros com flâmulas e galhardetes, e à popa com pavilhões castelhanos. Ia o céu azul puríssimo e as águas do rio espelhavam o anil do firmamento; brincavam no horizonte uns flocos de nuvens transparentes e alvíssimas, e as naus que subiam o rio atroavam o ar com salvas, envolvendo-se todas na imponente fumarada dos tiros.
Febo Moniz caíra na última prostração; tinha os olhos envidraçados, as mãos frias, os lábios brancos; quase lhe fugira a voz, e a custo, erguendo a dextra e abrangendo com o gesto a pequena câmera, pôde dizer com a solenidade dos últimos momentos:
-- Eis o que resta de Portugal !
Depois chamou todos com o olhar para a roda do leito, e, tomando o filho de Ana nos braços, chegou-lhe os lábios aos lábios e disse pausada e entrecortadamente :
-- Tu não sabes o que isto é... a morte... a morte de um país e a morte de um homem... Cedo o saberás... Praza a Deus que tu, a geração nascida escrava, quebre um dia os grilhões... e dê vida à sombra do velho Portugal... Sucederá assim?... Permita-o Deus!
Febo Moniz cerrou então os olhos e o pequenino encostou a cabeça sobre o ombro do avô.
Momentos depois, quando o estrépito de uma nova salva vinha quebrar a quietude majestosa desta cena, o moribundo continuou com uma voz tenuíssima:
-- Adeus, meu filhos... abençoem-me e perdoem-me, porque morro.
E nisto, fechando placidamente os olhos, e com o sorriso a brincar-lhe nos lábios, expirou.
-- Resta saber agora, perguntará o leitor, se o infame D. Alonso, o causador de tamanhas desgraças, ficou impune.
-- Ficou -- lhe responde a crónica.
E lembre-se, amigo leitor, que pacientemente quis percorrer até a última as páginas deste livro, que o ficar o castelhano impune é bem natural, porque também a Espanha, que talvez para connosco representasse o papel do triste personagem deste livro, ficou impune por largos anos; ficou impune até que nós, fortificados pela servidão e pela miséria, e sobretudo irritados por ambas, quebrámos os ferros.
E verdade que não tornámos a ser o que tínhamos sido, o povo independente, virtuoso, trabalhador e forte, porque as sociedades estão sujeitas a um movimento geral progressivo ou reaccionário, e, no meio desse movimento, os acidentes particulares dum país podem coadjuvá-lo ou embaraçá-lo, mas não impedi-lo ; e como não tinha ainda soado a hora da ruína para a obra de Leão X, a regeneração política de Portugal não veio a ser regeneração social.
Mas, tornando ao castelhano, devo dizer-lhe que, assim como 1640 vingou 1580, assim como Montes Claros vingou Alcântara, talvez os filhos do sedutor de Ana, se é que os teve, o que presumo, além do neto de Febo Moniz, pagassem as faltas do pai; mas o que posso assegurar é que ele, como quase todos os algozes de Portugal, morreu satisfeito e impune.
O Prior do Crato, ainda depois da cruel desilusão recebida às portas da capital, não abandonou a luta, impossível de ganhar desde o começo, varridamente louca depois do estabelecimento completo do domínio estrangeiro. Mas há loucuras veneráveis, e a dele é uma dessas. Ê depois que o véu negro do infortúnio o envolve, que o Prior do Crato representa para nós um vulto respeitável, porque é o protesto de um povo que se deixou morrer. A sucessão da aventurosa cadeia de peripécias, em que o arrebatado príncipe se empenhou, e que lhe traziam umas vezes arriscados lances, outras alvoradas de esperança, as mais delas pungentes provas, desenga- nos cada vez mais cruéis, amargas lições dos homens e das coisas, veio a acabar na expatriação. D. Filipe, receando-o sempre, quebrara com ele o sistema de blandícias e doçuras com que nos pretendia doirar a pílula -- permita-se-nos a expressão -- pondo a preço a sua cabeça.
Das duas filhas de Febo Moniz, Ana sucumbiu uns seis meses depois da morte do pai, vítima da implacável tísica; Maria, vindo a saber da morte de Fernão, saiu de Lisboa, depois de finada a irmã, porque as recordações lhe eram pesado fardo e a permanência no próprio lugar o sobrecarregava cada dia mais; e tendo por infelicidade terminado o encargo de companheira, por não dizer enfermeira, da irmã, cargo que o pai lhe impusera e ela gostosamente tinha aceite, dedicou a sua vida ao ensino e cuidado do sobrinho que, com o tempo, veio a ser perfeito moço de corpo e de carácter, chegando ainda nos últimos anos de vida a assistir e coadjuvar a revolução libertadora.
Assim acaba esta história.
«D. Alonso era um Cristóvão de Moura em ponto pequeno.»
Cristóvão de Moura era português pelo berço, mas castelhano pela política.
B
«Febo... começava dizendo»:
O discurso de Febo Moniz, transcrito neste capítulo, encontrou-o o autor num manuscrito da biblioteca da Academia Real das Ciências, manuscritos que tem por título: Memórias históricas pertencentes ao Cardeal-Rei; e que vem frequentemente citaido pelo Sr. Rebelo da Silva na sua História de Portugal, onde se transcrevem alguns períodos do célebre discurso do procurador por Lisboa.
Não é facto averiguado o ter Febo Moniz proferido tal discurso na presença do rei, mas, se o não proferiu, as cenas posteriores, em que se empenhou com o soberano, provam assaz não lhe carecer para isso ânimo
C
«E o duque de Bragança?»
Escusado é dizer que os direitos à coroa eram da duquesa de Bragança, D. Catarina, e não de seu marido.
D
«...gente, que se não pejava de se dizer descendente dos bárbaros, quando a nossa verdadeira origem vem do grande império romano, homem!»
Fr. Marcos fala assim, porque assim se pensava antes e depois da Renascença; e para o provar aduzo aqui um trecho da crónica de D. Afonso Henriques reformada por Duarte Nunes de Leão, escritor do tempo de Filipe I, em que, acerca da tomada de Beja, se diz o seguinte: «Mas o modo, porque se tomou, não ficou em lembrança, para se poder escrever, como se deixaram muitas coisas notáveis, que aconteceram naqueles rudes tempos de homens bárbaros, de que os melhores se prezavam serem descendentes dos godos, gente inimiga de todas as boas artes e disciplinas, e arruinadora das letras e politica que em Espanha tinham plantado os romanos.»
A verdade, acerca da origem da família ibérica, é que da conquista dos povos do norte e da partilha da propriedade entre os vencedores resultou predominar o elemento germânico na aristocracia então essencialmente militar, e o elemento hispano-romano nas classes desfavorecidas da fortuna, na população subjugada. E esta separação profunda sustenta-se por dois séculos ainda depois da conquista, porque a lei dividindo a sociedade em dois grupos, proibia a comunicação entre eles. Isto durou até que a influência do catolicismo, religião até certa época somente seguida pela população hispano-romana, adoptado pelo rei e pela aristocracia, elevando o clero à altura da nobreza, combinada com outras causas sociais e políticas, e entre elas a maior perfeição das instituições administrativas que dos romanos a Ibéria recebera, o desenvolvimento incontestavelmente muitíssimo superior das suas artes e indústrias, e até em certos pontos as melhores condições dos seus regulamentos sociais -- determinaram a fusão das suas nacionalidades.
A invasão sarracena, que veio depois, tem em geral completa dissemelhança da precedente conquista dos godos.
A oposição de crenças religiosas, a emulação do domínio, a reacção dos povos subjugados, que imediatamente se seguiu à conquista, a diferença absoluta de idioma foram, entre outros, obstáculos que impediram a fusão dos povos hispano-godos com os sarracenos.
Não obstante, se pelo necessário trato de muitos séculos e pelas recíprocas vantagens que as duas raças encontravam nele -- porque, se os sarracenos primavam pela indústria, pelo luxo, pela cultura das letras e ainda pela organização administrativa, os iberos os excediam na moral, filha duma religião mais perfeita, e nas ideias de pondonor cavaleiroso, recebida dos germanos -- as duas raças se não fundiram numa, como sucedera da invasão dos godos, ambas experimentaram influência e modificação recíproca.
Sobre isto deve ler-se o livro VII, parte I e II, da História de Portugal do Sr. A. Herculano.
Do exposto se compreenderá bem como na Idade Média os portugueses se chamavam a si próprios descendentes dos godos, como na Renascença enjeitavam a ascendência e pretendiam filiar-se na origem romana.
Na Idade Média, sendo o elemento predominante na sociedade a aristocracia militar, descendendo ela em linha recta dos conquistadores do norte, e sendo as instituições sociais e políticas do nosso país, aquelas que os mesmos conquistadores nele, como em toda a Espanha, haviam plantado, é claro que os portugueses não podiam ir a outra fonte beber origem ou tradições.
Ao contrário na Renascença, predominando o clero católico, que como vimos fizera parte da população hisipano-romana, que entre a soldadesca selvagem dos invasores conservara as tradições, a imagem da Roma cristã, e sendo, além disto, a Renascença o derrubamento das instituições góticas, a regeneração do clássico na religião, na arte e na política, claro é também como os portugueses do século XVI haviam de pretender encobrir a origem germânica, dizendo-se descendentes do império dos Césares.
E
«...os tais versos do Sá de Miranda e do Ferreira...»
Os dois fundadores da escola clássica na literatura, os dois primeiros poetas da Renascença, Ferreira e Sá de Miranda eram mortos já a esse tempo; falecera o primeiro em 1569, o segundo em 1558, ambos no reinado de D. Sebastião.
«Vou pelo alguidarinho...»
Estas palavras da feiticeira, como as outras do mesmo género que neste capítulo se encontram, como finalmente o nome de Genebra Pereira, tudo extraí do Auto das Fadas de Gil Vicente. Pareceu-me que, não podendo eu de modo algum pintar, nem de longe, com a proficiência do Aristófanes português, o curioso quadro das crendices vulgares, tão bem traçado nos versos do poeta dramático, melhor faria (transcrevendo para aqui as próprias palavras dele.
«...a superfície da terra inculta».
Causa dó, profunda lástima, a quem nestas coisas pensa (e quem não pensa nelas?) atravessar as léguas e léguas de terrenos sáfaros e incultos que se encontram em todo o Alentejo. No tempo que já lá vai o chão onde iraia semente não dava uma farta espiga era abandonado; hoje a civilização tem sabido fazer de rochas vergéis, de desertos povoados. Onde moravam a solidão e o abandono, vêem-se agora ou rebabanhos pastando sobre prados que a ane inventou, ou a terra perfurada, a indústria escavando, desenterrando ouro. Eis aí, quanto a muitos, as duas possíveis transformações dos terrenos incultos, das riquezas abandonadas do Alentejo: a cultivação de prados artificiais para o desenvol- vimento da proficuíssima criação do gado lanígero, e a indústria mineira. O que falta para a transformação? Capitais, inteligência e actividade. -- A esta supre se com a descentralização, com a não intervenção do Governo nos negócios de interesse privado, com o abandono deles à indústria particular, com certa crueza mesmo, se o nome se pode aplicar, porque é sina inveterada e nascida do hábito, a de entregar tudo aos governos. Se uma província quer estradas ou caminhos de ferro, pontes, ou canais, porque se não coligam as câmaras municipais interessadas e não os contratam à sua custa? Hão-de pagá-los as outras províncias? -- O remédio para a falta de inteligência é simples: derramar a instrução. Eis um bom serviço, em que o Governo se poderia utilmente empenhar. -- Faltam capitais? Convidem-se os que lá fora abundam, dêem-se-lhe garantias, não se faça, como se tem feito, favorecer a trapaça em prejuízo do comércio franco.
São verdades estas que andam na atmosfera, que todos respiram, que, por isso, não são novas, mas que não é talvez de todo inútil fixá-las no papel, quando a ocasião se oferece.
H
«...O convento, que segue num quadrilongo, cujas faces mais extensas têm a direcção leste-oeste; olhando uma fieira de janelas entremeadas de botaréus sobre o rio».
Esta face do majestoso e encantador -- ouso chamar-lhe assim -- monumento de Belém, torpemente mutilada, é a que hoje vemos com alegria ir-se levantando tão bela, tão perfeita, tão imaginosa, e tão irmã da antiga arquitectura portuguesa, como se os artifices do século XV houvessem ressuscitado e, tornando a pegar no escopro, na trolha e no cinzel, metessem ombros ao acabamento daquele gentil poema.
I
«...à pequena povoação de Arcolena».
A denominação deste lugar contaram-ma; e eu, como ignorantíssimo que sou nestas questões de curiosidades históricas, sem a negar, nem tão-pouco asseverar, o direi o que ouvi. Provém ela, me disseram, de que, tendo os operários do Convento de Belém pedido a el-rei D. João III as madeiras que tinham servido para os simples das abóbadas, o rei lhas concedera, e assim eles formaram um pequeno lugar na situação actual de Arcolena, usando tais madeiras na construção das casas; foi murada a povoação, dando-lhe entrada por um arco que, como os muros, era de pau. Daí se chamou «Arco da Lenha» e desse nome, com a corrupção do tempo, provém o actual de Arcolena. Também me disseram, afirmando da veracidade da história, talvez para muiitos velha e sabida, que há alguns anos se podiam ver ainda restos da aldeia e suas primitivas construções.
A verdade é que Arcolena é dos mais pitorescos e saudáveis sítios das imediações da capital. Um esplêndido panorama, campinas floridas em Abril, louros trigos em Agosto, eiras em Setembro, a vastidão do mar, as terras da outra banda, e nos horizontes a Arrábida e as planícies do Ribatejo! E com isto uma viração fresca, deslumbrantes efeitos de pôr do Sol, deliciosas manhãs! teatro magnífico que tem o céu por bambolinas, por palco o campo, por bastidores o mar e as serras, por cenógrafo, a natureza!
«...chegou a notícia de ter falhado o golpe, com que o Prior quisera apoderar-se da capital...»
Alude Tomé a um passo atrevido do Prior, passo que, se não fora a fragilidade dos esteios em que ele firmara a sua elevação, lhe teria desde logo, talvez, dado a imerecida coroa. D. António, vendo a capital abandonada por causa da peste, o centro da agitação política do país ser Almeirim, onde pousavam os governadores, e do outro lado do Tejo Sian tarem, lugar das sessões da assembleia do povo, dirigiu-se a Lisboa, pretendeu ocupar os paços reais abandonados, e fazer-se aclamar rei; as autoridades porém, em geral mais afectas aos castelhanos, usando da força militar, de que dispunham, dispersaram os magotes de povo e fizeram abortar o plano.
E pluribus unum.
As linhas que se seguem são a explicação e o complemento deste livro.
Pretendeu o autor mostrar nele a agonia e a morte da autonomia portuguesa, patentear à veneração geral o homem eminentemente cívico, o último dos romanas, Febo Moniz. É pois o livro um protesto contra a absorção de um país por outro, contra o aniquilamento do fraco pelo forte, é sobretudo uma lição e um conselho, porque a corrupção social é um vírus terrível que quando se inocula no sangue de um povo indica uma morte infalível.
A conquista, senão a compra de Portugal, levou-se então a cabo. Depois, como o autor disse, Montes Claros vingou Alcântara, e vitorioso e auxiliado o nosso país reouve a independência perdida.
O caminhar progressivo dum ciclo que se dissolvia trouxe a Europa à posição anómala, falsa, vacilante e imoral dos nossos dias. São elementos dispersos, soltos, a revolverem-se no caos. São as tradições góticas a chocarem-se com as ideias positivas e humanas da reacção efectuada pela Renascença. De um lado a ideia cristã, transformação do monoteísmo judaico, do outro o vago dum panteísmo mais ou menos covarde, e em frente de ambos a impassibilidade das severas leis da matéria, mas em todos a espiração para o justo, para o bom e em todos a aspiração para o justo, para o bom e para o belo, porque este é o ideal paradisíaco do sentimento egoísta do homem. Uma sombra envolve porém este génesis dum novo período, duma transformação nova desta nossa civilização, filha do conúbio da ideia grandiosa helénica com o sentimentalismo generoso do norte, do qual se havia de gerar, exageramdo-o, e apoiado ao misticismo, a cavalaria da meia-idade; -- uma sombra o envolve, dizíamos, a do eclectismo e da hipocrisia. Mas sob ela existe latente a luz fulgurante da democracia como crença, da federação como braço.
A França geme sob a mais pungente e a mais irónica das tiranias; a Itália, lançada pelos interesses napoleónicos no vórtice duma centralização estulta, embriaga-se com a realização do sonho dourado de Maquiavel, e, enquanto os seus cidadãos prestantes crêem que uma predestinação política e democrática está reservada à nação de Rafael, enquanto os obreiros da novíssima união seguem o caminho da política interesseira e terra-a-terra, a Europa vê a Itália ir-se afundando no mar revolto dos embaraços económicos; na Alemanha opera-se uma transformação donde há-de porventura surgir o inicio duma era nova, passa o foco, em roda do qual giram todas as forças da confederação, de Viena ortodoxa para Berlim filósofa; a Inglaterra a custo encobre sob os esplendores um tanto inconsistentes da indústria, todos os sintomas duma revolução terrível que se lhe gera no seio, tenaz como o carácter dos seus filhos: a revolução dos proletários; a Polónia, a Irlanda, a Hungria e Creta, mais ou menos agrilhoadas, são problemas difíceis, mas emancipações que a civilização tem de efectuar; a Austria e a Turquia tendem a desaparecer da lista das nações europeias; o Papado existe ainda su-tentado pela política egoísta do imperador dos franceses e pela complacência criminosa da italiana; -- e como consequência necessária, infalível duma ordem de coisas a que não presidem princípios, mas interesses dissemelhantes e encontrados, a Europa apresenta essa feição sobriamente feia que se chama corrupção e paz armada. Cinco milhões de braços perdidos, o eclectismo nas consciências e, por tudo isso, o poder na mão do arbítrio.
Mas esta feição assustadora é o próprio carácter das transições. Não existem segurança, fraternidade, e portanto virtude, sem que haja unidade na crença, no fim. E o dia de hoje é o do combate lento, mas tenaz, que sucedeu às primeiras erupções do vulcão, o da luta empenhada entre o mundo de ontem e o de amanhã, entre as tradições da cavalaria e do misticismo da Idade Média e a reacção natural e utilitária.
No meio deste combate de elementos é a Espanha o país que mais pronunciadamente significa o passado. Desde que ali se consolidou o absolutismo e dominou a intolerância religiosa, desapareceram, como entre nós, as velhas tradições municipais e com elas morreu o espírito de liberdade que havia tornado os iberos irnia das raças mais vigorosas da Europa. Embora nos últimos tempos o sangue alagasse a Espanha em nome da liberdade, ela não podia existir ah porque não havia povo: eram súbditos, não cidadãos. Permaneceu fanática e cavalheiresca embora do seu seio partisse essa gargalhada sublime que simboliza a transformação de uma era da existência da humanidade. D Quixote, a cavalaria aspirante, Sancho, a burguesia elevada, ninguém os compreedeu pior. A influência fatal do caminhar dos tempos, se não operou sobre o fanatismo, porque ele é de sua essência imutável e estacionário, fez uma transformação na ideia cavalheiresca, criou dela o militarismo. É o exército a instituição fundamental da política espanhola. Aos elementos dissolventes que a Espanha tinha já em si, veio ainda acelerar-lhe os passos, no caminho das trevas densas em que se revolve hoje alagada em sangue, o casamento de Isabel II apresentando à rainha o dilema difícil de, ou entregar-se a uma vida licenciosa, ou recolher-se a uma isolação ascética. Os escândalos da corte de Madrid, roubando ao rei de França a esperança de ver suceder a Isabel um príncipe da casa de Orleans, roubaram ao mesmo tempo à jovem soberana as simpatias de fora e o respeito do país.
Entre os procônsules militares que no presente reinado têm regido a Espanha, e deles talvez é O'Donnell o mais hábil, Espartero o menos desonesto, não existe porém dis semelhança. A ambição pessoal, colorida por uma certa máscara de patriotismo, incita-os; a insiurreição militar é-lhes o meio; a conivência com a imoralidade e o fanatismo da corte o sustentáculo no poder; a reacção sanguinária o modo de aniquilarem o adversário vencido. Nestas fases invariáveis se resume toda a história das últimas comoções desse país que uma sombra envolve, e que se chama Espanha.
Enquanto a corte assiste quase sempre alheia às vitórias e às derrotas dos generais que entre si disputam a taça dourada do poder, o povo olha com indiferença sucederem-se O'Donnell a Narvaez, ou Prim a Espartero, e o exército, como sempre, partidário do que lhe paga e o promove, depõe hoje o que elevara ontem. Assim da mesma forma que num país parlamentar o governo reside sempre nas mãos do estadista porque a força está nos corpos legislativos, num país militar, como a Espanha, o governo reside sempre nas mãos dum general, porque a força única está no exército.
Um povo ignorante e fanático; uma corte licenciosa e beata; uma política de arbítrio e sangue; a intolerância na religião; e, como consequência de tudo, um vórtice medonho nas finanças, eis as feições predominantes do país vizinho.
A Espanha é um crepúsculo, onde apenas reluzem como uns longínquos alvores de madrugada alguns homens privilegiados de que o talento e o carácter fazem democratas e honestos.
À testa dos diferentes remédios, propostos pelo general que ultimamente se arvorara em regenerador da sua infeliz pátria, parece que estavam a deposição da dinastia e não sei se a união ibérica. A primeira das medidas, se como vingança era justa -- se é que a vingança é alguma vez justa -- como estratagema político era lícito duvidar da sua utilidade para o bem-estar da Espanha. A nação vizinha é hoje uma monarquia militar. Amanhã, deposta a rainha, o que seria?
Fosse nominalmente tudo quanto possível; a verdade porém é que, como o povo é ignorante e por isso fraco, como a revolta vitoriosa teria sido uma revolta militar, o general feliz governaria sobre a Espanha da mesma forma ou mais livremente ainda do que hoje; que em vez de ministro poderia talvez chamar-se Protector, Cônsul, ou Presidente; que nenhum parlamento, na ausência dum povo enérgico e ilustrado, tem força para se medir com um exército vitorioso capitaneado por um aventureiro feliz; -- a verdade é que a Espanha não pode ser livre, enquanto a ilustração não tiver ensinado os espanhóis a ser cidadãos.
A união ibérica que aos ouvidos de muitos dos nossos vizinhos soa como uma palavra que em si resume para eles a libertação e a fortuna, e a nós como uma palavra que resume a ideia da pior das desgraças seria, hoje, para a Espanha um erro; para nós, com efeito, o pior dos infortúnios; para os que se embarcassem nela uma perigosa aventura.
A fusão da nacionalidade portuguesa com o cadáver da monarquia de Carlos V ser-nos-ia no século XIX incomparavelmente mais funesta do que o foi no século XVI. Então, como agora, a Espanha era o mesmo país fanático e despótico; mas então éramos nós os fracos, ela a grande; hoje -- ouso dizê-lo -- os fortes somos nós, porque somos livres e incomparavelmente menos ignorantes.
No estado actual da Espanha, e sob o influxo dominante ainda no ocidente da actual política francesa, uma união seria uma absorção.
Lisonjeie ou não os planos do segundo imperador dos franceses uma união dos povos da Península Ibérica; -- e sobre isto é difícil opinar porque a política napoleónica não conhece outro móbil que não seja a própria conservação; nutra ou não a ideia de ver desaparecer de Espanha o último ramo da velha dinastia dos Bourbons, ou da moderna dos Orleans; pense ou não em roubar à influência inglesa este canto da península, em que ela passou já ao estado de tradição; -- a verdade é que, enquanto ele ou o princípio -- isto é a ausência de princípio -- que o dirige, se sentar no trono de França, uma união francamente democrática é impossível na Ibéria, do mesmo modo que o foi na Itála, embora tivesse a última a espada de Garibaldi, a pena de Mazzini, e o cérebro de Cavour.
Mas o segundo império francês é simplesmente uma nuvem cerrada que despontou no torvo horizonte da revolução socialista, cresceu, pascendc-se como os abutres na camagem, e vai morrendo a morte dos seres funestos amaldiçoado no México, escarnecido em Berlim. O segundo império pode, quando muito, ter sido a expressão de uma necessidade política, como o foi o primeiro, transitória, passageira; mas é de facto o mais funesto inimigo que nos dias de hoje se tem oposto de frente à marcha progressiva do direito, da justiça e da moralidade.
É contra o perigo, direi talvez iminente, da absorção do nosso país peias fauces de uma nação de trevas, que o Febo Moniz intenta ser um preservativo.
Fortificar-nos pela moralidade e pelo civismo, engrandecer-nos pela ilustração e pela riqueza, apresentar-nos à Europa como um povo digno de nós e dela, eis a grande obra de defesa contra qualquer especulação política que, nos toldados horizontes do presente se levante para nos roubar a nós próprios.
Quando não façamos isto -- e mal de nós que o não fazemos! -- devemos tremer, olhando com lágrimas piara essa obra mesquinha, fictícia e torpe que pomposamente se anuncia como a emancipação da Itália, e, esperando pela hora do sacrifício, abandonar nela o lar, a família, a riqueza e voar em massa a defender a nossa fronteira da invasão dos bárbaros sanguinários e intolerantes que os dominadores da Espanha -- chamem-se eles Espartero, Narvaez, 0'Donnell ou Prim -- enviarem sobre nós.
Mas a Espanha há-de tomar-se, de um rebanho, um povo. Os ténues arrebóis da aurora que entrebrilham agora hão-de crescer, irradiar, e após eles há-de surgir um sol esplêndido e majestoso. A lei fatal do progresso há-de actuar sobre a nação vizinha. O lázaro há-de ressurgir e rejuvenescer ao calor benéfico da ilustração e da democracia.
Então, quando nós lhe pudermos chamar irmã, seria Febo Moniz, se vivesse, o primeiro a estender-lhe a mão e a dizer-lhe: -- que da união é que nascem a força, a economia e a riqueza; e a dizer-nos a nós se porventura repugnássemos: -- que o bem dos povos é a suprema lei; que as tradições de inimizade obsoletas e deslocadas são a pior das prevenções; que a união federativa, garantindo a justa porção de liberdade individual, é ao mesmo tempo firme penhor de segurança para os interesses locais desprezados e oprimidos em todos os governos centralizadores, chamem-se eles repúblicas ou monarquias; que o princípio da associação, base de todo o moderno edifício social, sendo a própria essência da liberdade, não permite os isolamentos industriais ou políticos; que às grandes aglomerações de propriedade e de poder sucederam as infinitas diviísões de ambos, e que é a associação que na política, como na propriedade, lhes há-de dar unidade e força.
Em tal hora, Febo Moniz, o cidadão prestante de 1580, o açoute do Cardeal-rei e dos fautores da nossa ruína, olharia para nós portugueses, e nos diria com aquele gesto inflamado, aquela voz terrível.
-- «Ontem a Espanha era um cadáver. Ligar-nos a ela era o mesmo que morrermos nós. Mas hoje não. A união, além de útil, é fatal. A Espanha, como vós, como todos os países, não tem limites. Todos somos homens, a nossa pátria chama-se a terra, a nossa crença nós mesmos, a nossa política fraternidade! O que a indústria e as artes fizeram já, faça-o agora a política. Se os homens se consideram irmãos para a permutação recíproca dos produtos de necessidade física ou moral, porque não hão-de sê-lo para o bem imenso que tem de resultar do governo parcial e comum a um tempo?
«Ontem nem vós possuíeis a força, que dá a ilustração, para defenderes os vossos foros, nem ela, a Espanha, a força para se reger a si própria. Ontem eu vos diria -- NÃO! Eu seria o primeiro a armar os vos;sos braços para defenderes os direitos em perigo. Reparai bem nisto. Ontem não!
«Mas hoje? Hoje que o esplêndido sol da verdade desvendou a face linda e alumia a Europa, educada em séculos de opressão e lágrimas!
«Hoje que a razão governa e a ciência dirige... Hoje -- SIM.
«E sim, porque a união é a paz, a fartura, a economia, a felicidade;
«E sim, porque à vossa união, povos da Ibéria, como à união de todas as grandes famílias europeias, sucederá a união universal das nações num pacto supremo e sublime: à federação parcial das províncias, iseguir-se-á a federação geral dos países;
«E sim, porque de nascer o dia do complemento de uma obra tal há-de resultar, além de tudo, o acabamento das guerras, e, com a ímpossibiHdade delas, o assistirmos à morte dos exércitos permanentes, ao desarmamento geral, porventura a medida mais urgentemente reclamada pelo bem-esitar da humanidade.»
Isto diria Febo Moniz, e dirão com ele todos aqueles, a quem interesses mesquinhos não façam calar a voz da razão para lisonjear e avolumar preconceitos obsoletos e estultos.
Resume-se em pouco a questão:
Para nós, que escrevemos o livro o que finda aqui, é de crença a utilidade e, mais ainda, a fatalidade da união dos iberos num período mais ou menos remoto. Julgamo-lo um destes acontecimentos que, por terem por si todos os argumentos do raciocínio e da ciência, há-de efectuar-se. Mas se em princípio a questão é simples e não pode ser atacada sensatamente; é ao mesmo tempo das mais árduas em qualquer hipótese que ela porventura venha de futuro a levantar-se. Auscultar minuciosamente todos os sintomas de fenómeno, diagnosticá-lo com tacto e ciência, desenvolver no momento dado a energia necessária, quer para a repulsa quer para a efectuação da obra, esse é o condão do estadista.
Mas a época, em que a discussão dum tal assunto seria admissível, vem longe, muito longe ainda! Hão-de passar gerações sobre gerações, antes que o sol da democracia irradie com esplendor no céu azul e sereno da humanidade crente em si.
Lisboa. Outubro de 1867
Bernardim Ribeiro -- Menina e moça, Romance de Avalor.
Camões, Redondilhas .