ALICE MODERNO
O DR. LUIZ SANDOVAL
PONTA-DELGADA
TYPO-LYTH. MINERVA
1892
AO PUBLICO
Este romance tem uma historia. Começou por dever ser um conto que prehenchesse tres folhetins, e acabou por ser um volume que devera dar umas cem paginas. Publicado em folhetins, foi bem acolhido pelo publico, despertando este acolhimento à sua auctora a ideia de lhe conceder as honras de volume. Vamos a ver se o publico tem para com o livro a mesma benevolencia que teve para com o jornal.
Haviam-na casado aos dezoito annos, com um amigo do pae, que tinha mais dezoito annos do que ella.
Os paes adoravam-na, e queriam vel-a bem casada; José Maria de Brito, o marido, possuia quarenta contos de reis, e estava, por conseguinte, na conta de ser acceito.
Vivera até aos trinta e seis annos n'u ma sua propriedade, onde, de verão, recebia amigos, com os quaes se divertia caçando, fumando e jogando o bilhar.
A caça, sobre tudo, era o seu divertimento predilecto; e a sua matilha, a melhor dlaquelles sitios, merecia-lhe particulares cuidados. Um dia, porém, que ia em perseguição de um coelho, sentiu-se menos agil ao saltar uma parede, e, quando voltou para casa, estava pensativo. Meditava em que, passados alguns annos, se veria privado do seu passatempo predilecto, e que, então, a vida lhe pareceria monotona, entre os seus velhos creados e os seus cães fieis.
Foi n'esse dia que, pela primeira vez, se lembrou de casar.
E, -- um pensamento suggere sempre outro--, lembrou-se tambem de que seu amigo e compadre, Caetano Ramalho, tinha uma filha casadoira, que sahira havia pouco do collegio, e tinha uns olhos capazes de derreterem blocos de gelo.
No dia seguinte, foi fazer uma visita ao compadre, e analysou a rapariga com a minuciosidade investigadora de um ho mem serio que quer casar.
Etelvina contava entao 17 annos. Não diremos, como a quasi totalidade dos que escrevem romances, que Etelvina fosse um typo de magistral belleza. Não o era; mas tinha attractivos mais do que suf.cientcs para enlouquecer um homem.
De estatura media, extremamente ele gante, olhos esplendidos, dentes alvos de neve, e um chiste a que nem Santo Antonio resistiria!
Emquuanto ao moral, era intelligente, tocava piano, e falava francez, inglez e italiano.
Dizemos falava, e não, apprendera, por que ha uma certa differença entre estas duas coisas. Umal coisa é apprender uma lingua e outra é falal-a; muita gente apprende e pouca gente fala.
Etelvina, por excepção, falava as linguas que apprendera.
Lia muito; romances, pela maior parte.
José Maria de Brito analysou-a pois detidamente, dizendo, de si para si: Aquillo sim; é que é a mulher que me convem. -Nova, alegre, sadia; e, sobretudo, boa dona de casa; porque a mãe o é, e ella, de certo, tambem o será.
E chamou de parte o compadre, per guntando-lhe se não achava a filha em edade de casar.
Caetano Ramalho respondeu que não tinha pressa, que adorava a pequena, que não lhe fazia peso em casa, que não lhe havia de faltar pão, etc., etc.; mas que, se lhe apparecesse alguem nos casos de a fazer feliz, havia de pensar n'isso.
É que eu, tornou o pretendente, queria casar-me... e, se o compadre me quizesse para genro...
N'esse dia, disse Caetano Ramalho á esposa:
-Não sabes? A nossa Etelvina está pedida. O Jose Maria gosta della e tocou me hoje n'isso.
-Sim ! exclamou jubilosamente a D. Genoveva, virtuosa consorte de Caetano Ramalho. E accrescentou : É homem de juízo, e rico; acho que a pequena ha de ser feliz.
Etelvina, quando lhe falaram em tal, pasmou.
Lembrara-se muitissimas vezes de casar; mas nunca com o compadre do pae. No emtanto, se não tinha por elle decidida sympathia, tambem lhe não tinha repugnancia, e respondeu que casaria, logo que o papa e a mamã fizessem gosto n'isso.
Casou como casam quasi todas as mulheres, para casar, simplesmente; sem consciencia dos deveres rigorosos que o seu novo estado lhe ia fazer contrahir!
Em casa de Caetano Ramalho, é grande a azafama. É que casa hoje Etelvina, a sua filha mais velha.
O casamento devia realisar-se ás quatro horas da tarde; e, posto que fossem apenas duas horas, estava a parentela dos dois noivos reunida na espaçosa sala do abastado proprietario minhoto.
Etelvina, pertinazmente fechada no seu quarto, não apparecera ainda aos parentes.
Sobre o seu leito de rapariga, ostentava-se a fresca e virginal toilette da noiva. O vestido de seda branca, a grinalda de flores de laranjeira, as luvas de dez botões, os sapatos de setim, e as meias de seda.
Etelvina, em saias brancas, muito alva, muito perfumada, está cercada pelas irmãs e primas, que se disputam a honra de lhe pregar um alfinete, de lhe concertar uma prega, de lhe dar um laço.
A filha de Caetano Ramalho está alegre, e pensa unica e simplesmente no prazer de vestir aquelle vestido branco, de se toucar com aquella grinalda, de se revestir com aquella toilette divina e unica, em que tanto pensam as raparigas, durante o periodo que dista dos quinze aos vinte annos.
Às tres horas, chega o noivo, muito solemne e grave, na casaca preta, sahida de casa d'um alfayate da província.
Aquelle fato e aquelle ceremonial incommodam-no horrivelmente!
Às quatro horas, Etelvina, ponctual, entra na sala, e beijada e abraçada por toda a parentela, aperta a mão ao noivo, e desce, pelo braço do pai, a escada da casa paterna.
A mãe está commovida, mas, aomes mo tempo, lembra-se de que o noivo tem quarenta contos. quuanto ao pae, está sinceramente perturbado, e as lagrimas bailam-lhe nos olhos.
Na igreja, muita gente; vestidos exoticamente provincianos, no meio dos quaes se destaca o de Etelvina, que é do melhor gosto.
As phrases sacramentaes: Eu recebo a vós etc, foram ditas pelo noivo com voz pausada e grave, por Etelvina com voz que mal se ouvia.
Finda a ceremonia, José Maria de Brito offerece o braço a sua esposa, e, por falta de habito de lidar com senhoras, offerece-lhe o braço esquerdo...
Etelvina fica um pouco contrariada. Se as suas amigas de collegio os vissem...
Voltam para casa. Durante o trajecto, elle nada lhe diz; ella, recostada a um canto da carruagem, lembra-se do que lhe dizia, em cartas, um poeta com quem tivera namoro, em Lisboa.
Uma das suas amigas e companheiras de collegio, que era prima d'elle, servia-lhes de intermediaria e levava-lhe as cartas.
De certo, se fosse elle que estivesse alli, teria que lhe dizer; mas o marido...
Chegam à casa do pae.
Serão insipido, como todos os serões de casamentos.
Ditos bregeiros, risos equívocos, e, sobretudo, um fastio pesado, que enregela e faz somno.
O noivo foge para uma janella e põe-se a fumar.
Etelvina distribue flores da grinalda e do ramalhete pelos assistentes.
Às onze horas, e servido o chá, em bandejas, e, depois, aquillo torna-se ainda mais intoleravel.
O noivo quer-se ir embora, está aborrecido, tem dôres de cabeça, os sapatos pisam-lhe os calos, e, sobretudo, (coisa inadmissivel para um homem que casou ha horas!) tem somno, muito somno! Mas, ao mesmo tempo, não sabe o que ha de dizer a Etelvina para a resolver a sahir...
Lembra-se de ter, ha annos, assistido ao casamento de um seu intimo amigo e companheiro das caçadas, Alberto da Costa, e lembra-se tambem de que, pelas 10 horas da noite, haviam sabido os noivos, deixando os convidados divertir-se á vontade.
-- Se aquelle diabo do Alberto estives se aqui, pensa elle, dar-me-hia um conselho... Mas o maldito não quiz vir!
Afinal, depois de muito pensar, resolve dizer a Etelvina que tem somno. Approxima-se dlella, e diz-lh'o.
-- Quando quizeres... responde ella laconicamente.
-- Aquelle quando quizeres é o primeiro acto de submissão conjugal.
Na antecamara, Jose Maria embrulha-se na capa; o pae chora; a mãe desfaz-se em lagrimas; Etelvina sente confranger-se-lhe o coração, e fica longo tempo abraçada à mãe, reprimindo a custo os soluços...
Jose Maria manda avançar o carro e parte com sua mulher para a sua residencia.
Pelo caminho, pergunta-lhe se tem frio.
Ella diz-lhe que não.
Se tem somno.
Responde que sim.
Se gosta de estar casada.
Mesma resposta, acompanhada de um suspiro.
Casar aos dezoito annos, com a mente repleta de sonhos, a alma sedenta de ideal, o coração sequioso de um affecto ardente e inextinguivel, e ver-se ligada por toda a vida a um Jose Maria de Brito, que decepção tremenda !
Quando, no dia seguinte ao seu casamento, Etelvina foi, pelo braço do marido, visitar a sua propriedade, quando esperava que elle lhe fallasse nas doçuras inegualaveis da lua de mel, na embriaguez auroreal dos primeiros tempos d'aquella vida entre deux, disse-lhe este, com o seu sorriso alegre e o seu modo bonacheirão e expansivo: Até agora, engordava dois porcos por anno, mas vou passar a engordar quatro!
E accrescentou amavelmente: Já mandei vir uns bacoros do Alemtejo...
Etelvina bem depressa comprehendeu que nunca seria feliz! O marido era um bom homem; mas não passava d'isso.
Jose Maria de Brito tambem não era feliz.
Julgara casar com uma mulher que se interessasse pela lavoira, que lhe deitasse gallinhas, que lhe fabricasse petiscos, e lhe vigiasse os creados.
Etelvina desmentira todas as suas previsões ! Levantava-se Às 10 horas, almoçava, fazia a toilette; ao meio dia, sentava-se ao piano, lia, escrevia as amigas, passeava pela quinta, e nunca punha os pes na cosinha.
Passaram-se tres annos.
Etelvina, perfeitamente deslocada naquelle meio, definhava visivelmente. Teria certamente morrido de tedio, se Jose Maria de Brito não tivesse, n'um dia em que fôra aos coelhos, apanhado uma molhadura que, começando-lhe por uma constipação, degenerou em bronchite, e, desta, passou a pneumonia.
Pouco antes de morrer, mandou chamar o tabellião, com o qual esteve conferenciando durante algum tempo.
Expirava horas depois, acompanhado na hora extrema pelo cura da freguezia e por uma velha creada, que o embalara em pequeno.
Etelvina não pudéra resistir a hediondidez do espectaculo de uma agonia; não acompanhara o marido n'aquella hora suprema.
Depois do enterro, a que assistiram todos os proprietarios da localidade e cercanias, participou o tabellião a Etelvina que seu marido lhe deixara todos os bens.
Etelvina, viuva aos vinte e um annos de edade, resolveu passar os primeiros tempos da viuvez em casa de seu pae.
Para la partiu pois na noite do proprio dia em que se sepultara o marido.
Sentiu uma sensação agradabilissima ao ver-se outra vez no seu quarto de solteira; mas, depois, lembrou-se de que o marido fôra sempre bom para ella, e entrou a chorar copiosamente !
Passado o anno de rigoroso luto, resolveu Etelvina ir viver algum tempo em Lisboa.
Uma sua amiga de collegio, então casada com um advogado muito distincto da capital, escrevia-lhe frequentemente, e procurava por todos os meios attrahil-a para lá.
A verdade É que a vida de Lisboa, que entrevira durante os quatro annos em que estivera no collegio, seduzira Etelvina, e não eram precisas grandes instancias para a levarem a abandonar o modesto recanto da província onde nascera.
A amiga alugara-lhe, no mesmo predio em que residia, uma casita, que mobiliara com o seu fino gosto de mulher elegante e caprichosa, e de que Etelvina tomou posse, ainda envolvida nos crepes de uma viuvez recente, e acompanhada por uma creada que trouxera do Minho, rapariga que tinha pouco mais ou menos a sua edade, e que lhe era fundamente dedicada.
Os primeiros mezes de Lisboa pareceram monotonos a Etelvina : quasi tão monotonos como os que na casa paterna acabava de passar.
Pouco sahia, e não conhecia ninguem; alem d'isso, achava-se doente: os tres annos que vivera em companhia do marido, sempre contrafeita e aborrecida, haviam-lhe arruinado a constituição robusta. Tinha insomnias, palpitações, e crises nervosas, que, as vezes, a incommodavam seriamente.
Uma noite, sentiu-se muito peior do que de costume.
A creada que a acompanhava, vendo-a desfallecida e tremula, assustou-se, e, descendo a correr os dois lances de escada, foi pedir ao guarda-portão que fosse a toda a pressa chamar um medico.
Havia um naquella mesma rua; um rapaz muito novo, formado havia pouco tempo, e que gosava já da reputação de medico muito distincto.
Quando o guarda-portão chegou á casa do medico, encontrou-o, não obstante a hora, ainda levantado.
O Doutor Luiz de Sandoval chegara havia pouco do theatro e não começara ainda a despir-se.
Quando foi informado de que o procuravam, perguntou onde era a residencia do doente, para, em caso de necessidade, mandar apparelhar o carro; e, ao saber que ficava na mesma rua, pegou no chapeu e nas luvas, e acompanhou o guarda-portão, que o aguardava.
Luiz de Sandoval contava então trinta annos. Alto, magro, porte distincto; pallido, muito pallido; com os olhos, so brancelhas, cabello e bigode cor de azevi che. Alem d'isso, uma fronte elevada, intelligente, dentes muito alvos, mãos irreprehensivelmente cuidadas e um pe ainda mais pequeno que o do general Dumas, pae do primeiro romancista d'este nome; pois, se ao general serviam os sapatos das amantes, ao Doutor não serviam alguns por lhe ficarem grandes.
Diziam as mas linguas do bairro, ao vel-o passar, correcta e irreprehensivelmente trajado, que o Doutor Luiz Sandoval presumia de si, e gastava horas seguidas ao toucador.
O que é facto, é que, se vestia sempre severamente de preto, se usava constantemente um chapeu alto, companheiro forçado da sobrecasaca, apresentava quasi todos os dias uma gravata nova, e a cor das suas luvas combinava-se sempre artisticamente com a das suas gravatas.
Nos seus tempos de estudante, fizera muita conquista, dizia-se; mas, depois de formado, e casado com uma filha do Conde da Trafaria, havia-se tornado homem serio, e gosava por inteiro, não obstante os seus poucos annos, e a sua apparencia encantadora, da confiança dos maridos e dos paes.
Ao chegar a casa de Etelvina, Luiz de Sandoval esperou na sala que avisassem a doente de que se achava alli o medico.
Pouco depois achava-se à cabeceira da sua nova cliente.
Ouviu-lhe as queixas, tomou-lhe o pulso, auscultou-a minuciosamente, e, em seguida:
-- V. Ex.a é casada ?
-- Viuva.
-- Ha pouco tempo, de certo. . .
-- Ha dois annos.
Seguiu-se uma pausa.
O Doutor contemplava a doente com esse olhar prescruptador que é só dos medicos e dos juizes.
-Que edade tem ?
E acccrescentou, com a amabilidade de um homem de sala:
-- V.Ex.a é tão nova ainda, que a minha pergunta nada tem de indiscreta. . .
--Vinte e tres annos.
-Não tem filhos?
Signal negativo.
-V. Exa, continuou então o medico, estava habituada ao ar puro e á vida livre do campo, e definha aqui, encerrada entre as quatro paredes de uma pequena casa de capital ! Precisa sobretudo de distrahir-se. V. Ex.a não passeia?
--Pouco.
-Não se diverte ?
-Nada.
-Ora ahi tem V. Ex.a o que lhe tem feito mal. V. Ex.a deve passeiar, ler, ir ao theatro, e deitar para longe de si este som brio spleen que tanto prejudicio lhe tem causado. V. Ex.a é muito joven, e não pode, aos vinte e tres annos, viver como se tivesse sessenta. V. Ex.a já pagou a memoria de seu esposo o tributo devido de lagrimas e saudades; agora é tempo de tratar de si. E depois, que remedio tem V. Ex.a senão curvar-se ao que lhe receita o seu medico?
Etelvina sorriu.
O Dr. Sandoval sentou-se à banca, e receitou um medicamento que devia fazel-a dormir, e, em seguida, retirou-se, despedindo-se com a cortezia de um homem da melhor sociedade.
No dia seguinte, seriam duas horas da tarde, e estava Etelvina no seu boudoir, quando a creada lhe foi dizer que se acha va alli o Doutor.
Luiz de Sandoval entrou, informou-se da saude da sua doente, que havia dormi do o resto da noite, e se achava muito melhor, e, em seguida, conversou durante cerca de meia hora, com aquelle fino espi rito e requintada delicadeza de um homem que sabe o que ha-de dizer as mulheres.
Ao despedir-se, disse-lhe, entregando lhe um bilhete em que se liam o seu nome e morada: Caso V. Ex.a torne a precisar dos meus serviços, envie-me as suas ordens.
-Então não volta? ! exclamou Etelvina.
-Se V. Ex.a o ordena...
-Não oordeno, peço-o. Eu sinto-me ainda doente e é preciso que o Doutor me ponha boa.
Luiz de Sandoval continuou pois a ir diariamente a casa de Etelvina. Cedo desappareceu d'aquellas entrevistas a gelida etiqueta dos primeiros dias.
Ella contara-lhe a sua vida, e como, aos dezoito annos, havia casado com um homem que bem podia ser seu pae.
-Oh! mas V. Ex.' ha de casar de novo, dizia então o medico. É impossivel que, na sua edade, e encantadora como é, se condemne a um isolamento perpetuo.
Etelvina, então, córava, e não respondia.
Posto que de nada se queixasse já, as visitas do medico prolongaram-se por espaço de um mez, sem que elle tornasse a falar em interrompel-as.
Ella falava-lhe, por fim, como a um amigo velho; elle, affectuoso, mas sempre de uma delicadeza irreprehensivel, interessava-se por tudo quanto lhe dizia respeito, perguntava-lhe se havia recebido noticias dos seus, e levava-lhe livros e revistas litterarias, que ella lia com uma attenção piedosa, porque lhe eram indicados por elle...
Às vezes, lembrava-se de que aquellas visitas haviam de acabar um dia e sentia o coração confrangido...
Um dia, falou no Dr. Sandoval a sua amiga, esposa do advogado, perguntando lhe se o conhecia.
Oh ! muito bem! dissera esta; fora contemporaneo do seu marido, em Coimbra. morava n'aquella mesma rua, e sua espo sa era uma das mulheres mais elegantes de Lisboa.
-Pois elle é casado?! exclamara Etelvina.
-Sim; ha talvez quatro annos. Mostrar-te-hei sua mulher. Passa muitas vezes por aqui, no seu coupé. São ricos e não teem filhos.
No dia seguinte, á hora de costume, e quando o Doutor acabava de perguntar-lhe se recebera cartas do Minho, disse-lhe Etelvina :
-Tenho commettido a indelicadeza de lhe não perguntar por sua esposa; mas, como ignorasse que V. Ex.a era casado...
O Doutor empallideceu um pouco.
--Minha mulher, disse então, está boa, e brevemente virá offerecer a nossa casa a V. Ex.a. Espero que nos fará a honra das suas visitas...
Effectivamente, logo no dia seguinte, pelas duas horas da tarde, foi Etelvina prevenida de que se achava na sala uma senhora que lhe queria falar.
A visitante, ao entrar, entregara o seu bilhete à creada. Etelvina pegou-lhe e leu o seguinte:
Bertha de Sandoval
Foi com bastante curiosidade que Etelvina entrou na sala onde a esperava a esposa do Doutor.
A filha do conde da Trafaria era uma joven franzina e elegante, muito loira e muito aristocratica. Contava vinte e cinco annos. Trazia n'esse dia, uma lindissima toilette de pellucia verde-negra, e tinha na mão um rico carnet de madre-perola, com embutidos de ouro, d'onde tirara o bilhete perfumado que entregara á creada de Etelvina.
Esta não pôde deixar de confessar a si propria que a esposa do Doutor era uma creatura adoravel.
Muito franca, alegre e expansiva, tratou-a com uma familiaridade que indicou á joven viuva em que apreço tinha Bertha de Sandoval as recommendações de seu marido.
-O meu marido, dissera-lhe ella, falou-me muito em V. Ex.a. Disse-me que era mister distrahil-a, e eu prometti-lhe auxilial-o n'essa empreza.
Moro n'esta mesma rua, e, sendo quasi visinhas, é de urgencia que nos veja mos muitas vezes. A minha casa está ás suas ordens, e não só a minha casa, mas tambem o meu carro e um camarote de assignatura que tenho em S. Carlos. Espero igualmente que me fará a honra de abrilhantar os meus five o'clock tea com a sua presença. Realisam-se todas as sextas feiras, e olhe V. Ex.a que conto comsigo... Mas, a proposito, hoje tem logar a primeira recita d'esta epoca de S. Carlos, e, ás 8 horas, cá a venho buscar...
E, como Etelvina balbuciasse uma desculpa, Bertha continuou:
-Não admitto recusas. O Luiz conferiu-me todos os seus direitos e esta é a minha primeira receita.
E sahiu pouco depois, com um até logo, nada ceremonioso.
Bertha foi ponctual; ás 8 horas parava o seu coupé á porta de Etelvina, prevenida pelo groom de que era esperada.
Pouco depois, rodavam para o theatro lyrico, levadas pela fogosa parelha de cavallos negros.
Etelvina puzera um vestido de faille preto, e tinha, por unico enfeite, uma camelia branca, que se destacava, com a sua alvura incomparavel, da negrura setinosa do corpete.
Bertha, que a analysava, confessou, por sua vez, que a sua nova amiga, para uma provinciana, trajava com muito bom gosto.
Compridas luvas de pelle da Suecia, pretas, e um leque de setim, preto tambem, completavam o seu vestuario.
Durante o trajecto, as duas mulheres conversaram muito.
Bertha era faladora e expansiva e, quando chegaram ao theatro, já Etelvina sabia que a filha do conde da Trafaria perdera a mãe quando se achava ainda no berço, que fôra creada por uma tia, irmã de seu pae, que tinha dois irmãos, um dos quaes, Antonio, primogenito, e herdeiro do titulo, gastava a legitima materna em Paris, com as dançarinas da Opera, emquanto que o segundo, Jorge, era capitão de artilheria, e se achava em Lisboa. Sabia mais que Bertha casara por amor, preferindo o Doutor Sandoval a um titular rico, que lhe ambicionara a mão.
Luiz não pôde vir, dissera-lhe egualmente Bertha, foi a casa do marquez da Ribeirinha, que está com um ataque de gotta, mas prometteu-me, caso se despachasse a tempo, de vir ter comnosco ao theatro.
Pouco depois, achavam-se na frisa, chegando propriamente na occasião em que o chefe de orchestra dava o alamiré.
Segundos depois, levantava-se o panno.
Era a primeira vez que Etelvina ia a S. Carlos, e, por isso, entregou-se inteiramente ao prazer de gosar simultaneamente de um bom espectaculo e de uma bellissima musica.
No intervallo que se seguiu ao primei ro acto, entrou no camarote um rapaz loiro, alto, espadaúdo e córado, trajando vistosa farda, e Bertha disse a Etelvina: Meu irmão Jorge, e a este: -A sr.a D. Etelvina Ramalho de Brito.
O capitão cumprimentou cortezmente, e, depois de algumas phrases banaes, trocadas com a irmã, voltou a occupar a sua cadeira, junto á orchestra.
No fim do segundo acto, abriu-se de novo a porta do camarote, e entrou o Dr. Sandoval.
Vinha, como sempre, severamente vestido de preto, com aquelle apuro requintado a que nunca se eximia. Apertou a mão ás duas senhoras, e sentou-se ao fundo do camarote.
Bertha, pianista distincta, entregava-se completamente á musica; emquanto a Etelvina, pareceu-lhe que o palco perdia todo
o attractivo que até então possuira, e que uma força invencivel a obrigava a olhar para traz, para o fundo do camarote... Chegou uma occasião em que lhe não foi possivel resistir á tentação, e voltou-se... Os seus olhos, então, encontraram-se com os do Doutor, que a contemplava, profundamente enlevado, como se contempla quem nos occupa o pensamento, quem nos povôa o coração !
Por espaço de uns segundos, nenhum dos dois desviou os olhos.
Afinal, Etelvina, córando, baixou-os, e o Doutor, como que despertando de um sonho, suspirou profundamente. Ao ouvir um suspiro fundo, Bertha voltou a cabeça.
-Que tens ? perguntou ao marido.
-Calor...-respondeu este, passando a mão enluvada pela testa, como que para expulsar algum pensamento pertinaz.
Bertha estendeu-lhe o leque de pennas. O Doutor pegou-lhe machinalmente, restituindo-lh'o pouco depois, sem o ter sequer aberto.
No ultimo entre-acto, voltou o capitão Jorge, que, sentando-se tambem, começou a discutir com o cunhado ácerca do merecimento das cantoras.
O Doutor, que nem para ellas olhara ainda, emittia opiniões que faziam rir cordealmente o oficial.
-O teu marido está aereo, dizia este à irmã. Pois não vês que está a teimar comigo que a segunda dama não deu duas notas falsas no principio do seu dueto com o tenor?! Meu caro amigo. serás optimo para auxiliar a humanidade soffredora a levar a cruz ao calvario, mas, para critico musical, desculpa-me a franqueza, não vales um real !
Etelvina, melancolica, pensava no contraste frisante que existia entre aquelles dois homens.
O official, vistosamente fardado, loiro, corado, espadaúdo e alegre; o medico, pallido, olhos, cabello e bigode pretos, severamente trajado e profundamente pensativo! E, de si para si, achava o primeiro amavelmente vulgar e o segundo adoravelmente distincto.
Faltava um quarto para a meia noite, quando terminou o espectaculo.
As duas senhoras envolveram-se nas suas mantas.
Doutor Sandoval offereceu o braço a Etelvina, emquanto o capitão prehenchia o mesmo dever para com a irmã.
Havia muita gente nos corredores, e o trajecto foi demorado.
E então, pareceu ao Doutor que mão de Etelvina tremia um pouco, sobre o seu braço, e, a Etelvina, pareceu que o braço do Doutor apertava muito a sua mão de encontro ao peito...
-- Gostou do espectaculo, perguntou-lhe elle.
--Muito!...
E calaram-se.
N'uma occasião, tiveram de parar para deixar passar alguns grupos, e, por uma attracção a que nenhum dlelles pôde resistir, olharam-se longamente...
E depois, por um phenomeno que os psychologistas se encarregarão de explicar, o tremor da mão de Etelvina transmittiu se ao braço do Doutor.
Chegados ao coupé, as duas senhoras subiram, e Luiz de Sandoval e o cunhado, depois de accenderem os seus charutos, voltaram a pé para suas casas.
Na sexta-feira seguinte, Etelvina foi ao five o' clock tea de Bertha.
Chegada á casa do Doutor, subiu uma larga escada alcatifada, e tocou no botão de uma campainha, sendo-lhe immediatamente aberta a porta por um creado de casaca e gravata branca.
Um pouco perturbada por esse ceremonial, que não esperava, mas com o desembaraço que desde muito pequena tivera, deixou-se guiar pelo creado, que a fez atravessar uma comprida ante-camara, e, por fim, penetrar n'uma grande sala de rece pção, onde a deixou, dizendo que ia prevenir a senhora.
Era cedo ainda, de modo que os habitués do five o'clock tea de Bertha não haviam ainda chegado.
Etelvina sentou-se, e poz-se a analysar pelos meúdos a enorme sala onde estava. A mobília era toda de jacarandà, e o estofo dos moveis, cortinas e reposteiros, era de damasco carmezim.
Nos vãos das janellas, «etagéres» supportando raras plantas de estufa: pelo quarto, mezas cobertas de albuns e livros riquíssimamente encadernados. Suspensos das paredes, alguns quadros de valor, e, no logar de honra, um homem com farda de general, fronte elevada, cabello e bigode alvos de neve.
Immediatamente reconheceu que aquelle devia ser o retrato do pae do Doutor. Sim, elle tinha a mesma fronte elevada, o mesmo olhar expressivo, a mesma cabeça elegante e altiva! E quedou-se na contemplação dlaquelle retrato, até que a porta, abrindo-se, lhe fez voltar a cabeça.
Era Bertha que entrava. A esposa do Doutor correu para ella, abraçou-a expansivamente, fel-a sentar, agradeceu-lhe a visita, e encetou uma con versa muito animada, acerca dos ultimos figurinos de La mode illustrée, que traziam toilettes detestaveis, pelas quaes, dizia ella, nenhuma mulher de gosto se podia regular.
A conversa foi interrompida pela che gada de um homem gordo, cabeça e barba grisalhas, a quem Bertha abraçou, e que apresentou a Etelvina dizendo-lhe : O conde da Trafaria, meu pae.
O conde inclinou-se diante da joven viuva e inquiriu minuciosamente da saude da filha e da do genro, que, dizia elle, não via havia seculos.
Pouco depois, chegava a esposa de um lente do Curso Superior de Lettras. Seguiu-se uma marqueza, alta, magra, pretenciosa, e com fumaças de litterata. Chegou depois o capitão Jorge, que se sentou ao pé de Etelvina, com a qual encetou a sua conversa predilecta: uma discussão ácerca do merecimento dos artistas do theatro de S. Carlos e das operas em que cada um d'elles andava melhor.
Às 5 e meia, entrou o dono da casa, que cumprimentou as quatro senhoras, apertou a mão ao sogro e ao cunhado, e se sentou junto a este, com o qual conversou animadamente.
N'essa occasião, entrou o creado, trazendo um delicioso bulle de nikel e oiro, um assucareiro dos mesmos metaes e uma duzia de chavenas de porcelana do Japão.
Bertha, então, levantou-se, preparou pelas suas proprias mãos o cha, e foi em seguida offerecer uma chavena a cada um dos assistentes.
Às 6 e meia, retiraram a viscondessa e a esposa do lente. Etelvina quiz imital-as, mas Bertha disse-lhe então :
-- Olhe, sabe? Eu não a deixo sahir. Todas as sextas-feiras jantam eu o papa e o Jorge, e V. Ex.a vae ter a condescendencia de nos acompanhar hoje, não e assim? Resta-me a pedir-lhe desculpa da sem-ceremonia...
Como recusar um tão franco e affectuo so convite? Etelvina deixou-se pois ficar.
Às 7 horas, annunciou o creado que o jantar estava na meza. Passaram para o quarto de jantar. Era vasto e severamente mobiliado com moveis de carvalho primorosamente entalhados. A meza resplandecia de luzes, flores, fructos, crystaes e pratas.
Bertha fez sentar Etelvina á sua direita e o pae á sua esquerda. O Doutor sentou-se ao outro lado da joven viuva. Durante o jantar preencheu admiravelmente as suas funcções de dono de casa, sem todavia à importunar com delicadezas excessivas.
Às 9 e meia passaram de novo a sala, onde foram servidos o cafe e os licores.
Depois, os homens organisaram um voltarete, e as senhoras foram tocar piano.
Á meia noite, retiraram todos, e o doutor foi acompanhar Etelvina a casa.
Offercceu-lhe o braço. Durante o trajecto, nada disseram, mas, ha occasiões, na vida, em que o silencio é mais expressivo do que as mais eloquentes phrases.
Etelvina tornou-se pois intima em casa do Dr. Sandoval.
Jantava lá todas as sextas-feiras, ia com Bertha ao theatro duas vezes por semana, e fôra procurada por muitas das pessoas que frequentavam a casa do Doutor; vestia-se na costureira de Bertha-uma das melhores da capital, e, n'aquella atmosphera de elegancia e aristocracia, sentia-se perfeitamente a vontade, estava no seu elemento. A lagarta fôra substituída pela chrysallida, a provinciana desapparecera, dando lugar a lisboeta, intelligentemente espirituosa, elegantemente aristocratica.
Bertha ufanava-se immenso por aquelle aperfeiçoamento para o qual não contribuira pouco com os seus conselhos e com o seu exemplo.
Affeiçoara-se a Etelvina com toda a franqueza do seu temperamento alegre e expansivo de mulher feliz.
Dizia-lhe muitas vezes:
Porque não casas segunda vez?
Não imaginas quanto sou feliz ! O Luiz é o modelo dos maridos! Sempre delicado e attencioso como no tempo em que eramos noivos. Tem um coração de anjo e gasta um dinheirão com os pobres a quem fornece medicamentos e dietas. Como não temos filhos, não nos faz isso falta, e eu em nada o contrario.
E Etelvina, córando, respondia que não fora feliz da primeira vez, que receava acertar mal, que queria conservar a sua liberdade, etc. etc.
Mas, a verdade e que Etelvina se apaixonara ardente e irresistivelmente pelo marido de Bertha !
Amava-o, amava-o com todo o ardor de um coração que se pronuncia pela primeira vez.
E assim devia ser.
O Dr. Luiz de Sandoval fôra o primeiro homem digno d'ella que se lhe approximara.
Ao principio, sentira por elle uma viva sympathia; depois, essa sympathia, cada vez mais arreigada, transformam-se em amor.
Tentava resistir repetindo a si propria que o homem a quem amava não era livre; mas era tarde!
Oh! muitas vezes, a noite, n'aquellas compridas noites de insomnia que succe diam aos seus dias febris, chorava de des espero, de humilhação e de ciume!
Oh ! no seu despeito, quereria denegrir o Doutor, encontrar-lhe um defeito qual quer que lhe offuscasse a aureola de homem superior; mas, como, se elle não tinha nenhum ?
Quanto mais pensava n'elle mais se convencia de que era adoravel, em toda a extensão da palavra.
Superabundavam n'elle os dotes de intelligencia e de coração, sem falar nos physicos, --na excepcional magia d'aquelles olhos negros, dlaquella cabeça elegante, e d'aquelle nariz aquilino !
Oh! sim, era adoravel! E como ella o adorava!...
Durante a noite, entregue a toda a febre dos seus ciumes, protestava esquecel-o, fugil-o, partir para casa de seu pae, ir para parte onde nunca mais, nunca mais, lhe ouvisse pronunciar o nome!
Depois, amanhecia, e ella levantava-se, e, pelas 8 horas, chegava por acaso a janella e recebia o cumprimento sempre correcto e irreprehensivel do Doutor, que sahia n'aquella mesma hora, a ver os seus doentes. A
E, pelo dia adiante, ia a casa d'elle, embriagava-se com o som da sua voz, prendia-se cada vez mais com as attençöes affectuosas com que elle a cercava infatigavelmente !
Um dia, depois do almoço, disse Bertha ao marido :
-- Preciso muito de falar comtigo.
-- Eis-me desde já as tuas ordens.
-- Sempre amavel !
E Bertha estendeu ao marido a pequena mão, que o Doutor levou affectuosamente aos labios.
--O que tenho a dizer-te, é muito serio.
-- Faço ideia !
-- Gracejas ?
-- Eu?! Pelo contrario.
-- É ácerca de meu irmão...
-- Do Jorge? Que tem elle?
-- Quer dever-te um serviço, um favor pelo qual te será eternamente grato, um obsequio que pode fazer a felicidade da sua vida; mas...
-- Realmente, estou intrigado!
-- Mas, não quiz dirigir-se directamente a ti, tomou-me por intermediaria.
-- De certo, não podia escolher melhor; mas acho que o Jorge tem bastante franqueza comigo para me dizer o que desejava.
-- Receava que não o acreditasses.
-- É então muito grave?
-- Gravissimo !
-- Peço-te que não estejas com mais preambulos; estou impaciente, e, alem d'isso, tenho pressa.
-- Pois bem, Jorge esta apaixonado!
-- Sim?! Mas que tenho eu com isso? Supponho que não é por mim...
-- Olha que o caso não é para rir!
-- Preferes então que eu chore?
-- Escuta-me! Jorge ama Etelvina, quer casar com ella, pede-te para lhe falares a este respeito, porque, diz elle, a tua opinião tem muito peso para ella.
-- Casar! Casar com Etelvina? !
-- Que ha n'isso de extraordinario? Não é ella encantadora?
-- Concordo, mas...
-- E has-de falar-lhe, não e assim?
-- Uma ideia d'estas, tornou impacientemente o Doutor, só da cabeça de teu irmão poderia sahir! Como quer elle que eu vá falar n'isso senhora?
-- Nada mais natural. És seu amigo, és seu medico, e os medicos gosam de grandes privilegios; Jorge é teu amigo, é teu cunhado, isto é, quasi teu irmão, incumbe-te de lhe pedires a sua mão em seu no me, nada mais natural!
-- O que é mais natural, é fazer o que eu fiz. Não arranjei procuradores, e tu bem o sabes! De mais, elle tem o pae, a quem, de direito, cabe o honroso encargo de pedir a mão da sua noiva.
-- Mas se elle sabe que não pode ter melhor advogado do que tu?
O Doutor esboçou um gesto de enfado.
-H- ei de então dizer-lhe que te recusas a falar a Etelvina? murmurou Bertha, entristecida.
-- Isso não; mas dize-lhe que... lhe falarei, quando... se proporcionar ensejo...
-- Ah, exclamou a esposa do Doutor abraçando-o, és um anjo! Bem sabia eu que havias, afinal, de dizer que sim!
E sahiu alegremente, a fim de escrever ao irmão, participando-lhe essa boa noticia.
Assim que se viu só, no remanso do seu gabinete, Luiz de Sandoval encostou a fronte incandescida ás vidraças da sua janella.
E, pensando nas ultimas palavras de Bertha, murmurava :
-- Um anjo não, mas um martyr... talvez !
Oh ! continuava elle, casar! Casar ella! E com quem?! Com meu cunhado, esse parvo que nem ao menos sabe o que lhe ha de dizer para lhe dar a entender que a ama! E sou eu, eu, que lhe hei de falar! Que ironia! Falar-lhe de amor por procuração! Proporcionar a outrem o celeste amor de aquella mulher que, ha mezes, me não sae da imaginação! Vel-a casar! Servir-lhe de padrinho, talvez! E apos o casamento, voltar para aqui, emquanto o outro, o marido, a estreitará nos braços com toda a força do seu direito! Não, isto não pode ser! Similhante casamento seria um crime, um contrasenso, uma tolice !
Que tem Jorge para captar o coração de uma mulher como Etelvina? Uma farda vistosa e... nada mais! Oh ! é impossivel que ella o ame ! Oh ! sim, as primeiras palavras que eu pronunciar -- se as pronunciar -- interromper-me ha com uma gargalhada. Oh! é impossivel que ella case!
Mas, emquanto o coração do Doutor irrompia nas apaixonadas exclamações que deixamos ditas, segredava-lhe a sua consciencia:
O teu cunhado é um bom rapaz e saberá tornal-a feliz, porque a felicidade da mulher consiste em ser esposa e em ser mãe. E depois, não és tu casado? Não tens tu uma mulher adoravel e que te adora? Que mais queres? Casaste por motu proprio e juraste fazel-a feliz. Cumpre com o teu dever de homem de bem e esmaga de vez esse amor que se assenhoreou do teu coração. Continua a ser o que sempre foste: um homem honrado. Fais ce que dois, advienne ce que pourra!
Á tarde, quando o Doutor voltou para casa, encontrou na ante-camara Bertha que o esperava.
-- Etelvina esta aqui, disse-lhe ella, e convidei-a para jantar comnosco; depois do serão vaes acompanhal-a a casa, entras e falas-lhe.
-- Ah! isto vae de empreitada?!
E a voz do Doutor indicava bastante aborrecimento.
-- Que queres? Jorge está impaciente, e eu...
-- E tu queres ir ao baile do casamento, não te cances em dizer mais.
Bertha riu-se e o marido entrou na sala.
Etelvina estava sentada junto a uma banca e lia a Revista Illustrada. Tinha um vestido de seda preta, muito simples. O corpete, liso, sem um unico enfeite, fazia-lhe sobresahir as formas admiraveis. Brilhavam-lhe nas orelhas dois diamantes que scintillavam n'aquellas conchas nacaradas como as gottas do orvalho nos calices das flores ! Etelvina não usava outros brincos, e tinha razão, pois só d'aquelle feitio se podem hoje supportar.
Deixava negligentemente pender a mão sobre os joelhos, e aquella mão, muito branca, destacava-se da negrura do vestido.
O Doutor olhou-a, enlevado, por espaço de uns segundos. Ao ruido, porém, produzido pelos seus passos, Etelvina erguera a cabeça.
Vendo-o, sorriu-lhe e estendeu-lhe a mão, que o Doutor apertou affectuosamente.
-- Quanto tempo não ha, disse-lhe este, sentando-se-lhe ao lado, que V. Ex.a não vem a esta sua casa!
-- Quanto tempo! Ainda antes de hontem cá estive!
-- Antes de hontem, sim; mas hontem?
-- Hontem, estive constipada e não sahi.
-- Constipada! E não me mandou chamar?!
-- Era de ver, se, a cada constipação, fosse preciso incommodar um medico.
-- Mas, se esse medico é mais do que um medico ?
Etelvina córou e o Doutor continuou:
-- Se esse medico possue, ou, pelo menos, aspira a possuir o titulo sacratissimo de amigo, se a sua felicidade consiste unica e simplesmente em cercar a sua doente de cuidados, em velar assiduamente pela saude que se lhe confiou, não sera, diga, uma crueldade prival-o d'essa felicidade ?
Etelvina estava profundamente commovida e via-se-lhe pela agitação do corpete, o desordenado bater do coração.
O Doutor, que dissera mais do que queria, julgou a proposito mudar de conversa.
-- Que está V. Ex.q lendo agora?
-- Bem sabe que não leio senão os livros que me empresta.
-- E qual foi o ultimo?
-- Les misérables, de Victor Hugo. Pouco depois, entrou Bertha.
-- O jantar está na meza, disse ella alegremente.
Às 11 horas da noite, Etelvina quiz retirar-se, e, como de costume, o medico offereceu-se para a acompanhar.
Sahiram; era em maio, a noite estava lindissima, no ceu palpitavam suave, e mansamente, as estrellas.
Pela rua, alguns raros transeuntes; perto, o caes, sobre o qual, com um marulhar doce e triste como um gemido, se vinham quebrar as marés.
O Doutor offereceu o braço a Etelvina.
-- Quer V. Ex.a dar um passeio até ao caes? perguntou elle; tenho que lhe falar, e como a noite esta bonita...
-- Com muito gosto, respondeu, mas, accrescentou com alguma amargura, Bertha póde estar á sua espera e assustar-se com a demora.
-- Bertha tem o bom costume de não esperar nunca por mim, por conseguinte...
-- Vamos.
E partiram para o caes, de braço, muito silenciosos...
O caes estava deserto. Sentaram-se n'uma banqueta.
O Doutor preferira falar-lhe na escuridão do caes. Alli, não poderia ella notar a alteração das suas feições. Estava profundamente commovido.
Amava idolatradamente aquella mulher, teria querido cingil-a ao coração, dizer-lhe que morreria de bom grado se a sua morte podesse ser-lhe util, e ia falar lhe por outro! Fallar-lhe de amor por procuração, como elle proprio dissera, no primeiro paroxismo do seu desespero!
Encetou o assumpto com voz tremula.
-- Quando tive a honra de começar a ser medico de V. Ex.a, disse-me que enviuvara aos vinte e um annos, e eu tenho julgado comprehender que o seu casamento lhe não proporcionára toda a felicidade de que V. Ex.a é tão digna...
-- Nem poderia proporcionar-ma por que não amava o meu marido. Ignorava então o que era o amor !
-- Mas, V. Ex.a tem, como todos, direito á felicidade. É muito nova, é formo sa, é boa, oh !... é adoravel!
Reúne todos os dotes necessarios para fazer a felicidade de um homem, logo que esse homem tenha um bocado de intelligencia e de coração.. .
Seguiu-se uma pausa.
-- Não sei se então cheguei a aventar a ideia de um novo consorcio em que V. Ex.a encontrasse a felicidade que não usufruiu ainda...
Etelvina nada dizia, e o Doutor, cada vez mais perturbado, não sabia como continuar.
-- V. Ex.a não tem repugnancia pelo matrimonio ?
Mesmo silencio.
-- E, continuou o Doutor, se houvesse um homem que a amasse como... eu... acho que V. Ex.a deve ser amada, e, se esse homem fosse bastante feliz para lhe poder offerecer o seu nome... V. Ex.a acceitaria ?
Como ella ainda não respondesse, o Doutor, por um exforço energico da sua vontade, continuou quasi firmemente:
-- Não me detenho com mais preambulos. O meu cunhado ama-a, e encarrega-me de lhe pedir a sua mão. A
Era de urgencia uma resposta ; no entanto, Etelvina não a proferiu.
O Doutor, completamente fora de si, pegou-lhe na mão,-- estava gelada, approximou-se-lhe muito, e viu-lhe, ao clarão frigido das estrellas, o rosto brilhante de lagrimas !
-- Oh! exclamou elle, chora! Chora! Porque chora?!
E, com um movimento irreflectido, expontaneo, irresistível, estreitou-a febrilmente de encontro ao coração.
Ella encostou-lhe a cabeça ao hombro, e elle, no delírio da sua febre, murmurava-lhe ao ouvido:
-- Amo-te, amo-te, adoro-te!
Eram cinco horas da manhã quando o Dr. Sandoval entrou em casa.
N'um estado de exaltação impossivel de exprimir, dirigiu-se para o seu gabinete e deixou-se cahir em uma poltrona.
Amava-a! Oh ! como a amava! E, que incomparavel felicidade, era amado! Que magicas palavras estas: -Ser amado! So as não comprehende quem não possue coraç'ão ! E que protestos haviam trocado! Como elle lhe fizera esquecer, com as suas caricias apaixonadas, o que ella soffrera ao julgal-o indifferente! E como ella era adoravel em tudo quanto lhe dizia ! Que juramen tos lhe exigira! Como manifestara ingenua e apaixonadamente todos os ciumes que a torturavam! Oh! elle bem o comprehendia, amava e amava pela primeira vez na vida! Nunca sentira por mulher alguma o amor delirante que Etelvina lhe inspirava! E amal-a-hia sempre! Consagraria a sua vida a felicidade de Etelvina, seria para ella, ao mesmo tempo, um amante, um pae, um irmão e um amigo! Para Bertha, seria sempre um marido correcto, delicado e condescendente; mas reservaria para Etelvina todos os thesouros de amor que lhe enchiam o coração!
Á despedida, entre a effusão dos seus beijos, ella dera-lhe o seu retrato, e, por uma puerilidade que, cremol-o, é propria de todos os namorados, haviam trocado os lenços. E agora, o Doutor cobria de beijos aquelle lencito de cambraia perfumada, onde Etelvina limpara as lagrimas que elle lhe fizera chorar!
O Dr. Sandoval tinha então um rouxinol a cantar-lhe na alma. Sentia-se feliz e ao mesmo tempo orgulhoso! Era o primeiro amor de Etelvina ! So elle lhe acordara no coração o sentimento indomavel que se intitula amor. Oh! como era feliz!
Deram seis horas da manhã. Luiz de Sandoval accendeu um charuto e continuou a pensar.
Lembrava-se com delírio das entrevistas que haviam combinado. Umas, em casa de Etelvina, outras n'um escriptorio que o Doutor tinha n'um bairro pobre, e onde receitava a operarios.
Alli, estariam perfeitamente bem, e poderiam ver-se todos os dias, e fariam n'essas entrevistas, provisões de coragem para as horas em que devessem tratar-se com uma indifferença ceremoniosa.
E lembrava-se de mil cousas que deveriam ha muito ter-lhe provado que ella o amava. Mas elle, cego que era, so o comprehendera quando as suas lagrimas lh'o haviam revelado! E admittira por segundos a ideia de que ella pudesse casar com o cunhado ! Que contrasenso ! Que loucura !
N'esse mesmo dia, ao almoço, perguntou Bertha ao marido:
-- Falaste a Etelvina?
-- Falei.
-- E então ?
-- E então, diz que foi infeliz da primeira vez, e que não quer repetir o ensaio...
-- Pobre Jorge!
-- Ora, o Jorge, ha de resignar-se e casará com outra. Não é a primeira paixão que tenha tido, nem ha de ser a ultima...
-- E talvez ella ainda se resolva...
-- Talvez...
Depois do almoço, Bertha foi para o seu boudoir e o marido para o seu gabinete.
Em uma grande salva de prata que o creado puzera sobre a meza, estava a correspondencia do medico.
O Doutor pegou-lhe machinalmente.
Em quanto almoçava, despertara-se-lhe uma ideia que a sua imaginação enfeitava com as garridas roupas da sua phantasia.
Pensara em ceder parte da sua clientela a um collega, a fim de ter, durante o dia, algumas horas que consagraria inteiramente a Etelvina. Oh! iam ser felizes, muito felizes!
E, impaciente, olhava para o relogio que caminhava n'esse dia com uma lentidão atroz.
É que o Doutor esperava anciosamente pelo meio dia, hora em que poderia, sem faltar as regras da etiqueta, apresentar-se em casa de Etelvina. Tinha tanto que lhe dizer! Queria fallar-lhe nos seus projectos, nos seus sonhos, no seu amor!
Mas, infelizmente, o ponteiro movia-se cada vez mais lentamente! Eram apenas onze horas.
A fim de passar mais distrahidamente os sessenta minutos que o separavam da felicidade, o Dr. Sandoval lançou mão da salva de prata que continha a sua correspondencia e, pondo, de parte os jornaes, começou a abrir as cartas, que eram numerosas.
De repente, estremeceu; reconhecera n'uma d'ellas a lettra de Etelvina.
Tomou-se muito pallido e abriu-a com um palpitar de coração bem facil de imaginar. Era muito curta essa carta, e via-se que fôra escripta á pressa. Eis simplesmente o que dizia :
«Acabo de receber um telegramma de meu pae. Minha mãe foi attacada por uma congestão, esta gravemente doente e quer ver-me. Que contraste ! Eu tão feliz, e ella a morrer! E, isto quasi a mesma hora! Parto pelo primeiro comboio.
Etelvina.»
O Doutor cobriu de beijos aquella carta em que pousara a mão perfumada da mulher que amava.
E assim, partira! Oh! não a censurava! Fizera o seu dever e elle seria o primeiro a aconselhar-lhe que fosse receber o derradeiro suspiro da mãe moribunda. Mas, que saudades ia ter!
A fim de as attenuar um pouco, resolveu ir photographar-se. Promettera o seu retrato a Etelvina e os retratos que tinha eram todos antigos.
Antes de sahir, carregou n'um embutido da secretaria, e abriu uma gaveta de segredo, onde horas antes, guardara o retrato e o lenço de Etelvina. Ia a guardar a carta, mas susteve-se.
Não, murmurou, um retrato, sem dedicatoria, pouco compromette uma mulher, mas, uma carta... posso morrer de repente...
E, heroicamente, reduziu a cinzas a carta que minutos antes cobrira de beijos.
Ao sahir de casa do photographo, entrou n'uma livraria e tomou assignatura de todos os jornaes do Minho.
Era uma maneira indirecta de ter noticias de Etelvina, tendo-as da província onde ella habitava...
E decorreram quinze dias ! Quinze dias mortalmente longos para o Dr. Sandoval, que esperava impacientemente, sem nunca a receber, uma carta de Etelvina.
Todos os dias, dizia, de si para si : -- Ha de ser amanhã. -- Chegava o dia se guinte, o Doutor levantava-se, vestia-se, almoçava e ia para o seu gabinete esperar pela chegada do correio. Oh! esperava-o febrilmente, passeando agitado, estremecendo ao menor toque da campainha electrica, despachando, sem a sua habitual minuciosidade, os raros clientes que admittia á consulta.
Muitissimas vezes pegou na penna para escrever a Etelvina; mas sempre adiava a remessa da sua carta.
Ella não o auctorisara a escrever-lhe, e, depois, não seria um egoísmo, uma indelicadeza, ir falar-lhe de amor quando ella velava a sua mãe agonisante?!
E, n'estas alternativas de esperança e desespero, de resolução e receio, decorreram quinze dias, quinze enormes dias !
Mas, no dia em que finalisavam, e, quando o Doutor percorria rapidamente os jornaes do Minho, de que se tornara assignante, deparou-se-lhe uma local tarja da de preto, e leu com muita commoção a noticia da morte de D. Genoveva Ramalho.
Oh! mais do que nunca deplorou o Doutor os grilhões que o escravisavam. Não poder voar junto de Etelvina, não po der suavisar-lhe por inequivocas provas de affecto a dor que devia pungir-lhe o coração !. Desapparecera toda a sua hesitação; pegou na penna e escreveu immediatamente :
Minha Etelvina
Eu tambem perdi a minha mãe, e, posto haverem já decorridos tres annos depois de que me faltou a chamma do seu aífecto, ainda nem um dia, sequer, deixei de lembrar-me d'aquella doce velhinha para quem eu era a luz dos olhos e o balsamo do coração ! Isto é dizer-te que a dor que hoje te punge está ao meu alcance. Sei comprehendel-a. Quizera estar ao teu lado a fim de chorar comtigo; a distancia, porém, posto que curta, é enorme para nos !
Quando voltas a Lisboa?
Ha aqui um coração que anceia por ti como o peregrino pelo oasis, como o naufrago pelo porto, como o cego pela luz!
Oh! a esse coração parecem annos as horas e seculos os dias! Oh! esse coração tem atravessado, durante os ultimos quinze dias, uma eternidade de soffrimentos!
Quando terá elle o balsarno salutar das tuas lettras ? Mas, não quero ser egoísta, e, visto que, infelizmente, não posso attenuar a dor lancinante a que estás entre gue, não quero tambem perturbal-a com exigencias que, representando para mim a felicidade, podem representar para ti um pequenino enfado.
Todo teu
L. de S.
Apenas escripta esta carta, o Dr. Sandoval sahiu e foi pessoalmente deital-a no correio, não se esquecendo de a registar.
N'esse dia, uma sexta-feira, jantaram em casa do Dr. Sandoval o conde da Trafaria e seu filho, o capitão Jorge. O capitão de artilheria ouvira da bocca da irmã a resposta de Etelvina; mas não desanimara.
A sua paixão não era precisamente delirante, é mister que se diga.
Agradara-se de Etelvina, em grande parte, por causa dos elogios encomiasticos que lhe ouvira fazer pela irmã; analysara-a e reconhecera que era uma viuva adoravel, e que tinha, entre outros attractivos, e alem de uma boa herança em perspectiva, uma fortuna superior a quarenta contos.
Fez-lhe uma corte attenciosa e discreta, pela qual ella nem sequer deu, depois incumbiu o cunhado de lhe falar, e, ao re ceber a sua resposta, resolvera tentar um golpe de mestre, e expunha-o a irmã, emquanto o conde, no quarto do bilhar, se exercitava a carambolar.
Concluia a sua exposição com manifesta approvação de Bertha, quando o Doutor entrou.
-- Ma noticia, disse este, depois de cumprimentar o cunhado, e sentando-se ao pe da esposa, morreu a mãe de Etelvina...
-- Morreu?! exclamou Bertha muito pallida. Oh! Pobre Etelvina! E não estar eu là para lhe fazer companhia!
-- Porque não vais? objectou o irmão.
-- E talvez tenhas razão! Sim, porque não vou eu la estar uns dias com ella? Tu, Luiz, não te oppões?
-- Eu ?! Ora essa!
-- Então partirei amanhã sem falta alguma, e pelo primeiro comboio.
-- Acompanho-te, disse Jorge.
O Doutor olhou para o capitão com uma expressão que não era precisamente benevola.
-- Sim, continuou o oficial, dirigindo-se ao cunhado. Tu não podes ir; eu obtive do ministerio da guerra um mez de licença, e, por conseguinte, acompanho-a na viagem. Ella vae para casa da amiga, eu vou para uma hospedaria, e d'aqui a dias acompanho-a para aqui.
O Doutor nada tinha a dizer e nada dizia; mas estava contrariado.
Elle, escravo dos seus deveres profissionaes, ficava preso em Lisboa emquanto que o outro, o pretendente, lá corria para junto da mulher amada, que não poderia deixar de ficar commovida por aquella prova de amor!
O Doutor, de certo, tinha confiança em Etelvina, ella amava-o delirantemente, e já lh'o provara; mas, no entanto, aquella partida do cunhado contrariava-o horrivelmente, e durante o resto da noite, esteve sombrio e preoccupado.
No dia seguinte, pelo comboio da ma nhã, partiram Bertha e o irmão para a aldeia onde residia então Etelvina.
Era um domingo. Domingo triste, como o são sempre os domingos em casa de anojados.
No entanto, Etelvina, sentada junto á janella do seu quarto, com a fronte encostada a mão, parece pensativa, mas não triste.
É que n'esse dia recebeu uma carta do homem a quem ama mais do que á vida, mais do que a honra, mais do que a Deus.
Pela manhã, Philomena, a sua creada, trouxera-lhe uma carta, dizendo ao mesmo tempo que o distribuidor esperava pelo recibo.
E Etelvina, com um sobresalto de coração, reconhecera no sobrescripto a lettra miudinha e elegante do Doutor Sandoval, do homem amado!
Tremula de commoção, assignara o recibo e fechara-se, a fim de ler, reler e beijar mil vezes aquelle papel insensível que servia de transmissor a dois corações ambos leaes, ambos apaixonados!
Haviam decorrido algumas horas, e ella sempre enlevada n'aquella leitura mil vezes repetida!
Sabia já de cor a carta do Doutor, e, quando a não lia, repetia-a mentalmente. De repente, bateram-lhe a porta do quarto.
-Quem e? perguntou, impaciente como todos os namorados arrebatados a sua contemplação.
-- Minha senhora, minha senhora, disse da banda de fora a voz da creada, esta aqui a sr.a D. Bertha, que acaba de chegar de Lisboa e que pergunta pela senhora.
Etelvina correu a sala. Bertha abraçou-a effusivamente, misturando as suas lagrimas com as d'ella.
-- Vens só? perguntou Etelvina, passa dos os primeiros momentos.
-- So? Não. Jorge acompanhou-me até aquL
-- Ah! exclamou Etelvina.
E n'aquella exclamação havia alguma surpreza, mas muita decepção. E accrescentou :
-- Como está teu marido?
-- Esta muito bom. Talvez viesse se não noticiassem os jornaes a entrada do cholera em Hespanha. Facilmente passará a fronteira o terrivel invasor, e elle por cousa nenhuma quer desamparar o posto.
O resto do dia passou-se entretido para Etelvina. Apresentou a amiga ao pae e irmãos, tratou de lhe preparar o quarto; não teve, em summa, um minuto de seu.
Decorreram alguns dias.
Caetano Ramalho, ao saber que a amiga de sua filha fôra acompanhada por um irmão, foi procural-o e offereceu-lhe a casa.
O capitão usou largamente d'este offerecimento, e, em pouco tempo soube insinuar-se no animo do velho lavrador, que, em breves dias, não podia quasi passar sem o seu novo amigo.
O capitão jogava com elle a bisca durante horas inteiras, fingia interessar-se pela lavoura, admirava-lhe enthusiasticamente os cevados e as juntas de bois, e cultivava esmeradamente a sympathia que, de introducção, captara ao rico proprietario minhoto.
Se fazia, porém, progressos no coração do pae, não os fazia no da filha.
Etelvina acolhia-o sempre com uma reserva glacial, e, a maior parte das vezes, retirava-se para o seu quarto com Bertha, deixando o pobre oficial soffrer com uma paciencia angelica as massadas que lhe dava seu pae, fallando-lhe, de umas terras que pretendia semear de batata, já de um casal de suinos que mandara vir do Alemtejo.
Uma noite, poucos dias depois da chegada de Bertha, em que o capitão jogava pachorrentamente a bisca de quatro com Caetano Ramalho, o vigario e o professor da freguezia, haviam as duas amigas ido passear para a quinta que ficava contigua a casa do pae de Etelvina.
Alli, sentada sob uma latada expessa mente coberta de folhas, pelos intersticios das quaes mal cabiam os tenues raios da lua, conversavam Bertha e Etelvina.
Falaram de Lisboa, dos seus serões, das suas amigas commons, e, por fim, vieram a falar de amor.
-- Pois tu, dizia Bertha, has de dizer me que nunca amaste?
-- Nunca, respondia Etelvina com a voz um pouco tremula, nunca amei. E amar para quê? Imaginas que se encontram muitos maridos como o teu?
-- Oh! sei que não, respondia a esposa do Dr. Sandoval. Sei que Luiz é um homem excepcional e faço-lhe inteira justiça.
-- Os homens, minha querida, retorquia Etelvina, fazem-nos sempre soffrer, quer sejam despostas e grosseiros, quer nos dêem motivos a ciumes.
Bertha suspirou.
-- Já tiveste algum dia ciumes? perguntou Etelvina.
-- Quiz tel-os, logo que casei, mas o Luiz convenceu-me de que nada havia mais pyramidalmente burguez, mais supinamente ridiculo, e eu... deixei-me convencer, mas, se fosse dada a isso...
-- Terias motivos para tel-os?
-- Mas muitos! Olha, imagina: poucos dias depois da tua sahida de Lisboa, vieram dizer-me que estava na ante-camara um sujeito que queria fallar ao Luiz, e, na sua ausencia, a mim.
-- E depois ?
-- E depois, fui; era um empregado de uma ourivesaria da rua do Ouro. Entregou-me um pequeno embrulho e disse-me: Aqui esta a medalha que o sr. Doutor encommendou la na casa. Como é objecto de valor não o quiz entregar senão a V...
-- Em quanto importa? perguntei.
-- Em duzentos mil reis. Os brilhantes são purissimos como S. Ex.a recommendou.
E sahiu. Fiquei eu com aquelle pequeno em brulho lacrado na mão.
De certo, pensava eu, é uma surpreza que o Luiz me quer fazer, e, não querendo tirar-lhe esse prazer, fui pol-a sobre a meza do seu gabinete, certissima de que, a noite, ou, ao mais tardar, no dia seguinte, me viria ter as mãos.
-- E depois? perguntou Etelvina.
-- Decorreram tres dias, e... nada, até que, ao quarto dia, lendo o Diario Illustrado, vi n'elle que fizera annos uma bailarina, de quem Luiz, por vezes, falara diante de mim. O Diario publicava uma lista dos offerecimentos que lhe haviam feito os seus admiradores, e mencionava uma medalha cravejada de brilhantes.
--Oh! E tu nada lhe disseste?
-- Nada absolutamente. Se eu lhe falasse n'isso, obrigava-o a mentir, e Luiz, que odeia a mentira, não m'o perdoaria. Calei-me pois, e aconselho-te a que, se um dia casares, procedas de forma identica.
A manifestação dos ciumes é uma medida preservativa que da sempre effeitos contraproducentes, crê.
A mulher que desconfia de que passou ao marido o enthusiasmo dos primeiros tempos, deve tentar reapoderar-se-lhe do coração por outra forma, diligenciando tornar-se-lhe agradavel e não massadora. E isto é logico. A sua rival, a amante, so tem para o marido carícias que o enlouquecem e risos que o alegram; a mulher legitima, com as suas lagrimas, entristece-o, se elle É bom, e desespera-o, se é dotado de mau genio. O espectaculo de uma mulher pallída, chorosa, doente, proferindo incessantemente recriminaçöes torna se-lhe insupportavel, e, sem querer, por melhor que seja, estabelece uma comparação entre uma e entre outra. Uma, representa o crepusculo nostalgico e triste, a outra a aurora nitida e brilhante. A mu lher entristece-o, a amante alegra-o. O resultado é que o marido toma a casa em horror e forceja distrahir-se por fora, preferindo as companhias as mais insipidas e indifferentes Á de uma mulher que o ama, mas que o tyranisa implacavelmente.
Ora, é precisamente isto que eu não quero. Soffra eu o que soffrer, o Luiz ha de ser sempre feliz, e bem cedo comprehenderã que os bastidores do melhor theatro do mundo, não valem a sua casa, e que as carícias interesseiras de uma bailarina nada valem, comparadas com o affecto leal, profundo, mas nada egoísta nem absorvente, de sua mulher.
Quem ensinaria aquella rapariga de vinte e cinco annos esta philosophia tão verdadeira e racional, quem?
Muito simplesmente o seu coração de mulher, que levava o amor até a abnegação, o sacrifício até ao heroísmo!
-- Oh! dizia Etelvina, de si para si, fazendo esforços heroicos para conter as lagrimas de desespero, pensas assim porque não o amas como eu o amo!
Enganava-se.
Bertha de Sandoval talvez não amasse mais ao marido que Etelvina ao amante, mas amava-o certamente melhor!
Depois da conversa que narrámos, passada entre as duas amigas, Etelvina recolhera ao seu quarto n'um estado de desespero impossivel de descrever!
Assim, o homem a quem amara a ponto de lhe sacrificar todos os seus deveres, esse homem que tomara no seu espirito as proporções de um deus, esse homem, cujo coração so se podia comparar com a sua intelligencia, nada mais era do que um seductor vulgar, um D. Juan habil e perigoso, que passava, no seu voltear de borboleta inconstante, da aristocrata a bailarina, ostentando as suas conquistas repetidas, ora nas salas, ora nos bastidores!
E chorava de desesperação, chorava de despeito, chorava de ciumes, lembrando-se que aquelle amor, que representava para ella o idyllio unico da sua vida, nada mais fôra para elle do que uma diversão momentanea, um capricho de poucos mezes.
Ella, que emquanto velara a sua mãe moribunda, não tivera um pensamento que lhe não pertencesse, unica e exclusivamente a elle, ver que era esquecida tão vilipendiosamente, e que aquelle amor tão sincero e ardente era calcado aos pes por aquelle que o inspirara !
Mas, então, porque lhe fallava elle sempre com aquella voz commovida, que tanto a impressionava, e que accelerava tão poderosamente as palpitações do seu coração? Porque a contemplava as furtadelas com o olhar expressivo de um homem loucamente apaixonado? Porque a cercava de attenções infatigaveis e discretas, porque exercera sobre ella, durante mezes, uma vigilancia tão affectuosa que era quasi paternal? Porque, n'aquella noite que precedera a sua sahida de Lisboa, a não deixara chorar livremente o isolamento do seu coração? Oh! porque lhe dissera, cingindo-a contra o peito, estas palavras que pareciam ser tão sinceras, tão expontaneas, tão apaixonadas : «Amo-te! Oh! amo-te! adoro-te !»
E Etelvina, meio louca de dôr, não atinava com outra resposta a estas perguntas, a não ser:
-- Oh ! é um infame! Quero odial-o !
Mas, em vão repetia innumeras vezes essas palavras; la estava o seu coração, a dizer-lhe que o amor que lhe consagrava estava profundissimamente arreigado e que não dependia d'ella o arrancal-o do seu coração! Havia dias que escrevera uma extensa carta ao Doutor, uma carta em que lhe renovara todos os seus protestos, em que expandira em phrases delirantes tudo o que lhe ia no intimo!
Não a deitara, porem, no correio, esperando occasião em que podesse fazel-o pessoalmente, e, n'essa noite de desesperação enorme, reduziu-a a migalhas imperceptíveis quasi, lastimando não poder fazer o mesmo ao seu coração, a ver se assim conseguiria arrancar-lhe aquelle amor fatal!
Dias depois d'aquella noite, que devia ter uma tão decisiva influencia na vida de Etelvina, começou Bertha a falar em voltar a Lisboa.
Etelvina fez grandes esforços para a demorar mais uns dias. Achava-se então n'um estado de abatimento physico e mo ral que a fazia passar dias inteiros sentada no vão de uma janella, perfeitamente immovel e com os olhos perdidos no vacuo!
Onde lhe iria então o pensamento?
O medico, chamado por Caetano Ramalho, receitara-lhe exercicio e distra eções, e dissera em particular ao seu velho amigo que deixasse voltar a Lisboa a filha, que se aborrecia da sua solidão.
Por esse tempo, pareceu ao capitão Jorge que fazia alguns progressos na estima de Etelvina, que esta lhe acceitava com melhor vontade o braço, quando iam a algum passeio, e que escutava as suas conversas com mais um bocado de attenção.
Animado por estes auspícios, que julgou favoraveis a sua pretenção, Jorge abriu-se com o velho lavrador e confessou-lhe que amava a filha.
Caetano Ramalho falou n'isso a Etelvina.
Esta ouviu-o indifferente. Que lhe importava a ella que alguem a amasse e soffresse? Não soffria ella tambem?
Mas o pac falou-lhe na constancia do official que, repellido uma vez, continuara sempre a amal-a.
Etelvina constatou que, effectivamente, Jorge fora tão leal quanto o cunhado fora vil, e começou a affazer-se a pouco e pouco a ideia de o desposar um dia...
Mas, o argumento decisivo, o que mais a movera a familiarisar-se com esta ideia que, mezes antes, repellira com horror, foi a lembrança de que assim se vingaria de Luiz, pagando-lhe esquecimento com esquecimento, frieza com frieza, ingratidão com ingratidão !
Sim, iria para Lisboa, mostrar-se-hia apaixonada pelo marido, e sentir-se-hia feliz, se, uma vez, uma so vez, divisasse na face pallida ou nos olhos negros do Doutor, um unico vislumbre de ciume!
E completamente possuída por esta ideia de vingança irresistívelmente deseja da, escreveu ao Dr. Sandoval a seguinte carta, dictada unicamente pelo seu despeito, pelo seu orgulho, pelo seu ciume:
Meu caro Doutor
A sua esposa quer-me para irmã.
Não tenho, em toda a minha vida, se não uma falta,-- que conhece -- e venho perguntar-lhe se ainda me acha digna de fazer parte da sua familia.
De V. Ex.'
Etelvina Ramalho.
A carta de Etelvina, que náo fôra registada, teve demora no correio, e, por acaso, chegou a Lisboa no mesmo dia em que regressaram ao capital Bertha e seu irmão.
Não nos devemos admirar d'isso.
A província do Minho faz parte de Por tugal, e os correios de Portugal são os mesmos em todo o reino.
Luiz de Sandoval fôra a gare buscar a esposa que lhe annunciá-l'a a sua chegada para esse dia.
Durante o trajecto, da estação a casa, falaram de Etelvina.
Chegados a casa, almoçaram, e quan do o Doutor entrou no seu gabinete e revistou a correspondencia, deparou com a estupenda carta que sabemos.
Abriu-a immediatamente e leu-a.
Leu-a e releu-a muitas vezes. Aquillo parecia-lhe um sonho mau de que despertaria em breve.
Sentia a cabeça n'um cahos inexpremivel! Sentia-se profundamente ferido no seu coração e no seu orgulho.
Durante duas horas, com a fronte em fogo e o rosto entre as mãos, perguntou a si proprio se seria o ultimo amor que valia mais que o primeiro, ou então se seriam os homens que valiam mais que as mulheres.
A mulher, um ente futil, pensava elle, passeando a largos passos pelo seu gabi nete, que não pensa senão em vestidos e penteados, que chora como o crocodilo, para attrahir a preza, e que, com as suas pequeninas botas de tacões aliados, nos tritura o coração!
No entanto, reapoderando-se do seu sangue frio, sentou-se a sua banca e escreveu :
Minha senhora
Remetto-lhe o enveloppe da sua carta. Pelo carimbo de Lisboa vera V. Ex.a que só hoje me foi entregue.
Respondo-lhe immediatamente.
A carta de V. Ex.a surprehendeu-me, por ser inutil o seu assumpto.
Tanto eu como minha mulher teremos muita honra em que V. Ex.a se digne entrar na nossa familia.
Sou, de V. Ex.a
Respeitoso creado
Luiz de Sandoval
Escrípta esta carta, foi o Doutor deital-a no correio, registando-a.
Aquella, ao menos, não teria demora, Etelvina recebel-a-hia no dia seguinte!
Aconteceu a Etelvina o que sempre acontece a quem não tem a prudencia necessaria para moderar as suas primeiras impressões.
Apenas mandara para o correio a carta que escrevera ao Doutor, arrependera-se amargamente de a ter escripto e chegou a mandar um creado em procura do que levara a carta : este, porém, alcançou-o quando regressava a casa, depois de ter cumprido a sua missão. Etelvina, então, sahira, como doida, e correra à estação, pedir ao empregado superior que lh'a entregasse de novo. Respondeu-lhe este que a mala partira n'essa mesma ocasião para o Porto, d'onde seria remettida para Lisboa.
Etelvina voltara a casa n'um estado de tristeza indescriptivel. A unica cousa que poderia sanctificar a sua fraqueza aos olhos do Doutor, era o profundissimo amor que tinha por elle, e eis que ella lhe provava que o não amava, que o não tinha amado nunca! Que ideia faria o medico de uma mulher que, pouco mais de um mez depois do dia em que lhe jurara e provara amal-o ardente e irresístivelmente, lhe participava que pretendia casar com outro homem?
Oh! de certo, despresal-a-hia, como se despresa uma mulher que tributa o seu amor ao primeiro que lhe apparece!
E Etelvina, que julgara, ao escrever aquella carta, attingir ao ceu da vingança, estava mergulhada no inferno insondavel do remorso !
Decorreram alguns dias.
E Etelvina dizia, de si para si:
-- Oh ! isto é o cumulo do soffrimento !
Elle nem responde a minha carta! D'ora avante banir-me-ha da sua casa, julgando me uma companhia perigosa para a mulher! Abrirá os olhos ao cunhado, indicando-me como indigna do seu nome! Oh! que fiz eu, para soffrer tanto?!
No dia seguinte, porém, a partida de Bertha, Etelvina recebeu a carta fria, ceremoniosa e correcta do Doutor.
Oh! essa carta, tal e qual era, tornou-a feliz! Luiz de Sandoval não a desprezava tanto quanto ella julgara!
Decorreram mais uns mezes.
Bertha escrevia a Etelvina tão affectuosamente que lhe provava que o marido, em quem ella tão cegamente cria, nada lhe dissera a seu respeito; o capitão Jorge de Albuquerque escrevia a Caetano Ra malho, enviando-lhe, inclusas, longas cartas para a filha, de quem, ja então, era considerado noivo official.
Etelvina, incessantemente convidada por Bertha, tencionava ir para Lisboa um ou dois mezes antes da epoca fixada para o casamento, afim de lá cuidar da mobilia e aprestes do enxoval.
Seis mezes depois da morte de sua mae, partiu Etelvina para a capital.
O pae acompanhou-a até ao Porto.
Do Porto a Lisboa viajou so, unicamente acompanhada pela creada.
Quão differente era aquella viagem da que fizera mezes antes, ao receber o telegramma em que o pae lhe noticiava a doença da mãe! Oh! quão differente era!
Tinha entao o coração cheio de amor, e ainda lhe echoavam aos ouvidos os protestos com que, na noite anterior, a havia embalado o homem amado.
Mas, agora...
Oh! agora só tinha na alma a esterilidade dos desertos africanos, a desillusão amarga de quem viu calcar aos pés os seus affectos mais santos, os seus mais roseos sonhos !
E ia casar! Casar para que? repetia ella a si propria! Para ligar um desgraçado á sua desgraçada sorte, para ser mais infeliz ainda do que era então, em que, ao menos, podia chorar livremente !
Entrou em Lisboa.
Bertha, a quem dissera que devia chegar n'esse dia, esperava-a na gare.
-Nào sabes? disse-lhe, depois das primeiras effusões, vais para a minha casa.
E accrescentou rindo:
-Nao é bonito que uma noiva esteja só, sem ter quem lhe sirva de Mentor, e tu, por conseguinte, vais morar comnosco até ao teu casamento.
Já então subira incautamente Etelvina para o coupé de Bertha.
-El uma surpreza, dizia esta, alegre como sempre, o Luiz nada sabe. Vae ficar contentissimo, emquanto ao Jorge, endoidecerá de certo de alegria! Ama-te tanto!
Pouco depois parava o coupé á porta do Dr. Sandoval.
Etelvina sentia calafrios só com a ideia de ver o Doutor, de affrontar aquelle olhar negro e brilhante, que tantas coisas boas e suaves lhe dissera, e no qual ella tremia agora de ver uma censura acerba e vibrante!
Subiram a larga escada alcatifada, que Etelvina tantas vezes galgara com o coração palpitante de alegria a ideia de ver o Dou tor.
Etelvina tremia, a cada passo imaginava vel-o surgir, frio como a censura, implacavel como o remorso! Mas chegou felizmente ao quarto que a amiga lhe destinara sem lhe ter sequer ouvido a voz. E então lembrou-se de que era aquella a hora em que elle sahia a ver os seus doentes.
--Fiz mal em vir para ca, disse ella, ao sentar-se n'uma cadeira, e ainda vou para a minha casa. Teu marido pode não gostar...
-Não gostar? Quem? Luiz? Ora deixa-te d'isso! Tu ate não sabes quanto elle e teu amigo!
E. abraçando-a, deixou-a dizendo-lhe: -Ate logo, ca te venho buscar as horas do jantar.
Etelvina fechou-se por dentro e começou com terror a lembrar-se da hora do jantar, em que veria irremessivelmente aquelle cuja presença, pela primeira vez receava.
Sentada junto a porta, incapaz da mais insignificante occupação, estremecia ao menor ruido de passos, e, de bocado a bocado, olhava para o relogio, seguindo a acelerada marcha do ponteiro que mais e mais se approximava da hora fatal.
Deram afinal, cinco horas, e, minutos depois, sentiu o passo leve de Bertha no corredor que ia ter ao seu quarto.
-Anda cá, disse-lhe esta rindo. Hoje é tableau completo. Imagina que janta cá o Jorge! Estão ambos na sala e mal sabem a surpreza que vão ter! Vamos depressa !
E, uma, alegre e risonha, a outra, livida, cambaleante quasi, foram para a sala.
O capitão, sentado a uma banca, lia o Diario Illustrado; o medico, meio deitado n'uma poltrona, parecia scismar profundamente.
Bertha entrou, precedendo Etelvina, e, muito alegre:
-Jorge, aqui tens a tua noiva! Luiz, a tua cunhada!
E dava palmas, com um arrebatamento ingenuo de mulher nova e feliz.
Os dois homens levantaram-se precipitadamente.
Jorge, muito vermelho e atrapalhado, o Doutor, muito pallido e ceremonioso !
Cumprimentou Etelvina com requintes de delicadeza, mas glacialmente, e, durante o jantar, só lhe dirigiu a palavra quando o exigiam os seus deveres de dono de casa.
Etelvina contemplava-o furtivamente e sentia o coração confranger-se ao ver a mudança que elle, em tão pouco tempo, fizera.
Estava muito magro, e muito pallido, e numerosos fios de prata se entremeavarn entre os anneis sedosos dos seus cabellos de ebano.
Emquanto a expressão do seu olhar, não sabia ella qual fosse, pois os olhos de Etelvina e os do Doutor teimavam em se nao encontrarem e... não se encontravam.
Depois do jantar, foram, como de costume, para a sala, e o Doutor, que, segundo disse, tinha um doente perigoso a quem ia ver, despediu-se e sahiu.
E Etelvina ficou abysmada n'um pensamento atroz ! Reconhecia que o amava mais do que nunca.
Quereria cahir-lhe aos pes, pedir-lhe que, ao menos, lhe perdoasse e lhe ouvisse a confissão do seu amor. Quasi esquecera completamente a historia da bailarina! E, de si para sí, comparava-o com o noivo, alegre, folgasão, bom rapaz, mas insignificante, um d'estes homens que se encontram a cada passo, e nada mais.
E emquanto Bertha e Jorge discutiam todos os pormenores do casamento, fazia ella esforços inauditos para não chorar!
Passaram-se tres semanas.
Etelvina e o Doutor só se viam ás horas das refeições.
Elle era sempre, para ella, attencioso e delicado, mas a sua familiaridade affectuosa d'outr'ora desapparecera totalmente:
Interpuzera-se entre elles uma barreira de gelo, que nenhum dos dois queria nem tentava destruir.
Qualquer dos dois evitava cuidadosa mente as occasiões em que podessem falar se mais intimamente.
Oh! estavam para sempre separados aquelles dois corações que uma paixão irresistivel attrahira um para o outro !
E os dias passavam, lentos para o capitão que, afinal, se apaixonara a valer, mas immensamente rapidos para Etelvina e, talvez, para mais alguem...
Faltavam oito dias para o casamento.
Eram cinco horas da tarde.
Bertha fora a casa da costureira provar o vestido para a ceremonia nupcíal, o Doutor sahira, como de costume, e Etelvina ficara só em casa.
Profundamente triste, foi a sala, a fim de se distrahir por um pouco, tocando piano, mas a musica incommodou-a mais ainda, e, como, n'essa ocasião, entrara o creado trazendo os jornaes do dia, sentou-se a banca e começou distrahídamente a lel-os.
De repente, ao ler o Diario Ilustrado teve um sobrasalto. O Diario d'esse dia inseria na sua pagina nobre o retrato de Virginia Bella, a dançarina a quem o Doutor Sandoval offerecera uma medalha que, e lembrava-se d'isso com desespero, devia conter o seu retrato! O seu retrato, que elle lhe promettera e nunca lhe dera!
Os leitores estao lembrados de que o Dr. Sandoval fora photographar-se no dia em que Etelvina partira para o Minho, e que, depois, escrevendo-lhe por occasião da morte de sua mae, não julgara a proposito perturbal-a na sua piedosa saudade.
Etelvina olhou para o retrato da bailarina com um mixto de dôr e odio indescriptivel !
N'essa occasião, sentiu passos; voltou-se; era o Doutor.
O medico cumprimentou-a attenciosa mente.
Voltara a casa mais cedo do que de costume, e, como tinha de esperar pelo jantar, ia a sala buscar os jornaes do dia a fim de passar o tempo lendo-os.
Pegou na Gazeta de Portugal e dirigiu-se para o seu gabinete.
Etelvina voltou-se, e encarando-o frente a frente, pela primeira vez, depois da sua chegada, perguntou:
-Faço-o fugir? Fique, que eu retiro-me.
-Oh ! minha senhora, exclamou o medico, por quem é, deixe-se ficar! V. Ex.a lia e eu nao quiz perturbal-a, eis tudo !
E sentou-se, abrindo ali mesmo o jornal em que pegara.
Etelvina olhou-o. A serenidade d'elle levou a sua impaciencia ao ultimo grau, e, ironica :
-O Doutor procura talvez o Diario Illustrado ?
-Nao, minha senhora, prefiro a Gazeta de Portugal.
-Mesmo hoje ?
O medico olhou-a com surpreza.
-Mesmo hoje.
-O Doutor já viu o Diario Ilustrado?
-Nào, minha senhora, quando V. Ex.a concluir...
-Ah! não o viu; aqui esta porque fala assim! Pois olhe que vem hoje interessante! E como o Doutor nada retorquisse, continuou, sempre ironica:
-Traz o retrato de uma mulher a quem os homens casados offerecem medalhas cravejadas de brilhantes...
-Os homens casados, minha senhora, nem sempre podem ser superiores ás suas paixões...
-Ah! foi paixão ?! Effectivamente, não podia deixar de ser... uma medalha... um retrato...
Luiz de Sandoval desdobrou o jornal que tinha na mão.
-Oh! exclamou Etelvina completamente fóra de si, como é tão pouco curioso! Nem ao menos quer ver o retrato! Bem sei que o original...
O Doutor, sempre sereno, abandonou o seu jornal.
-Se V. Ex.a m'o quizer mostrar...
-Pois não, olhe, veja ! E estendeu-lhe o Diario.
O Doutor pegou-lhe e olhou-o com indifferença:
-Ah! a Virginia Bella, a bailarina!
E restituiu o jornal.
-Estou certa de que o original é muito superior á gravura.
-Não sei, minha senhora, ja ha tempos que deixei de frequentar os bastidores.
-A sua reserva é digna... de ser imitada; mas, imagina acaso que não chegaram ao Minho os echos d'essa sua paixão?
-V. Ex.a foi illudida, eu nunca vi essa mulher, a não ser no palco.
Etelvina soltou uma gargalhada insultante.
O Doutor, sempre sereno, permanecia imperturbavel.
-E ainda se disse mais; sei todos os pormenores!
--Poderei esperar que V. Ex.a me faça a graça de me transmittir alguns?
-Pois não! Olhe: essa mulher fez annos ha poucos mezes.
-Não duvido.
-E no dia dos seus annos foi-lhe offerecida por um dos seus admiradores uma medalha cravejada de brilhantes. . .
--Nada mais natural.
-Ah! acha natural? ... Essa medalha fora, dias antes, encommendada a um ourives da rua do Ouro...
--Continua a narração de V. Ex.a a ser naturalissima; na rua do Ouro estão estabelecidos os mais acreditados ourives da capital.
-E sabe quem a encommendou?
-Não, minha senhora.
Etelvina soltou segunda gargalhada tão ultrajante como a primeira.
--A historia de V. Ex.aL pode ser que seja verdadeira em tudo, excepto com relação ao nome do heroe, ou... da heroina...
Etelvina estava excitadissima. Aquella fria serenidade exasperava-a! Pois aquelle homem não via que ella o amava? Oh! elle é que nunca a amara.
E, encarando-o frente a frente, exclamou :
--Mente !
O Doutor empallideceu e durante uns segundos os seus olhos fuzilaram raios, mas bem depressa readquiriu a sua fria indifferença, sorriu, e desdobrou mais uma vez o jornal que conservava na mão.
Etelvina não sabia bem nlessa occasião se o que sentia era vontade de lhe cahir nos braços ou de o matar.
-Eu excedi-me, disse-lhe ella, muito baixo, e peço-lhe perdão. Mas, como quer que eu o acredite se tenho provas do contrario do que me diz?
-Diga-me quaes são essas provas. Eu refutal-as-hei.
-É ou não verdade que encommendou uma medalha com brilhantes?
-É verdade.
-Na rua do Ouro?
-Na rua do Ouro.
-E essa medalha...
-Essa medalha continha o meu retrato e era destinada a alguem que m'o pedira. Ignorava então que o amor d'esse alguem teria a duração das rosas! Queira V. Ex.a seguir-me.
O Dr. Sandoval, seguido por Etelvina dirigiu-se ao seu gabinete, abriu a gaveta de segredo que sabemos, tirou de lá um escrinio de pellucia cor de rosa, deu-lh'o. Etelvina abriu-o com mão convulsa.
Continha uma medalha de ouro despolido sobre a qual havia um E formado por alguns brilhantes de rara belleza.
Etelvina occultou o rosto entre as mãos. Comprehendia tudo!
O Doutor levantou-se e começou a passear nervosamente pelo gabinete.
Despertou-o dos seus pensamentos o ruido doloroso do soluçar continuado de Etelvina.
Foi sentar-se-lhe ao pé.
-Porque chora?
-Porque te amo e, louca que era, tornei-me indigna do teu amor!
-Não, minha senhora, V. EX.a não me ama. Está um pouco commovida porque tem bom coração e reconhece que foi injusta. .. Eis tudo.
-Oh! exclamou dolorosamente Etelvina, é implacavel!
--Implacavel! Eu! Eu é que mereço este nome !
-Merece-o, sim, porque deixou de amar-me.
-Não foi acaso V. Ex.a que me auctorisou a isso?
-Oh ! mas não comprehendes tu que o meu despeito, o meu amor, o meu ciume, e que me levaram a acceitar para noivo um homem a quem não amo, a quem nunca amarei?
-Não comprehendo vinganças que fazem ou farão um innocente desgraçado.
-Oh! por Deus, tenha compaixão de mim, não me sobrecarregue com o seu desprezo !
E pondo-se-lhe de joelhos aos pes, exclamou:
-Perdoa-me, perdoa-me, e ama-me !
Elle levantou-a nos braços.
-Se soubesses, dizia-lhe ella, cobrindo-o de lagrimas e beijos, se soubesses como tenho soffrido, como tenho chorado ! Imaginar que me não amavas, a mim que te adorava! Ver-te todos os dias, sentir que te amava cada vez mais, e ver-te sempre glacialmente indiffcrente! Oh! que martyrio! que tortura!
-E imaginas que não tenho tambem solfrido? tornou-lhe elle, contemplando-a com infinito amor, sabes tu o que me tem sido a vida, desde o dia em que recebi aquella carta que me escreveste e que me despedaçou o coração, sabes tu os esforços que tenho feito para expulsar do meu cerebro a ideia pertinaz do suicidio, para representar esta comedia de todos os dias, para ter o sorriso nos labios quando tinha a morte no coração ?
-Amas-me então ainda?
-Amo-te mais que a vida, mais que tudo!
E permaneceram durante uns minutos silenciosos, mais apaixonados do que nunca, completamente embriagados pela magia do seu sonho por tanto tempo interrompido.
Etelvina foi a primeira que despertou d'aquelle delicioso lethargo que lhe entorpecera as dores cruciantes.
-Olha, disse-lhe ella, é impossivel que eu case! Não quero, não posso, não devo casar. Felizmente, ainda estou em tempo de remediar o mal que fiz. Somos ambos ricos. Porque nos havemos de sacrificar a uns preconceitos ridículos e crueis?
Vou immediatamente fazer venda das minhas propriedades, embora por metade do seu valor, e fujamos ambos para parte onde ninguem nos conheça e onde possamos viver unica e exclusivamente um para o outro, para o nosso amor! Saio já, vou esperar-te em qualquer hotel, e, pelo primeiro comboio, partiremos para Londres, para Paris, para onde quizeresl
E como elle não respondesse immediatamente, continuou:
-Esta medalha que tanto nos fez soffrer vae afinal unir-nos para sempre! E cobria-a de beijos, com um arrebatamento infantil !
N'essa occasião, sentiram-se passos precipitados na ante-camara que precedia o gabinete do Doutor; Etelvina olhou para elle aterrada, e elle precipitou-se para a porta a tempo de obstar a entrada do ca pitão Jorge.
-Perdão, meu amigo, perdão; não se entra assim no gabinete de um medico...
-Desculpa, exclamou o capitão, mas venho com tanta pressa...
-Queres falar-me ?
-Queria falar a tua mulher, mas, como ella não está...
-Que queres?
-Coisas de quem casa d'aqui a oito dias, meu caro! Quero offerecer uma coisa qualquer a minha noiva.
-E depois?
-Mas eu, ao que dizem, tenho pessimo gosto.
-Não é tanto assim, pensava amargamente o Doutor.
-Fui a um ourives escolher um adereço, continuou o capitão, mas, afinal, receei fazer asneira e aqui trazia tres para Bertha escolher; como ella não está, escolhes tu, que tens tão bom gosto como uma mulher.
-Muito obrigado.
-Um, tornou o official abrindo os estojos, é só de brilhantes, outro de brilhantes e rubis, e o terceiro de perolas e brilhantes. Qual preferes?
-O que tem só brilhantes é mais distincto; chegas, porem, tarde, Bertha offerece um á sua amiga, por conseguinte, deves optar pelo de rubis e brilhantes.
-Muito agradecido, e desculpa. Vou encommendar agora os bilhetes de participação.
Imagina quanto tem que fazer um ho mem que casa d'aqui a oito dias!
-Adeus, adeus! disse o Doutor suspirando.
O oficial sahiu com a mesma pressa com que entrara, e o Doutor ficou por mo mentos immovel, profundamente absorto nas suas meditaçoes.
Depois, levantou a cabeça, e olhou para um retrato pendente da parede, que representava uma mulher de trinta e tantos annos, em cujo physionomia se via uma doçura ineffavel. Esse retrato parecia olhal-o. Minha mãe! exclamou o Doutor, minha mãe! Oh! como o teu filho é desgraçado!
E occultou entre as mãos o rosto coberto de lagrimas ! A sala em que introduzira o cunhado, onde se recebiam as pessoas de maior intimidade, tinha as paredes ornamentadas com retratos de familia. Defronte do da mãe do Doutor, estava o retrato de Bertha, de Bertha antes de casar, quando se achava em todo o esplendor e perfume dos seus dezoito annos virginaes.
O Doutor olhou para esse retrato.
-Ohl murmurou elle, partir, abandonal-a, ella que nunca me deu um unico desgosto em quatro annos de casados, ella que fecha os olhos sobre as minhas faltas com a indulgencia inexgotavel de uma mãe, abandonal-a, oh! não! seria infame!
E, em menos de cinco minutos, toda a vida do Doutor se lhe patenteou aos olhos, tão claramente como se a fitasse pelos vidros de um cosmorama.
Viu-se pequeno, cercado pela idolatria de uns paes que não teem senão um filho!
Viu passar diante de si o vulto respeitavel e distincto de seu pae, bello caracter, valente official, que fizera a campanha da liberdade e morrera aos 52 annos, no posto de general de brigada; lembrou-se da sua vida de estudante morigerado, que vive em Coimbra, em companhia de sua mãe viuva e no goso de um montepio apenas sufficiente para as despezas materiaes da existencia! Viu-se no dia da sua formatura, n'esse dia em que sua mãe chorava de alegria, ao vel-o de beca, com a vistosa pasta amarella debaixo do braço esquerdo !
Lembrou-se da sua chegada a Lisboa, sempre em companhia de sua mãe, que se julgava tão feliz, e que, ai! tão pouco tempo gosara da sua felicidade!
Lembrou-se do dia em que recebera a sua nomeação de lente da escola medico cirurgica de Lisboa, o que lhe fôra facil obter, em consequencia da distincçào do seu curso.
Lembrou-se da rapidez com que galgara, elle, pobre, novo, desconhecido, até chegar ás camadas aristocraticas onde vivia; e, finalmente, lembrou-se do seu casamento.
Bertha, com a sua elegancia fina e patricia, os seus cabellos loiros, os seus olhos de uma doçura tão attrahente, e os cincoenta contos que possuia da legitima maternal, via revolutear a roda de si os leões do high life, sequiosos de conquistarem aquella flor e aquella fortuna.
Luiz de Sandoval tratara do capitão Jorge, n'uma sua doença, e o capitão, com o seu genio alegre e expansivo, affeiçoara se-lhe intimamente.
No dia dos annos de sua filha, dera o conde da Trafaria um baile, e Luiz recebera um convite para este.
Jorge apresentara-o a irmã. Luiz de Sandoval convidou Bertha para dançar uma quadrilha, jogou ao voltarete com o conde, ouviu pacientemente a Jorge a narração das suas conquistas amorosas, e, de tal modo procedeu, que, sem que houvesse da sua parte o menor calculo, quando terminou o baile, estavam todos conquistados. O conde convidara-o para as suas partidas semanaes; o capitão pedira-lhe que se deixasse apresentar no seu Club; e Bertha, muito graciosamente, sollicitara lhe que lhe levasse a sua mãe. E a pouco e pouco estabelecera-se entre aquellas duas familias uma certa intimidade.
Depois, morrera-lhe a mãe, e Luiz, que a adorava, chorara amargamente as lagrimas de um bom filho, e, n'um dia em que se queixava a Jorge do seu isolamento, perguntou-lhe este porque não casava.
Luiz de Sandoval suspirou, mas não respondeu.
Já ha muito que notara, com a sua dupla psychologia de namorado e homem de sciencia, que Bertha de Albuquerque o amava com toda a ingenuidade de um primeiro amor.
Bertha era adoravel, sabemol-o, e o joven medico estava n'uma idade em que o coração se inflamma facilmente.
Amou-a pois, amou-a com todo o delirio apaixonado dos seus vinte e seis annos.
Erguiam-se, porém, alguns obstaculos.
Bertha d'Albuquerque era nobre e era rica, muito rica.
Luiz de Sandoval possuia unicamente a nobreza do talento e a riqueza do trabalho.
Possuia mais alguma coisa alem d'isso, era orgulhoso; orgulhoso como um rei desthronado, como um poeta incomprehendido!
Lembrou-se pois que o seu amor seria tido na conta de interesseiro, e resolveu encerral-o no intimo do peito.
Eis a razão do seu suspiro á pergunta do capitão.
Mas, parecia que uma fada benevola se encarregara de velar pelo destino de Luiz de Sandoval.
N'essa occasião, obteve a pasta da fazenda um honrado velho, que fôra intimo amigo de seu pae, e que continuara a sel-o da viuva e do filho do denodado campeão da liberdade portugueza.
Um dia, foi Luiz elevado a medico do paço, e viu aberta diante de si uma carreira brilhantissirna.
Decerto, não poderiam já chamal-o intrigante, se o vissem desposar a filha do conde da Trafaria.
E, dias depois, apresentava ao conde o seu pedido, e era recebido de braços abertos por todos, principalmente por Bertha, que, ao saber os motivos que o haviam demovido a demorar o seu pedido, o admirou tanto quanto o adorava!
Tudo isto lhe passou com a rapidez de um turbilhão, mas com a nitidez de um espelho, pela mente escandecida, e repetia: Não, não pode ser, seria infame!
Limpou os olhos rasos de agua e voltou ao gabinete onde o esperava Etelvina.
Esta conseguira descobrir a mola de segredo que abria a medalha, e contemplava apaixonadamente o retrato de Luiz.
Com os olhos brilhantes de paixão, as faces levemente coloridas, e o seio a arfar de commoção, estava arrebatadora.
O Doutor suspirou profundamente.
Ella arrancou-se á sua contemplação, levantou-se, foi encostar-lhe a cabeça ao coração, e perguntou-lhe:
-- Quando partimos? Hoje mesmo, não e assim, hoje?
-- Não, Etelvina, respondeu o Doutor suspirando, a despeito da sua resolução inquebrantavel. Não partiremos hoje nem nunca.
Ella tornou-se de uma pallidez cadaverica.
-- Tu, continuou elle, és ainda livre, e podes fazel-o; eu, porem, já o não sou. Tenho deveres sagrados a cumprir. Bertha confiou-me o cuidado de a fazer feliz. Abandonal-a seria infame, e eu não tenho a coragem sufficiente para commetter uma infamia !
-- Preferes então que eu morra? perguntou ella, muito baixo.
-- Não, não morrerás, assim como eu não morrerei, infelizmente. Vais casar e talvez tenhas a felicidade de ser mãe; mas, o que terás, com certeza, é a felicidade de ter sacrificado o teu amor ao teu dever. É esta tambem a unica felicidade que espero do futuro.
-- Não, dizia Etelvina, torcendo as mãos, isto não pode ser!
Pois eu, depois de ter entrevisto a felicidade, hei-de volver ao meu inferno? Oh! mata-me de vez, mas não exijas de mim este sacrificio !
E volvia para elle os olhos supplicantes, e estendia-lhe os braços ! O medico, não podendo conter as la grimas e sentindo abater-se a sua resolução, dirigiu-se bruscamente para a janella a lim de expor a cabeça ardente as brisas do outono.
Á esquina da rua em que morava o Doutor Sandoval, costumava estacionar uma velha mendiga, que estendia a mão supplicante a todos os que passavam.
Essa velha conhecia muito bem o Doutor, que nunca passava por ella sem lhe depôr na mão enrugada uma pequena moeda de prata; e, ao vel-o chegar a janella correu para debaixo da mesma, dizendo em voz lastimosa:
-- Meu bom senhor, uma esmolinha, pelo santo amor de Deus!
O Doutor voltou para dentro, e pegando na medalha que Etelvina, ao levantar se, pousara sobre a meza, exclamou :
-- Ao menos, terá feito alguem feliz! E arremessou-a á mendiga que a aparou no avental. Etelvina comprehendeu então que a sua resolução era inabalavel. Levantou-se da poltrona onde se deixara cahir.
-- Adeus! murmurou ella quasi imperceptivelmente.
-- Adeus! repetiu o Doutor com voz suffocada.
As suas mãos enlaçaram-se, e por espaço de um minuto, permaneceram immoveis, olhando-se e pondo nlesse ultimo olhar toda a sua alma, todo o seu coração.
O olhar dos que se despedem da felicidade é similhante ao d'aquelles que se despedem da vida!
Pouco depois de Etelvina ter regressado ao seu quarto, parava a porta a carruagem do Doutor e apeava-se Bertha.
Nunca soube que a sua bondade inexgotavel fôra o escudo que lhe livrara a felicidade do golpe supremo!
Pouco depois de Bertha de Sandoval ter regressado, sahia da mesma casa para onde entrara, uma mulher vestida de preto.
Ao chegar a rua, relanceou os olhos para a esquina que ficava proxima, e ao ver lá uma mendiga que estendia a mão supplicante aos transeuntes, dirigiu-se-lhe rapidamente :
-- Ha pouco, disse-lhe ella com a voz vibrante de commoção, e apontando para a casa do Dr. Sandoval, atiraram-lhe de uma das janellas d'aquella casa uma medalha.
-- Sim, minha senhora, mas (e a mendiga levou instinctivamente a mão á algibeira) é minha, deu-m'a aquelle bom senhor ..
-- Quer vendel-a ?
-- Se me derem o que vale...
-- Venha.
Etelvina, porque era ella, chamou um carro, fez subir a mendiga e sentou-se-lhe ao lado.
-- Á casa de um ourives, disse ao cocheiro.
Pouco depois parava o carro, Etelvina apeou-se, seguida sempre pela mendiga, e entrou na ourivesaria.
-- Queira avaliar esta medalha, disse ao dono do estabelecimento, depois de a ter pedido á velha.
O ourives examinou-a detidamente.
-- Vale intrinsecamente cem mil reis, disse, e na loja havia de ter custado muito mais.
A mendiga, ao ouvir esta quantia, que lhe parecia exorbitante, poz as mãos, quasi louca de alegria.
Etelvina voltou para o carro e deu ao cocheiro o endereço do correspondente de seu pae.
Chegavam pouco depois. O correspondente de Caetano Ramalho era minhoto.
Em rapaz viera para Lisboa, e empregara-se como caixeiro na loja de um tio, que, por fim, o admittira a socio, e por ultimo lhe cedera a casa, ao retirar-se do negocio.
Possuia alguns bens no Minho e incumbira seu velho amigo Caetano de lh'os administrar.
Este, que era tambem administrador da fortuna da filha, escrevera ao amigo, quando Etelvina fora para Lisboa, abrindo-lhe credito.
Etelvina ao entrar, cumprimentou o antigo amigo de seu pae, e disse-lhe laconicamente :
-- Preciso immediatamente de cem mil reis.
O correspondente, que todos os mezes lhe entregava a quantia destinada as suas despezas, e que sabia que a joven viuva estava para casar, não fez a menor objecçao. Abriu a burra, contou dez notas de 10:000 reis e entregou-lh'as. Etelvina assignou rapidamente um recibo, e voltou ao carro.
-- Aqui estão cem mil reis, disse ella a mendiga, entregando-lhe as notas. Adeus! Seja feliz.
Recebeu a medalha, e deu ordem ao cocheiro para regressar a casa do Doutor.
Quizera a todo o transe conservar aquella medalha, e aquelle retrato, unicas recordações do seu primeiro e ultimo amor!
Oito dias depois d'aquelle dia terrivel, um cortejo de muitos carros se dirigia, as 2 horas da tarde, para uma capella particular, situada nos arrebaldes de Lisboa.
Ao chegarem ao seu destino, apearam se do segundo carro tres homens.
Um d'elles, já velho, traja a farda de moço fidalgo da Casa Real, o segundo refulge n'uma brilhante farda de artilheria, e o terceiro veste muito simplesmente, mas com uma elegancia aprimorada, uma casaca.
Já os nossos leitores reconheceram n'esses tres homens o conde da Trafaria, seu filho Jorge, e o Dr. Luiz Sandoval.
Os dois ultimos approximam-se do carro da frente, ajudam a descer duas senhoras envolvidas em custosas rendas e sedas, e offerecem-lhes o braço.
A pessoa a quem o Doutor offereceu o braço traja um elegante vestido de setim gris-perle, e tem por unico enfeite, ao pescoço, e pendente de uma fita de velludo preto, uma medalha de ouro despolido, sobre a qual um E esplende, formado por magníficos brilhantes.
É Etelvina.
Caetano Ramalho, occupado pelas ultimas vindimas, não pôde vir assistir ao casamento de sua filha, e foi ao Doutor Sandoval, padrinho da noiva, que coube a honra de lhe dar o braço para a levar ao altar.
Esta muito pallido, o Dr. Sandoval, ainda mais pallido do que é costume, e ao entrar na egreja, fechou tão nervosamente a claque que lhe partiu uma das molas.
Veem em seguida o noivo e Bertha, madrinha da noiva. O conde da Trafaria é padrinho de seu filho.
Seguem os convidados, que são muitos.
É um casamento de luxo.
O Doutor leva a noiva ao seu prie Dieu de velludo carmezim, e vae em seguida occupar o seu lugar, ao lado de Bertha.
O orgão principia a tocar, e o capellão approxima-se dos noivos.
É breve aquella cerimonia, pouco depois está lançada a benção nupcial.
Á sahida, é levemente modificada a ordem do cortejo. Etelvina vae pelo braço de seu marido, o Dr. Sandoval da o braço a esposa. Assignam-se as escripturas na sacristia. Em seguida são os nubentes felicitados por todos os convidados.
So o Doutor Sandoval, sempre tão cuidadoso quando se trata do cumprimento dos seus deveres de homem de sala, se es quece de o fazer.
É que o Doutor, segundo declarou na vespera á familia, tem um doente de perigo, um caso curiosissimo, que o traz alta mente preoccupado e pensativo...
Mas o capitão necessita de expandir a sua felicidade.
-- Ó homem, da ca um abraço, exclama, dirigindo-se ao cunhado, esquece-te por um pouco de que és medico! Aqui não se trata de doenças nem de enterros; trata-se de casamentos, mais tarde será de baptisados...
E ri, com toda a expansão do seu génio feliz. Luiz de Sandoval é obrigado a manifestar a alegria que sente pela felicidade dos noivos, e, depois de abraçar o capitão diz, apertando muito a mão de Etelvina, que treme na sua:
-- Minha senhora, se os votos de um coração dedicado e leal podem tornar-nos felizes, V. Ex.a sel-o-ha como ninguem.
Etelvina esboça nm sorriso contrafeito, corresponde-lhe ao aperto de mão e não responde.
Voltam para os carros que se dirigem para a casa do Dr. Sandoval onde está preparado um magnifico banquete. Á meza fica Etelvina a direita do Doutor.
-- É uma imprudencia, diz-lhe elle, usar esta medalha...
-- A mola é de segredo.
-- Tire-lhe ao menos o retrato...
-- Nunca !
Levantam-se da meza; são 9 horas da noite. Pelo comboio da meia noite devem os noivos partir para a Italia. Nas salas, ouve-se os preludios da orchestra dando o alamiré para uma quadrilha; os cavalheiros agrupam-se as portas, escolhendo com o olhar a dama que hão de ir tirar para par. As senhoras principiam a agitar suavemente os seus leques de marfim e madreperola. O conde da Trafaria, no vão de uma janella, conversa com o filho, e dá-lhe conselhos paternaes. Bertha, junto a Etelvina, inquere da causa da sua tristeza.
-- Porque estás triste? Eu, no dia do meu casamento, estava commovida, sim; mas ao mesmo tempo alegre, e sobretudo, fundamentalmente feliz !
Etelvina objecta-lhe que a torturam saudades da mãe já morta e do pae ausente.
Mas, dirá o leitor, onde está o Dr. Sandoval?
Refugiado na pequena sala onde ja uma vez o vimos, e onde o retrato de sua mãe lhe foi conselho e exemplo, Luiz de Sandoval, sentado n'uma poltrona e com o rosto entre as mãos, soffre o mais que é dado soffrer na vida.
-- Casada! exclama elle, eil-a casada! Oh! nunca mais os seus labios se hão de entreabrir para me falar de amor, nunca mais contemplarei nos seus olhos a confissão do que por mim sentiu a sua grande alma, nunca mais ouvirei a sua voz, a qual todo o meu ser estremecia, tomar, para fallar-me, inflexões que para mais ninguem tinha, nunca mais, nunca mais a estreitarei ao coração!
Todos os direitos que a minha dedicação adquirira sobre essa mulher adoravel estão perdidos, irremediavelmente perdidos! Como um rei que abdica a corôa, abneguei-os em favor de outrem! E esse outro tem hoje todos os direitos, todos; e eu... nenhum!
Pode falar-lhe de amor, cingil-a ao peito, apresental-a pelo seu braço !
Como é feliz!
E qual vae ser agora a minha vida, qual? Vou passar a viver de recordações, como os velhos! E tenho trinta annos sómente!
Oh! isto e intoleravel, é horrivel, isto endoidece, isto mata!
Na sala, dançou-se uma quadrilha, depois uma walsa, e agora principiam a circular os refreseos.
Etelvina dançou a quadrilha com o sogro, não quiz dançar a valsa para que o marido a convidara e continua immersa nos seus cruciantes pensamentos.
Lembra-se com um horror que se approxima da loucura que d'ahi a breves momentos o marido ha de perguntar-lhe : Amas-me? e que terá de responder-lhe: Sim.
E esse sim parece-lhe ser a derradeira punhalada dada no seu amor! Esse sim sera um assassinio, um sacrilegio, um crime sem nome !
Dão finalmente onze horas.
Bertha approxima-se d'ella.
Minha querida, diz-lhe, são horas de ires vestir um fato de viagem; o comboio parte á meia noite.
Etelvina levanta-se e vae para o seu quarto vestir um fato escuro. Meia hora depois esta prompta. O capitão fora egualmente a casa e trocara o brilhante uniforme por um traje civil.
O carro espera-os a porta. Nas salas dança-se animadamente. So Bertha acompanha os noivos.
-- Onde está o Luiz? exclama Jorge, queremos dizer-lhe adeus.
Bertha chamou o creado.
-- Diga ao sr. DOutor que venha cá, sem demora.
Cinco minutos depois volta o creado dizendo que o senhor não apparece em parte alguma.
Bertha abraça os noivos e volta para a sala emquanto estes se dirigem ao trote dos dois cavallos para a estação.
Partem para a Italia onde vão passar a lua de mel.
Querendo a todo o custo furtar-se as meditações que o torturavam, o Dr. Sandoval dirigira-se ao seu quarto, trocara a casaca por uma sobre-casaca, a claque por um chapeu de pello, as luvas brancas por luvas pretas, e sahira, não podendo supportar por mais tempo aquella orchestra, aquellas luzes, aquellas flores e aquelles convidados, que se divertiam ingenuamente, quando elle, a dois passos soffria uma tortura verdadeiramente inquisitorial.
Sahiu, com o chapeu na mão, expondo a fronte ardente as brisas da noite, e machinalmente dirigiu-se para o caes, que, como sabemos, ficava perto.
Sentou-se n'uma banqueta e procurou serenar o espirito; mas, de repente levantou-se, affastando-se com horror.
Fôra alli que elle fizera a Etelvina a confissão do seu amor, fôra alli que elle a vira chorar só com a ideia de desposar o cunhado; e agora...
Acceleradamente, como se tivesse assassinos no eucalço, affastou-se d'aquelle logar que tantas saudades avivara, com a fria implacabilidade das cousas inanima das.
Dirigiu-se ao seu club, que raras vezes frequentava.
Deixou o chapeu na antecamara e entrou n'uma das salas em que se jogava o baccarat.
Sentou-se a uma banca, puxou pela bolsa e começou a jogar. Jogou durante uma hora, arriscando de cada vez, elle que nunca fôra jogador, dez e vinte libras e ganhando sempre, com uma persistencia que o exasperava.
Ao cabo de sessenta minutos tinha diante de si um monte de ouro.
-- O Sandoval está feliz, dizia o visconde de Castro, que lhe ficara ao lado.
-- Isto é mau signal, retorquiu um outro jogador, porque, la diz o adagio: Feliz ao jogo...
O Doutor sentia-se profundamente incommodado, teria querido levantar-se, andar, suffocava alli, n'aquella atmosphera de luzes, charutos, e licores, que muitos dos jogadores mandavam vir e bebiam jogando.
Mas, ao mesmo tempo, tremia, só com a ideia de voltar a solidão. Olhou para o relogio, era uma hora da noite.
Já aquella hora caminhava Etelvina para a Italia em companhia de seu marido!
O Doutor levantou-se:
-- Meus senhores, é uma hora da noite e ha muito que jogamos, tenho a honra de os convidar para irem cear comigo ao café mais proximo. Valeu?
-- Appoiado, gritaram alguns rapazes, viva o Sandoval!
Levantaram-se confusamente e dirigiram-se todos para o cafÉ de Madrid onde o Doutor encommendou em gabinete reservado uma ceia de primeira ordem.
Pouco depois, sentados todos a meza, devoravam as magnificas iguarias com um appetite proprio de gente moça, e esvaziavam as duzias garrafas de espumante e alegre champagne.
Só o Doutor não comia.
A primeira garfada que mettera na boca fizera-o quasi suffocar, e as numerosas taças de champagne que exauria não conseguiam restituir-lhe, por um segundo se quer, a alegria.
-- Estas triste, meu velho, dizia um dos convivas já meio ebrio, isto por força que é paixão assolapada, mas deixa estar que te ha de passar.
Meia hora depois, todos, mais ou menos espiritualisados, entoavam canções bachicas e narravam anecdotas bregeiras.
Luiz de Sandoval, profundamente nauseado, levantou-se, pagou a conta que lhe apresentaram, deu uma libra de gorgeta ao criado, e sahiu.
-- Oh! pensava elle, e ha homens que gastam n'estas orgias a saude, o tempo, a fortuna! Pobre humanidade!
Sentia-se doente, a cabeça ardia-lhe, as fontes latejavam-lhe furiosamente, estava oppresso e tinha vertigens.
Felizmente, deparou-se-lhe uma pharmacia aberta. O Doutor entrou, pediu uma penna e redigiu com mão tremula uma receita; mas quando ia a apresental-a ao pharmaceutico, faltaram-lhe as forças e cahiu para traz, como que fulminado. O pharmaceutico que o conhecia, precipitou-se em seu auxilio.
Ajudado por um praticante que chamou, deitou-o em um canapé, friccionou-lhe a fronte com alcali e fez-lhe respirar saes.
O Doutor abriu os olhos, e relanceando-os a roda de si:
-- Para a minha casa, murmurou, um carro...
Eram cinco horas da manhã, haviam retirado os ultimos convidados, e Bertha, no seu quarto começava a despir-se.
A ausencia do marido contrariara-a um pouco, mas não a affligira.
-Naturalmente, pensava, passou a noite junto de algum doente. Pobre Luiz! Sempre escravo do seu dever!
Depois pensou no irmão, que via emfim casado, e em Etelvina, e, por derivação, pensou no seu proprio casamento e lastimou não ter junto a si o marido, para o abraçar e lhe agradecer toda a felicidade que lhe devia.
N'essa occasião, entrou no quarto, Anna, uma creada velha, que fôra da mãe do Doutor, que o creara em pequeno e nunca mais o deixara. Essa mulher chorava.
-- Sr.a D. Bertha, chegou agora o sr. Doutor, mas... parece que vem doente...
-- Doente! Oh! meu Deus!
No quarto contiguo ao de Bertha, sentiam-se passos.
Bertha precipitou-se para alli.
Viu o marido deitado em um canape e amparado por um homem que não conhecia, emquanto que dois creados lhe preparavam apressadamente uma cama.
Estava tão desfigurado que Bertha, instinctivamente, comprehendeu que a ameaçava uma grande desgraça e exclamou angustiosamente :
-- Um medico ! Depressa! Vão chamar um medico !
Veneza, novembro de 188...
Minha querida Bertha
Acabo de ler n'um jornal de Lisboa que teu marido se acha gravemente doente. Calcularás facilmente o estado em que esta noticia nos deixou, a mim e a Etelvina! E, pelo que soffremos, avaliamos o quanto terás soffrido, minha pobre irmã! Pedimos-te instantemente que nos envies todos os dias um telegramma dizendo-nos o estado do nosso querido doente.
Minha mulher envia-te um abraço; escrever-te-ha brevemente. Teu irmao muito amigo Jorge
Lisboa, Dezembro de 188...
Minha boa Etelvina Perdoa-me, minha querida, o não haver ainda respondido às tuas cartas.
Mas, como poderia eu ter tempo, cabeça, coragem para escrever-te, vendo a agonisar, quasi, aquelle que para mim é luz, ar, felicidade, tudo!
Oh! minha boa Etelvina, não tenho palavras com que te descreva o muito que soffri durante os horrorosos quinze dias em que o meu querido Luiz esteve mais perto da morte do que da vida, mais longe do meu coração do que do sepulcro.
Adoeceu na noite do teu casamento; mas, sempre bom e delicado, sahiu, a fim de não perturbar a nossa alegria, e por isso e que não foi possivel encontral-o quando tu e o Jorge lhe quizeram dizer adeus.
So voltou a casa de madrugada, acompanhado por um pharmaceutico em cujo estabelecimento lhe dera uma syncope.
Os medicos, immediatamente chamados, reconheceram logo os prognosticos de uma febre cerebral.
Travou-se então uma lucta entre a sciencia e a morte.
Os collegas de Luiz foram inexcediveis em cuidados e dedicaçöes, levando-os a ponto de ficar sempre um d'elles junto a sua cabeceira, durante mais de quinze noites!
Eu não o deixei um só momento. Não podia apartar-me d'aquelle leito em que elle soffria mil torturas, inconscientemente, pois o delirio quasi nunca o abandonou.
Não me conhecia, nem a ninguem, e eu passei noites inteiras a chorar constantemente, so com a lembrança de que poderia afundar-se nas trevas da loucura aquella grande intelligencia que todos admiram e que faz o meu orgulho!
Ha oito dias, felizmente, diminuiu a febre e desappareceu o delirio.
Ao accordar pela manhã, os seus olhos haviam readquirido a expressão habitual, e estendeu a mão ao Doutor que lhe espreitava os movimentos.
-- O collega aqui! exclamou.
Ah! sim, tornou, estou doente, muito doente !
E voltando-se para mim :
-- Minha pobre Bertha! Como estas tão pallida e tão magra, filha!
Eu chorava, como podes imaginar. Havia quinze dias que elle me nao chamava pelo meu nome !.. .
E em seguida :
-- Deixas-me com o Doutor, não é verdade?
Eu sahi, mas nào me affastei; e, pela primeira vez da minha vida, espreitei-o, escutei o que elle dizia.
É que tinha sede de ouvir a sua voz, queria saber se elle recuperara inteiramente a lucidez maravilhosa do seu espirito !
Apenas me viu sahir, perguntou ao medico:
-- Que tenho eu?
-- O collega teve uma febre cerebral.
-- Diabo! é grave! Estou livre de perigo ?
-- Creio que sim.
-- Mas pode haver alguma complicação?...
-- É possivel.
-- Certamente, tive delírio...
-- Muito.
-- O collega assistiu a algum dos accessos ?
-- A muitos.
-- De que falava eu no meu delírio?
-- Dos seus doentes, dos seus alumnos, queria ir para a Escola, para uma conferencia...
-- Nada mais?
-- Nada mais,
-- Muito obrigado, meu amigo. Quer fazer-me o favor de tocar a campainha?
Pouco depois, entrava eu no quarto.
-- Manda-me cá o João, disse-me elle.
Chamei o creado. Este entrou profundamente commovido. Como sabes, todos elles adoram o Luiz que é de uma bondade inexgotavel e de uma generosidade sem limites.
Bailavam-lhe lagrimas nos olhos ao approximar-se do leito de Luiz.
Este notou-o e estendeu-lhe a mão.
-- Obrigado, meu rapaz. Estou melhor. Vae depressa chamar-me um tabellião.
Tremi ao ouvir estas palavras.
-- Para que? exclamei.
O creado sahira já.
-- Posso recahir, e quero fazer testamento. Como infelizmente não temos filhos, é de urgencia.
-- Mas tu estás melhor. ..
-- Não importa.
Sei por experiencia que ninguem lhe faz mudar de resolução e calei-me.
Quando nos casamos, tinha eu, da legitima de minha mãe, cincoenta contos: mas, nas vesperas do nosso casamento, o Luiz exigiu formalmente que se fizesse uma escriptura na qual se convencionou que, em caso algum, se poderia alienar a minha fortuna, e que, no caso de ficar viuva sem filhos, não poderiam herdal-a os parentes de Luiz, que são bastante arredados.
No entanto, a sua grande alma queria dispôr a meu favor do que lhe pertence exclusivamente a elle e representa o fructo do seu trabalho tão aturado e nobre!
Hoje, felizmente, não receiam já os medicos as complicações cuja ideia me fazia morrer de dôr.
Esta muito melhor, mas tão magro, tão fraco! Se o visses não o reconhecerias.
O medico assistente espera que elle se possa levantar d'aqui a uns oito dias. Elle soffre os incommodos da convalescença com uma paciencia angelica.
Obriga-me a descançar, e diz, para me tranquillisar, que esta mais forte do que eu.
O que é facto é que as vigilias, e, sobre tudo, o muito que soffri, me transtornaram bastante.
Oh! mas agora sinto-me tão feliz que recuperarei em poucos dias a minha saude habitual.
Disse ao Luiz que ia escrever-te e elle pediu-me que te transmittisse os seus cumprimentos e um abraço ao Jorge.
Abraça-o tambem por mim, e recebe affectuosos beijos de tua irmã muito amiga
Bertha de Sandoval
Estamos em janeiro; chove; na grande sala do Dr. Sandoval, Bertha, muito alegre como sempre, dispõe, com o seu fino gosto, algumas flores de estufa em vasos de porcellana do Japão.
É sexta-feira, não teve visitas em consequencia do mau tempo, mas espera pelo pae que continua invariavelmente a jantar em sua casa todas as sextas-feiras, e por Jorge e Etelvina, que regressaram já da sua viagem nupcial.
De bocado a bocado olha para o pequeno relogio e segue impacientemente a marcha do ponteiro que se approxima lentamente da hora do jantar.
A primeira visita de Jorge e Etelvina fora para Luiz e Bertha; o Doutor, porém, não estava em casa, e não tivera ainda occasiâo de ver Etelvina depois do seu regresso.
Aquelle jantar da sexta-feira, tão impacientemente esperado por Bertha, ia ser um martyrio para o seu marido ! Martyrio ignorado como tantos que ha por este mundo !
Os primeiros a chegar são Etelvina e o marido.
A esposa do capitão está magra e pallida.
Fadigas da viagem, sem duvida !
O capitão está alegre. Parece feliz !
Fala constantemente.
-- Pois has-de crer que ainda não nos apontou lá em casa o teu marido?
Sim senhor! Chega a gente de uma viagem, vae procurar os parentes, não os encontra, e estes nem ao menos nos vão agradecer a visita ! Fal-as bonitas, não tem duvida !
-- O Luiz tem tanto que fazer!
-- Sim, desculpa-o, anda!
Deixa estar que em elle chegando eu lhe contarei um conto! Ha-de ouvil-as boas! Mas, é verdade, Etelvina e eu temos uma grande notícia a dar-te...
E continua por este theor durante vinte minutos.
Às seis menos um quarto, abre-se a porta e entra o Dr. Sandoval.
A doença que, por pouco o não matou, cmbranqueceu-lhe o cabello; está muito magro. Mas tem um encanto índizível aquelle fino e expressivo rosto de rapaz de trinta annos, encimado por uma floresta de cabellos prateados. Vem vestido a primor, como sempre. Sapato de polimento, meia de seda preta, sobrecasaca muito correctamente abotoada, e gravata de seda branca com listas de velludo preto, n'uma das quaes esta pregado um brilhante preciosamente lapidado. Vem descalçando as luvas de pelle da Suecia pretas, bispontadas a branco.
-- Ora até que afinal nos apparece o homem ! exclama Jorge.
O Doutor dirige-se a Etelvina, mas, no caminho é apprehendido pelos braços robustos do capitão que o estreita ao peito.
-- Então, exclama este, muito commovido, você queria morrer sem sequer dizer adeus aos amigos?!
E virando-se para a mulher :
-- Como elle, coitado, esta magro!
Nos olhos de Etelvina brilha uma lagrima! Lembra-se que duvidou de aquelle homem que a amou a ponto de quasi morrer por ella, e que, as portas da morte, no auge da febre e do delírio, não soltou uma unica palavra que a compromettesse !
O Doutor aperta-lhe a mão, muito pallido, e, de relance, nota que ella tem, a pender-lhe da corrente do relogio a medalha que deu origem ao equivoco que os separou.
-- Não sabes, diz Bertha ao marido, alguns minutos depois, a visita dos noivos tem um fim... Vê se adivinhas...
-- Ora, qual ha de ser? Darem-nos o prazer da sua companhia? !
-- Não, não; é outra coisa.
O Doutor olha para Etelvina, que córa, e para Jorge, que ri.
-- Não posso adivinhar, balbucia, entrevendo a verdade.
-- Pois não vês que entendem que, como fomos padrinhos uma vez, o havemos de ser sempre?
-- E quem haviamos nos de convidar senão vocês para padrinhos do nosso primeiro filho? exclama por sua vez o capitão.
O Doutor approxima-se de Etelvina, e estendendo-lhe a mão:
-Minha senhora, receba os meus parabens. V. Ex.a é muito mais feliz do que eu!
E accrescenta, de modo que só ella o ouça:
-- V. Ex.' vae ter um filho, emquanto que eu... oh! eu, so tenho a consciencia do dever cumprido !
Luiz de Sandoval não quizera falar-lhe n'aquelle lencito de cambraia perfumada que ella lhe dera n'uma noite de primavera em que se haviam amado muito, e onde ella enxugara as primeiras lagrimas que elle lhe fizera chorar!
Deixemos passar um anno, e vamos, queridos leitores, a casa de Etelvina, onde encontraremos noticias dos nossos heroes.
É terça-feira. A esposa do capitão Jorge de Albuquerque adoptou este dia para receber visitas, e a noite, tem a jantar o sogro e os cunhados.
Com um cavalheirismo inexcedivel, Luiz de Sandoval evita cuidadosamente todas as oceasiões em que poderia estar a sós com Etelvina. Nos dias em que janta em sua casa, chega quasi a horas de ir para a meza e quando esta a familia reunida.
Nesse dia, uma terça-feira, são quasi horas de jantar e ainda não appareceu ninguem.
O Conde da Trafaria foi assistir a uma sessão parlamentar, Jorge foi a Cintra, ver uma casa que pretende comprar, e Bertha, em casa da modista, escolhe fazendas e figurinos, e combina todas as minuciosidades de um vestido com o qual na proxima semana ha de ir a um baile do paço.
Em casa de Etelvina retiraram a pouco e pouco as visitas e ha cinco minutos que a deixaram só.
Oh! o acaso é um grande metteur en scène! Abre-se a porta da sala e entra o Dr. Sandoval.
Etelvina empallidece, o Doutor fica um pouco perturbado.
Apertam-se a mão e sentam-se.
-- Bertha ainda não chegou?
-- Não; tenho estado admiradissima de tanta demora. Ella vem sempre muito cedo.
-- E o Jorge?
-- Sahiu depois do almoço e ainda não voltou.
-- Está bom ?
-- Muito bom.
Calam-se, e, por uns segundos, nada dizem, mas este silencio é penoso para ambos.
Etelvina é quem toma a palavra.
-- Está muito frio na rua?
-- Frígidissimo, e, ha pouco, choveu.
-- Não apanhou chuva?
-- Alguma; mas estou enxuto.
-- Olhe não esteja molhado... que apanhe alguma doença...
Esta attenção commove o Dr. Sandoval a tal ponto que não responde immediatamente.
E na camara dos dignos pares, o conde da Trafaria profere de quando em quando o seu appoiado; no carro que o conduz de Cintra para Lisboa, Jorge discute o preco da casa com o proprietario actual; e, em casa da modista, Bertha está mergulhada em graves cogitações acerca do comprimento da cauda do vestido.
Afinal, Luiz de Sandoval torna, em ar de quem graceja, mas com um sorriso triste:
-- Sou de ferro! Não adoeço assim.
-- Mas, ha pouco mais de um anno, esteve a morrer!
-- É verdade, mas que quer? Achilles -- e era um semi-deus -- era vulneravel no calcanhar; eu, sou simplesmente um homem, e tenho a vulnerabilidade no coração... E aqui é que vence o homem moderno... Achilles recebe uma setta no calcanhar, e morre; eu recebo mais de mil lancetadas no coração, e vivo... Qual e mais forte, o homem ou o deus?... E qual é mais triste, a realidade ou a lenda? !
Etelvina estende-lhe a mão que elle leva aos labios. E o capitão sem chegar! E Bertha em casa da costureira !
O Doutor Sandoval continua:
-- Na lenda, o semi-deus não sobrevive a sua derrota; na realidade o homem tem de arcar com todas as consequencias d'ella, e essas consequencias terríveis, visiveis, palpaveis, são peores que mil mortes.
Com a mão febril limpa a fronte coberta de suor, e Etelvina, com a ponta do dedo rosado, faz cahir dos cilios uma lagrima que se lhes dependurou teimosamente e que oscilla como a gotta do orva lho nas petalas de uma rosa.
N'essa occasião abre-se a porta.
Entra a ama trazendo nos braços o Luizinho, o filho de Etelvina, o afilhado do Doutor.
O Luizinho é um encanto.
Muito branco e muito rosado, a sua cutis parece um composto de leite e rosas, os seus olhos são muito melancolicos; mas, em compensação, os seus labios, vermelhos como lacre, estão sempre promptos a sorrir. Os seus cabellos, loiros e frisados, dão-lhe uma apparencia angelica! Se Miguel Angelo o visse, retratal-o-ia n'um dos paineis da capella Sixtina!
O Dr. Sandoval, ao principio, não podera eximir-se a uma certa antipathia por aquella creança, filha de outro homem e da mulher que mais amara; mas, a pouco e pouco, o seu bom coração vencera esta repulsão instinctiva, e passara a adorar o filho de Etelvina, a quem cobria de beijos e mimoseava com presentes reaes.
Etelvina pega no filho, une-o ao peito, beija-o muito, affaga-lhe os cabellos loiros, sorri-lhe como so as mães sabem sorrir, e em seguida da-o ao Doutor, que por sua vez o cobre de carícias.
A ama retirou-se.
Luiz e Etelvina estão sós, e, no entanto, nem uma unica allusão ao passado e proferida pelos seus labios.
Entre os dois está aquella creança, de seis mezes apenas, mas que lhes lembra que o dever exige o olvido do passado.
E ambos se curvam a exigencia austera do dever!
Decorreram mais tres annos, e, como é possivel que o leitor benevolo se interesse pela sorte dos nossos heroes, vamos em poucas palavras pol-o ao facto da sua existencia actual.
Antonio de Albuquerque, filho primogenito do conde, morreu em Paris, mortalmente ferido n'um duello que teve por causa de uma actriz.
Deixou varias dividas, que o pae pagou até ao ultimo ceitil.
A terra lhe seja leve.
Jorge está tenente-coronel e herdou do irmão o titulo de visconde. Sera conde por morte do pae.
O conde da Trafaria está paralytico e reside em casa de seu genro.
Bertha de Sandoval é para o pae enfermo o que é para todos, um anjo de caridade e abnegação. Vive feliz, d'essa felicidade que emana de um coração crystalino, de uma consciencia nobilissima.
Caetano Ramalho, depois de ter casado os filhos, falleceu, e repousa no pequeno cemiterio da sua aldeia, junto a D. Genoveva, a virtuosa consorte que o prece deu no tumulo.
Etelvina, a viscondessa da Trafaria, é tida por uma das estrellas do high life, o que a não impede de ser uma excellente mãe. O seu filho é o enlevo dos paes, do avô e dos tios.
O Doutor Sandoval e hoje considerado como um dos homens mais importantes da capital.
Uma noite em que todos os membros d'esta familia se achavam reunidos em casa do Doutor, o Luizinho, que então contava dois annos, sentado ao collo da mãe, brincava-lhe com o relogio que Etelvina lhe abandonava nas pequenas mãos polpudas.
Sandoval, que entrara n'aquella occasião, pegou no afilhado e, pouco depois, disfarçadamente, levou-o para o seu gabinete.
Alli, depois de fechar a porta, sentou-o n'uma poltrona e tirou-lhe das mãos o re logio, de cuja cadeia pendia uma bella medalha com brilhantes.
O pequerrucho quiz oppor-se, mas Doutor deu-lhe em troca o seu relogio, e o bébé, socegado de subito, poz-se a contemplar o novo brinquedo que lhe proporcionavam.
Luiz de Sandoval, então, carregou n'uma mola de segredo e abriu a medalha.
Lá estava ainda o seu retrato, um pouco desbotado pelo tempo, e, (quem sabe ?) talvez pelos beijos e lagrimas de Etelvina !
O Doutor tirou-o, com mão tremula e substituiu-o por um retrato do Luizinho, uma maravilha da arte photographica, que, n'uma gaveta, tinha, havia tempos destinado para esse fim.
Em seguida, fechou-a e deu de novo o relogio ao pequenito, que, pouco depois, já enfastiado d'aquelle brinquedo, o foi entregar à mãe.
Mezes depois, quando Etelvina, já mais velha e mais prudente quiz, seguindo o conselho que o Doutor lhe dera no dia do seu casamento, tirar-lhe aquelle retrato, deparou-se-lhe, ao abrir a medalha, o retrato do filho.
Comprehendeu a delicadissima intenção que dictara aquella substituição, e duas lagrimas de gratidão, e, de saudade, talvez, cahiram sobre a medalha de brilhantes!