COLLECÇAO ANTONIO MARIA PEREIRA
A
DIVORCIADA
POR
JOSÉ AUGUSTO VIEIRA
2.ª EDIÇÃO
1906
Parceria Antonio Maria Pereira
LIVRARIA EDITORA E OFFICINAS TYPOGRAPHICA E DE ENCADERNAÇÃO
Movidas a electricidade
Rua Augusta--44 a 54
LISBOA
Ao Ex.mo Sr. Elyseu Xavier de Souza e Serpa Offerece e dedica O Auctor.
Festejavam-se á noite em casa do brasileiro Mendes os dezenove annos da menina Adelaide.
Toda ella se affogueava nos contentamentos intimos de "rainha" da festa, as faces carminando-se das exhuberancias humidas e quentes d'uma mocidade recatada e honesta, muito vaidosa do seu vestido novo, praguejando em frente do espelho, como um collegial estroina, contra aquella "moda" de penteado, que lhe não deixava pôr em relevo as longas tranças castanhas, tão espessas, que a natureza lhe doara.
Tinham-se convidado apenas as filhas do Gomes, as Bastinhos, a Ermelinda Silva, filha do Jorge director d'um banco, e umas poucas mais, ex-companheiras de collegio, muito intimas, com quem se não fazia ceremonia.
Rapazes viriam tambem.
O Juca, sobrinho do Mendes, tinha-se encarregado de apresentar alguns amigos, e o brazileiro, muito popular nos estabelecimentos da Praça de D. Pedro, convidara alguns caixeiros -- para irem beber um calice do fino, fazer uma saude á pequena. --
Era cedo ainda.
A grande meza de jantar, como um cetaceo brunido, estendia toda a elasticidade das suas articulações para sustentar no dorso viandas appeteciveis, carnes frias, podins gelados, os largos taboleiros de doce, as garrafas de crystal com opalinos vinhos do Porto e da Madeira. Ao centro um jarrão de porcellana, cheio de camelias encarnadas e brancas, dominava todo aquelle acampamento de coisas appetitosas, orgulhoso de si, como o general Boum no meio das amazonas da Grã-Duqueza.
Na sala de visitas a menina Adelaide collocava por suas proprias mãos heras e flores em volta das serpentinas.
O Mendes, em mangas de camisa, suando como outr'ora nas labutações dos seus armazens, dava ao piano uma collocação apropriada de modo a occupar o menor espaço possivel; depois vinha para o meio da sala, olhava-o na bruta admiração da sua grossa esthetica e via que ainda se podia chegar mais á parede.
-- Ficava melhor, dizia.
Mas a filha, interrompendo o seu trabalho:
-- que assim não estava bem, nem se ouviam os sons, -- credo! -- e, de mais, pouco espaço ficava para uma senhora poder tocar! --
O Mendes reconsiderou, cedendo um pouco da sua opinião, e em seguida foi auxiliar a filha a dispor as flores sobre as serpentinas.
Dentro, n'outra parte da habitação, a D. Carola, accomodava uma saleta para "toilette" das senhoras, e o Juca, no seu quarto que serviria de sala de fumo, dispunha charutos deliciosos n'uma estatueta bronzeada, que fingia um escravo carregador.
Das oito para as nove horas os convidados principiaram a chegar.
Vieram primeiro as Bastinhos; traziam uns "bouquets" muito elegantes, feitos no Loureiro; foram recebidas com beijos cantadinhos e com um:
-- Oram vivam, do brazileiro.
Acompanhava-as o pae, ex-socio do Mendes,
-- homem de peso, dizia-se na praça, e compadre do dono da casa.
-- Como ia de saude, ein? -- perguntou, n'um "shake hands" expressivo, espalmando a larga mão, com uma grande cordealidade alegre.
-- Uma faina, compadre, lhe não digo nada! me parece este dia aquelles em que estavamos nos trapiches do Rio, se lembra você?
E n'uma phonetica abrazilada, machucando a lingua patria, como se premissem canna d'assucar, os dous recordavam as suas amargas horas de trabalho, fatigantes mas productivas, que lhes davam agora uma tranquillidade modesta e sã, no meio da qual as suas carnes espapavam nas blandicias oleosas d'uma nutrição sadia.
-- Se gosa tambem agora, deixe lá.
-- Ah! se não fôra isso!
As meninas entretanto, tinham ido, abraçando a cintura de Adelaide, até ao quarto da toilette, conversando muito, umas interrogativas agglomeradas, de quem se não vê desde tempo.
-- E de rapazes quem viria? -- perguntava a mais nova das Bastos.
-- Ah, olha que não sei verdadeiramente; quem os convidou foi o Juca e o papá.
-- Virá o Alberto?
-- Maliciosa! bem sabes que elle não faltaria.
-- Como ouvi dizer que andava indifferente com teu primo.
-- Ora, deixa lá! Ainda hontem o Juca me disse que tinha estado com elle no Suisso!
Tiraram os agasalhos, ageitaram as flores do penteado, viam-se ao espelho, muitas vezes, com uma grande vaidade de si proprias.
-- Este penteado, tambem, -- dizia a Amelia Bastos, -- não me fica hoje direito.
-- Oh, filha, pois a mim! -- confirmava a Adelaide, parece que é praga.
-- Isto de cabelleireiras, não vos digo nada! são todas a mesma cousa, não tem geito nenhum, -- umas imbecis. --
E ambas acotovellando-se para apanhar a maior porção da lamina reflectora, pregavam ganchos no penteado, com um estalido secco, de tic nervoso, e quando o espelho não reflectia a perfeição do typo imaginado, irritavam-se procurando outros ganchos na pequena concha de madreperola, com adornos de filigrana, que pousava sobre o marmore do toucador.
Entretanto a campainha tocando successivamente, annunciava a entrada de novos convidados.
-- Quem será? perguntou a Bastinhos.
-- Esperai que eu volto já, disse-lhes a Adelaide.
-- Não, não, vamos comtigo. --
Empoaram-se ainda uma vez com a pluma "de poudre de riz" e depois desceram todas; tinham entrado o Jorge, director do banco, e Ermelinda, a filha.
Adelaide encarregou-se d'esta; deixou as Bastinhos na sala, com a mamã; quando voltaram, ellas vieram cumprimentar Ermelinda, depondo-lhe beijos miudinhos nas faces d'um moreno pallido.
Ás dez horas não faltava ninguem.
O Mendes com grandes sorrisos d'alegria satisfeita, movia-se em todas as direcções, muito cumprimentador e prasenteiro, dizendo graças affectuosas a cada conviva.
As senhoras, sentadas em volta da sala, nostalgicas, como larvas em metamorphose, conversavam baixo, timidamente, sobre motivos da "ultima moda". Algumas fallavam dos ultimos passeios á Cordoaria e Palacio, das scenas de namoro, colhidas aqui e ali, nas maliciosas besbilhotices d'amizade; soltavam pequenas risadinhas, abafadas nos brancos lenços de cambraia, amarfanhando-os muito entre as mãos.
Os rapazes encostavam-se envergonhadamente ás hombreiras das portas, ou fallavam dentro na sala do fumo, com uma vozearia de praça. Os seus olhos, acesos d'uma curiosidade concupiscente, tomavam a direcção dos elegantes collos brancos, que sahiam das toilettes mais decotadas.
Só um d'entre elles, mais ousado, com uns ares de "lion ganté", abanando com o seu chapeu de pasta o peitilho, onde o collete branco muito aberto deixava vêr uma camisa folheada, com botões de coral, passeava na sala, sorrindo-se com amabilidade olympica para as damas conhecidas e fitando o monoculo d'uma sobranceria atrevida, sobre as carnações frescas e sensuaes das elegancias femenis.
Os rapazes invejavam surdamente aquella naturalidade e garbo simples de porte.
-- Aquillo é que é um "menino"! -- exprimiam dous caixeiros, n'uma metaphora admirativa e ciosa.
-- E então? fazia elle muito bem... que andasse d'ahi, iriam dar um gyro... egualmente! -- convidava um d'elles todo almiscarado, com a risca do idiotismo ao meio da cabeça e o cabello frisado, n'umas ondeações luzentes de bandolina.
E os dous fingindo-se interessados n'uma conversa importante que lhes disfarçasse o acanhamento tosco, aventuraram-se a um passeio pela sala, sentindo-se logo invadir d'um rubor de face ao perceberem os olhares das senhoras, que se riam baixinho das suas grossas mãos entaladas n'umas gritadoras luvas amarellas.
As meninas tinham o mesmo syncretismo dos caixeiros; admiravam a elegancia do Alberto, achando esbelta a figura, o penteado, a maneira de trazer a camelia, a curva artistica do bigode. As mais curiosas examinavam furtivamente os berloques do relogio, procurando surprehender alguma "bijouterie" symbolica de coisas de namoro. A Ermelinda primava entre todas n'essa muda contemplação extactica.
As Bastinhos leram no seu olhar e cochicharam logo:
-- Queres tu ver que a temos "tramada"! repara na Ermelinda como se derrete a admirar o Alberto.
-- Forte tola! Deixa que a não hei-de perder de vista, Amelinha!
O Mendes entrou porém na sala; um sorriso de bonhomia, despido de etiquetas lhe pairava nos labios.
-- Vamos, minhas senhoras, vae-se dançar alguma cousa para matar o tempo, ein! Que ha-de ser, ó Adelaide?
-- Uma quadrilha, papá!
-- Seja, eu chamo o tocador! tirem pares, tirem pares -- disse passando entre o grupo dos homens.
D'ali a instantes um d'estes artistas obscuros, na gala festiva do seu casaco preto roçado pelo uso, sentava-se ao piano e preludiava uma quadrilha.
Os homens vinham entrando de vagar, tomavam pares, animavam a sala de grupos. Começava a levantar-se um pó fino, que excitava as tosses.
O Alberto dançou com Ermelinda.
-- Olha, não te dizia eu! -- murmurou a Bastos para uma visinha.
A musica de Angot elevava-se sonoramente do teclado; a quadrilha começou.
As senhoras velhas deslocavam-se para conversar, agrupando-se em volta da dona da casa; algumas meninas que não tinham dançado, levantavam-se com grande despeito e tomavam o caminho da "toilette", onde iam empoar-se; outras porém reuniam-se, vingando-se da descortezia da sorte, em aguçar as linguas rosadas e viperinas n'uma analysesinha burlesca dos pares que dançavam; tinham um vivo prazer sobretudo em "pôr nomes", em chamar a um "pé de cabra", a outro o "alho vivo", áquelle que dançava mais pesadamente o "pataco gordo", rindo muito, umas gargalhadinhas abafadas, que chamavam a attenção dos pares.
Entretanto o Alberto tinha phrases d'um effeito romanesco, com que melodisava os ouvidos da filha do director do banco; inclinava-se com profundas reverencias nas diversas evoluções da quadrilha e depois, quando erguia a cabeça, os seus olhos envolviam largamente, com magestade, os olhos de Ermelinda, que recebia esse fluido penetrante, fazendo purpurear o rosto por um phenomeno reflexo, que a physiologia não sabe ainda bem explicar, quando se trata de mulheres que namoram. Quando os outros pares dançavam, Alberto um pouco mais alto de estatura, abaixava-se para ella, murmurando phrases d'um sentimentalismo de Antony, que ouvira muitas vezes no theatro.
-- Creia vossencia, dizia, que só um coração de gelo poderia deixar de impressionar-se ante a fulguração d'um olhar d'esses.
-- Lisongeiro!
-- Lisongeiro, eu, minha senhora? Como a infelicidade me bafeja todas as vezes que pronuncio uma verdade!
A sua voz arrastava-se n'uma tonalidade sentida; dir-se-hia que as lagrimas iam a rebentar d'aquelles olhos baços das orgias, em face d'uma grande concentração d'affecto.
Ermelinda olhava-o distrahidamente e gostava de se adormecer ao som d'aquellas palavras, docemente proferidas, que poucos homens lhe tinham dito com tanto "sentimento"!
A quadrilha terminou; os rapazes mais cheios de familiaridade, conversavam com as senhoras; mas dentro o Juca esperava-os com deliciosos charutos -- que não podiam perder-se.
-- E d'ahi um calice de Madeira, offerecia o Mendes, nós cá não temos ceremonias, ein! são boas ellas para a missa, entendeu você, sôr Alberto?
Agrupavam-se em volta da mesa; os liquidos, como n'um apparelho hydrostatico, desciam de nivel nas garrafas para subirem nos estomagos. Os caixeiros esvasiavam calices com uma soffreguidão mal educada -- de quem apanhava d'aquelle poucas vezes.
A senhora do Mendes examinava com cuidado, curvando-se, as bandejas do chá e dos dôces que iam servir-se ás senhoras; dispunha as garrafas de crystal em salvas de prata e distribuia aos creados as ramificações d'aquelle serviço. Depois voltando-se para o sobrinho:
-- Juca, vae servir as senhoras, avia-te!
O Alberto n'este momento enchugava os labios do sexto calice que havia esvasiado; offereceu-se para acompanhar o seu amigo -- n'aquella agradavel incumbencia -- dizia.
-- Pois não, era até um obsequio -- e agradeceu-lhe com um sorriso a sua amabilidade.
Na sala tinha uns modos finamente elegantes de offerecer um calice de vinho, que não havia recusar-lhe.
-- Este Alberto, diziam as senhoras, sempre tem uma apresentação tão distincta!...
Junto d'Ermelinda deteve-se alguns minutos mais.
-- Ah! ella não queria beber; e vinho perturbava-a um pouco, mas visto que elle insistia, ia fazer-lhe a vontade -- e levou o calice aos seus vermelhos labios, que apenas se embeberam no liquido doirado pousando-o logo.
No quarto do Juca os rapazes, tomando posições commodas, estirados uns sobre o sophá, cavalgados outros sobre as cadeiras, discutiam n'uma nuvem de fumo e de grosserias os "bons bocados", que estavam na sala e faziam commentarios, indecentemente libidinosos, que provocavam cheias gargalhadas.
Nos seus olhos faiscava um pouco a scintillação do Porto e do Madeira. Depois a conversação recahiu sobre o Alberto, o heroe da noite; os menos favorecidos plastica e estheticamente proromperam logo com muito azedume:
-- Afinal quem era elle, de que vivia, de que se sustentava?
-- Ninguem o sabia -- era um vadio, não havia que duvidar.
Mas o Jeronymo, com um sorriso significativo de finura, aprumando-se para os outros, como quem tinha o segredo do enigma:
-- Sabem vocês onde mora a mulher do commendador Bernardo?
-- De qual? perguntaram logo muitas vozes.
-- D'aquelle... d'oculos, que está sempre á porta do Guimarães.
-- Ah! logo se via... só assim!... ou então calotes em cada esquina.
Entraram logo em minuciosidades da sua vida; as informações foram apparecendo; disia-se que tinha dividas no alfaiate, no sapateiro e até no Central, onde já nem de jantar lhe queriam dar.
Mas a presença de Alberto veio pôr termo a estas murmurações; a conversação mudou de rumo, até que o piano preludiou uma walsa.
-- Era irresistivel, não podia perder-se -- e tomaram a direcção da sala, onde as meninas os esperavam, com os bellos olhos humidos dos ardores choreographicos, anehelando os braços d'elles, a que sonhavam encostar-se, como sylphides vaporosas, arrastadas na vertigem.
Incontestavelmente as honras da walsa pertenceram a Alberto e a Ermelinda.
-- Se não fosse o par que ella tinha, veriamos -- protestavam muitas, n'um tom mordente d'inveja, que as irritava como picadas d'alfinetes.
-- Boa, pois olha, das outras vezes!
-- Logo eu então, sempre tive um par!
-- Ai! menina, nem me falles, o meu, esse parecia de chumbo!.. e sempre a parar, crédo!...
Lamentavam-se muito da sorte, que as destinara a enlaçar os seus braços nos d'um par sem elegancia e pessimo walsista -- mas para outra vez, já os conheciam -- affirmavam.
-- Depois, sem animação, mesmo uns tumbas, não sei que gente escolhe este Mendes.
Proximo d'Ermelinda o Alberto tinha já grandes intimidades, que se estavam tornando a pedra d'escandalo das meninas, que não possuiam essa mesma pedra. A filha do director acolhia por detraz do seu leque as phrases incendiarias do seu par, e sorria ao sentir em volta dos ouvidos a musica monotonamente harmoniosa da borboleta vadia da paixão. No seu intimo duas sensações subjectivas confluiam a dar-lhe um goso inestimavel de felicidade -- esmagar a vaidade das outras e elevar a propria, sentindo-se preferida.
E emquanto o Alberto cinzelava n'uma linguagem fluente as phrases da sua "declaração", ella muito feliz por ter arranjado "namoro", pensava já na inveja que as outras lhe teriam quando elle passasse debaixo da sua janella, nas cartas que lhe escreveria, no portador d'ellas, se seria de tarde ou á noute que elle viria, como illudiria a vigilancia do papá, e em mil outras futilidades, que fluctuavam indecisas na sua imaginação, como o pollen das flôres no céo azul de maio.
As Bastos e a Adelaide Mendes murmuravam:
-- Parece que o namoro sempre "péga"!
-- Aquillo é pau para toda a obra.
-- Só queria saber quantos namoros ella já terá tido.
-- Quatro lhe conheci eu.
-- N'esse caso não admiro que arranje mais um!
Uma solteirona que veio para o grupo, a D. Clementina do Rosario, disse sarcasticamente:
-- Aquillo são inclinações, meninas! Tambem ha homens, que sempre gostam de cada delambida! nem que não houvesse mais mulheres no mundo! Ora reparem que collo aquelle, uma esganiçada!... -- e protestava n'umas excursões thoracicas, expansivas e rijas, em que os seios fartos se elevavam n'uma curva ampla e rasgada.
Entretanto o pae de Ermelinda jogava pacificamente o "solo" com o Bastos e o commendador Faria; o Mendes acercou-se da mesa.
-- Então no "rico", ein, commendador?
-- Verá como este se vai tambem; pois olhe que é dos firmes; mas um "caiporismo" assim, nunca eu vi!
O Jorge interrompeu depois de examinar as suas cartas:
-- Bólo.
-- Não lhe dizia eu, sôr Mendes!...
O Bastos que era o "pé", disse para o commendador:
-- Jogue bem, parceiro, que elle o tem "furado", essa lhe affianço eu!
Jogaram com muito silencio; mas o commendador estava realmente infeliz; logo á terceira cartada os olhos de Jorge, que era o "feito", encheram-se da cubiçosa alegria das "remissas"; á quinta cartada mostrou o jogo.
O Bastos teve vontade de chamar burro ao commendador.
-- Esta se não fazia, ein! -- disse exaltado.
-- Mas que lhe digo eu, estou caipora, não ha que vêr.
O Jorge, fatigado, pediu substituto -- era preciso tambem cavaquear um pouco -- e affagando a sua honesta suissa burgueza, veio até á porta da sala observar o aspecto que offerecia.
O commendador, á meza do jogo, dizia entretanto:
-- Tem uma filha bem sympathica este Jorge!
-- Nem por isso, acudiram logo os dous que viam n'elle um candidato ás suas Adelaide ou Amelia.
-- Peza pouco, continuou o Bastos.
-- Me dizem que ainda tem os seus cinco contos! defendeu o commendador.
-- E que é isso! fez n'um gesto despresivel o Bastos.
Avistando a Ermelinda e vendo a seu lado aquelle rapaz, o Jorge pensou logo n'um casamento, n'um bom partido. Foi colher informações.
-- Um peralvilho, ein, só d'isto é que lhe apparecia -- e irritado chamou a filha, dizendo-lhe -- que iam sendo horas.
-- Já, papai!
-- E não era cedo! -- accrescentou com uma tonalidade brusca na voz, que a Ermelinda percebeu logo.
N'este momento o piano tocava uns lanceiros. O commendador Faria approximou-se.
-- Então por aqui, commendador! -- perguntou o Jorge.
-- É verdade, estava um caipora! Eram dias... vinha então um pouco desentorpecer as pernas.
-- Quer dizer que dança?
-- É verdade, e se a senhora sua filha me concede essa honra.
-- Pois não! oh! Ermelinda -- disse o Jorge lisongeado -- dansa estes lanceiros aqui com o snr. commendador Faria.
A joven olhou o Alberto, mordeu os beiços com o azedume de quem desejaria despedir um massador que se tem de supportar, e collocou-se no grupo respectivo.
As outras meninas viram que até o commendador dançara com Ermelinda, facto de provocar as attenções, porque o Faria quasi nunca dançava.
A D. Clementina do Rosario, abafando um ciume outomniço, disse para Adelaide:
-- Só faltava mais esta!
-- Não, a minha casa não torna ella n'uma occasião assim.
-- É o que devias já ter feito, menina.
Entretanto o commendador sentia-se barbaramente atrapalhado nas evoluções dos lanceiros; a Ermelinda quasi tinha vergonha. Mas em compensação o commendador fallava de muitas riquezas, de muitas acções, e ella era filha d'um director de banco!
Na grossa mão do brazileiro um brilhante coruscava scintillações luminosas, quando os raios de luz vinham ferir a sua face. Ermelinda sentia uma especie de fascinação. --
-- O que lhe faltava senão a riqueza -- pensava -- e olhando menos asperamente o commendador, animava-o com um olhar, como se anima um molosso fiel e intelligente. De repente porém os seus olhos batiam nos olhos de Alberto; esquecia o seu par e sorria-lhe. Comparava-os muito ligeiramente, muito frivolamente. O Alberto era d'uma estatura elevada, elegante, sympathica; o commendador era grosso e baixo, como um tronco de oliveira, os seus pés assentavam no chão como as pesadas plantas d'um pachyderme, a sua mão tinha os relevos pesados d'uma massa de gymnastica.
-- Ora, sempre tenho cada ideia -- pensava -- isto tem lá comparação!
Os lanceiros terminaram, com grande magoa do commendador -- que tinha achado muito agradaveis aquelles momentos -- dizia -- . Ermelinda sorriu-se.
Fez-se então um grande silencio na sala; correu a voz de que o Alberto a pedido de varias senhoras ia recitar uma poesia.
Os homens amontoaram-se logo uns sobre os outros, nas entradas da sala, ávidos de sensações lyricas. As senhoras, tomando um ar admirativo e profundo, mal agitavam os seus labios, ciciando phrases curtas, cheias de enternecimentos.
O teclado principiou a gemer uma melopeia vaga, muito triste, como a voz funerea de cyprestes nas aleas d'um cemiterio. O Alberto, tomando uma "pose" impertigada, ao lado do piano, começou a recitar, n'uma cadencia monotona, o «Noivado do sepulchro» de Soares de Passos. A formosa balada, estafada como uma cortezã viciosa, que apesar de tudo conserva a sua belleza ossianica, soava lugubremente, aos ouvidos d'um publico recolhido, que admirava o recitador mais ainda que a producção do poeta.
O Alberto tinha gestos tetricos, adequados ás condições do verso; as senhoras, ao vel-o, quasi pensavam vêr o phantasma da balada, arrastando o branco sudario por entre as lousas do cemiterio. Ermelinda estava commovida, extactica, absorta, e quando o Alberto terminou,
-- "Dous esqueletos um ao outro unidos" "foram achados n'um sepulchro só!..."
ella sentiu o olhar d'elle acaricial-a, como n'um beijo gelido de morte, promettendo-lhe um amor assim, immenso, eterno, até mesmo além da campa.
Uma salva de palmas acolheu a ultima estrophe da poesia. Alberto agradeceu, com cortesias reverentes, de modestia affectada.
Então o Jorge veio dizer á filha que se preparasse.
-- Não importa -- pensou -- assim como assim já marcamos a hora. -- E foi despedir-se da Adelaide, das Bastinhos, da D. Clementina. Ao passar por Alberto disse-lhe tambem -- Adeus.
-- Já!
-- O papá assim o determinava.
-- Que tyrannia!
Subiu á toilette para cobrir a capa de noite, e quando desceu, o Alberto estava proximo da escada; sorriu-se ainda, trocaram um ultimo olhar.
Ele dansou uma vez mais; foi com a Adelaide, uma walsa, que os fatigou muito. A filha do Mendes fez allusões aos seus novos amores, deu-lhe os parabens -- elle, que não, que nada havia! -- era uma menina muito sympathica de certo, mas o seu coração estava morto desde muito.
-- E quer que lh'o ressuscitem, talvez?
-- Respondeu que das cinzas não podia nascer a vida, que a paixão já não podia incendiar o gelo, -- mil banalidades cheias de sentimentalismo, muito estafadas pelo uso, que elle conservava todavia no seu cerebro, como se conservam as coisas pathologicas nos frascos d'alcool.
A Adelaide escutava-o e sorria-se; lá bem no seu intimo achava-o tolo, mas a educação impunha-lhe o dever da admiração, e a sua voz, se algum dia se levantasse para dar uma opinião ácerca de Alberto, diria que era um rapaz elegante, fallando muito bem, com muito "sentimento".
Pouco a pouco os convidados foram-se retirando. As senhoras sahiam muito embuçadas nas suas mantas de lã, aconchegando as capas sobre o pescoço, que o ar frio da rua espreitava com uma anciedade de bronchites.
Na atmosphera da sala um espesso ar condensado de gazes embaciava. As velas de stearina desciam ao nivel das aparadeiras e as heras tinham um verde pallido, que entristecia. O piano, como um grande monstro adormecido, mostrava os seus dentes de marfim, cançados de mastigar notas desafinadas.
O Mendes examinava todas as salas com um cuidado minucioso; sobretudo o quarto do Juca merecia-lhe dobrada attenção.
-- Ás vezes, alguma ponta de charuto, um descuido qualquer, podia originar um incendio -- dizia cheio de cautelosas prudencias.
A Adelaide no seu quarto despia os atavios da festa; o seu corpo alquebrado deixava-se lentamente cahir n'uma molleza do esgotamento.
Estava morta por tirar aquelle maldito penteado, -- dizia -- nunca mais se serviria d'uma tal cabelleireira; e o collete como a apertava!
Em baixo o Juca mettia-se na cama com um -- Ah! -- de satisfação, de quem termina uma tarefa; uma pontinha de alcool fazia-lhe pesar a cabeça; o somno veio logo n'uma caricia despotica, de obediencia cega, fazendo-lhe cahir das mãos um romance de Ponson, que elle tinha o habito de lêr, todas as noites, antes de adormecer.
O Mendes estava muito loquaz, desabotoava-se com uma sem-ceremonia deshonestamente familiar, passeando no quarto, olhando a Carola que se desfazia perante o toucador, mostrando os hombros nús, roliços, humedecidos por um suorsinho quente.
-- Até que emfim!... respirava ruidoso, n'uma expiração forte, prolongada, dilatando as bochechas.
-- Uma "soirée" de truz, ein, Carola!
-- Que sim -- e atirava para o dorso a cabelleira farta, matisada de fios brancos, ennovelando-a na touca de noite, com uma elevação de braços esculpturaes, de axilas humidas, que punham desejos no cerebro um poucochinho quente do seu velho marido, do seu Mendes.
Entrava uma luz alvacenta pelos "stores" da janella, e fóra ouvia-se o movimento murmurioso d'uma população que desperta. O canario começava a pipilar na gaiola, sentindo as livres aves gorgearem na frescura dos quintaes, e, na rua, os vendilhões ambulantes povoavam de sons estridentes o ar nebuloso da manhã primaveral.
Tinham decorrido quinze dias.
O namoro havia "pegado", consolidara-se. Com uma certeza chronometrica o Alberto passava invariavelmente, todas as tardes, em frente da casa de Ermelinda.
Uma vidraça corria no primeiro andar e logo depois a filha de Jorge apparecia, com um sorriso engatilhado nos labios e um alto penteado na cabeça, emmoldurando-se no fundo escuro do desvão da janella.
A visinhança reparara a principio.
-- Havia "mouro" na costa -- diziam -- mas pouco a pouco a tolerancia estabelecera-se, uma indifferença ordinaria, de coisa vulgar. A sua "badine" que tanto prendera as attenções, pelas curvas hyperbolicas que traçava no ar, fazendo signaes, já não despertava interesse; o lenço branco, rendilhado, simultaneamente absorvente dos defluxos e das impressões amorosas, ia creando o bolor dos esquecimentos, como teria creado o bafio das secreções. O namoro tornara-se um facto consumado, ordinario, sem a irritabilidade dos excitantes.
A casa do Jorge tinha uma frontaria só; era como uma cellula engastada no favo immenso da rua; apenas existia, formado por um angulo reintrante da casa proxima, um pequeno recanto, d'onde se exhalavam fortes vaporisações ammoniacaes. O Alberto, que não podia remediar esta inconveniente disposição, utilisava-a. Era d'ali, que elle, occulto pela sombra do predio, procurava fallar com Ermelinda.
A noite adiantava-se. O transito ia gradualmente diminuindo; a patrulha, n'uma locomoção arrastada e ordeira, tinha a apparencia vaga dos ruminantes na solidão dos campos. Clareações de gaz punham sombras indecisas, formando na rua projecções phantasticas. Uma faxa de ceu, limitada pela vertical dos edificios, mostrava estrellas descoradas e pallidas, como lantejoulas sujas d'um vestido de comediante.
Adejavam surdos murmurios d'um movimento longinquo; e proximo, n'uma tanoaria, um martellejar compassado e monotono affirmava vigilias prolongadas d'um trabalhador obscuro. Ao fundo da rua um leque de luz sahia da porta meio aberta d'um armazem de vinhos; sentiam-se vozes disputar, e na esteira luminosa atravessava de quando em quando um ebrio, que forcejava por conservar um equilibrio digno. Abria-se alguma janella com estrondo e um choque d'aguas, chapeando na rua, indicava uma contravenção do codigo municipal.
O Alberto vinha sempre muito aconchegado no seu "pardessus", a garganta agasalhada nas dobras quentes de um cache-nez; mansamente, como uma cobra que deslisa, elle introduzia-se no recanto proximo e accendia um charuto.
Era o signal.
Uma vidraça rangia no primeiro andar da casa de Jorge, e a Ermelinda, muito intrigada, cheia de pequenos sustos deitava a cabeça de fóra da janella, investigando no espaço os raros vultos que passavam, como se receiasse compromissos.
Cumprimentavam-se com trivialidades, ligeiramente. Depois o Alberto, no desempenho romantico do seu papel de namorado, arremeçava para o alto umas phrases sonoras, d'um gongorismo empolado, crepitantes, como foguetes de lagrimas n'um ceu luarento, em noute de arraial.
-- Que não acreditava, que era uma impostura.
-- E porque não?
-- Os homens! quem podia fiar-se n'elles! havia por ventura nada mais falso? -- dizia muito queixosa das amarguras da sua experiencia malograda, em coisas de namoro.
-- Ah! que elle não era assim! -- protestava -- que sentia por ella um immenso amor, infinito, como só uma vez se conhece na vida.
-- E mais quem! -- sorria, n'uma duvida amavel que lhe lisongeava a vaidadesinha de conquistador.
-- Podia jurar-lh'o -- affirmava -- por tudo o que houvesse de mais sagrado aos seus olhos, pelo seu coração, pela sua sorte, pelo proprio Deus!
Ermelinda calava-se. N'estes momentos parecia-lhe que, se fallasse, profanaria a musica apaixonada e sublime d'aquellas juras d'amor; concentrava-se sobre as suas phrases cheias d'uma secreta adoração mystica e sentia-se invadir d'umas sensações deliciosas, que a enterneciam.
-- Não! elle não podia mentir -- pensava -- como era feliz em ser assim amada!
Um extasi ineffavel a envolvia docemente, suavemente, como um banho tépido d'essencias perfumadas. Se interrogasse então a voz occulta do seu espirito, não poderia dar uma definição de si propria.
-- Ah! se podesse voar com elle para um ceu distante, para o desconhecido!... que felizes que seriam!...
Deixava-se fluctuar na atmosphera quente da "rêverie", como as grandes aves serenas e mansas, que dilatam as azas, pairando, sobre as alturas do azul. Mas elle em baixo, quebrando a cinza branca do charuto, interrompia:
-- Em que pensava?
-- Ah! nem ella poderia dizer-lh'o.
-- Que era talvez em outro; notava n'ella certa distracção, bem se via, uns modos... tão poucas palavras!...
-- Que era só n'elle -- protestava convencida.
-- Ah! era então muito feliz.
-- Muito, muito? -- perguntava sorrindo com uma certeza de que havia melhor.
-- Muito, muito, não! para isso só uma união eterna, indissoluvel, que os tivesse sempre juntos, unidinhos, como um casal de pombos enamorados.
Ermelinda sentia um rubor honesto, de felicidades nubentes, invadir-lhe a face.
-- Ah! que a Amelinha Bastos essa é que fôra feliz! Um bello casamento! E então só o vestido do noivado, que dinheirão!... Mas nem por isso estava bonita, não lhe parecia?
-- Que sim -- respondia desdenhoso.
-- E sempre teve um dia mais desagradavel: chuva, sempre chuva! era insopportavel; apesar do trem, tinha-se toda salpicado de lama! O seu casamento havia de ser n'um dia alegre de sol, muito sol; não achava melhor? --
-- De certo! elle todavia julgava indifferentes essas cousas! qualquer dia era bom!
Calavam-se; um novo silencio cahia, como as pausas lentas d'um trecho de musica.
A patrulha voltava do seu gyro; e ao ver ainda os namorados, observações baixas, eivadas de um philosophismo de caserna se suscitavam.
Que o "gajo" ainda estava de sentinella, não tardava em apanhar uma queixa de peito.
-- Deixasse lá -- respondia o camarada -- comiam-lhe bem e bebiam-lhe! não eram como a gente, uns desgraçados! um rancho sem "sustancia", e mortos de serviço.
Ermelinda fallava; mas um carreiro, em articulações gutturaes, d'uma linguagem primitiva e grosseira, praguejando contra os bois, não deixava ouvir. O carro affastava-se produzindo sons estridentes nos parallelipipedos.
-- Para isto não olhava a policia -- murmurava o Alberto, indignado, agitando a "badine."
-- Que o tempo parecia querer mudar -- dizia ella -- estava-se a pôr frio, nuvens caminhavam escurecendo o céo; uma estação tão inconstante!
-- Exactamente, como as mulheres! -- arguciava.
-- Não, isso, não! Elles sim! não havia hoje quem encontrasse um coração leal, todo occupado na imagem d'uma só mulher!
-- Nem o meu?
-- Eu sei! Os homens são tão voluveis!
-- Ah, que ella o não amava! do contrario não fallaria assim! -- dizia todo offendido, n'uma voz rapida, d'um tremulo nervoso.
-- Se o não amava! nem dissesse tal! era uma blasphemia, daria por elle a sua felicidade, a sua vida.
E quasi se sentia arrependida de lhe ter chamado voluvel; uma grande tristesa subia ao seu espirito, fazendo-lhe experimentar alguma coisa de commovente, que lhe marejava d'agua os olhos limpidos e bellos. N'aquelle instante desejaria cortar por todas as conveniencias, saltar d'aquella janella, aproximar dos seus labios a fronte pallida do seu amante e dizer-lhe n'um impeto d'amor:
-- Amo-te, Alberto, amo-te muito.
Depois ajoelhar-se n'uma supplica muda, para que elle a levantasse, doido d'amor, muito carinhoso e meigo, como já tinha visto fazer no theatro ao actor Santos, quando se representava o Antony.
Mas quando ella se arroubava n'estes pensamentos languidos, enternecida e melancolica, um vulto apparecia ao fundo da rua, fazendo estalar uns passinhos miudos, rapidos, de quem tem pressa de chegar.
-- O pae, o pae, adeus! -- despedia-se atrapalhadamente, fechando a janella com o menor barulho possivel.
-- Que raio! -- regougava o Alberto n'um plebeismo grosseiro de indignação irada, como se desejasse fulminar com a vehemencia da sua apostrophe o cidadão honesto, que recolhia tranquillamente do seu whist, do Club. E desalojando-se da posição, seguia rapido na direcção opposta, embuçando-se mais, com as mãos nos bolsos, repuchando o casaco sobre os rins, com arrepios de frio. Voltava-se obliquamente para ver entrar o Jorge e depois retrocedia, lentamente, devagar, como um vadio incorrigivel.
Olhava; vultos perpassavam no fundo luminoso da vidraça descida.
-- Devem ir tomar o chá -- pensava -- emquanto elle, exposto ao relento da noite, á neblina, á intemperie, tinha de atravessar quasi meia cidade, um "estirão", para se metter n'uma pocilga nojenta, miseravel, que o revoltava.
Caminhava lentamente, com mau humor; as linhas do seu rosto vincavam-se n'uma irritabilidade surda, espelhando o lodo da sua alma.
Atravessou ruas desertas, praças onde apenas as grandes arvores se levantavam, como espectros collossaes; ás vezes uma guitarrada apparecia, cantando trovas fadistas, acanalhadas; mulheres que estendiam a mão e a honra á philantropia que voltava das ceias, occultavam-se na sombra, como vermes que se arrastam.
Alberto desceu os Clerigos, atravessou a praça de D. Pedro, subiu a rua de Santo Antonio.
Morava em S. Victor.
Ao chegar á Batalha parou para accender um charuto. Dous vultos que vinham na sua direcção gesticulavam, fallando alto.
-- Com que então "depennado"!
-- De todo!... se me emprestasses uma libra mais, uma "coroa" que fosse!... estou com palpite! Era no rei de espadas, acredita-me.
-- Deixa-te d'asneiras; não basta o que lá te ficou! outra vez tirarás a tua desforra!
Affastavam-se; palavras indistinctas, confusas, fluctuavam no espaço sonoro.
O Alberto pareceu meditar; as suas mãos revolviam com avidez os bolsos.
-- Cinco tostões, que miseria, posso lá fazer figura! -- disse com desalento. -- Deu alguns passos mais, parou de novo, indeciso. A ideia do jogo, symbolisada n'aquelle "rei de espadas", aferroava-lhe o cerebro, como uma vespa opportuna que se enxota debalde.
-- Tambem pouco perco, vamos lá.
Resolveu-se.
Retrocedeu e entrou no Gremio. Jogadores infelizes sahiam; em cima ouvia-se um "brou-ha-ha" ruidoso e tosses convulsas provocadas pelo fumo do tabaco.
A atmosphera espessa podia partir-se, asphixiava; no soalho os escarros collavam-se ás pontas de cigarros.
O Alberto entrou, sem se incommodar, como velho conhecimento.
O banqueiro apresentava n'aquella occasião um rei d'espadas.
-- Jogo -- disse rapido.
A sorte foi-lhe favoravel. Duas horas depois um monte d'ouro estava na sua frente. Os olhos irradiavam-lhe alegrias febris; nas faces tinha o calor rubro das congestões. Os amigos rodeiavam-o como a um semi-deus olympico.
Jogou a ultima parada, levantou-se; convidou os rapazes para uma ceia. Felicitações choviam e sorrisos felinos, de invejas abafadas, procuravam-o de todos os lados.
O sol banhava de luz a cidade, quando o Alberto, com os olhos baços, cambaleando, se mettia n'um trem e mandava bater para o "Central".
A hora ia passando, Ermelinda começava a manifestar uma impacienciasinha.
-- Já se vai demorando -- pensava -- e investigava com o olhar contrahido, os vultos que ao longe apresentavam com Alberto uma semelhança na estatura, no andar. Mudava de posição frequentemente, aconchegava-se para o canto da janella com o fim de apanhar uma porção de horisonte mais extensa.
A noite cahia e os empregados do gaz, n'um passo rapido, de tarefa imposta, accendiam os candieiros, que atiravam projecções luminosas sobre a calçada, e sobre as frontarias dos predios.
Começava a ser frequentado o armazem, lá ao fundo da rua; os transeuntes iam diminuindo, e os vendilhões, n'um grito rouco, fatigado, apregoavam ainda os ultimos productos do seu commercio. Um rodar surdo d'americanos serpenteava, e as luzes vermelhas, como olhos injectados, passavam rapidas, oscillando. Uma sombra caminhava n'um movimento circular, desapparecendo, á medida que o vulto se approximava da luz.
-- Ah! d'esta vez era elle, conhecia-o no andar -- e escondia-se, maliciosa, para o surprehender.
-- Mas não -- o sugeito continuava a caminhar indifferentemente, não attentando n'ella sequer.
-- E esta! -- dizia, n'uma voz tremente, nervosa, de desillusão provada.
Mas depois, reflectindo:
-- Não ha que ver, não vem! -- e possuia-se d'uma irritação surda contra tudo e contra todos; um "ferro" que não podia bem explicar. -- Parecia-lhe que os seus nervos tinham uma sensibilidade electrica; que era toda outra, inteiramente diversa. --
-- Mas não tem explicação possivel! -- murmurava.
Pensava em acalmar, em socegar; olhava distrahidamente as estrellas que fulguravam nas alturas, procurando n'uma "rêverie" indolente e malandra, uma especie de quietação scismadora e contemplativa que a absorvesse.
-- Mas não podia, -- irritava-se mais, contrahiam-se-lhe n'uma crispação nervosa as linhas da physionomia e a sua vontade, o seu desejo, seria n'aquelle momento converter-se n'um vendaval violento, que assolasse, que devastasse tudo na sua passagem. Tinha intermittencias de paciencia, acalmava; o rosto espelhava resignações como a superficie d'um lago, onde não sopram ventos; mas lá dentro uma agitação surda roía, como um verme das madeiras no silencio dos quartos de dormir das velhas estalagens. Cançada de esperar, fechou a janella, com estrondo rapidamente.
-- Canalha -- murmurou enraivecida.
E passando pela Joaquina disse-lhe exaltada:
-- Diga ao papá que hoje não esperei, doía-me a cabeça.
-- Se queria um chá de cidreira.
-- Tome-o Você -- respondeu com asperesa, como uma nortada rija.
-- Vai com a telha! --
Entrou no seu quarto, fechou a porta bruscamente.
A Joaquina ainda philosophava:
-- bem o dizia ella, estava com a telha -- e continuou a correr o ferro de brunir sobre uma camisa de homem.
Uma lampada de vidro fosco, suspensa n'um tripede de metal bronzeado, punha uma meia luz suave sobre o recinto, onde entrara Ermelinda.
Deixou-se cahir n'uma "chaise-longue"; os seus joelhos sobrepondo-se, n'um habito de quem costura, deixavam sahir da linha desordenada do vestido alvuras de saias e um pé elegante, n'um sapatinho de bico, enleado, que deixava vêr a fórma nervosa um pouco secca, da perna calçada em meia côr de rosa.
Apoiou a face sobre a mão esquerda, e os seus dedos, n'uma mechanica inconsciente, beliscavam inquietos o rosado lobulo da orelha. Os olhos extacticos e mudos como dois lagos de luz, poisavam, n'uma absorpção humida e contemplativa, sobre os moveis d'aquelle ninho tão povoado das suas ideias, dos seus sonhos, das emanações perfumadas da sua alma.
Tudo porém n'aquelle momento se lhe affigurava estupido, inerte, sem uma recordação, sem uma saudade. O espelho do toucador reflectia-lhe sombras indecisas e vagas; os pequenos frascos de crystal, cheios d'essencias que ella tanto amava, pareciam-lhe agora comparsas imbecis que rodeiam o genio d'um grande artista. A sua commoda pequena, com embutidos de madreperola, onde guardava os seus bellos vestidos, tinha as apparencias informes d'uma tartaruga collossal, empalhada, nos ocios de museu.
Como nos lagos tranquillos, ao avisinhar das tempestades, saltam ao lume d'agua peixes prateados, assim tambem do intimo do seu peito respirações suspiradas sahiam de quando em quando, agitando-a na quietação muda das suas meditações concentradas.
-- Porque não teria elle vindo? --
Era a pergunta que o seu espirito não cessara ainda de formular, sem que sahisse do circulo vicioso, d'uma resposta negativa. Acudiam-lhe muitos motivos, muitos pretextos, para o desculpar, para o censurar.
-- Assim! sem mais, nem mais! -- pensava -- é ter-me em muito pouca estima -- e cheia d'um phrenesi nervoso apertava com mais força o lobulo da orelha, respirava frequente, agitando o seu sapatinho n'umas flexões rapidas, que indicavam necessidade de movimentos expansivos.
Os olhos marejavam-se-lhe d'uma humidade turva, lagrimas segregadas no reflexo de coleras occultas.
-- Mas se estivesse doente! Ah, como era infeliz! Que maldita duvida -- e deixava-se cahir n'uma suavidade de sentimentos, esquecia todas as recriminações, todas as queixas, tudo o que podesse recordar-lhe uma falta d'elle. Lembrava-se apenas que estaria talvez só, desamparado, entregue á indifferença egoista de criados de hotel, sem um amigo, sem uma irmã carinhosa, desvelada, que o affagasse como a uma creança, que lhe tomasse a cabeça entre as mãos, que depozesse um beijo animador na sua testa aquecida pela febre.
Via-o sorrindo, se ella lhe podesse apparecer, com aquelle sorriso meigo dos febricitantes e o olhar prostrado, d'uma languidez doentia -- que lhe devia ficar tão bem! --
Chorava então. A sua alma de mulher, apesar de educada na sentimentalidade vadia das pieguices de collegio, dos namoros de janella, das missas ao Domingo, dos luxos baratos, das leituras romanescas, dos sorrisos de "soirées", irradiava uma sensibilidade pura, honesta, como um sol, que empanado pelo escuro das nuvens, se entremostra uma vez ou outra no fundo luminoso e transparente do azul sereno e indefinido.
-- Ah, como desejaria ser sua esposa, sua irmã, sua amiga! como ella o amaria assim doente, como seria desvelada, solicita, carinhosa. --
Calava-se; as lagrimas deslisavam sobre as suas faces, abundantemente, como um rio que se solta. Pouco a pouco diminuiam, estancavam-se n'uma sensação ardente, de febre nervosa que a invadia. Sentiu frio, lembrou-se que já era talvez muito tarde. N'este instante o Jorge voltava do Club. A Joaquina fazia tilintar dentro as chavenas do chá.
Poz-se em pé e principiou a despir-se; a sua cama á franceza, estreita, de colcha branca, esperava-a n'uma attitude virginal e passiva, como um ninho abandonado, ás quentes irradiações de corpos vivos.
Era aquella tambem a hora a que costumava despedir-se d'Alberto; por isso a crise ia diminuindo, cahia n'um desalento molle, de prostração fatigante. Metteu-se no leito, despenteada, com um vagar preguiçoso, de habitos indolentes, alisando o travesseiro. Uma sensação de frescura do linho a penetrou até á medulla; teve um calefrio rapido, um ah! de satisfação; ennovellou-se, como as creanças debeis e ficou assim, muito tempo, sem se mover, com os vagos olhos absortos, pregados na lampada, que ardia.
Lembrou-se que não tinha resado; descobriu o braço e fez o signal da cruz; os labios balbuciavam umas orações banaes, narcotisadoras, que lhe fizeram pesar as palpebras.
Tinha adormecido. Nas linhas do seu rosto divisava-se ora um sorriso alegre, de satisfação saciada, ora uma contracção spasmodica, revelando amarguras, desesperos intimos, que a commoviam. Sonhava com Alberto.
-- «Via-se noiva, de vestido de faille branco, muito "chic", feito nas Ferin, tendo ao peito um ramo de flôr de laranjeira e na cabeça um penteado elegante, coroado por uma grinalda identica, onde prendia um véo de tulle, amplo, magestoso, que a velava pudicamente; nunca lhe parecera tão pequenino o seu pé, como calçado n'aquelle sapato branco, de setim, dando um realce artistico á sua perna gentilmente vestida em meia de seda.
-- Ah! como o Alberto gostaria d'ella assim! -- sorria vaidosa --
-- E a elle, via-o tambem, muito frisado, de gravata branca, a camisa com abotoadura de brilhantes, de casaca, muito attencioso, muito reverente, cheio de elegancia, invejado por todas, por ellas, pelas suas amigas, que a felicitavam com sorrisinhos traiçoeiros, compromettedores, que faziam córar.
E de sobre a elegancia da sua "toilette" de noiva, ella, para se vingar, deixava cahir sorrisos, animadores, de consolação, para a Adelaide Mendes, para as Gomes, para a filha do Bastos, e outras que ainda estavam solteiras.
Via o aspecto dos trens, enfileirados, ao sahir da egreja, e a sua carruagem de noiva, com os cavallos brancos, e cocheiros de fardas vistosas. O commendador Faria, muito cheio de brilhantes, pesado, enchendo elle só um trem, seria o padrinho.
Ao sahir, quando já vinha pelo braço d'Alberto, as mulheres do povo, cobrindo-a de santas aspirações, de bençãos:
-- que Deus a fizesse feliz, que fosse em boa hora --
-- Apesar de que não promettia muito a cara do noivo -- observara uma aldeleira ambulante, de grosso ventre levantado, e roupas velhas penduradas no braço de côres arreliosas.
Que vontade teve de a esganar, o diacho da velha... dizer que o seu Alberto, tão lindo, tão sympathico, não tinha boa cara: forte bruta! --
Mas esqueceu-a breve; o cortejo dos convidados, um sequito apparatoso que a rodeava como a um astro, fazia-lhe vaidade, tornava-a feliz, parecia-lhe que a dilatava de superioridade.
Depois os convidados, n'uma civilidade ironica, iam-se despedindo. As senhoras abraçavam-a, segredando-lhe ao ouvido e pondo beijos miudinhos nas suas faces aquecidas. A final ficaram sós, ella e o seu amado, o seu marido! Havia uma lampada de crystal no quarto e os cortinados, como as vélas d'uma gondola, agitavam-se trementes, como se o leito fôra na realidade um barcosinho, onde ambos tivessem de navegar para um paiz distante, desconhecido, estranhamente novo. Elle tomara-a um pouco arrebatadamente, sentando-a nos joelhos, affagando-a com beijos e sorrindo, ao tirar-lhe o véo de noiva, que a fazia reflectir no espelho do toucador, toda branca, d'uma brancura eburnea, de camelia nevada.
E no seu rosto adormecido divisava-se um limpido sorrir, de doce voluptuosidade, como se a alma lhe irradiara nas sensações tépidas d'aquelle sonhar delicioso. Mas logo após esta serenidade tranquilla e suave, em que talvez a sua imaginação voasse para esse periodo ditoso e perfumado da lua de mel, em que teria sempre junto de si o seu maridinho, muito carinhoso e muito meigo, o periodo dos jantarzinhos frugaes e delicados, com flores na meza e alegrias no espirito, as linhas da physionomia contrahiram-se-lhe n'uma crispação dolorosa, e o sonho revestia uma feição diversa, em que a amargura vinha como uma flor envenenada, empeçonhar os dias de ventura;
-- era ainda aquelle o Alberto que ella amava, mas desleixado, vadio, ébrio; tinha grosserias insupportaveis, ferocidades de despota --
-- e via-se triste, chorando muito, sem um consolo, sem um carinho que a alentasse... -- era horroroso -- estava diante de si uma galeria subterranea, escura, um abysmo de sombras...
-- não, não queria caminhar, tinha medo... -- mas elle, rindo, dera-lhe um impulso brutal, fizera-a entrar; um caminho escabroso, cheio de asperesas, silvados rodeando-a por todos os lados... cada passo custava-lhe muitas lagrimas... e o Alberto ria, ria, estupidamente, como um idiota embriagado... Um anjo se approximou d'ella; tinha o perfil do commendador Faria, com os seus oculos d'ouro, e as mãos a despedirem luz como as dos illuminados celestes; mas a luz sahia-lhe da base dos dedos, do logar dos anneis; e tomou-a nos braços, sentia-se voar, muito cheia de doce gratidão, quasi esquecida, quando uma creança se lhe prendeu aos vestidos, parecendo reprehendel-a d'aquelle vôo egoista, olhando-a com a limpidez casta d'uns grandes olhos pretos;... mas o anjo -- commendador dominava-a, arrastando-a sempre, perguntando-lhe n'um adociado brazileiro:
-- se a sinhasinha não voava, -- que morreria se parasse, lá estava o snr. Alberto a rir-se d'ella --
e -- sim, lá estava! -- olhou para traz, uma enorme cadeia a prendia a elle, e uns policias passavam então, empurrando-a, batendo-lhe brutalmente.
-- Queria fugir, fugir: era horroroso!»
Despertou então. Um suor frio lhe humedecia a testa; a cabeça doia-lhe um pouco, sentia-se fatigada. A luz da lampada esbatia-se moribunda nos primeiros alvores da manhã que vinham entrando pelas fendas da janella; ouviu o gallo cantar no quintal e logo depois uma voz arrastada, n'uma melopeia monotona, bradando do fundo da escala:
-- Leiteira! --
A Joaquina desceu; ouvia-se um murmurio indistincto de vozes feminis, e em seguida o estrondear da porta que se fechava.
N'aquelle dia andou toda alvoroçada, nervosa, muito inquieta. Olhava muitas vezes o relogio, uma pesada machina de nogueira, a que o Jorge todos os sabbados dava corda, com a phrase rythmica:
-- Tens de comer para oito dias. --
Parecia-lhe que os seus largos ponteiros de metal se moviam com uma lentidão desesperadora. Teve vontade de o adiantar -- mas era uma tolice -- pensou.
Sentou-se a trabalhar para ver se distrahia. Descobriu no bastidor um bordado delicado, a matiz, um ramo de rosas, sobre que vinha poisar uma borboleta. A mão porém não lhe assentava, as sedas sahiam frequentemente da agulha, o desenho errava.
-- Ora! não estava para aquillo. --
Levantou-se, principiou a ler; era «Agulha em palheiro» de Camillo Castello Branco; interessava-se muito por aquelle sympathico filho do sapateiro, o heroe do romance, e sentiu deslisar umas lagrimas furtivas ao ver a formosa Paulina, uma doce creação do romancista, tão soffredora e tão amante.
Tocaram a campainha.
-- Quem seria? -- disse pousando rapidamente o livro e pondo-se diante do espelho, para anediar o penteado.
-- Se fosse visita de ceremonia! que massada. --
Mas a Joaquina veio dizer: -- que estava ali a snr.ª D. Amelinha Bastos, aquella que tinha casado. --
-- E vem só? --
-- Vem, minha senhora. --
-- Ah! que mandasse entrar para a sala de visitas, que se aviasse. --
-- Não te encommodes, não te encommodes, menina, eu não sou de ceremonias, venho mesmo para a tua sala de trabalho, -- disse a Bastinhos entrando estouvadinhamente, chilreando como um passaro alegre.
Beijaram-se muito, -- que não havia quem a visse, devia estar muito zangada, se era cousa que se fizesse. --
-- Ai, filha, tenho tido tanto que fazer. --
-- Tira o chapéu; espera, eu o tiro, --
e com um geito feminil, delicado, levantou-lh'o de sobre o penteado, emquanto a Amelinha, quieta como uma creança que se enfeita, esperava n'uma attitude passiva.
A Bastinhos principiou logo a fallar, tinha uma grande verbosidade, muita volubilidade nos pensamentos, de quem tem muito a descrever, mas que o faz sem methodo.
-- A modista, os passeios, o theatro, se não sabia do ultimo escandalo da mulher do commendador Bernardo, que fôra uma vergonha, que o marido ia requerer o divorcio. --
-- Estou admirada! -- dizia-lhe Ermelinda.
-- É o que te digo, menina, e então com quem, vê se adivinhas? --
-- Não, que não adivinhava. --
-- Com o Alberto, filha, com o Alberto! -- e desatou n'uma gargalhada crystalina, debruçando-se sobre o bordado a matiz, muito curiosa.
Ermelinda sentiu as pernas tremerem-lhe; a sua physionomia invadiu-se rapida d'uma pallidez pronunciada; o seu desejo seria ter n'aquelle momento uma explosão de colera, de lagrimas; mas a Amelinha Bastos estava ali e a sua presença suffocava-a, como uma mascara que nos affogueia o rosto.
-- Se queria tomar alguma cousa -- perguntou-lhe -- tinha-se esquecido. --
-- Nada, nada! --
-- Vê lá, menina? --
-- Tens tu por ahi Xerez? é do vinho que mais gosto, meu marido aprecia-o muito! --
-- Que ia buscar-lh'o n'um instante, que a desculpasse por ter de ficar só. --
-- Á vontade, filha, á vontade -- e pegou no romance que Ermelinda estava lendo, em quanto esta se retirava a buscar-lhe o Xerez.
D'ali por momentos Ermelinda entrou com uma pequena salva de prata, onde vinha uma garrafa de crystal e dous calices; a Amelinha muito prompta, com grande espalhafato, foi ajudal-a. Ella mesma encheu os calices e tomando um, disse com modo desenvolto:
-- Á tua felicidade, Ermelinda. --
-- Obrigada, menina. --
Mas os seus olhos turvaram-se d'umas lagrimas, depressa occultas n'um lenço em que fingiu assoar-se; dentro mesmo ella tinha chorado, agradecendo no seu intimo á Amelinha aquelle desejo do Xerez, que lhe dera uns instantes de isolamento.
A Amelinha, sentada na "chaise-longue", saboreava o vinho em pequenos sorvos, fazendo covinhas nas faces. Depois, como tomada d'uma lembrança repentina:
-- E o teu namoro, como vai, menina? --
-- Oh, filha, se queres que te diga... --
-- Dize lá, dize lá, estou muito curiosa de saber -- e curvou-se um pouco, n'uma "pose" confidencial, de quem escutaria com ávido interesse.
-- Andamos assim, meios cá, meios lá -- respondeu Ermelinda encolhendo os hombros, franzindo o labio, -- se queres que te diga, menina, já me importei com elle, aquillo foi uma "phantasia", uma brincadeira que pouco durou! Para mim já não ha "illusões". --
-- Pois tinham-me asseverado que te casavas. --
-- Credo, nem se pensou em tal! -- Mas como desejasse evitar a continuação da conversa:
-- E tu, como te dás com o Guilherme? --
-- Bem, filha, magnificamente! --
-- Tu é que foste feliz -- disse Ermelinda tomando a mão, que a Amelinha abandonou, n'uma "nonchalance" de bébé, gosando com aquelle aperto que lhe lembrava uma caricia do seu maridinho.
-- Por emquanto não tenho rasão de queixa; o Guilherme não vê outra cousa diante dos olhos; até, se queres que te diga, ás vezes chega-me a aborrecer com tantas pieguices. --
-- Ingrata... --
-- Ingrata, não! Mas tu o sabes... sou assim um poucochinho estroina... não gosto de homens tão serios e tão pêccos. --
-- Olha, menina, é n'essas pequenas coisas que consiste a felicidade. --
-- Boa! ahi queres tu prégar-me um sermão de moral! oh, menina, enche-me este calice; mas ainda agora reparo que tens lagrimas nos olhos!
-- Lagrimas, eu! estás doida! --
-- Coitadinha da pequerrucha, que quer illudir uma mulher casada -- disse arrastando a voz n'um chilrear cantadinho -- e batendo-lhe na face palmadinhas amigaveis, animando-a, pedindo-lhe a confidencia d'aquelle chôro.
-- Que não era nada; ás vezes ficava assim nervosa, tinha d'aquellas extravagancias. --
-- Nervosa, tambem ella era muito! o dr. Arnaldo Braga dizia que era todo o seu mal -- e a Amelinha principiou a explicar, com grande volubilidade, as impressões que sentia ouvindo musica, ao ver no theatro um drama triste, ou então quando o seu gato preto, em certos dias, se lhe atravessava no caminho e ella, sem querer, lhe pisava a cauda e ouvia o miar queixoso do animal.
-- Muito nervosa, muito! este anno vou até para a Foz e tomo um grande numero de banhos; já combinei com o Guilherme. --
-- És feliz, menina, és feliz! --
-- Assim!... -- fez Amelinha contrahindo o labio com certo desdem! e curvando-se disse-lhe ao ouvido uns segredinhos quentes, que fizeram enrubescer Ermelinda.
-- Ora! -- respondeu esta -- póde lá ser isso! --
-- É o que te digo, filha! -- e a Amelinha, pondo-se em pé, principiou a passear, cantarolando a canção do Rigolleto:
«La donna é mobile»
N'este momento o velho relogio de Jorge bateu as duas horas.
-- Ai! tão tarde! Credo! Adeus, menina, vou-me embora! --
-- Já? --
-- Já; ainda tenho de ir ao Pinheiro, a Cedofeita. Preciso umas guarnições para o meu vestido d'estação. --
-- N'esse caso não te demoro! -- e Ermelinda, collocando-lhe de novo o chapeu, fazia-a prometter que viria mais vezes, para passarem um bocadinho juntas.
-- Estou ás vezes tão só! --
-- Pois hei-de vir, filha, hei-de vir! e pondo-lhe na face uns beijos sonoramente cantados, a Amelinha, affogueada pelas irradiações do Xerez, muito alegre como um passaro na Primavera, desceu o véo de tulle branco sobre o rosto e sahiu, batendo com grande estrondo a porta da campainha.
-- Sempre está uma douda! -- disse Ermelinda vendo-a sahir! -- e após um silencio de reflexão:
-- E adeus, são estas as que são mais felizes!
Ainda n'aquella noute o Alberto deixára de apparecer. No dia immediato era Domingo.
Os moveis quietos, n'uma ordem respeitavel, com uma seriedade burocratica, esperavam as "visitas"; tudo arrumado, polido, com grandes vaidades de limpesa. Tinham-se renovado as flores das jarras, de vidro fosco, com uns ramos de rosas pintadas no seu ventre bojudo; nem uma cadeira fóra do seu logar, nem um jornal sobre a "jardiniere", toda aceiada com o seu panno de largas bordaduras, nem uma musica aberta sobre o piano, nem uma planta que se não houvesse regado, nem um album que não estivesse cuidadosamente fechado; uma falta emfim d'essa desordem adoravel, immensamente artistica, que prende o espirito ao ambiente salutar e alegre da sala de trabalho.
Dentro, nos quartos, a contrastar com essa monotonia aceiada para os que vem de fóra, sem descalçar as luvas, analysar os nossos albuns e criticar os nossos moveis, uma desordem perturbadora, preguiçosa, reles, cortada pelo cheiro ammoniacal de roupa suja, espalhada no chão, sobre as cadeiras, n'um monte desordenado. A commoda d'Ermelinda, com as suas gavetas abertas, ostentava brancuras de saias, de penteadores, de camisinhas, e umas pequenas caixas de cartão, com estampas lithografadas, d'onde sahiam perfumes e folhas seccas, aromaticas. O cofresinho das joias abria-se indiscreto patenteando objectos d'ouro com finas perolas, brilhantes miudos, como olhares luminosos que pareciam espreitar da mollesa macia do setim azul.
Ermelinda toda opprimida no seu vestido de "foulard" cinzento, a manga um pouco larga, tomou uma manilha estreita e com um vagar indolente, embevecendo-se na penugem negra do seu braço, enrolou-a, correndo-a por sobre a carne, ao arrepio, até onde pôde seguir o arco da pulseira. Depois, ao calçar as luvas, ais abafados lhe sahiam do peito, suspirosos, como se reflectissem ainda as vibrações d'aquella crise nervosa, porque a sua alma houvera passado nos dias ultimos.
Mas o Jorge, que passeava lentamente na sala, ainda com o palito ao canto da boca, esquecido, com a meditação suspensa de calculos financeiros, de cotações da Bolsa, o fato endomingado, a camisa branca sobre que assentava a gravata preta de setim, um pouco impaciente já:
-- Então vens d'ahi hoje, menina?
-- Já vou, papá, já vou. --
E mais apressada, olhando-se ao espelho uma vez ainda, pregando um novo alfinete no collo do vestido, Ermelinda fechou a porta do quarto, e voltando-se para dentro:
-- Prompta.
-- Já não era sem tempo! isto de mulheres! --
No portal Ermelinda fazia o apanhado, que rangia n'um "frou-frou" de fazenda nova; emquanto a Joaquina de cima espreitava para os ver sahir, elles combinavam o passeio, consultavam-se sobre o caminho a seguir.
-- Que era melhor ir primeiro á missa -- dizia Ermelinda -- e depois voltariam pelo jardim, ou iriam ao Palacio.
-- Seria como ella dizia -- concordava o Jorge.
E os dous, na plenitude vaidosa do luxo de Domingo, tomando apenas os passeios da rua, reverenciando as pessoas conhecidas, com um ar todo festival, de superioridade engrandecida, e de roupa lustrosa, seguiam para a Trindade, para a missa das onze. Homens á porta accumulavam-se vedando o caminho, e em frente, no atrio da Assembleia os dandys do Porto, fallando de cavallos e de jogo, ou contando anedoctas indecentes, estalavam grandes risadas que os faziam contorcer em posições ridiculas, funambulescas, dobrando-se, dando palmadinhas sobre as coxas.
O Alberto estava entre elles, e ao ver passar Ermelinda, toda comprimida no seu vestido, o seu bello olhar profundamente negro, a epiderme morena um pouco empallidecida, exhalando frescura, sentiu um desejo mordente de entrevistas nocturnas, de "têtes-à-têtes" amorosos, chegados um do outro, a cintura enlaçada, as respirações confundindo-se.
E quando o Jorge passou, cortejando palacianamente os seus amigos, elle notou que Ermelinda, ao havel-o reconhecido, voltara o rosto desdenhosamente, sem que denotasse no olhar sequer uma interrogação, uma queixa, um desespero.
Os outros, que sabiam do namoro, perguntaram curiosamente:
-- O que tinha havido, se as relações estavam cortadas? -- e ao verem que o Alberto balbuciava, riram estrondosamente, beliscando-lhe o amor proprio.
Um mais intimo acercou-se d'elle:
-- Se tinha cahido -- perguntou.
-- Deixa-me -- respondeu bruscamente e partiu na direcção da Egreja, a badine agitada, n'uma convulsão de phrenesi.
-- Bravissimo! Romeu feito Tartufo!... -- e batiam as palmas, rindo da pilheria, muito contentes da sua imbecilidade enfatuada.
O padre sahia n'este momento da sachristia; um murmurio rumoroso se levantava entre a multidão que ajoelhava; as damas abriam os livros de missa, fazendo rugir estrepitosamente as saias engommadas, os "failles" novos, emquanto os homens, na seriedade dos seus casacos pretos, amontoando-se a um lado, estendiam lenços brancos, como genuflexorios. Uma luz suave cahia das janellas do côro derramando tons sanguineos, de damascos vermelhos, sobre as senhoras que ficavam n'aquella direcção, emquanto uma penumbra doce envolvia todo o resto. Destacavam dos corredores familias retardatarias; as meninas estouvadinhas, adiante, acommodando-se em passos miudos, como as aves que poisam, fitavam os homens com uma curiosidade muito feminil e cochichavam, reconhecendo alguem.
Houve um prurido devoto quando principiou a missa; os labios moveram-se silenciosamente; os olhos cravaram-se nos livros; as beatas faziam deslisar com avidez as contas untuosas; mas pouco a pouco o narcotismo das coisas monotonas ia-se derramando, causando tedios; bocejos disfarçados escondiam-se por detraz dos lenços brancos e os homens, com uma obstinação sensual, de namoradores vadios, apreciavam os melhores bocados, faziam "vistas". "Crevés" de risca ao meio, muito aromatisados de "patchouli", as luvas a estalar, cofiavam os pequeninos bigodes, fazendo "signaes"; e no fundo escuro das copas dos chapeus, cartas de namoro destacavam, impondo-se ás burguesinhas sentimentaes, que esperavam o aperto da sahida, no portico.
A Ermelinda estava proxima da Adelaide Mendes; o Alberto ficou em frente com o Juca, o sobrinho do brazileiro. Confidenciavam.
-- E então a mulher do commendador, conta-me essa historia, menino? --
-- Nem lhe falasse em tal! Ridiculo... simplesmente!
-- Ah, ah! E o marido?
-- Que era o mais santo dos maridos! Uma pomba!... tinha ido com ella para o Bussaco esconder as maguas na verdura dos cedros!...
-- Mas apanhou-te!...
-- Shoking!... respondeu encolhendo os hombros.
E em quanto o Juca o asseteava de perguntas, muito minucioso, querendo saber tudo, o Alberto olhava devoradoramente Ermelinda, torcendo o bigode, mordendo-o, franzindo o sobre-olho, n'uma attitude de irritação concentrada. Mas ella, muito seria, muito devota, poisando os bellos olhos no livro de missa, fingia não vel-o, entregando-se toda ao amor divino, e gosando com uma beatitude recompensada, a impaciencia que percebia manifestar-se n'elle.
A Adelaide Mendes segredou-lhe ao ouvido:
-- Que o Alberto estava com o Juca, se já o tinha visto...
-- Que sim, era-lhe indifferente.
-- Então andaes "arrufados"?
-- Não, mas... tinham-lhe passado os enthusiasmos.
-- E está de luto! quem lhe morreu? sabes?
-- Não, que não sabia! -- e vesgamente, no estrabismo de quem quer ver sem que os outros dêem por isso, a filha do Jorge observava o Alberto, pondo-se a si mesma o ponto de interrogação d'aquelle vestir lutuoso.
-- Se seria algum parente da provincia -- pensava -- e que elle tivesse de partir sem a poder avisar!... ah, sempre era então desculpavel -- e enternecia, amollecendo a asperesa do olhar, quebrando-a no vago fluido dos olhos d'elle, que sentia poisar sobre todo o seu corpo, absorvendo-a.
Mas a campainha do coadjutor principiava a vibrar; corpos se curvaram n'um mysticismo reverente e ouviam-se os peitos echoar no tympanismo das contricções. O padre elevava serenamente a hostia, devagar com uma grande lentidão ceremoniosa! E depois, um silencio demorado, até que a campainha vibrou de novo mais forte, com sonoridade, como que dispensando as attenções; lenços se recolhiam no escuro das algibeiras e os homens tomavam uma "pose" mais elegante, o tronco direito. A benção desceu e todos, recurvando-se um pouco, se persignaram rapidamente, com desdem, voltando-se, comprimentando ceremoniosos, com a cabeça. O povo começava a evacuar a egreja, n'um ruido de tropel, confusamente, de quem quer sahir primeiro. E as senhoras mais atraz, sorrindo, beijavam-se, fechando os livros. Os conhecidos vinham, comprimentavam.
-- Suffocava-se um pouco, --
e lá fóra um sol alegre, primaveral, que brincava atravez do reposteiro, penetrando no templo, na instantaneidade da luz, quando alguem sahia. Grupos se formavam. A Adelaide Mendes, a Ermelinda, a D. Carola, e envolvendo-as como n'uma circumferencia de respeito, o Juca de chapeu na mão abanando-se, com a desenvoltura d'um frequentador do Circo, o Jorge todo grave, um sorriso a escoar-se dos labios escanhoados para as suissas grisalhas, nitidamente penteadas, e o Alberto, n'uma "pose" melancholica, o chapeu sobre o quadril, todo de preto, com uns grandes ares romanticos e tristes.
O Jorge por uma polidez excessiva perguntou:
-- Se fôra alguem de sua familia, que havia fallecido? --
-- sua tia, D. Joanna de Atayde, lá na provincia, uma boa velha que quasi lhe fôra mãe e que até na morte o considera filho!
-- deixando-te herdeiro, ein? -- interveio o Juca: --
-- que sim, que deixara, mas que sobre tudo lhe sentia a falta, um coração de santa!...
-- os meus sentimentos -- comprimentou gravemente o Jorge.
-- pois olha menino, eu dou-te os meus parabens; e de mais a mais sendo ella velha!... --
Poz nos labios um sorriso amargurado como unica resposta. As senhoras tinham ouvido, e ellas tambem davam os seus pezames, tomavam parte na sua dôr;
-- que eram consolações amigas, suaves como um balsamo -- respondeu.
E quando Ermelinda lhe apertou a mão, foi já com uma compassividade meiga no olhar, -- perdoando, sabendo em fim o motivo. --
Foram sahindo. Iam todos para a Cordoaria ouvir musica, -- era a banda do dezoito que tocava, tinha visto isso no «Commercio» -- dizia o Jorge --
-- e o snr. Alberto se recolhia á provincia, -- perguntava. --
-- que não, ou talvez o fizesse temporariamente!... Venderia as propriedades e metteria o dinheiro em qualquer banco; além d'isso era preciso pagar as dividas de rapaz, tornar-se em fim homem sério!
-- Tu! -- desatou a rir o Juca.
-- E porque não -- observou o Jorge n'um tom amigavel de reprehensão -- ainda está verde este diabrete -- indicou sorrindo, apontando-o ao Alberto, com o grosso pollegar da sua luva escura -- que fazia muito bem, denotava muito nobres sentimentos, todos tinham tido as suas rapaziadas, mas lá vinha um dia... em que se tomava juizo -- aconselhava. --
-- faria por tomal-o elle tambem! -- respondeu sério, n'um tom accentuado, de novas resoluções emprehendidas.
E emquanto o Jorge se enchia por elle d'uma sympathia calculada, vendo-o, regenerado, vivendo na boa sociedade, elegante e fidalgo, e de resto, namorando a sua Ermelinda, que poderia vir a ser sua esposa, o Alberto, num sorriso intimo, de bom comediante, acariciando o bigode:
-- Estás cahido -- meditava.
O commendador Faria vestia-se no seu gabinete do "Hotel"; tinha um grande apuro de si proprio, muito escanhoado, o cabello lusidio de pomada, a risca ao lado, as barbas muito penteadas, a camisa d'uma brancura anilada com ricos botões de brilhantes. Tirou do bolso um chronometro inglez, de setenta libras -- dez horas ein, e se esquecia de almoçar! --
e vestindo o casaco, dando o nó da gravata, ageitando os oculos em frente do espelho, foi abrir a janella do quarto; mas recuou, teve um movimento instinctivo de retirada,
-- que caiporismo de mulher, não largava um homem, parecia "Mineira", ella, que grande massada --
alto, porém, sorrindo, comprimentou a D. Clementina do Rosario, fez oscillar a sua grossa cabeça com um bello ar de amabilidade, teve mesmo uma phrase galante para com a visinha, que todos os dias, n'um rigor chronometrico de vinte e quatro horas, o asseteava com a sua carnação copiosa e fresca, o collo alvo da brancura lactea das camellias, e um sulco escuro, que descia, n'uma curva insinuante, attrahindo o brazileiro, cuja janella um pouco superior lhe offerecia as vantagens d'uma contemplação a "vol d'oiseau".
-- Uma manhã muito fresca -- dizia -- appetecia um passeio pelo campo --
-- elle então que precisava tomar seus banhos em Vizella.
-- e quem o impedia, ella talvez para lá fosse tambem aquelle anno --
-- mas tinha seus negocios, que não havia outro motivo, não...
-- na idade d'elle...
-- quarenta e cinco, D. Clementina, já cá estatavam quarenta e cinco --
-- que era isso! e ninguem o dizia, tão bem conservado. --
Sorria-se.
Um trem passava levando as palavras no ruidoso estremecer dos seus movimentos; vendilhões apregoavam, e a D. Clementina, na impossibilidade de atirar amabilidades para a janella do commendador, enviava uns sorrisos pudicos, d'uma honestidade quarentona, como ainda sabiam fazel-os os seus labios de purpura desbotada. E depois, quando voltou uma intermittencia de silencio, que permittia a transmissão da voz, erguendo-se um pouco, n'uma flexão tetanica de collo, muito novedadeira:
-- Então sabe que Ermelinda casa!
-- não, não sabia, boatos talvez --
-- qual historia; era verdade, podia ella affiançal-o; estivera lá em casa ainda hontem; o commendador é que apparecia poucas vezes agora..., e não fazia mau casamento... o Alberto herdara d'uma tia --
-- pois não sabia, não sabia!...
e o commendador deixando cahir mollemente a sua affirmativa, sentia passar na sua memoria avivada, como n'um kaleidoscopo, em que as imagens se succedem, aquella "soirée" de casa do Mendes, a sua infelicidade ao "sólo", e seu enleio a dansar os Lanceiros, quando a Ermelinda um tanto "coquette", envolvendo-o na doçura quente do seu olhar, exhalando aromas subtis, que embriagavam, lhe sorria acariciadora, mostrando a brancura dos seus dentes eguaes, e um collo decotado, suavemente trigueiro, onde poisava um formoso signal escuro.
E depois a noute de insomnia que elle passara, affagando aquella imagem que fugia, esvaindo-se na penumbra pallida das suas ideias desfallecentes.
O seu coração tivera então umas pulsações mais desordenadas, alguma cousa de estranho, como a onda d'uma vida nova, que elle nunca tinha experimentado. Lembrava-se que só uma vez sentira uma impressão quasi analoga, a bordo d'um paquete, por uma "lady" ingleza, de meigo olhar azul, que lia melancholicamente no tombadilho, á tarde, quando o sol cahia em irradiações douradas na linha do poente e se via a helice abrir um sulco nevado, de espumosa brancura, no dorso azul do grande mar dormente. Mas então, ao desembarcar no Lazareto, a ingleza seguira para Bordeaux e elle, na capital, fôra pouco e pouco esquecendo aquelle episodio romanesco da sua vida. Mas agora, lembrando-se que Ermelinda ia ser d'outro, que a veria todos os dias, sorrindo com a meiguice do seu olhar para o marido que lhe daria o braço, sentia um mal estar, um como desejo de ser mau, oppondo-se ao seu casamento, contrariando-lhe a felicidade,
-- não por que aquillo lhe importasse... mas, não sabia explicar, sentia-se encommodado, a final de tudo.
E distrahido, cofiando com um automatismo inconsciente a suissa grisalha, esquecendo que estava á janella a conversar com a D. Clementina, que o requestava toda vaidosa da sua redondesa de formas, retirou-se bruscamente, sem se despedir. Mas lembrando-se da sua descortesia, voltou:
-- que o chamavam de dentro, se era servida de seu almoço. --
Ouviu-se no ar um
-- obrigado -- e o descer d'uma vidraça que cahia chronometricamente no caixilho, para só se erguer no dia immediato.
-- ainda era aproveitavel esta D. Clementina, mas uma mulher que elle aborrecia, lhe causava nojo... e então não era para comparar com a outra... e ahi estava elle a pensar n'ella, se encommodava com aquillo. --
-- que era uma tolice -- pensava -- já não era creança e a Ermelinda era uma rapariga nova... o pae havia de querer dinheiro... o banco não estava muito seguro, elle sabia d'umas transações pouco felizes -- e não faltavam mulheres -- concluia alto.
Affrouxava-lhe a genese do novo ideal perante o conhecimento prático da vida
-- ora, que se não ralaria. --
E sahindo do quarto encaminhou-se para a sala de jantar, onde o esperava a costelleta que elle humedeceu com suas pimentinhas, o escaldado de farinha de Serohy, os ovos quentes, e simultaneamente a conversação dos companheiros, muito animada, recordando os affanosos dias do Rio de Janeiro, as distracções das Xacaras de Bota-fogo, das Larangeiras.
A conversação estabelecia-se, de companheiro a companheiro. Reminiscencias se avivavam, cortando-se mutuamente, como bolhas de champagne, que effervescem n'uma confusão tumultuaria. O Lourenço Pereira á direita do commendador, tinha acabado de almoçar, recostava-se, accendendo um charuto, reclamando o "dessert" do cavaco.
Fallou-se nas companhias de Bonds, que faziam percurso para o Bota-fogo.
-- E a proposito, se recorda você, commendador, a partida que aconteceu lá ao Mendes, com aquella Francezita da rua do Ouvidor? --
-- Pintou a manta aquelle estroina!
-- Mas que o Juca Silveira não lhe ficava a dever nada, ein! --
-- O Juca, é verdade!... e onde está elle agora, sabe você, Lourenço?
-- Não é socio do Chico do Barbadinho?
-- não, que não era! desmanchara de ha muito a sociedade
-- elle, já me recorda elle! Pois esse rapaz tem agora commandita com o Pinto, aquelle que morava lá adiante na rua do Gonçalves Dias, á esquina. --
O commendador não se recordava; veio outra explicação do Lourenço subsidiar-lhe a memoria.
-- O Pinto, que tem casa de molhados á rua da Alfandega, com o José Casimiro, que morreu da febre em 74.
-- Já, já! Ora com quem foi parar o Juca! estava admirado!...
-- E ia bem! A casa tinha muito credito do tempo de Cunha Almeida & C.ª
-- Bom moço, o Juca!
Successivas recordações se evocavam, generalisando-se. O almoço tinha concluido; os estomagos digeriam na tranquillidade feliz d'um bem estar ocioso, e os charutos ardendo deixavam cahir a cinza esbranquiçada sobre a toalha da meza, d'onde o criado retirava os serviços n'uma attitude diligente e curva.
A luz suavemente cortada pelos "stores", estendia um rastro alegre por sobre as aparadeiras, dando um brilho metallico ás louças que pousavam sobre o marmore, ás fructeiras, ao centro da mesa coberto de flores, aos crystaes dispersos ainda com restos de vinho, que não tinham sido levantados; em quanto as moscas n'um zumbir monotono, volteando em redor do grande candelabro de dous ramos, cahiam sobre as chavenas aproveitando os restos d'assucar.
Lá fóra, nas cruas irradiações do sol que batia n'um predio fronteiro, presentia-se um dia de calor, das fortes temperaturas tropicaes; mas os brazileiros, oppunham-lhe a sua calça branca, rija de gomma, e os seus Chilis, leves d'uma frescura hygienica. Iam-se pouco a pouco levantando, sahindo da sala, aos grupos, como os mansos animaes emigradores, trauteando pequenas canções, chacaras Brazileiras, -- a "Mulatinha do caroço", o "Nhonhó", e já na rua dirigiam-se aos estabelecimentos conhecidos, aos Bancos, á Associação commercial, ou vinham parar na Praça Nova,
-- o "palheiro" -- como elles o denominam -- em casa do Pimenta, do Guimarães, do Prata.
Um ruido de cidade, como um latejo palpitante de vida, se concentrava na praça. A intervallos os americanos passavam, pachydermes gigantes, de movimentos vagarosos, n'um trote miudo de muares; o povo esfervilhava, trajes variegados das lavradeiras dos arrabaldes, d'uma vivesa crua de colorido, os da cidade com seus fatos claros, caminhando depressa, na sombra dos edificios, evitando aquelle dardejar de irradiação que batia cruamente na calçada. Os trens infileiravam-se a um dos lados, os cavallos pacificos, de cabeça baixa, quebrados pela ardencia do calor, em quanto ao centro o Rei-Soldado, golpeado pelo sol, com uma grande intrepidez de estatua, empoado, mostrava do alto do seu cavallo a carta constitucional ao Rainha, cuja taboleta annunciava tripas aos sabbados e ás quintas-feiras.
Na Baviera, no Camanho, no Suisso, homens entravam, pedindo gelo, refrescos, sorvetes de morango; quem passava via o loiro da cerveja nos copos estreitos, e individuos recostados, abanando-se com os chapeus; na Moré os janotas, estoirando as luvas, cumprimentavam, bocejando, na grande nostalgia de cerebros vasios e quando succedia que alguma senhora ao subir dos passeios mostrava a levesa elegante do pé, olhares esgaseados, d'uma sensualidade sorna as procuravam, mordendo-as com o desejo surdo de calcinações febris; e logo os brazileiros em casa do Guimarães, sentados nos mochos do estabelecimento, bamboleando-se, se acotovellavam cochichando:
-- Bom bocado! ein!... se não tinham reparado. --
-- Viu-se o Jorge passar com Ermelinda; o commendador estava lá no seu mocho, lendo o «Commercio do Porto» com uma grande attenção minuciosa; mas os outros noticiaram logo:
-- que lá ia o Jorge com a filha.
-- sempre se casava ella, ein?
-- Levava boa rez, não tinha duvida -- disse de dentro o negociante --
-- e a rapariga estava de appetecer -- accrescentaram -- mas ao verem que os dous tomavam um trem,
-- Ora para onde irão elles a esta hora! sempre o desejava saber -- observou o Juca, curiosamente, batendo com a badine no balcão. -- E sahiu rapido, borboletando como um colibri, desejoso de saber.
O commendador desviara os olhos do jornal; parecia-lhe que d'aquella mulher, que estava uns vinte passos distante, irradiava alguma cousa de subtil e quente, como um veneno oriental que lhe corresse nas veias; fitava-a insistentemente, atravez dos seus oculos d'ouro, como desejando attrahil-a para si, n'aquelle mutismo de obediencia passiva, com que os magnetisadores recebiam as suas allucinadas. E ao ver Ermelinda saltar para o trem, descubrindo brancuras de vestidos n'um movimento rapido, sentiu-se como que estonteado, uma aura que lhe ennevoava a visão, alguma cousa de terrivel e doce, que escachoava confusamente no seu cerebro, e pondo-se a pé, um pouco pallido, disse para o caixeiro do estabelecimento
-- Me dás um copo d'agua, Manoel? --
E bebeu-a d'uma assentada, um pouco apressadamente, como se confiasse em que a acção fresca do liquido lhe acalmaria aquella agitação intima, que bem a seu pesar, lhe sacudia os nervos tão pacificos.
Mas n'este momento o Juca, entrava todo offegante, vaidoso de si, dando um giro mais largo á sua "badine".
-- Já sabia... --
Rodearam-n'o; uma grande curiosidade patenteada em todas as physionomias.
-- Então, dize lá, menino?...
-- Ao tabellião, meus lyrios, ao tabellião; vão assignar as escripturas. --
Os commentarios choveram; o commendador tinha-se retirado, apenas soubera da informação do Juca.
-- Me incommoda, isto, ein, não sei porquê -- ia elle a rumurejar quando passava á esquina de S. Bento.
Alberto conseguira effectivamente insinuar-se no espirito de Jorge; as relações iam-se estreitando, tornando-se mais intimas; principiou a frequentar a casa, á noite, á hora do chá. O commendador apparecia uma vez ou outra; e quasi sempre a D. Clementina vinha tambem, o seu pequenino cão felpudo, de que narrava com uma grande prolixidade enfadonha as travessuras, as caricias.
-- Querem saber o que elle fez outro dia... o meu Totósinho... -- e affagava-o correndo-lhe a mão pelo dorso, n'uma boa caricia amoravel -- estava eu já deitada, elle dorme no meu quarto o Totó e ouço-o gemer, gemer, parecia mesmo um christão, fóra a alma, chamo por elle, vem muito candongueiro... --
Mas já ninguem lhe prestava attenção; o Jorge tinha proposto uma pequena partida de sueca, e acceitara-se com vontade,
-- era preferivel á historia do fraldiqueiro -- dissera baixo o commendador. --
A D. Clementina cortou a narrativa,
-- gostava da sueca, era o seu jogo, seremos parceiros, commendador?
-- Com muito gosto, minha senhora. --
A Ermelinda e o Alberto é que achavam massador,
-- ir agora jogar a sueca, que estopada --
-- ainda se viesse por ahi a D. Gabriella, a viuva do Brandão -- cochichavam.
Ouviu-se uma campainhada. Exultaram.
-- Havia de ser a D. Gabriella!... vai abrir, Joaquina. --
Era effectivamente a viuva; um ar ressequido, de rata velha, arrastando os ss, com um silvo prolongado em todos os vv, ainda pretenciosa, com uma paixão occulta pelo Jorge, que tinha a felicidade de a não perceber.
Disposeram a meza. Ermelinda e Alberto, um pouco affastados folheavam os albuns, distrahidamente embevecendo-se em phantasias coloridas, muitos projectos -- que haviam de effectuar, um dia, logo que fossem um do outro, para todo o sempre. --
O Jorge questionava.
-- Pois se o trunfo era copas, minha senhora, era copas...
-- Julguei que podia embarcar a bisca ali no valete do commendador. --
-- Qual historia! Ahi tem o resultado, perdemos por sua culpa...
E voltando-se para Ermelinda:
-- Toca alguma coisa, menina; não sei para que te serve a habilidade!...
-- Já vou, papá...
E sentou-se ao piano, o Alberto ao lado, voltando-lhe a musica. Era um motivo da "Traviata", d'um sentimentalismo enervante, que punha no espirito uma doce melancholia; tocou depois um trecho da Dinorah, a «walsa da sombra»; parecia que as notas vibrantes do piano recordavam aquelle gemido hilariante da pobre louca, que se desenhava em todo o seu perfil na lucillação casta do luar.
Havia commoções ternas n'aquella musica, toda repassada d'um perfume apaixonado, sentimentalista; a alma deixava-se voejar na photosphera quente d'uns amores loucos, muito ideiais, com idylios banhados de luar, e phrases d'uma levesa etherea, d'uma brancura ingenua de estrellas; amortecia o vigor dos fortes, como uma gaze feerica envolvendo um bronze; e Alberto, contemplativo e scismador, de pé, absorvendo na languidez quebrada do seu olhar, a escultura formosa de Ermelinda, experimentava um desejo incoherente de se apossar de toda aquella mocidade, arrebatando-a, como um cavalheiro medieval, no corcel vertiginoso da sua phantasia.
Mas o Jorge irritado:
-- Oh, D. Gabriella, pois isso faz-se, ir metter a sua bisca debaixo do az. --
-- Mas, sr. Jorge...
-- Qual mas, nem qual carapuça; a senhora está hoje d'uma abstracção imperdoavel...
Ermelinda cessara de tocar, sorrindo para Alberto d'aquellas questiunculas futeis; os seus olhos negros levantando-se tinham uma meiga expressão indefinida, como se a musica, que estivera tocando, os houvera mergulhado n'um fluido suavemente humido e voluptuoso. Voltaram a sentar-se junto da "jardinière", um pouco recolhidos na sombra, apertando-se occultamente as mãos, com uma doce pressão dolorida, que os fazia estremecer de gozo.
-- É muito sentimental aquella walsa da Dinorah!
-- Tu gostas?
-- Immenso; mal sabes como me sinto apaixonado quando a oiço tocar.
-- Hei-de tocal-a então muitas vezes... depois...
-- Pois... sim...
-- Mas com uma condição; has-de me dar um beijo de cada vez...
-- Um só! dou-te mil... meu amor...
-- Ah, ah, mil... eram muitos... -- e abriu um sorriso gracioso, desenhando-lhe no carmezim dos labios um estojo assetinado, guardando uma dentadura egualmente branca, que um poeta noviço denominaria perolas.
A Joaquina entrou com o chá; poseram-se as cartas de lado, rodearam todos a meza; o Alberto tinha sempre o cuidado de servir as senhoras.
-- Então, D. Clementina, um bolinho mais.
-- Nada, não queria, estava servida...
-- E Vocêssencia, D. Gabriella, não se serve de mais uma torrada.
-- Faz favôr, sr. Alberto! -- e sentia-se logo na mó coriacea das suas gengivas desdentadas um ruido aspero de trituração, que ella humedecia com pequenos golos de chá, muito saboreados.
O Jorge conversava com o commendador sobre negocios economicos
-- que estava já muito bom o cambio e se assim continuasse viria de lá muito dinheiro. --
-- era preciso; se não se dava em crise! -- approvava o commendador --
-- que as acções da Companhia Carris tinham baixado, e as do Gaz, e as da Viação, e muitas mais...
-- uma miseria, tudo!...
-- elle, que estava de dentro é que sabia o que por lá ia, tudo pôdre, affiançava-o. --
As torradas, os bolos, os biscoutos iam desapparecendo, as chavenas fumegavam na desconsolação vasia de porcellana quente.
-- Se tomavam mais chá -- perguntava Ermelinda.
-- nada, nada -- dizia a D. Clementina -- agora cada mocho a seu souto; vão sendo horinhas...
O commendador puchava pelo seu chronometro de setenta libras
-- onze horas, minha senhora...
-- credo, muito nos demoramos hoje.
E cobriam os agasalhos, n'um conforto macio, dizendo-se adeus. A D. Clementina e o commendador eram os primeiros a sahir, depois o Alberto despedia-se ceremonioso para com o Jorge, volvendo o olhar d'uma tristeza saudosa para Ermelinda, que promettia, por leves signaes trocados, fallar da janella na noite seguinte, emquanto o pae estivesse no Club. A D. Gabriella era a ultima, e dava sempre um beijo na Ermelinda, chamando-lhe -- a sua filha -- e um "shake-hands" ao pae, d'uma expressão significativa, forte como uma velha esperança. Depois a Ermelinda dava as -- boas noutes ao papá -- que ficava ainda a lêr o «Commercio» n'uma tranquilidade pacata, de chinellas bordadas a tapete.
Mas não eram essas as noites em que mais se expandia, em candido voejar, a imaginação ardente dos namorados. A companhia era sempre um obstaculo, um "non plus ultra" á sua phantasia sonhadora, á idealidade rutilante das suas imagens de prazer.
-- Que aborrecimento ter de aturar a velha historia do Totó, contada pela D. Clementina, e a phonetica de sabiá do commendador e os vv, silvados da D. Gabriella. --
-- Ah, como era bom estarem elles sós os tres em volta da "jardinière", o Jorge lendo o Commercio, interrompendo-se apenas para narrar um caso -- que podia ser fatal -- e o Alberto folheando os albuns, sentindo descer sobre si a respiração suave de Ermelinda, occulta na meia sombra do "abat-jour", trabalhando silenciosamente no seu bordado.
-- ou então, quando Ermelinda se sentava ao piano, tocando uma musica triste, entornando umas melodias melancholicas por sobre a sua alma de "crevè", dando-lhe umas sensações deliciosas que o amorneciam --
-- e depois que momentos felizes quando o Jorge por um motivo qualquer tinha de se ausentar da sala, ficando sós, os dous, na plenitude livre do seu amor, que irrompia, como um riso torrentuoso, n'uma caudal indomita de beijos...
-- Oh, Alberto, Alberto, que fazes!...
-- perdoa-me, é uma loucura, mas eu amo-te, e soffro... soffro d'este amor -- e ajoelhava-se, n'uma supplica humilde, urgente, que a dominava, tornando-a tremula...
Mas o Jorge vinha, e a sua presença, como um "douche" gelado por cima d'aquelle incendio, acalmava-os, fazendo-os retomar atrapalhadamente os objectos em que se entretinham antes d'elle sahir.
Sob estas fustigações incitantes a força psychica accumulava-se, polarisando-se reciprocamente n'um magnetismo mysterioso, que os attrahia um para o outro.
-- Só a morte nos separará -- diziam dominados ainda pela excitação recebida, sob a impressão candente d'um beijo d'amor, d'uma emoção fortemente sentida. Essa força latente, que se accumulava, podendo explosir com uma violencia vulcanica, reclamava o casamento, a união reciproca, como uma valvula de segurança, por onde podesse respirar a paixão, amortecendo-se na atmosphera pacifica da vida vulgar, em commum.
Conheciam-se pouco, mas... que importava!... amar-se-hiam muito... o conhecimento viria depois... havia apenas um mez que Alberto tinha entrada em casa; mas
-- havia seis mezes que o namorava -- dizia Ermelinda -- e o coração não a podia illudir... não... era o seu verdadeiro amor aquelle... --
E fluctuavam-lhe vagamente, n'uma indecisão esvahecida, as reminiscencias dos seus outros namorados;
-- Uns pulhas, a final!... E depois eu era creança! tolices... --
E tratou-se do casamento. O Alberto tinha sobre tudo um grande interesse em apressar esse enlace. Dizia ao Jorge:
-- que estava só, que desejava conhecer a verdadeira felicidade...
-- a que se encontra unicamente no lar domestico -- ponderava o director do Banco. --
-- justamente, aquella que só póde vir dos carinhos affectuosos da familia -- concordava...
E lá de si para si pensava:
-- que era preciso effectuar a cousa, emquanto durava o dinheiro da "batota", emquanto elle estava com a "leiteira", a sorte que o protegia nas noites do Porto, e nos dias de roleta, na Povoa... podia vir o azar e lá ia tudo, com os diabos... --
E de vez em quando affectando alguma difficuldade em collocar algum capital, aconselhava-se com o Jorge, interrogando-o
-- de como se desfaria d'umas propriedadesitas na provincia, se seria melhor conserval-as -- e entregava-lhe algumas notas de cem, duzentos mil réis, que dizia provirem d'uns pagamentos de fóros, havia pouco recebidos. --
O Jorge sentia vontade de o abraçar.
-- Um genro magnifico -- pensava -- e diziam por ahi que era um estroina, um jogador, um bebado; a gente quebra, rapaziadas!... --
E foi elle o primeiro a ceder ás instantes solicitações de Alberto, preparando tudo, aplanando todos os pequenos obstaculos, comprando uma mobilia nova para o quarto dos noivos, e outra para a sala de visitas.
-- Agradecia-lhe ainda a delicadeza de o não quererem affastar, de viverem juntos; a separação, a deslocação brusca dos seus habitos matal-o-ia, tinha d'isso a convicção. --
Havia apenas em casa uma pessoa que não sympathisava com o Alberto; era a Joaquina. Um instincto puramente animal a revoltava contra aquella peralta, -- que viria pôr a casa n'uma roda viva; e depois embirrava-lhe com o "focinho",
-- seria muito bom, seria, mas á missa d'ella é que elle não ia... --
E ás vezes, das suas meditações, ao engommar as brancas saias de Ermelinda, resaltava uma queixa, um repellão de revolta contra tudo aquillo.
-- Boa, não que se a cousa não fosse direita ella "raspava-se", por ali era o caminho --
e dilatava as bochechas, n'um movimento de folle, soprando ao ferro de brunir
-- amizade á menina, como o outro que diz, tinha, lá isso tinha, a gente a viver com ella ha quinze annos, erro fôra... mas adeus, que se aguentem... e hão-de-me sentir a falta, não que outra Joaquina não lhes vem cá tão cedo... --
Enchia-se d'uma vaidade esbofada, do amor proprio da sua utilidade affirmada todos os instantes, na cosinha, no engommar, no arranjo e limpeza dos moveis.
-- Boa -- continuava -- é vêr as criadas que ha hoje por ahi; cada qual faz o seu serviço e disse... eu sou aqui uma moura de trabalho... adeus, tambem... o trabalho não custa, quando a gente tem saude, graças a Deus... e depois se eu quizer sahir... uih!... casas não me faltam... são assim... -- e aprumava os dedos, n'uma accumulação collectiva, que indicava uma forte abundancia numerica...
-- mas, lá, o tal senhor, não lhe engraçava com os bigodes... ainda se fôra o commendador... aquillo sim, que era um regalo de homem e pezava, bem se via nos brilhantes que elle trazia na camisa... mas estas meninas de hoje só querem bonifrates... e elle então que andava babadinho por ella, isso conhecia-o ella... oh, se conhecia... --
E a Joaquina, evocando umas cantigas do seu Minho, cantarolava, continuando a pôr nas saias uma brancura luzente de stearina.
Tinha então os seus trinta e cinco annos talvez; viera para casa do Jorge com doze annos apenas para ser a criada da menina e fôra crescendo, tornando-se prestavel, amorosa para com todos, muito serviçal; tinha sobre tudo uma amizade animal por Ermelinda, a sua menina, que tantas vezes trouxera ao collo, com quem tantas vezes brincara... A familia do Jorge era a sua familia, e principalmente, depois que a senhora morrera, a Joaquina tomara um certo predominio na casa, o predominio da utilidade, do prestimo positivo, da sciencia pratica das cousas. E foram-lhe assim passando, n'aquelle deslisar monotonamente suave, os dias formosos da sua mocidade; chegara a ter um namoro, dous até, o primeiro com um rapaz marceneiro, que morrera no hospital, o segundo com um policia, que representava o papel de Falstaff, no céo da sua innocencia de bicho de cosinha... Mas tudo isso acabara, esvaecera-se lentamente, como um arroyo de verão que sécca, deixando umas areias fulvas na sua passagem; e a Joaquina um poucochinho gorda, aceiada, d'um loiro branco dos temperamentos lymphaticos, espapava-se agora n'aquella tranquilidade da familia, contente com a sua sorte, sem as revoltas instinctivas do servo. A molleza apathica do seu temperamento adormentara-lhe as imposições estimulantes da carne; e laboriosa como uma formiga, entregue sempre á tarefa assidua do trabalho, esquecia-se que resvalava pouco a pouco n'esse plano inclinado da vida da mulher, em que as brancas matizam a cabeça e as rugas se aninham na face, desfeiando-a, com as garatujas d'uma tatuagem a carvão. Mas aos Domingos, nos dias de ocio, em que o corpo se sentia resfolegado das canceiras do trabalho, e o jantar era um poucochinho mais copioso, com uns estimulos de acepipes apimentados, a Joaquina experimentava umas mordicações acirrantes do instincto e deitava-se na cama, extasiando-se na brancura polposa dos seus seios e suspirando, n'uma recordação entre odiosa e doce pelo seu segundo namoro, o bravo agente da ordem, o policia 45.
Mas aquillo passava, como uma ligeira effervescencia e o trabalho adormentava de novo o tumulto provocado d'aquella natureza apathica, que continuava tranquillamente na curva suave da sua existencia.
Na rua de Welesley, a tia Magdalena acabava de frigir a terceira certã de iscas de bacalhau, uma massa d'um amarello canario, com fragmentos retalhados de ovo batido, -- que ninguem sabia preparar com tanta limpeza e com tanto "paladar" -- dizia ella. O seu corpo baleiforme, d'uma gordura toucinhosa, curvando-se para pôr o avental, enodoado de manchas lusidias, levantou-se de subito, quando a Annita lhe entrou na cosinha, um aspecto pallido, enfermiço, d'umas rosetas carmezim ao meio da face, e uma tossesinha secca, muito frequente.
-- Dá licença, tia Magdalena.
-- entra rapariga, já não ha quem te veja.
A Annita ia a responder, mas a tosse interrompeu-a, um accesso brusco, que ella procurava abafar, collocando um lenço sobre a bocca.
-- Trata-me d'essa tosse, pequena, isso é "fraqueira", queres tu tomar um caldinho!
Os olhos d'Annita, uns vagos olhos negros, d'uma doçura quebrada, moveram-se como que a acceder áquelle offerecimento e depois baixaram-se, mudamente, deixando rolar umas lagrimas furtivas.
A tia Magdalena reparou:
-- Tu por que choras, rapariga!
-- Se soubesse!... -- e Annita, deixando rolar as lagrimas, n'um soluçar comprimido, os olhos a avermelharem-se, prorompeu rapidamente, como uma confissão que se deseja fazer depressa:
-- Ha uns doze dias que o Alberto não apparece; e sabe... a pequenita, está tão mal, seccou-me o leite, coitadinha, não faz senão chorar, aquillo é fome, percebe!... --
-- Ora o grande maroto; eu bem te dizia que aquillo nunca te havia de dar bom pago! Uns tratantes todos, uma corja, é o que é!... -- E a tia Magdalena, n'uma indignação honesta, brandindo a gordurosa faca de voltar as iscas, com a respiração ruidosa, vermelha do calor do lume, como uma clamyde vingadora, ameaçava os devassos da boa sociedade,
-- uns pelintras, uns paninhos d'armar, e que não deitavam uma de x, se os virassem de cangalhas, que era o que elles mereciam... uma forca -- concluiu toda offegante, limpando a certã ao avental e collocando-a sobre as trempes para proceder a uma nova fornada d'iscas.
-- E agora sabes que mais, Annita, leve o diabo paixões e trata de te aproveitares em quanto é tempo. --
-- E a pequenita, que lhe havia de fazer, não lhe diria? e depois, sem saber cousa nenhuma d'elle...
-- D'elle, ora não está má essa! que esperas tu d'ali? A estas horas lembra-se bem de ti! sempre ainda és de bom tempo!... --
-- Mas é que isto não póde ser assim entende, tia Magdalena! Não, que não faltava mais nada! Estar a gente bem collocada, ganhando a sua vida, senão com honra, por que a boa sorte não é para todas as creaturas, mas com decencia, com certas commodidades, e vem de lá um senhor todo palavrinhas doces, promette-nos mundos e fundos e para que... para nos deixar morrer de fome... ainda se fôra eu só, mas a minha pequerrucha, coitadinha do anjo... que culpa tem ella... --
E quebrando a violencia da palavra a esta lembrança, triste, soluçante, as lagrimas a soltarem-se outra vez, desolada, batida pela miseria e pelo infortunio, como uma pobre planta do mar, que tem o consolo de se agarrar a uma concha mais debil que ella, no meio das revoltas convulsas dos elementos, a Annita, com a voz fatigante, entrecortada na macia suavidade dos doentes, como se tivera pejo da revelação que ia fazer:
-- E depois, sabe, tia Magdalena, não sei porque, depois que tenho a pequerrucha, parece-me que é um crime voltar á vida que levava. --
Magdalena olhou-a espantada, guardou um silencio curto; philosophava talvez sobre a desigualdade dos destinos, porque ao deitar do alto um fio d'azeite liquido na certã, que fumegava, n'uma chiadeira monotona, observou com um certo ar sentencioso:
-- A sorte não pode ser a mesma para todos, Annita; cada qual vai-se sugeitando ao que Nosso Senhor lhe destinou. --
-- Isso é verdade, tia Magdalena. --
-- Pois então, filha, toma este caldinho e leve o diabo paixões; tu ainda não és assim nenhuma peste!
E com uns modos brandos, um largo sorriso corrupto, a tia Magdalena insinuava-se, contava casos identicos, uns casos de que tinham resultado boas fortunas e muitas raparigas que ella conhecia e que hoje -- accrescentava orgulhosa -- andavam ahi no galarim! oh, se andavam! e algumas a ella lh'o deviam! --
E depois capciosamente, com uma insinuação que se enrosca, a tia Magdalena promettia-lhe auxilial-a, occorreria ás primeiras despezas, -- o vestido era tudo -- dizia -- e depois tu m'o pagarás quando poderes. --
-- Lá isso, creia, não serei ingrata. --
E mais confortada, com uma resignação de vida nova, pensando um pouco na miragem que lhe fulgia diante dos olhos, a Annita, saciada a fome, na plenitude feliz d'um estomago satisfeito, arremeçava a phantasia ao encontro d'um brazileiro endinheirado, d'um negociante, d'um burguez honesto que a sustentasse, n'um trem de luxo, casa montada, uns vestidos espalhafatões e uns brilhantes, -- oh, desejava muito uns brilhantes, -- e sahiria com a sua creadinha, muito invejada, golosamente desejada pelos "dandys" que estacionavam ás portas dos cafés, das tabacarias, nas aleas do Palacio --
-- mas nunca, havia de se vingar, estava farta de peraltas. --
E um pouco mais positiva, com a licção pratica do infortunio em que ia resvalando, pensava em aproveitar-se um pouco da flor da sua mocidade, e depois, -- a filhinha era preciso aconchegal-a n'um agasalho de confortos -- d'um collegio, onde a pequena estivesse decentemente collocada, e que a não importunasse muito a final -- concluia. --
Vinham-lhe todos estes pensamentos n'uma confusão adoravel, com uma effervescencia de cerebro docemente embriagado, sonhando-os ella só, com uma doce voluptuosidade intima, em quanto a tia Magdalena curvada sobre o lume espalmava com a faca as iscas amarellas que chiavam n'uma compressão rugidora e com a outra mão esfregava os olhos blepharaticos, lacrimejantes com o calor do lume. Lembrou-se da pequerrucha, despediu-se
-- havia de voltar, tinham muito em que conversar
-- cá te espero, minha brazileira, e olha, vem á tardinha, tenho mais uma "aquella" de vagar. --
A Annita sahiu da tasca. Ficava em frente a alameda das Fontainhas, com as suas sombras frescas, a relva cylindrada, um doce murmurio d'aguas que cahiam no tanque. A tarde descia lentamente com uma grande preguiça de creoula, arrastando a sua cauda de luz por sobre a cumiada dos altos de Villa Nova, dando um tom melancholico de ruina ao velho convento da Serra do Pilar. O Douro lá em baixo, n'uma mansidão lassida, quasi parado, deixava-se cortar em espadanas de crystal pelos remos curvos dos barcos "rabellos", um tanto primitivos, que iam navegando lentamente.
Mirones melancholicos, com um ar romantico, se encostavam ao paredão contemplando a paisagem n'uma grande mudez admirativa e ociosa, em quanto em baixo as lavadeiras batendo a roupa, cantavam alegremente, amenisando o trabalho.
A Annita sentia-se possuida d'aquella beatitude pantheista; o seu espirito resfolegava alegrias, o corpo sentia-se leve, como que impregnado d'um ether ligeiro, que a estonteasse de felicidade, fazendo-a voar na mansidão do azul, como as aves brancas que atravessam o espaço. Toda ella delineava bellos sonhos aereos, phantasias gentis, castellos d'Hespanha rendilhados de luz, que nada parecia poder destruir.
-- Seria rica e feliz! A sua filhinha teria sempre vestidos brancos, a cinta enlaçada por uma larga fita côr de rosa, e um chapeu pequenino de palha d'arroz, feito na melhor modista. E sahiriam juntas, ella toda cingida n'um vestido de velludo côr granada, a côr da moda, o sapatinho aberto a desvelar as meias de seda, um chapeu modelo, toda perfumada, com o bello aroma d'essencias caras -- havia de ser do Jockey-Club, que o Alberto tanto gostava --
-- mas ao recordar este nome uma sombra escura perpassava ennevoando aquelle sorrir intimo, como uma nuvem que empana o sol, ou um signal negro que poisa no branco setim d'uma pelle avelludada.
-- Ora, que lhe importava! Era um canalha, estava dito. -- E evolando-se outra vez ao ceu das suas phantasias, pensava então em como havia de ter a sua casa, um primeiro andar com mobilia de pau setim, tapetado de modo que ella não sentisse o ruido dos seus passos, e uma ottomana toda macia, com boas molas doces, onde podesse recostar-se languidamente a pensar em coisa nenhuma. Ficára-lhe a voluptuosidade preguiçosa dos divans, do seu tempo de "cocotte"; -- e teria um piano, sim, era decente, ella não sabia tocar, mas a pequerrucha aprenderia! -- além d'isso ella gostava de musica, sensibilisava-a, dava-lhe um poucochinho a doce voluptuosidade dos enervamentos molles e -- lembrava-se sobretudo dos fadinhos chorados na guitarra, que tanto a enterneciam. --
Mas dous brazileiros vinham do outro lado da alameda; um d'elles, usando oculos, pareceu olhal-a com attenção; questionavam em grandes gestos largos. A Annita pensou em que elles seriam muito ricos.
-- Si lh'o digo eu, homem! se casa ella! esta manhã o Juca contou na loja do Guimarães, que tinham já assignado as escripturas. --
-- Mas se elle não tem aonde cahir morto! olha quem, o Alberto!
-- Herdou d'uma tia da provincia, você sabe?
-- Historias, aquelle passaro não entra em gaiola minha, não, essa lhe digo eu! Conheço de ha muito o Alberto de Sá!
A Annita sentiu-se intrigada, alguma cousa de occulto que se revelava, estonteando-a.
-- Ah, pois era possivel! Aquelle canalha ia casar-se! E ella, e a filha!... que pulha, que miseravel! --
E desejava ouvir, interrogar os brazileiros; saber se era d'elle, que realmente se tratava. Approximou-se, tinha uma grande agudeza d'ouvido, precisava não perder um som. O brazileiro dos oculos não deixava de a fitar de vez em quando. -- Se podesse fallar-lhe. --
-- pois é verdade, é!... concluiu o brazileiro, bamboleando o guarda-sol, e abrindo os braços, n'um gesto largo, de quem não duvida. -- E depois um pouco artista: --
-- Bonito panorama, commendador!...
-- Ah, nada qui chegue ás vistas di Petropolis! e o morro do pão d'Assucar, ao entrar a barra, não gosta você?
-- Admiravel, lhe digo então!
O homem dos oculos continuava a fitar a Annita, que um pouco mais longe, o corpo gracioso, curvando-se um pouco sobre o paredão, fingia olhar o Douro. O companheiro notou-lhe uma certa distracção.
-- Qui tem você, commendador?
-- Não reparou o amigo Lourenço n'aquella moça que está além!...
-- Maganão! -- disse, batendo-lhe uma palmadinha no hombro.
-- Não, mas repare, se parece ella muito com a Ermelinda, do Jorge!
-- É verdade! Ah, ah, quem ella é!... desatou o Lourenço n'uma reminiscencia subita.
-- Você conhece ella?
-- Se conheço! É a Annita, uma moça que já esteve ahi por certas casas, ein, e depois sahiu, creio que para a companhia d'alguem, o commendador comprehende? --
-- Ah, ah, pois se parecia ella muito com a Ermelinda, ia jurar que eram irmãs as duas, ora já viu...
-- O diabo o jurasse. -- E riram muito, dobrando os grossos ventres em contracções diaphragmaticas, as bochechas dilatadas, no espapamento obscuro de alegrias alvares.
O Lourenço despediu-se, tinha que fallar com o Mendes, ficara de estar com elle no café Suisso, e instava para que o commendador o acompanhasse
-- ficava mais um poucochinho, lhe agradava muito aquelle panorama.
-- Oh, era sublime!
-- Até logo!
-- Até logo, no hotel, ein, para a partida do sólo.
O commendador viu o Lourenço subir a rua de S. Lazaro e continuou a passear na alameda, abstracto, um pouco descuidoso de si, como se caminhara embalado na serenidade doce d'aquella natureza que se lhe desenrolava diante! Havia um pensamento latente, que phosphorecia lá dentro, na solidão do seu espirito, e ora se apagava, ora reapparecia, para tornar a fugir, alguma cousa de errante, que elle não podia condensar n'um raciocinio logico, e bem seguro, como fazia a uma somma de cifras dispersas. Escapavam-lhe phrases soltas, entrecortadas:
-- Mas é isto feitiçária, de certo, eu tenho ouvido fallar n'essas coisas!
E reconcentrava-se, recolhendo a si a ideação que se evolava, como as creanças recolhem os papagaios de papel fluctuantes e moveis, que se alam no espaço.
A Annita passou por elle, toda gracil e acariciadora, um bom sorriso a colorir-lhe os labios veludineos, o corpo meneando-se n'um movimento furtivo, de corça domesticada. O commendador reparou n'ella e exclamou:
-- Muito se parece o demonio da moça!
E, seguiu-a com o olhar, n'uma attracção inconsciente, pensando talvez em Ermelinda, que via reproduzir-se no corpo esbelto e delgado d'Annita, uma attitude de "gaucherie", um pouco trocista, que lhe recordava o baile de casa do Mendes. E naturalmente foi-a seguindo, com uma docilidade de idiota, irreflectida, de desejo que se abre fustigando o instincto, e avassalando, n'um despotismo intransigente, todas as ideias sãs, que poderiam nascer. A Annita percebeu isto mesmo, e mais provocante, um poucochinho "cocotte", tomando um ar garrido, de honestidade duvidosa, caminhava lentamente, á "se laisser prendre", fingindo-se embevecida na grande obra d'arte, a ponte Maria Pia, que se estendia, como um arco de madresilvas, de montanha a montanha, esbatendo-se então, na doce luz crepuscular. E o brazileiro, ouvindo-lhe já a respiração, o "frou-frou" do vestido, quasi a par:
-- Me dá uma palavra, sinhásinha.
Depois de deixar o brazileiro, Annita dirigiu-se lestamente para casa, cantarolando uma musica em voga, um fragmento d'opereta; chilreava-lhe a alma a umas esperanças fagueiras, que desciam envolvendo-a, n'uns sonhos embriagantes de felicidade. Preparava o seu plano de ataque para a primeira entrevista com o commendador; estudava todas as seducções, que o estonteassem, todas as "ficelles" que podessem prendel-o; adivinhava que precisava andar differentemente com elle, cortar pelos espalhaphatos pelintras de "cocotte", e fazer-se honesta, um poucochinho séria, mostrando ainda assim a garra de "diable" por debaixo da apparencia avelludada das caricias affectuosas.
N'estas disposições subiu a escada; um gemido debil, de creança exhaurida de chorar, cortou-lhe os vôos á aza da phantasia, e vendo no berço aquelle rosto branco, muito chupadinho, com os olhos pretos docemente embutidos na côr lactea da pelle, tomou-a carinhosamente, aconchegou-a ao peito, que a pequena procurou com ávida anciedade, mas que largou logo, chorando, n'um vagido de fome.
-- Deixa que tambem ha-de chegar a tua vez, meu querido amorsinho, -- e depôl-a no berço, principiando a embalal-a, n'uma melopeia monotona, que a adormentasse.
Um luar doce, d'uma voluptuosidade estival, entrava pela janella, clareando o quarto; e a Annita, sentada junto ao berço, ao ruido cadenciado d'aquellas oscillações, mergulhava o seu espirito n'essa photosphera de saudade, que vive na alma de cada um de nós e que ella uma vez soubera possuir com o eleito do seu coração, um bom rapaz da provincia, o seu primeiro amor, ambos cheios d'uma mocidade fresca e alegre, pobres os dois, mas unidos contra a adversidade, mãos dadas no caminho aspero da vida!
-- Oh, que fatal ideia a sua em querer vir para a cidade, ser rico, trabalhar muito!
Morrera, victima da grande lucta, da immensa peleja e ella, só, bonita talvez, requestada, adquirindo habitos de luxo, um pouco preguiçosa, adormecida na saudade d'aquelle primeiro golpe, deixara-se resvalar, cahira... e... dentro em pouco via-se adorada por muitos homens, chamavam-lhe a Annoca, a "gatinha parda", sabia ter graça, e era a mais procurada d'entre as suas irmãs de infortunio... E depois o Alberto insinuara-se no seu coração, queria ter um "amante" tambem, um janota, um dandy, estava farta d'aquelles imbecis que a procuravam a preço d'ouro, por instantes curtos.
-- elle fôra a sua desgraça!... E confrontava, achava miseravel aquella pocilga aonde elle a mettera, promettendo-lhe cada dia cousa melhor e isto havia um anno e depois -- a filhinha viera... para cumulo das suas desventuras. --
-- Ah, seria bom ser mãe, quando se era rica!... mas assim, que miseria!... --
Despontava então a imagem da sua nova conquista, o brazileiro, e ella, affagando uns sonhos de ventura, curvava-se sobre o berço, segredando com a filha, como se ella a podesse entender!
Bateram á porta n'este instante. A Annita levantou-se, foi abrir, e um raio de luar, apanhando a entrada n'um espaço vedado, illuminou a figura elegante de Alberto. Sentiu-se afogueada, alguma cousa como o despontar d'uma revolta, que a sacudia. E muito ironica:
-- Bravo, sim senhor, a boas horas! --
-- Ás horas que me apraz -- respondeu seccamente, atirando comsigo para uma cadeira e accendendo tranquillamente um charuto.
A Annita ficou a olhal-o, de braços cruzados, o cerebro paralysado por aquella entrada brusca, indecisa; mas depois recobrando-se d'aquelle silencio, sempre ironica:
-- Dou os parabéns a V. Ex.ª --
O Alberto relanceou sobre ella o seu olhar, conheceu que a Annita sabia das suas novas resoluções! -- Ah, isso evitava-lhe trabalho, estimava-o -- e alto:
-- Obrigado! e ainda bem que o sabes! Isto assim como assim tinha de acabar; não era possivel!
-- Não era, não!
-- Vamos, não te zangues; sê boa rapariga! -- E levantando-se, approximou-se d'Annita, tomando-lhe as mãos, aconchegando-a a si. Mas ella fez um movimento rapido, desprendeu-se, e, torrentuosa, quebrando a transparencia das ironias,
-- Seu pulha, seu miseravel! pensava que era só roubar-me a tranquilidade e o bem-estar, trazendo-me para esta pocilga, vendendo as poucas joias que eu tinha, mentindo-me sempre, arranjando-me uma filha e agora, por aqui é o caminho! Não que elle não é senão casar com a sr.ª D. Ermelinda! Ora até o diabo se ria! Ahi tem a sua filha, leve-a, faça presente d'ella á sua noiva e para cá as minhas jóias, ouviu! --
O Alberto recebeu esta saraivada, com um ar pallido, d'um sorriso sarcastico, trauteando a sr.ª Angot, e pondo o chapeu na cabeça:
-- Até mais ver, "gatinha parda"!
Trens de praça, os cocheiros com librés de luxo, iam-se pouco a pouco enfileirando na rua onde morava o Jorge. O povinho ia parando, mulheres sobretudo, desejosas de ver sahir o cortejo. Os convidados ainda com os sobretudos e já de luva "gris-perle", as senhoras de vestidos de sêda, entravam e logo o director do banco com um sorriso amavel, d'uma cortezia palaciana, sahia a recebel-os, um bello ar festivo, a barba escanhoada, a gravata branca sobre um peitilho folheado, todo grave na sua casaca preta.
Tinha sempre uma phrase nova para receber os cumprimentos.
-- Meus parabens, sr. Jorge.
-- Obrigado, amigo Mendes, sei que são sinceros!
Rodava mais uma carruagem e logo outro, entoando:
-- Parabens, parabens!
-- Recebo-os, como a mais amavel das felicitações -- e sorria.
As senhoras todas subiam, queriam ajudar a vestir a noiva. Tinham o fetichismo das grandes occasiões. A Adelaide Mendes dizia que havia de ser ella quem pregaria o ultimo alfinete! -- e todas queriam fazer o mesmo, as solteironas afim de serem as primeiras a seguir na via lactea do matrimonio.
No seu quarto a Ermelinda estava já vestida, o rosto afogueado n'uma vermelhidão casta; um largo espelho a reflectia com o seu vestido de "faille" nevado, d'uma scintillação velludinea guarnecido a flores de larangeira; iam pôr-lhe o véo, um largo véo de fino tulle branco! -- Mas em antes as amigas rodeando-a, notavam uma préga que era necessario desfazer, encobrir... com um ramo, e uma elevação no penteado, que urgia modificar.
Davam-lhe os parabens com sorrisinhos maliciosos e ditos agudos, d'uma levesa picante, capazes de crestar o avelludado d'aquellas flores virgineas, que a engrinaldavam, -- e a corôa, que a repartisse pelas amigas, não se esquecesse, para o noivo bastava a... outra --
A Adelaide Mendes disse que preferia a sua parte do "bouquet"; --
-- ah! tambem, tambem! --
-- vai mais chegadinho ao coração --
E uns dedos rosados vinham logo ageitar o "bouquet", um pequeno ramo gracioso, de flores de larangeira, que fechava o decóte do vestido, poisando sobre a curva do seio, com uma castidade toda timida, narcisando com a sua fina essencia a carne assetinada, d'uma alvura de camelia, onde poisava um formoso signal escuro, cheio de pequeninas provocações.
Estava prompta em fim. Nunca o seu espelho lhe parecera tão lisongeiro, como n'aquelle momento;
-- Ah, era assim que ella se tinha sonhado nos seus devaneios incoherentes de mulher nova e moça!
-- mas sentia-se nervosa, muito agitada; tinha sobretudo uma grande sêde! --
A Amelinha, disse-lhe:
-- que tambem ella estivera assim, mas passava, não tinha duvida -- e preparou-lhe um copo d'agua com assucar, que a Ermelinda tomou, curvando-se para não deixar cahir alguma gotta sobre a sua toilette de noiva.
A D. Carola, a esposa do Mendes entrou, um sorriso largo, a pronuncia brazileira:
-- Vamos, meninas, são horas de conduzir minha afilhada --
-- E elogiou-a, -- que estava muito bonita realmente, era o mais formoso dia da sua vida --
-- Eu sei, D. Carola! talvez o mais infeliz! -- e abriu as palpebras a umas lagrimasinhas brancas, d'uma humidade crystallina, que rolaram como pequenas perolas sobre os olhos negros, avelludados.
-- Ora já viram, a menina a chorar -- rompeu a Amelinha Bastos! -- eu cá até me ri, podera não! se eu ia por minha vontade --
Mas a D. Carola reflectiu:
-- que poucas deixavam de chorar, realmente a cousa bem pensada, não era para menos! mas que não havia nada mais lindo, dando-se bem...
Em baixo os convidados cercavam o Jorge, perguntando pelo Alberto, o noivo. Elle explicava:
-- O casamento effectuar-se-hia em Cedofeita, era um pouco do tom, e o Alberto iria dar á Egreja com os seus amigos.
-- E os padrinhos, os padrinhos quem eram?
-- Da sua Ermelinda era o Mendes e a D. Carola.
-- E do Alberto?
-- Do Alberto, ah, do Alberto, era o commendador Faria e a senhora do Dr. Roberto Jocy, um amigo d'elle, muito intimos, uma senhora de esmerada educação, pertencente a uma familia ingleza.
A noiva desceu emfim.
Os homens olhavam-a com uma grande sensualidade hypocrita; trocavam-se sorrisos velhacos e ditos apimentados, que Paulo de Koch não despresaria. Tomaram logar nos trens. A D. Carola foi com Ermelinda, o Jorge ia com o Mendes. O cortejo principiou a desfilar em direcção a Cedofeita.
Lá estava o Alberto, o commendador Faria, um pouco pallido talvez e o Dr. Roberto Jocy, um rapaz moreno, de physionomia insinuante e sympatica, a senhora, um typo esguio, de ingleza magra, com uma pronuncia incorrecta; e o Juca Mendes, o Alfredo Costa, o Luiz Serra, o Carvalhinho e outros ainda, companheiros da "pandega", uns "crevés" perfumados; de penteados divididos em dous hemispherios, muito luzentes, os pequenos bigodes retorcidos. Conversavam nos claustros.
-- Um poucochito magra, ein, -- rapazes.
-- Havia de engordar com as delicias do matrimonio --
-- Respeito á moral da burguezia, meus caros D. Juans.
-- Que estupida asneira fez o Alberto!
Foram entrando no templo; alinhando-se; o sachristão, com a sua batinha vermelha, d'um tom sanguineo, de carrasco, ia distribuindo brandões accesos, aos homens, ás senhoras, como se os preparasse para um sacrificio murtuario, de festas funebres. O povo entrava, collocando-se ao fundo, na penumbra escura do guardavento. Um cheiro de cera derretida se espalhava no ar e vozes ciciavam em commentarios de má lingua, de sensualidade rutilante. Por fim os padrinhos e noivos sahiram da sachristia, e os dous proximos um do outro, com um sorriso promettedor de felicidades nubentes, caminharam entre as alas dos convidados, até ao arco-cruzeiro, onde o padre, paramentado, com um livro d'orações na mão, os esperava, com um latim já velho auctorisador de caricias para mysticamente os unir n'um laço eterno, indissoluvel, que nunca mais podesse desatar-se.
O padre enlaçou-lhes as mãos e ao pronunciar o «Ego vos conjugo» Ermelinda sentiu a face orvalhada, as lagrimas convencionaes da noiva romantica, que o Alberto recebeu com um sorriso leve, finamente desenhado nos seus labios vermelhos. O commendador Faria, sentia-se mal; bagas de suor frio lhe porejavam a fronte e o seu lenço de fina bretanha roçava-se sobre a pelle humida, absorvente, como uma esponja; um pensamento importuno, que se não sacode facilmente, penetrava-o com grande desespero seu.
-- Mas que me importa ella a mim? -- perguntava a si proprio -- e insensivelmente os seus olhos cravavam-se em Ermelinda, toda formosa no seu vestido branco, um bello ar de virgindade pudica, como as esposas do Senhor nos dias de noviciado.
-- mas, que raiva esta!... Ora, ora!...
E desviava os olhos, terminando em fitar um S. Miguel doirado, domando bellicosamente o velho Lucifer, d'uma cara angulosa, que o olhava, o pescoço torto, com um grande ar sarcastico.
-- Podia ser minha, mas não é, acabou-se!... E desviava o pensamento para objectos communs, negocios que o interessassem, passeios que tinha destinado fazer; mas como um pendulo que se move em volta do mesmo centro, a ideia voltava tenaz ao mesmo assumpto, suppliciando-o, amargurando-lhe aquelles momentos, em que desejaria ter a mais santa tranquillidade.
Só a D. Clementina adivinhava talvez, no seu ciume de solteirona, o que se passava na alma do commendador.
-- Ah, mas era bem feito, não estava ella ali que se morria por elle... e agora, que felicidade... ficaria só no campo... Ermelinda era d'outro. --
A ceremonia terminou finalmente. Todos tratavam de a abraçar, cumprimentando, com uma chuva de felicitações.
Depois do casamento os noivos iriam para Braga, passar a lua de mel no Bom-Jesus.
-- Era moda -- dizia-se -- havia tom n'este voejar de pombos livres para a solidão tranquilla das florestas.
Ermelinda foi a casa mudar de vestido e o sequito esperando-a, acompanhou-os até Campanhã, enchendo a gare.
Muitos abraços trocados, mas a machina silvou, um grande silvo agudo, vibrante como um gemido soluçado. Ermelinda teve até um pequenino susto.
-- Credo, não esperava agora por aquillo. --
Mas era tempo; entraram no wagon, a locomotiva arrastava-se lenta, com um vagar preguiçoso, de quem sabe ser uma boa locomotiva portugueza. Os adeuses cruzavam-se no ar, frementes de saudade, gloriosos, muito alegres. Os convidados retiraram-se.
O Luiz Serra, um poetastro noviço, dizia para o Dr. Roberto, em cujo trem regressava para a cidade:
-- Gosto d'isto, tem poesia, Dr. --
-- Escreva-lhe uns versos -- respondeu ironicamente o joven medico.
-- E vou escrever, a inspiração está ainda muito recente, muito viva! Um casal de pombos, que se unem, n'uma união mystica, recamada de perfumes, acompanhada dos canticos religiosos, e depois o esvoaçar livre, no grande espaço, até irem poisar na floresta densa, onde ensaiam a tentativa do primeiro ninho, -- n'um idylio palpitante d'amor.
-- Melhor o ensaiassem em casa. --
-- Oh! Dr., isso é fossil!
-- É por isso mesmo que na epocha de hoje deve ter um grande valor!
-- Deve confessar que uma "lua de mel" passada dentro de casa é a maior sensaboria, que os nossos bons burguezes podiam inventar; falta o amor, o idylio, a ventura, a felicidade dos primeiros dias de noivado! Eu cá por mim protesto contra esse erro de chronologia, de lesa-elegancia, de lesa-poesia. --
-- Que de lesões ahi não vão, santo Deus, -- ora oiça-me, Luiz Serra. -- Tudo o que o Sr. pensa a proposito d'esse primeiro periodo de noivado, não passa d'um bolo coberto de assucar lyrico, deixe-me exprimir assim. Que vantagem póde ter essa iniciação mentirosa na felicidade do casal, não me dirá? E depois attenda; a lua de mel é um cyclo que devia deixar de existir no casamento; o bom senso e a boa educação protestam contra ella! Ou a lua de mel deve exprimir a synthese da felicidade e essa deve durar sempre, não póde limitar-se a uns bons dias apenas, ou ella exprime sómente uma convenção idylica entre os noivos e é isto o germen de futuras questões, de dissidencias graves, que terminam muitas vezes no adulterio, no divorcio. -- Que faz o Alberto em ir com a Ermelinda pipillar idylios nas carvalheiras do Bom-Jesus?
-- Mas amam-se, asseguram a sua felicidade.
-- É exactamente o contrario do que o meu amigo pensa; por que não iriam antes sensatamente para sua casa perfumar com as primeiras alegrias de noivos o quarto, onde teem sempre de dormir, a saleta do trabalho, onde viverão juntos, o jardimsinho que os distrahirá nas horas de aborrecimento?
-- Florian dentro de casa, Dr. --
-- Ou Florian nos bosques do Bom-Jesus! Ora diga-me; que recordação podem ligar os dous a esse leito de hospedaria, onde se tem deitado um casal de noivos por semana, convencionalmente e só para obedecer a uma imposição do "chic"? Com que alegrias podem elles revestir depois o seu quarto, a sua casa, quando se recolherem quebrados já da vertigem voluptuosa, com os primeiros defeitos mutuamente reconhecidos, murchas as flores santas da illusão? Pois não lhe parece que a lua de mel deve ser uma iniciação augusta, com que se cimente o bem estar do lar, longe de ser uma iniciação mentirosa, com que se encobrem os primeiros defeitos e se envenenam os pacificos dias do futuro?
N'este momento o trem parava em frente do escriptorio do medico. Luiz Serra despediu-se:
-- Discutiremos ainda, doutor, a sua doutrina tem um realismo, capaz de estancar a mais copiosa fonte de lyrismo. --
-- Se ella foi "secante", deve confessar.
Riram-se; a esposa do medico apertou-lhe docemente a mão.
-- Não auguro bem d'este casamento Roberto.
-- Nem eu -- concordou, encolhendo os hombros -- deixal-os lá -- educação, educação -- e o Dr. aspirou tranquillamente o seu charuto, expellindo um fumo claro, que subiu em pequeninos rolos.
Mas o Luiz Serra precisava affirmar em publico a sua sympathia pelos noivos e as incorrecções do seu estylo, e por isso nos jornaes do dia immediato as iniciaes L. S. declaravam ao mundo:
-- que se tinham unido pelos sagrados laços do matrimonio os Ex.mos Srs. Alberto de Sá, um dos cavalheiros mais distinctos da nossa sociedade elegante e D. Ermelinda Jorge a formosa filha do director do Banco Commercial, -- que os noivos tinham sido acompanhados á "gare" do Caminho de ferro por um numeroso sequito e arrastado na aza vertiginosa do comboyo, iriam passar a lua de mel na floresta do Bom-Jesus --
que elle lhes desejava o mais auspicioso futuro, uma lua de mel perenne, de que seriam fiadoras as qualidades distinctas dos nubentes -- e terminava por
um parabem enthusiasta. --
A payzagem tinha as macias tintas melancholicas do Outono, arvores que se desfolhavam saudosas da sua côr esmeralda, olivaes escuros, enfileirados ao longe como soldados obedientes d'um batalhão em marcha; as casarias das aldeias, docemente esbatidas por uma luz crepuscular, desappareciam, deixando no espirito, sensações ternas de idylios perfumados. Os regatos, como cobras azuladas, enroscavam-se no verde das campinas, em beijos limpidos de fecundidade luminosa; os montes escalvados desfilavam ao longe n'uma fluctuação duvidosa de luz e os pinheiraes, como pelotões de gigantes, formados á beira da estrada, animavam-se, movendo-se n'uma illusão d'optica que se impõe quando marchamos n'um movimento rapido. O comboyo tinha umas oscillações cortantes, barulhosas, de ruidos de molas abafadas, e os "rails", duas fitas indefinidas que se desenrolavam diante d'elle, desappareciam n'um recolher rapido, apressado, de "trou-trou", incansavel.
Alberto e Ermelinda iam n'uma mesma janella, hombros chegados, mãos enlaçadas na cintura, embevecidos no pantheismo bucolico d'aquelle diorama que lhes fugia diante dos olhos.
-- Como isto é lindo -- dizia ella -- eu gosto muito do campo. --
-- É poetico...
-- Olha aquella casinha, não vês... toda enfofada em verduras. --
-- Havemos de arranjar uma assim; é bonito é "chic" vir passar um mez na nossa casinha de campo. --
-- Ah, como tu és bom!... -- e recolhia-se um pouco para dentro, a imaginação debruada de phantasias coloristas, cofiando-lhe o queixo, muito de leve, mansa e insinuante, offerecendo-lhe o rosto, em que elle depunha um beijo amoravel, muito demorado. Sentaram-se um ao lado do outro, começaram a brincar, umas pancadinhas furtivas, d'uma graça infantil a que ella fazia uma "moue" de ingenua, muito adoravel, de pequenina gata.
E depois enroscando-lhe o pescoço com um grande impeto d'amor agradecido:
-- Ainda me parece um sonho, Alberto. --
-- É verdade, ainda me parece um sonho. --
E estreitava-a, arqueando-lhe a cintura na curva dos seus braços, beijando-a doidamente, voluptuosamente, fustigando-a de excitações nervosas. Ermelinda deixava-se amollentar no avelludado quente d'aquellas caricias, que nunca conhecera.
-- Ah, como era bom ser assim amada -- dizia, toda offegante, a respiração curta; muito quebrada por sensações incoherentes, d'uma delicia indefinida; e ameigando-o, muito carinhosa:
-- Tu és o meu maridinho, ora não és? --
-- Se sou! -- e segurava-a com vigor, apertando-a muito contra o peito, n'uma sollicitação sedenta de namorado, communicando-lhe um tremor convulso, entre voluptuoso e dolorido, que a perturbava de fortes commoções.
Anoitecia; tinha-se passado Nine; principiava a lucillação do luar, n'um tremulo vago, a palpitar amorosamente por sobre as cumieiras da serra, que escureciam na grande paz dormente; as arvores tornavam-se indistinctas massas confusas, fluctuantes, n'aquelle arfar constante do comboyo; umas bafagens quentes penetrando pelas janellas, passavam de quando em quando indo affagal-os n'um enlanguescimento morno.
Os beijos d'Alberto tinham um calor penetrante e Ermelinda, entre os seus joelhos, o cerebro atordoado, deixando-se cahir n'um affrouxamento languido, a voz ciciando um queixume:
-- Alberto!... --
A locomotiva silvou; avistava-se Braga, com as suas luzes encravadas como pequenos pyrilampos na massa vultuosa da cidade.
Um quarto de hora depois estavam no hotel.
-- Ainda n'aquella noite iriam para o Bom-Jesus; que lindo! subir a montanha á luz candida da lua, elles, agora tão felizes, tão amiguinhos um do outro -- dizia Ermelinda.
-- E se nós fossemos ámanhã? -- ponderou Alberto.
-- Ámanhã, ora, que tolice! -- replicou enfastiada.
-- Tolice, não; ia-se mais descançado. --
-- Olha a grande fadiga, -- respondeu com uma nevoasinha de colera -- que semsaboria ficar em Braga!... -- e amimando-o, a mãosinha no rosto,
-- Havemos de ir hoje, sim? --
-- Vamos la, és uma feiticeira!...
-- E depois, que lindeza ámanhã, quando acordarmos, ouvirmos o gorgear dos rouxinoes na sombra fresca das carvalheiras!
-- Romantica!
-- E tu não o és tambem! Não amas como eu esses espectaculos da natureza!... e depois quando se é noivo!...
-- Tens razão; seria uma tolice ficar em Braga. --
Mas no fundo, bem no fundo do pensamento de cada um, a desillusão entre-abria-se, como uma flor venenosa que tem nas finas particulas aromaticas a corrupção futura do ar que embalsama. Na imaginação d'Ermelinda, Alberto cahira no prosaismo das commodidades triviaes, -- um materialão, ora vejam lá, e eu que o julgava uma alma apaixonada, radiosa de luz, de poesia d'amor... e fiava que o futuro lhe descobriria ainda mais em relevo esses defeitos, -- que elle não saberia ter as delicadezas subtis, de que toda a mulher se quer vêr rodeada, como n'uma onda de finissimo arminho, -- que seria talvez grosseiro, conhecera-o na ruga animada da sobrancelha, quando lhe contrariou o seu desejo de irem n'aquella mesma noite para o Bom-Jesus. --
Mas olhava para elle, era o seu Alberto, o seu maridinho; -- ora, que lhe importava tudo isso agora, era noiva, estava na sua lua de mel... e rodeava-o d'uma caricia longa, na ebriedade do seu novo estado.
A seu turno o Alberto pensava:
-- Uma romantica, ein!... gostava da mulher que não fosse prosaica, mas parecia-lhe que a sua tinha essas qualidades exageradas, e depois um vidrinho de cheiro, tinha genio, conhecia-se; mas havia de amansar, que remedio!... mas, com os demonios, não era agora occasião de pensar n'isso. --
E beijava-a, no aquecimento febril da sua paixão sensual, ébrio de gozo, como um rapaz estroina que saboreia uma garrafa de champagne, sem se lembrar que tem de pagar depois.
Alugaram um carro, e partiram. A cidade perseguiu-os durante algum tempo com a illuminação dos seus candieiros, as suas casas interiormente illuminadas, as suas tascas, as suas egrejas succedendo-se a curtos espaços, os seus ruidos; mas para logo uma aragem fresca de campo lhes beijou as faces, e o luar, na silenciosa tranquillidade da noite, escorrendo como um banho de neve por sobre a fluctuação indistincta da payzagem, envolvia-os suavemente, como n'um manto opalino, tecido por mãos feericas.
O carro ia devagar, subindo sempre, n'um zig-zag monotono; as grandes arvores velavam-lhe por vezes a lua, que logo reapparecia n'um vacillar tremulo, d'uma limpidez crystallina. Chegaram ao hotel. O criado appareceu, e logo o cocheiro, um poucochinho confidencial:
-- Trata-me bem d'esses dous pombinhos. --
Em casa o Jorge principiava a sentir a nostalgia do isolamento; encerrava-se no seu gabinete e procurava interessar-se no trabalho, que trazia entre mãos, o relatorio do Banco; mas a penna suspendia-se sobre a brancura do papel, morosa, sem poder fixar uma ideia clara; e para encobrir essa carencia de actividade demorava-se pacientemente, minuciosamente, nas perfeições caligraphicas d'uma palavra qualquer como que receiando achar o vacuo para além do ultimo traço.
E descontente de si atirava com a penna para o lado, levantava-se, punha-se a passeiar, accumulando factos, reminiscencias, que podessem dar-lhe em resultado uma associação d'ideias precisas, methodicamente definidas; mas apesar de tudo o trabalho não progredia, o papel lá estava branco, com as suas linhas azues parallelamente dispostas, como o zig-zag d'uma estrada que era preciso caminhar.
-- Não estava com disposição -- concluia e arrumava tudo na sua pasta envernizada, com um grande vagar minucioso, entretendo-se, matando o tempo, que a elle o matava com o seu aborrecimento feroz.
A Joaquina vinha chamal-o para tomar o chá.
Sentava-se, lançava o liquido fervente sobre a sua fina chavena de porcellana; mas tinha abstracções, deixava-a transbordar, enchendo o pires. A Joaquina do lado, a mão apoiada sobre as costas da cadeira, avisava-o, com certa familiaridade de criada antiga:
-- Que está fazendo, Sr. Jorge!... Ou elle credo! nem que ella fosse para o fim do mundo!... Olhe que a estas horas lembram-se lá bem de si...
-- Dizes bem, dizes bem, Joaquina -- e esquecia-se de deitar o assucar
-- está azedo, o chá...
-- Podera não, se o senhor o não adoçou!... ora, ora até dá vontade de rir.
-- Joaquina, então.
-- Isto foi graça, o senhor desculpe; -- e impertigando-se toda na sua seriedade -- não que elle uma cousa assim... --
O Jorge comia pouco, um biscoito apenas; o appetite faltava, o seu bello appetite burguez, tão sadio e tão prompto.
-- Não, assim até é desnecessario fazer comida -- ponderava a Joaquina, -- ao jantar fica tudo, ao chá é isto que se vê.
-- Não tenho vontade, mulher...
-- Vontade? faz-se!... o senhor não está doente, Deus louvado... --
-- Então que queres?
-- Quero que coma, boa pergunta!...
E a Joaquina retirava o serviço da meza, curvando-se, arredondando os seus largos quadris, e deixando ver a brancura da meia, que se descobria atraz, n'uma provocação macia.
Abriram-se um pouco mais em intimidades, unindo-se no seu isolamento; o Jorge confiava-lhe pequenos planos e ella approvava ou reprovava com uma capacidade intelligente, que elle até ali sempre lhe desconhecera. Começou então a considerar a Joaquina uma mulher, um sêr quasi egual, capaz de faculdades affectivas, de intelligencia.
-- parecia-lhe menos criada, superiorisava-a e experimentava uma certa satisfação egoista n'aquella descoberta.
A noite adiantava-se; a Joaquina dentro tinha feito a arrumação da louça e viera perguntar.
-- Se não queria mais nada...
-- Não, podia-se deitar.
Viu-a retirar com um vagar pachorrento, seguindo-a instinctivamente com os olhos, surprehendendo-se de que nunca tal fizera e pareceu-lhe uma mulher fresca, lembrou-se da brancura da meia que ha pouco se lhe havia entremostrado e um desejo quente mordicou-o, esfervilhando-lhe no sangue. E para affugentar uma ideia fugaz, que lhe perpassou no pensamento, como se fôra uma mosca luminosa, levantou-se, resolveu ir deitar-se.
Tinha de passar pelo quarto d'ella; fel-o tremulamente como um collegial; ouviu um rangido de leito, pareceu-lhe mesmo ter surprehendido um suspiro vago.
Mas caminhou rapido, entre descontente e satisfeito, respirando emfim quando chegou ao seu quarto; sentou-se a lêr o «Commercio» entranhando-se no labyrintho dos cambios, que o acalmaram, como uma poção anodina.
Depois já na cama suscitava razões especiosas que o absolvessem, minorando-lhe o extraordinario do caso, reduzindo-o ás proporções limitadas d'um facto vulgar -- que todos os dias se está vendo; -- e calculou que a Joaquina devia ter para cima dos seus trinta e cinco, não era nenhuma creança e lembrava-se da sua viuvez propria, inconsolada agora que o unico affecto, a filha, lhe fugia, amando mais o marido, o outro. -- Sentiu-se encher d'um certo ciume para aquelle que o tinha deslocado, uma revolta intransigente, impetuosa.
-- Mas é lei do mundo, acabou-se; já o Evangelho dizia «Por elle deixarás pae e mãe» --
e foi cahindo n'um dormitar resignado, as palpebras cerrando-se, uma respiração doce, que lhe conciliou definitivamente o somno.
Dormiu mal, um sonhar agitado, o sangue effervescente e de manhã quando a poeira luminosa se coava atravez do "store" da janella teve um sorriso largo, muito significativo para a Joaquina, a boa Joaquina que vinha trazer-lhe o chocolate.
Os noivos chegaram á tarde; vinham moidos, o corpo quebrado, n'uma lassidão relaxada, as roupas brancas sujas do fino carvão da locomotiva, anciosos de banho, um banho fresco, que os estimulasse, dando-lhe tom aos nervos fatigados; deitaram-se cedo, pouco loquazes para com o Jorge, que, os interrogava ácerca dos monumentos de Braga, a velha sé, onde se mostram os altos sapatos d'um bispo pequenino, e o Bom-Jesus, a Cintra do Porto, um bello panorama, um dos primeiros do paiz, segundo diziam pessoas authorisadas. --
-- Tudo na mesma -- respondiam um pouco aborrecidos. E para a Joaquina -- ámanhã agua para o banho, não te esqueças. --
-- Podiam dormir descançados. --
Deram as boas noites; foram para o seu quarto. O Jorge ficou um poucochinho ressentido d'aquelle acolhimento ás suas perguntas; isolava-o aquella friesa, e instinctivamente voltava-se para a Joaquina, -- um sorriso franco, sempre alegre, uma grande palradeira, que o escutava com muita attenção e respeito. --
-- Isto agora é outro modo de vida, não tem que ver. --
-- Mas então, que dizes tu a isto, Joaquina? --
-- Boa!... olhe, se quer que lhe falle com franqueza, eu com a cara d'elle não engraço. --
-- Lá isso tambem não, é bom rapaz, o Alberto.
-- As obras é que o hão-de dizer; olhe que as apparencias tambem enganam.
Os primeiros dias iam passando; uma nevoasinha de tédio descia, envolvendo-os, fazendo descer o nivel elevado da emotividade.
Ermelinda achava a sua casa pouco romantica para aninhar, n'um aconchego tépidamente voluptuoso, a pomba ideal da sua paixão;
-- Oh, quanto mais lindo não era o Bom-Jesus, com as suas arvores de copas obumbradas, as suas fontes de crystalina agua, o lago com o barcosinho, o azul esbatido da luz, cortando-se nas irregularidades da payzagem.
Comparava com a sua casa, uma monotonia, sempre aquelle barulho ruidoso de cidade amortecendo-se pelos corredores, a sala forrada a papel, com aquelle monstro do piano a um canto, umas bugigangas de "biscuit" eternamente postas sobre as "consoles"; o seu quarto um pouco pesado, com a grande cama á franceza, de mogno, occupando o centro, sem uma recordação boa, que o povoasse de saudade, a lamina do espelho, reflectindo-a, como um confidente silencioso, que parecia adivinhar-lhe os mais occultos pensamentos, e depois a Joaquina, uma criada sem a elegancia moderna, sem aquella submissão respeitosa do criado encasacado, que passa nobremente nos tapetes offerecendo-nos um copo d'agua, com uma ceremonia de diplomata.
-- Ai, o Bom-Jesus!... -- suspirava -- e estendia-se lassidamente na sua "chaise-longue", preguiçosa, sem vontade de trabalho, quebrada pelos excessos d'aquelles dias voluptuosos, os melhores da sua vida, a imaginação revoando ao encontro desses momentos de febre, os braços inteiriçando-se n'um espreguiçar de creoula, bocejando frequentemente.
A seu turno o Alberto dava ao diabo ja o convencionalismo da lua de mel, sentia-se aborrecido, o "spleen" d'um lord; lembrava-se ruidosamente dos cafés áquella hora povoados, uma atmosphera quente, ditos scintillantes, anedoctas escandalosas que se entornavam por sobre as reputações como os calices de cognac por sobre as bandejas, os choques entrecortados das bolas de marfim na baeta verde dos bilhares, os artistas que appareciam contando a novidade de bastidores, e os theatros com o seu latejar de luzes na via-lactea dos collos das burguezas, a rapaziada fina nas plateias assestando intemeratamente os binoculos, o Juca, o Luiz Serra, o Carvalhinho, uns estroinas, capazes de bater uma "claque" e armar um chinfrim, e depois irem tranquillamente comer ao Gomes, ás duas da manhã, ostras cruas com vinho de Bordeaux.
E todo este mundo tão seu conhecido, tão seu intimo, se movia no seu pensamento parecendo escapar-lhe, n'uma aspiração vaga, como aquelles rolos esbranquiçados do fumo do seu charuto, que se desfaziam, em largas ondulações, no ambiente estreito do seu quarto. A phrase rhetorica, afinada pelo diapasão do sentimentalismo, cahia lentamente nos monosylabos chãos, muito simples, d'uma chatesa trivial, que não póde mais fingir, sem os arremeços vehementes e lancinantes da paixão.
Ermelinda notara-o, com a tristeza d'uma pétala nevada que se vê cahir da corolla das illusões; mas
-- confiava em si -- dizia -- e procurava dominal-o com as excitações nervosas do prazer, prostrando-o a seus pés, n'um ciciar timido, ardentemente enamorado, que a enlevava toda no ceu indefinido das idealidades.
E os dous ainda, n'um consumir rapido das phospherencias da paixão, supportavam-se mutuamente as pequeninas discussões, as nevoasinhas de tédio, a descoberta reciproca dos defeitos que atiravam, para de fóra do velludo das caricias, "la greffe du diable", que mais tarde lhe rasgaria a solidariedade do seu bem-estar.
Sentiam-se ainda felizes, muito amiguinhos e promettiam sêl-o:
-- para sempre, para todo o sempre --
Mas cada um, no escaninho mysterioso do seu espirito, via bem descer no rutilante ceu da sentimentalidade, a branca lua do seu noivado que ia desapparecendo n'uma curva rapida, deixando um rastro luminoso, que se apagava já, na orla occidental d'esse horisonte ideado.
E no egoismo do seu gozo esqueciam o Jorge, affastando-se, como que evitando-lhe a presença, tornando o menos possivel demorados os momentos em que tinham de estar juntos, sendo os primeiros a levantar-se da meza, os primeiros a dar as boas noutes depois do chá.
-- Isto custa, Joaquina.
-- Boa, até parece mais triste esta casa!
E approximavam-se n'uma necessidade imperiosa de convivencia, consolando-se mutuamente, recordando os dias tranquillos do passado em que todos os corações tinham a suave claridade da paz; iam-se prendendo, ensilvando, n'uma attracção baseada na mesma força, revelando-se reciprocamente, contentes por se comprehenderem, por se verem reunidos no mesmo caminho de solidão. E eram já mais amigos, permittindo-se pequenos gracejos, umas familiaridades demoradas, em que se espancava o convencionalismo do respeito. O molle temperamento lymphatico da Joaquina accendia-se, como uma phosphorencia errante; e quando á noite o seu corpo cahia no macio nevado dos lençoes, a imagem do Jorge, substituindo a do policia 45, desenhava-se nitida, d'uma perfeição correcta na sua imaginação de mulher viuva de materialidades sensuaes.
Quanto a elle sentia o sangue inflammar-se, uma desfaçatez de desejo apresentando-se intransigente á sua moralidade, com uma causticidade irrequieta, penetrando-o, atravessando-o com o impeto d'uma amazona de circo atravez da fragilidade d'um arco de papel. Quebrava as hesitações com argumentos especiosos, como um britador teimoso as pedras que lhe resistem; mas era cauteloso, prudente, tivera sempre medo do escandalo; e por isso evitava as occasiões de tentação, com um puritanismo timido, balbuciante, não se querendo aventurar sem a certeza da acquiescencia, gostando muito de jogar pelo seguro,
-- esperar o ensejo, sobretudo -- dizia.
Os primeiros aborrecimentos iam-se accentuando, mais repetidos, mais duradouros. Ermelinda conhecia que o Alberto lhe fugia, a imaginação fatigada, farto á saciedade do seu papel romantico de Antony; sentia um grande desconsolo, uma melancholia enervante, vendo esfolhar-se a flor azul das suas illusões, e recolhendo-se no fundo da propria phantasia, como n'uma cella monastica, deixando-se voar ao encontro do extasi mysterioso, que tantas vezes sonhara quando via nos livros a paixão descripta com traços patheticos, d'um mysticismo ideal.
-- Ah, como são infelizes as pobres mulheres -- dizia -- que decepção as espera!
e recostava-se na sua poltrona, um romance aberto, a imaginação voejando com o romancista no caminho de fogo, onde appareciam em sulcos luminosos os grandes heroes do amor, os martyres, os eternos namorados, os divinisadores da paixão.
E a sua phantasia vendo apenas o drama, engolphava-se n'este sonhar d'uma morbidez debilisadora, esquecendo que para aquem d'esse ideal mentiroso, existia bem perto d'ella, um outro ideal menos allucinante, mas mais casto, cheio das austéras doçuras intimas, dos affectos suaves, das virtudes ignoradas mas nem por isso menos formosas, um ideal, que toda a mulher deveria ter como a columna de luz que lhe guiasse os passos atravez do caminho da existencia.
E n'essa abstracção, em que lhe andava erradamente o espirito, Ermelinda tinha descuidos imperdoaveis de toilette, um desleixo que a amollentava, ficando ás vezes um dia inteiro com o penteador da manhã, o cabello cahido, simplesmente preso na nuca, deixando uma humidade oleosa na brancura da bretanha.
-- Ora, que lhe importava; já não perdia casamento! --
E depois via o Alberto tambem, um descuidado, atirando o fato para cima das cadeiras, escovando-se e penteando-se apenas quando tinha de sahir, desarranjando uma gaveta para procurar um lenço, calçando as luvas já no meio da rua, tendo deixado no quarto uma desordem de moveis, de roupa, de calçado. Sentia uma vontade de repôr tudo no seu lugar, minuciosamente, com um grande geito femenil,
-- mas ora, a Joaquina que se arranjasse!... não estava para lhe poupar trabalho -- e desviava os olhos, repoltreando-se na cadeira, ávida da continuação da leitura.
O Alberto vinha encontral-a assim:
-- Então, ainda n'esse estado!...
-- que me importa.
-- se vier por ahi alguem,
-- se vier, veio; não te afflijas que eu depressa me arranjo, --
Deixava-a, trauteava uma aria, dando um passeio no quarto, indifferente áquelle desarranjo d'ella. E depois, muito amoravel, batendo-lhe uma palmadinha na face:
-- Então a Lili sabe quem eu encontrei?
-- Que me importa quem tu encontraste!...
-- Foi a...
-- A Amelinha Bastos, a estas horas!
-- Adivinhou!...
-- E d'ahi?
-- Perguntou-me por ti, quando lhe ias fazer uma visita.
-- Ora, que tenha juizo.
-- Não, mas agora fallando sério, olha que é preciso fazermos as nossas visitas de casamento...
-- Já pensei n'isso, mas... é uma massada...
-- Em fim teem de fazer-se; é um dever da boa sociedade...
-- Has-de comprar-me umas luvas, sim, quero-as de sete botões... --
-- Certamente; de menos é "chinfrim"... -- concordava, muito convencido. E brincando, n'um momento de "humour", arrancou-lhe o livro.
-- Ora que brincadeira tola! -- disse estendendo os braços para o rehaver. --
-- Ah, é tola, pois toma, vai buscal-o!... e n'um arremeço o livro voou pelo quarto, indo parar proximo da cama.
Ermelinda levantou-se pallida, muito séria, a sua vaidade ferida. Uma lagrima rolou-lhe por entre as pestanas.
-- Grosseiro -- murmurou sem que elle ouvisse, e foi buscar o livro, sentando-se de novo, as costas voltadas, a vista divagando sobre a mesma pagina.
Mas a Joaquina chamara para o jantar, e os dous sahiram do quarto, a physionomia contrahida, carrancudos, intransigentes na sua seriedade. O jantar correu rapidamente, friamente, sem trocarem uma palavra; o Jorge sentia um desconforto glacial penetral-o, abafando a necessidade de palestras expansivas, coarctando-o, pesando sobre elle como uma atmosphera de chumbo.
Ermelinda apenas tocava nos pratos; comia pouco, um phrenesi colerico, atirando as travessas, servindo-se ella mesmo antes que o Alberto tivesse o constrangimento de servil-a.
A Joaquina pensava:
-- Estão de trombas, os pombinhos!...
O Alberto bebia mais que o costume; umas libações longas, demoradas, esvasiando o copo d'uma só vez, e no fim um contrahir de face, um morder incisivo do labio, a mão tocando mecanicamente as guias do bigode, e um relancear de olhos para Ermelinda, furtivo, instantaneo, com uma scintillação de colera concentrada.
O Jorge não podia mais.
-- Parece que estamos na semana santa, credo, fallem para ahi... -- e experimentava uma conversa, um caso do dia, uma anedocta, que morria logo, amortecendo-se aos monossylabos d'Alberto, o unico que ainda lhe respondia.
Ermelinda sentia-se contrariada, indisposta, uma raivasinha secreta, amargurando-a, com engulhos de lagrimas; levantou-se, uma grande necessidade de chorar, de estar só, de se julgar infeliz. E ao passar pela Joaquina, o lenço enxugava-lhe os olhos, que se avermelhavam, n'uma côr injectada de desesperos, humedecendo-se.
-- Oh, menina, pois vale lá a pena chorar, quem é que não tem os seus arrufos; isso d'aqui a pouco já não é nada -- consolou-a, muito ternamente, uma caricia de velha criada, que a trouxera ao collo. --
Mas ella aspera, cortante:
-- Sabe que mais, metta-se com a sua vida -- e desceu a escada, dirigindo-se para o quarto.
A Joaquina ficou de pé, assombrada, uma estupidez idiota na physionomia, entalada, como se sentisse um spasmo no esophago; e depois, com as lagrimas a bailarem-lhe nos olhos:
-- É bem feito, grandissima burra, não lhe ganhasses tanta amizade. --
No seu quarto, Ermelinda desatou n'um largo choro.
-- Era uma infeliz, uma desilludida... ah, quanto mais não valia o ter ficado solteira --
e assombreava com negro colorido o quadro da sua existencia, n'um appello á desgraça, ao infortunio; mas depois procurava consolar-se, desentranhava-se em affagos para comsigo mesmo, procurando esquecer, não fazer caso; e as palavras da Joaquina soavam-lhe ainda aos ouvidos, tornando-a reflexiva.
-- Sim, era crueldade, quem é que não tinha os seus arrufos. --
Esta palavra sensibilisava-a, dando-lhe ainda um perfume gentil de namorada, imaginando-se requestada por elle, muito estremecida.
-- Foi o melhor tempo -- suspirou. --
E a reminiscencia recordava-lhe essas horas do passado, aquelles enthusiasmos apaixonados d'elle, a "verve" cheia de fogo, a calcinação ardente da palavra.
-- Oh, quanto a realidade era differente!... E o noivado, ah! o seu noivado!...
Uma recordação doce se lhe entornava na alma, perfumando-a, n'uma ébriedade feliz. Via o Alberto a seus pés, timido, como uma creança, segredando-lhe pedidos d'uma volupia embriagante, muito submisso, dizendo-lhe baixinho: -- Adoro-te -- ; e a esta evocação tão acariciadora, quente como um arfar da atmosphera no estio, deixava cerrar os olhos, esquecendo o motivo de toda a sua colera e transportando-se com elle ao ceu da sua idealidade; assim disposta achava encantador -- que elle viesse muito humilde, pedir-lhe o beijo do perdão, affagal-a n'uma reconciliação harmoniosa.
-- Não lhe resistiria, não; mas tambem não queria ser a primeira a quebrar -- dizia, ainda com resaibos da offensa recebida, entumecendo-se n'um grande orgulho de si propria.
O Alberto desceu; viu-a sentada na cadeira, a mão sustentando o queixo redondinho. Escovou ligeiramente o fato, poz o chapeu na cabeça, principiou a calçar as luvas. Ermelinda teve um pensamento de ciume.
-- E se elle fosse procurar outra! oh, não, que ideia.
N'este momento o Alberto preparava-se para sahir; mas não veiu como de costume poisar-lhe um beijo na testa.
-- Até logo -- disse bruscamente.
Levantou-se, embargou-lhe a passagem.
-- Tu onde vais?
-- A ti que te importa?
-- Que me importa!... Vamos, não sejas mau -- disse timidamente, confusa por ser ella a primeira a pedir, envergonhada de si, mas o pensamento queimado ainda por aquella ideia ultima que a assaltava; e tirando-lhe o chapeu, n'uma "moue" engraçada, o corpo quebrando-se n'uma gentileza voluptuosa, a sorrir-se:
-- Não te deixo ir, tira as luvas, sim, vais logo...
-- Creancices -- volveu, encolhendo os hombros, e tirou as luvas, sentando-se.
-- Aqui me tens! -- bruscamente.
Sentou-se-lhe nos joelhos, balouçando-se, fingindo que cahia, forçando-o a amparal-a nos seus braços, provocante, roçando-lhe ao de leve o rosto pelos seus labios.
O Alberto cedeu; deu-lhe o primeiro beijo, e logo outros, o sangue excitado, uma pontinha d'alcool na circulação.
N'aquella tarde não sahiu de casa.
A modista trouxera-lhe o chapeu, um modelo de Pariz, d'uma plumagem finissima, poisando maciamente na côr granada do velludo; collocara-se em frente do espelho, experimentando-o, vendo-o se lhe ficava bem, meneando-se, apanhando a maior porção da lamina.
-- Era um primor, realmente, mas tinha que elevar um pouco mais o penteado, assentaria melhor --
e voltava-o de vagar, com uma admiração insaciada, tocando delicadamente nas petalas assetinadas da flor, antegosando a inveja que aquillo causaria ás suas amigas.
-- É já de senhora cazada -- dizia, n'uma distincção frivola de "toilette", applaudindo-se por este conhecimento, por esta grande noção de differenciação de estados, baseada no vestido -- que muitas não tinham, umas ignorantes, trazendo os "myosotis" por exemplo, que só são dados ás meninas solteiras, e outras cousas mais, -- umas minuciosidades futeis, que a enchiam de vaidade,
-- E depois dizia muito bem com o vestido, oh, muito bem!
Era um vestido de "faille" plumbagineo, a "traine" de velludo, umas rendas caras, que M.me Sellier's mandara de proposito vir de Pariz, um talhe elegante, que lhe devia realçar a formosura. Abriu o guarda-vestidos, admirando-o ainda uma vez em toda a extensão fluctuante das suas rugas, pendente do cabide, na macia suavidade da côr, no matiz nevado das preciosas rendas.
-- E agora que já tinha o chapeu, não era possivel adiar mais tempo; iriam fazer as suas visitas de casamento.
Alugaram um trem, um "coupé" do Marques, de molas doces, acolchoado, elegante, confortavel, d'um estofo assetinado.
-- Ah, como seria bom ter um trem -- pensava -- reclinar-se languidamente nas suas almofadas, correr nas brancas fitas do mac-adam ao som estrepitoso dos grandes cavallos normandos, os lacaios flamantes, de compridos casacões, com largos botões chapeados.
-- Como eram felizes os ricos -- e revoltava-se contra essa desigualdade de fortunas, n'um impeto socialista, figurando-se-lhe uma injustiça a falta d'aquelles sumptuosos contactos do luxo.
Mas o trem havia parado á porta do Mendes. Era a primeira visita. O cocheiro desceu, tocando violentamente a campainha.
Uns beijos cantadinhos se trocaram, -- muitos parabens, estava até mais bonita, um poucochinho gorda; ah, agora é que era gozar. --
-- Certamente, D. Carola, em quanto a gente é moça. --
-- Pois não, Snr. Alberto, depois se vem os filhos e isso é sempre o mais certo. -- E voltando-se para Ermelinda:
-- Onde mandaste fazer o vestido, menina?
-- Na Sellier's; um poucochito caro... -- regosijava-se por ter sido notada, quebrando-as de inveja.
-- Eu bem digo á mamã, que se tire de costureiras baratas, é mesmo uma zanga, nunca as cousas ficam em termos; o que se ha-de dar ao rato...
-- Devagar, menina, devagar, a economia...
-- Ora, grandes economias!... -- atalhava.
O Alberto afastara-se um pouco; olhava o jardim, esperando, com um ar passivo, de marido obediente.
Palraram muito.
Fallaram das modistas, dos chapeus, do theatro. A conversação cahiu no baile que o Bernardo ia dar para festejar os annos do cazamento.
-- Melhor, tivesse juizo, aqui para nós, olha agora a doida! Elle!... sempre ha homens que se varreram de juizo! --
A Ermelinda sentiu-se um pouco afogueada; sabia vagamente d'uma aventura com o Alberto, que a Amelinha Bastos lhe tinha narrado.
-- Mas emfim, era ainda solteiro, adeus! a tola fôra ella -- desculpava-o -- e criticavam o Bernardo.
-- Bom estomago! havia de ser o Mendes.
-- E o Alberto, não lhe digo nada, ciumento ali chegou!
Mas o Alberto interveiu:
-- que era tarde, ainda tinham de ir a outras partes; sentia ter de cortar tão deliciosos momentos. --
-- Tão poucochinho tempo. --
-- Para outra vez seria mais: era uma via-sacra a percorrer. --
-- Então venham jantar um dia.
-- Desde já agradeciam, e viriam, viriam, era-lhes muito agradavel a companhia da "madrinha" e da D. Adelaidinha. --
-- E depois -- recordou Ermelinda um pouco afogueada -- a gente lembra-se com saudade d'esta sala...
-- Ai, é verdade, fôra ali que principiara o namoro; pois viessem, viessem, era mais uma razão...
Despediram-se; novos beijos, um "shake-hands" ceremonioso do Alberto, os seus respeitos ao amigo Mendes.
Mãe e filha acompanharam; ficaram-os olhando do alto da escada, umas mezuras com a cabeça, uns adeusinhos agitados.
-- Que luxo ein, onde iria aquillo parar.
-- Só o chapeu, mamã.
-- Bem diz o teu papá; ai, banco, banco!
Sentia-se o "coupé" rodar na calçada.
Visitaram a Amelinha Bastos, a D. Gabriella. Chegou a vez á D. Clementina.
Encontraram-a a acariciar o seu Tótó, o seu amor felpudinho, que principiou a grunir, n'uma revolta sorna, por ver que os estranhos lhe vinham roubar as caricias da sua amiga. Chegou até a accommeter o Alberto, n'uma grande indignação ciumenta. Mas ella amansou-o explicando:
-- que o Tótó tinha realmente ciumes, era um verdadeiro tigre. --
E batendo umas palmadinhas amigaveis em Ermelinda:
-- Então como se dá a minha menina com o seu novo estado?
-- Bem, D. Clementina, muito bem. --
-- Podera não; elle ha lá melhor vidinha! -- suspirava -- e depois quando se tem um marido novo, elegante...
-- Oh, D. Clementina, eu passo a ter ciumes...
-- Ai, filha, não, isso não... -- riram ambas, um cascalhar timbrado, a brancura dos dentes a desfiar pelo carmezim dos labios.
-- E muito linda, muito linda!...
O Alberto interveiu, uma graça de galanteria...
-- Não m'a encha de vaidade; Vocencia deve saber por experiencia propria, que a formosura das mulheres é o inferno dos homens... --
-- Ora, nem diga isso! é o paraizo, o paraizo d'elles! Os senhores são uns mal agradecidos. --
Mirava-lhe o chapeu, o vestido; calculava o preço da fazenda, das guarnições, da pluma, das flores.
-- Um dinheirão -- pensava -- isto assim hão-de dal-as frescas -- e regosijava-se já d'um mal futuro, elogiando-se as proprias qualidades economicas, n'uma ferocidade ciumenta de solteirona.
-- Trazes um chapeu "chic"; é modelo, menina?
-- que sim, que era -- e não fôra caro. --
-- Então?
-- Quatro libras!...
-- Ah, quatro libras, não era caro, não! -- e pensava que por aquelle preço se podiam ter dous chapeus bons, uma desgovernada -- não, não tinha duvida, por aquelle andar a herança da tal tia em breve se lhe havia de ver o fim.
Despediram-se.
-- Ainda tinham de ir a casa do Dr. Roberto, morava longe, na Foz, em Carreiros, uma boa hora. --
-- Isso decerto, menina; e depois só para aturarem aquelle "carapau" inglez -- chacoteou. --
-- Oh, D. Clementina, é do meu parecer -- acudiu Ermelinda -- o Alberto que não, que não, mas eu embirro com aquella cara, um ar seraphico, de mestra de meninas. --
-- Mas não tens razão, Lili -- é uma boa creatura, um pouco excentrica talvez, ingleza, isso comprehendia-se. --
-- Ai, deixe lá, Snr. Alberto, gente que se não entende, que falla uma algaravia... --
-- É a sua lingua, o seu idioma. --
-- Pois sim, não digo menos d'isso; mas estou com a D. Ermelinda, não engraço com a tal ingleza, que chama á gente "senhorra... senhorra!" ora que desconchavo!...
-- Nem sei como o Dr. se namorou d'aquillo! Elle ha gostos!... --
-- Pois vivem muito bem, um casal modelo... --
Ermelinda replicou:
-- bem se fiava n'essas; haviam de ter as suas, todos as tinham --
E passavam-lhe pela mente as questinculas futeis, que tão frequentemente se levantavam agora entre os dous, enevoando-lhes o sol da harmonia, distanciando-os em espirito, desatando-lhes a alma n'um relaxamento indifferentista.
Disseram-se adeus; beijocaram-se, o Alberto um grave aperto de mão. O Tótó impacientava-se, um rosnar regougado, até que sentiu em baixo bater a porta da campainha, e viu a D. Clementina sentar-se no sophá, saltitando então, satisfeito, o nariz afilado, procurando o calor das saias, muito cadongueiro, uns latidos meigos.
Ficava o mar em frente. Um sussurro monotono, cheio de casta poesia, a alma do gigante a segredar queixumes, beijando a praia com um amor voluptuoso, em beijos nevados, de espumosa prata; e abrindo sobre o largo as janellas da casa do Doutor, a namorarem a luz, a perfumarem-se das emanações iodadas das plantas marinhas, rasgadas ao alto, umas cortinas de cassa a toucarem-as pudicamente.
Appareceu-lhes Bertha,
-- vinha da cosinha, tinha ido ella mesmo preparar o "plum-pudding", o seu Roberto gostava muito, era doudo por aquillo. --
-- E o Doutor, bom, de saude?...
-- Ainda na cidade; olhe, vem ás quatro horas, trabalha muito, coitado; por ora vivemos aqui, é longe, mas é mais economico; e talvez vivamos sempre, é tão saudavel este ar... --
-- Mas devia ser insipido n'aquella quadra, -- ella, Ermelinda, só gostava da Foz no tempo de banhos, havia convivencia, bailes; as manhãs da praia, as tardes de musica no Passeio Alegre...
O Alberto apoiava:
-- Sim, devia ser realmente insipido. --
-- Pois, olhe, não nos aborrecemos; até gostamos mais d'esta quadra, vivemos mais um para o outro; á tarde o Roberto vem cançado, fatigado, janta bem, e vamos passeiar, duas creanças ás vezes, a liberdade solitaria da praia... era muito lindo, deveria gostar... --
-- Não, não, Deus a livrasse de tal; e como passava as noites, aquellas noites longas de inverno, sem theatros, sem partidas...
-- Temos as nossas partidas -- volveu sorrindo Bertha, -- fazemos musica os dous; o meu Roberto é um artista, toca violino, eu acompanho-o ao piano, a musica é uma boa distracção, não deixa a gente aborrecer-se; são uns bons companheiros, Mendelssohn, Mozart, Meyerbeer,...
-- Mas sempre musica, realmente!... eu tambem toco, mas, confesso-lhe, ás vezes aborreço-me; a gente nem sempre está com disposição.
-- Tem razão, é verdade, mas olhe, então variamos; lemos juntos, eu gosto muito de Elliot, de Michelet, de Taine, e de Dichens, que é o romancista da minha patria; e ás vezes quando a leitura nos não distrahe, e que a nossa alma precisa como que receber um bocado d'essa onda de sociabilidade, vamos ao theatro tambem, não nos julgue mysantropos; o Roberto ás vezes não quer ir, diz-me que não; mas eu conheço-o, nós as mulheres lemos bem no pensamento d'estes senhores; não é depois que appareça o tédio que eu devo distrahil-o, é em antes, que eu devo fazer com que não haja tempo de formar-se; e não se fórma, assim, tenha a certeza! --
A physionomia de Bertha illuminava-se-lhe docemente espelhando a luz da sua consciencia limpida, crystalina, que fazia d'aquelle amor uma religião; era branca, da brancura nevada das filhas do Norte, o olhar azul meigo, como uma ambrozia; a face rosada, d'um colorido de saude; a gracil agilidade das "miss", uma insinuação que attrahia, que fazia estar bem junto d'ella.
Tinha uma actividade de "spinster", pondo em tudo um conforto macio, um aconchego carinhoso, alegre, limpando ella mesmo a sua salinha, o seu gabinete, vigiando a sua casinha, confeccionando pelas suas proprias mãos o prato favorito de Roberto, que vinha ás tardes, do Porto, o espirito fatigado, um desgosto de clinica, um doente que lhe morrera, apesar de todos os esforços, -- mas que ao vel-a toda branca no seu roupão claro, offerecendo-lhe a face e o jantar, esquecia tudo, espreguiçava-se na sua indolencia de senhor e até
-- nem tinha vontade de sahir de casa -- dizia,
Ermelinda sentia a seu pezar o influxo d'aquella honestidade sã e boa, e as palavras de Bertha, enchiam-a d'uma claridade intima, que ella procurava assombrear com a tinta escura do seu ideal corrompido. Amesquinhava-a, deprimia, pensava em que tudo aquillo podia muito bem ser uma mentira, uma falsidade..
Mas a protestar contra estas ideias de vileza os objectos mudos pareciam levantar-se na sua simplicidade de coordenação e bom gosto. Os moveis, os albuns, os quadros, as musicas, as cortinas de cassa das janellas, as begonias opulentas nos seus vasos de dez tostões, o chão encerado das escadas, os metaes das portas polidos como espelhos, tudo revelava um gosto de aceio, uma alegria de suaves expansões, uma intelligencia curiosa e activa,
-- que ella não podia deixar de reconhecer a final --
-- Mas não era ella, não, aquella magra loirinha, que fazia aquelle milagre; oh, é por que tinha um bom marido, isso sim! -- e comparava-o Alberto com o Doutor, fazendo-lhe a saliencia dos defeitos, dos vicios que todos os dias se iam revelando com um impudor cynico --
-- oh, tivera ella um marido como o outro e veriamos -- e o seu espirito divorciava-se lentamente do espirito do seu esposo, accusando-o de grosseiro e hypocrita, de menos cavalheiresco, de não ter a fina comprehensão dos sentimentos delicados do coração feminil.
Isto enchia-a d'uma certa inveja para com Bertha, amesquinhava-lhe a belleza physica, chamava-lhe uma
-- cotovia magra, um carapau de Inglaterra. --
-- Ai, a D. Clementina é que a definira bem. --
Bertha offereceu-lhes um calice do Porto, um pequeno "lunch"; estavam na praia, não fossem ceremoniosos. --
-- Não, não acceitavam; tirava-lhes a vontade de jantar; e eram horas, desculpasse a massada. --
-- Nenhuma, absolutamente nenhuma: gosto de os vêr felizes; tão felizes como ella o era com o seu Roberto --
Abria-lhe um sorriso jovial, d'uma cordealidade doce, e
-- offerecia-lhe a sua casa, viessem uma vez ou outra, nos dias santos, quando a cidade os enfastiasse; seriam sempre bem vindos; o Roberto lamentaria não lhes ter fallado. --
Ermelinda sentiu um calor mordente, quando Bertha lhe poz um beijo na face, despedindo-se, e roçou ao de leve, muito ao de leve, os seus labios no rosto branco da ingleza.
E já no carro, quando a Foz ia desapparecendo com o silencio das casas inhabitadas e o sussurro eterno do seu mar,
-- Estará ali a felicidade realmente? -- perguntava-se, a imaginação mergulhando como n'um crepusculo côr de rosa e ouro, e vendo-se querida do eleito do seu coração, uma existencia suave e tranquilla, a claridade intima no espirito, o sorriso bom nos labios, dous companheiros leaes caminhando na montanha da vida, um ao lado do outro, elle protegendo-a com a sua força, ella renovando-o com a sua graça, indifferentes para o mundo, para esse mundo egoista, que os envenenava com as suas seducções e os despresava com os seus escarneos.
Ia calada, a phantasia acariciada n'este bello sonho, os olhos acompanhando vagamente a corrente esverdeada do Douro, que descia, banhando as casarias brancas da Aforada, espelhando o cotovello saliente da montanha, as fabricas do Andersen, a verdura matizada de Santo Antonio de Val-Piedade, e depois toda Villa Nova cortando a luz com as irregularidades dos seus edificios, a linha escura dos pinheiraes ao longe, orlando o horisonte vasto.
O trem subia vagarosamente a "Restauração"; harmonias de banda regimental cahiam lentamente, ondas apagadas d'uma sonoridade distante.
-- Musica na Cordoaria! E se fossemos para lá um bocadito, Lili! --
-- Como quizeres!
-- São duas e meia; é cedo ainda para o jantar!...
-- Vamos lá, sim, manda parar então.
Apeiaram-se; burguezes espanejavam ao sol a sua obesidade preguiçosa, "dandys" com camelias na botoeira, damas todas encolhidas no regalo quente das suas pelles, "cocottes" com vestidos mirabolantes, estudantes de medicina pondo uma vaidade espectaculosa nas suas pastas amarellas, de fitas vermelhas fluctuando, militares alisando as fardas com luvas de camurça, todo um publico pacato, passeiando com um methodo ordeiro na grande alea, acotovellando os "mirones" que paravam em frente do coreto, para não perderem o gesto largo da batuta do regente e as notas que se rebolavam com uma liberdade mal educada por sobre os ramos esguios do arvoredo, creanças saltando em redor do lago na admiração curiosa dos habitos dos cysnes, brazileiros aposentados que occupavam pachorrentamente as cadeiras do Asylo, um ou outro municipal em vadiagem destacando-se com o colorido escarlate dos vivos da farda e das chapas reluzentes do metal das agulhetas.
-- Muita gente, hoje!
-- Sim, muita gente.
Deram o braço, cadenceando o passo no rythmo da musica, cumprimentando pessoas conhecidas, umas cortezias elegantes, de affectação estudada.
A orchestra batia valentemente a grande marcha da Aida; a voz perdia-se na sonoridade dos instrumentos.
Caminhavam juntos, uma vaidade de se verem moços e admirados, Ermelinda arrojando aos olhos das outras, que passeavam, a sua "toilette" formosa, o seu chapeu "modelo" de finissimas flores; e elle a luva correctamente calçada, a guia do bigode n'uma curva de artista, atirando ao publico com a formosura da sua Lili; toda elegante com o seu vestido de "traine" de velludo, invejada, seguida pelo olhar cubiçoso dos "dandys" que o cumprimentavam, dos estudantes que ao vel-a passar prorompiam n'um cortejo de gulosas interjeições admiraveis.
Iam e vinham na grande alea povoada, encarando sempre em frente com a massa granitica do hospital da Misericordia, d'uma architectura pesada e d'um sumptuoso imponente, o trem esperando-os á porta do jardim.
-- Estava já cansada -- dizia -- a bota do pé esquerdo apertava-a um pouco. --
O jardim despovoava-se; a musica cessara; tres horas nos Clerigos lembrando as necessidades physiologicas do estomago.
Chegaram a casa moidos, um pouco fatigados. A toilette incommodava-os, um desejo violento de se despirem, de se pôrem á larga.
E Ermelinda depoz o vestido sobre a cama, o chapeu n'uma cadeira, despenteou-se, os cabellos cahindo n'um desleixo emmaranhado, o corpo mettido n'um penteador um pouco surrado, os pés n'uns sapatinhos commodos.
-- Estava á sua vontade, emfim -- e subiu á sala de jantar, um grande appetite, palradeira, comendo gulosamente azeitonas antes de principiar o jantar.
O Jorge interveio:
-- que lhe faziam mal, que era uma creancice.
-- Antes isto do que o tal "lunch" de Carreiros, ein, Alberto -- gargalhou.
-- Sim, antes isso -- e comia devoradoramente, pouco expansivo, o pescoço curvo sobre o prato de sopa, bebendo de espaço a espaço, o guardanapo limpando os cantos da bocca.
-- Então foram tambem a Carreiros?
-- Fomos, podéra!
-- E o Doutor, o sympathico Doutor? -- interrogava. --
-- Não estava lá! --
Ficou muda, um pensamento fugitivo, associando-se áquella adjectivação, com que o pae mimoseava Roberto, a imaginação alvoroçada, uma comparação desfavoravel para o seu marido, que agora sem os atavios da elegancia, um casaco usado, com a gola voltada, encobrindo a auzencia dos collarinhos, -- muito comilão. --
-- E se nós fossemos hoje ao S. João? --
-- Vai a Lucia, creio eu. --
-- Ai, a Lucia, quero ir então; e se houver enchente!... o melhor era o papá ir já comprar o camarote...
-- Pois sim, eu vou, -- e saboreava de vagar a ultima sobremeza, muito guloso, o créme esfiando-se pelos bordos da pequena colher.
-- A Joaquina fez hoje isto bem -- elogiou.
-- O que succede raras vezes -- acudiu o Alberto.
-- Não, vamos lá, não estamos mal servidos.
-- Réles, simplesmente; o "ram-ram" sabido, nem um prato novo; não ha como a cosinha franceza!
-- Eu cá por mim detesto-a, -- obtemperou o Jorge -- uns nomes pomposos, uma "homard à la russe", uma "timbale d'ecrevisses", um "foie aux champignons", etc., etc., tudo uns bonitinhos e a final a barriga vasia. --
Alberto encolheu os hombros, um ar de superioridade, achando pulha aquella critica da cosinha franceza, feita pelo sogro.
Veio o café. Ermelinda bebia aos pequeninos sorvos, o corpo recostado na cadeira, a manga do penteador descia mostrando uma redondeza pennugenta de braço.
-- Levantaram-se.
-- Ia comprar o camarote; elle não voltaria, lá os esperava no átrio, ás oito e meia, não fossem tarde. --
-- Para o anno havemos de ter assignatura, sim, Alberto?
-- Certamente; não se póde viver no "hig-life" sem isso; é mesmo indispensavel, chamar-nos-iam pelintras, uns sovinas. --
-- Oh, havemos de ter, fica já combinado...
E passou-lhe o braço no hombro, amorosamente, um agradecimento áquella acquiescencia de bom tom, esquecendo as desharmonias que se tinham manifestado, os seus aborrecimentos, a comprehensão do ideal que o separava d'elle.
Entraram no quarto, estendeu-se languidamente na poltrona, a circulação quente do jantar, a imaginação antegosando o prazer da noite de theatro, as plateias curiosas assestando os binoculos para os camarotes, os penteados, as toilettes do "hig-life" e tudo aquillo n'um ambiente callido, de luzes scintillantes, a musica e o canto espreguiçando-se na atmosphera quente.
-- Então, menina, não tratas de te pentear, vão sendo horas...
-- Já!... ainda tão cedo!... estou com uma preguiça... Vou mandar chamar a penteadeira. -- Se eu soubesse, antes iamos ámanhã...
-- Ora... que creancice...
Fazia esforços para se levantar, o corpo quebrado, n'uma mollesa flacida, a nudez dos braços retesando-se sobre a cadeira.
-- Só se tu me tirares d'aqui... --
Elle veio, tomou-a pelas mãos, fez um esforço, pôl-a rapidamente de pé; o penteador desabotoou-se, deixando ver uma renda de camisa poisando sobre o assetinado do seio,
-- Oh, que desastrado! -- sorriu-se -- e se eu cahir outra vez! -- E atirou-se sobre a poltrona, o corpo n'uma curva provocante, contente da sua semi-nudez.
Muita gente no theatro. A illuminação ainda a meio gaz, um poucochinho cedo, mas logo os violinos principiaram em afinação, uns gemidos rapidos esfiando-se delgadamente no ambito livre, e a luz scintillou, como um leque aberto, avivando as cores mirabolantes dos vestidos, o polido dos penteados, a seda lustrada dos chapeus altos. Senhoras entravam para os camarotes, accomodando-se na frente, uma grande ostentação de "toilette" para recompensar a incomprehensão da opera:
-- Pouca gente conhecida; -- e assestava o binoculo movendo-o em differentes direcções, a manga do vestido descobrindo o canhão da luva "gris-perle" de sete botões.
-- Ai o commendador, o padrinho! --
-- Aonde?
-- Ali, na superior, olha...
Lá estava realmente, recostado, uma grande abstracção do meio, a suissa recortando a brancura do collarinho, os oculos d'ouro reflectindo scintillações irisadas de luz. --
-- Não entendia nada do lyrico, antes os cavallinhos, as operetas; mas era moda; precisava a gente impor o seu bocado, chamar-lhe-iam urso. --
Ermelinda inclinava o corpo, uma agitação inquieta, um desejo de ser notada, cumprimentada. O Carvalhinho ao vel-a fizera descrever ao seu chapeu uma curva graciosa, muito reverenciadora; e logo o Luiz Serra e o Juca Mendes, e os amigos do Alberto, os "dandys" que estacionavam pela superior.
O commendador voltara-se tambem por sua vez; um sorriso amavel, luminosas facetações de brilhantes no peitilho da camisa.
Regosijava-se. O Alberto mesmo sentia-se jubiloso em reflectir sobre ella as saudações dos seus conhecidos, dando-se um ar de importancia, de popularidade, no seio do "hig-life".
Um camarote abriu-se; uma mulher entrou, uma grande frescura de mocidade, o assetinado do "poudre de riz", amaciando a côr trigueira das faces. Vinha só; um vestido elegante, de "faille preto", guarnições de setim, o decote aberto n'um impudor provocante, o cabello negro frisado, uma risca rosada separando dous bandós reluzentes. Brilhantes nas orelhas, irisando a luz, e um olhar quebrado, na doçura amortecida d'uns cilios negros, tendo ás vezes umas ironias relampejantes, d'um cynismo deshonesto.
Poisou o binoculo no rebordo do camarote, a luva branca de canhão comprido, a enroscar-se n'uma pulseira d'ouro, o leque n'uma agitação lenta.
-- Quem é aquella, Alberto?
Olhou na direcção indicada; fez-se vermelho, um rubor de collegial apanhado em flagrante, e para disfarçar:
-- Não sei, não conheço! Ora deixa ver o binoculo. --
O pano subia, a attenção de Ermelinda desviou-se para a scena; appareciam umas arvores seculares, o "baixo" cantando uma canção monotona, e logo depois o tenor, um typo gordo, umas notas desafinadas que a plateia recebeu com murmurios de censura.
Mas elle, não desfitando o binoculo, o espirito preso a uma corrente de ideias bem diversas d'aquelle meio, absorvendo aquella mulher atravez das lentes, fazendo uma analyse demorada de todos os seus encantos e de toda a sua toillette, um prazer voluptuoso em sentir-se attrahido:
-- Mas é a Annita, não tem que ver!... que luxo!... onde iria ella apanhar o "pato"! E mais bonita, sim, mais bonita! Até mais gorda; eu bem o previa, que a gordura havia de a aformosear! --
E recordava as suas convivencias passadas, a atmosphera quente de bordel onde a conhecera, a sua "inclinação", aquellas ceias em que bebiam "champagne" e adormeciam ébrios nos braços um do outro, os requintes de lubricidade, em que se juravam amor
-- e a pequena, que faria ella da pequena? --
Esquecia-se de que tinha Ermelinda junto de si, a imaginação engolphinhando-se nas anfractuosidades do seu passado, a scena ultima, sobretudo -- aquella scena que os tornara talvez irreconciliaveis para sempre. --
-- Mas o "pato", o "pato", quem seria! -- havia de sabel-o e d'ahi quem adivinhara, talvez que ella ainda lhe tivesse alguma dedicação. --
O pano cahiu. Uma pateada á ultima area do tenor. --
-- Ia fumar um pouco, vinha já, se ella queria tomar alguma cousa --
-- não, não, pódes ir, -- e vendo ainda aquella mulher no camarote fronteiro
-- Então conheceste-a?
-- Nada, não -- e sahiu rapidamente, o espirito alvoroçado, intrigado por colher informações exactas, que o illucidassem, muitos pormenores.
Fumava-se nos corredores, apertos de mão, criticas á empreza, á opera, aos artistas.
-- Uma pepineira -- dizia o Luiz Serra no seu calão de botequim. --
-- É para a frente, rapazes, pateada a valer, ha-de ficar a noite memoranda.
-- Não vale tudo os quatro contos do subsidio. --
-- E querem publico as senhoras emprezas, pois não! para apresentarem esta chinfrinada.
O Alberto entrou no grupo.
-- Então, rapazes!
-- Homem, caes da lua...
-- Mas já não é da lua de mel, que elle cae, aposto!
-- Explica-te.
-- Vejo a Annita n'um luxo asiatico, aquillo é teu, ein, Alberto?
-- Não, jurava que não, e até gostava de saber quem era o "pato". --
-- Pois pensavamos que fosses tu. --
-- Eu sim, descartei-me a tempo d'aquillo -- respondeu com um certo desdem.
-- Pois está magnifica e de mais a mais pouco accessivel. --
-- Conta lá, menino!
-- Um tigre, um monstro; passou outro dia no Suisso e voltou-nos as costas como quem despreza os antigos conhecimentos. --
Grande risada.
-- tinha graça, a final. --
A campainha tocava dentro; a orchestra principiava a desenrolar harmonias.
-- Ao chinfrim, rapazes, ao chinfrim. --
Os espectadores entravam retardatariamente, n'uma linha obliqua, caminhando de lado.
Os córos desafinavam o mais possivel, n'um compromisso funesto de enterrar a partitura. Via-se o regente gesticular, n'uma agitação febril, a batuta n'um voltear vertiginoso; um rumor surdo sahia das torrinhas, prenuncios de tempestade na plateia.
-- Vai ahi haver um chinfrim medonho -- disse o Alberto no camarote.
-- Se nós nos retirassemos!...
-- Ora deixa-te de tolices, tinha graça perder o melhor do espectaculo! -- e voltou-lhe as costas, a vista medindo a força numerica dos pateantes, e a sua força qualitativa.
Depois os olhos volviam-se-lhe obstinadamente para o camarote d'Annita; tomava do binoculo observando-a ainda uma vez, approximando-a de si por meio d'aquella illusão d'optica, o pensamento revolvendo-se no leito de Procusta do seu passado.
-- Só... mas hei-de sabel-o, -- murmurava -- o Juca sabe tudo, elle ha-de saber isto; é impossivel que o não saiba. --
Annita tinha-o visto logo ao chegar; um escandecimento de sangue subira-lhe nas faces, um desejo instinctivo de o descompor, de lhe chamar pulha, ali, naquelle mundo que o conhecia, em frente d'aquella mulher que era d'elle, um escandalo enorme, de que todo o Porto falasse.
-- Mas não, estava vingada; dava-o ao desprezo -- e amollecia as suas iras na comparação do seu bem estar actual, a vida facil correndo como um rio de leite, os seus caprichos satisfeitos, um luxo que nunca conhecera, brilhantes, toilettes caras.
E olhava de soslaio a mulher de Alberto, n'uma analyse curiosa e miuda, averiguando da riqueza do seu vestido, comparando, desdenhando da sua inferioridade em joias.
-- E o Alberto seria feliz? -- interrogava-se, sentindo a piedade dos afortunados, um ar compassivo para desditas phantasiadas.
-- Sempre era o pae de sua filha!... felizmente que a pequenita tinha morrido -- e uma nuvem de tristeza poisava sobre a sua imaginação, escurecendo-lhe a claridade, como um cirrhus a um raio de luar. A recordação porém era fugitiva, cedia á efflorescencia de novos pensamentos que a occupavam.
-- Parece que se não dão lá muito bem -- observava -- quasi sempre de costas para ella!...
E quando via o binoculo de Alberto assestado para o seu camarote.
-- Pois não meu lindo amor, ha-de ganhar muito com isso -- e voltava-se mais, o rosto desviado para o palco, a attenção obrigada a prender-se na scena que se estava representando, o tenor pedindo perdão, com as suas notas desafinadas, á prima-dona que tinha offendido com as suas infedelidades.
-- Ora, tanto entendo eu d'aquillo como de lagar d'azeite -- e meneou o corpo n'um coquetismo estudado, um sorriso levemente franzido nos seus labios vermelhos, fazendo-o voar imperceptivelmente, como uma fina essencia, para a plateia, a encontrar o commendador, que lhe correspondia n'uma irradiação d'olhar entre satisfeita e ciumenta.
A pateada rebentou furiosa, uma grande tempestade; cadeiras rangiam e viam-se "dandys" n'uma tarefa ingloria, tentando quebrar os bancos, assobiando, gesticulando com vehemencia. Fallava-se alto, disputas, questões com os visinhos, uma balburdia, panno descido.
A "claque" aventurou algumas palmas, mas logo a pateada recomeçou e gritos tumultuosos de
-- Fóra, fóra -- a policia interveio, desmaios nos camarotes, as familias burguezas retiraram-se.
-- Um grande horror áquelles malcreados, que não deixavam gosar, -- apesar de que era bem cabida uma manifestação de desagrado -- nunca se vira no Porto uma companhia tão réles. --
O Alberto tivera de ceder ás instancias de Ermelinda; sahira, ia para casa contra vontade,
-- uma imbecil aquella sua mulher -- mas emfim era preciso contemporisar um pouco! o pae parecia já não andar muito satisfeito! --
-- Que miseria, com os diabos! Antes a Annita, mil vezes a Annita --
e affagava o desejo de a encontrar, volver com ella áquella vida aventureira do passado, gosar, saciar-se brutalmente n'um desmando de jejunalidade imposta e depennar, n'uma boa camaradagem, o "pato" que ella só depennava agora, despojando-o das suas pennas para se cobrir de velludos e brilhantes. --
O Jorge queixava-se, principiava a sentir um desequilibrio nas finanças da casa; Ermelinda e Alberto tinham exigencias imprudentes.
-- Um luxo por ahi além -- dizia a Joaquina -- nem que fossem uns principes -- e depois cá estão as costas largas! que poupe, que poupe; d'aqui por diante nem carne se ha-de ver na panella, t'arrenego! --
Os noivos levavam uma vida ociosa, d'uma tranquilidade aerea. Ermelinda queria vestidos caros, luxuosos,
-- que podessem apparecer diante da baroneza de Lindoso, da mulher do commendador Bernardo, das Castrinhos, das Cardosas, as suas novas amigas do "hig-life", com quem se encontrava no Palacio, no S. João. --
E eram despezas superfluas de trem, de presentes generosos, de noites seguidas de theatro, de passeios, uma vertigem doce, um rodar inexperiente no plano inclinado da economia.
O Alberto secundava-a; tinha da sua individualidade uma ideia balofa, um desprezo das mediocridades, das coisas reles
-- não podia realmente viver d'outra fórma, ali, onde todos o conheciam, onde elle tratava por tu toda a rapaziada elegante! não se tinha casado para ser um burguez amarrado á bisca sueca, ou ao loto com as senhoras visinhas! não faltava mais nada que agora o casamento o viesse privar da liberdade dos seus gozos. --
O Jorge começava a comprehender que fôra talvez um erro aquelle casamento; de dia para dia Alberto revelava-se irascivel, grosseiro, indelicado para com Ermelinda, quando lhe não satisfaziam exigencias de dinheiro.
Mandava a mulher ter com o pae
-- que se arranjasse, não haviam de ficar em casa a morrer de aborrecimento.
Ermelinda procurava ser o laço de conciliação entre os dous; animava o pae, nunca depois de casada tivera para com elle carícias tão meigas. --
-- Pois sim, filha, mas é necessario deitar contas á nossa vida; os negocios vão mal, mesmo mal. --
-- De hora em hora Deus melhora, papá. --
-- Fia-te na virgem e não andes! Isto assim não tem geito, e olha, se queres que te diga, se tivesse tanto de santo como tenho de arrependido...
-- Mas agora que se lhe ha-de fazer, papá; em verdade tambem, está mesmo um usurario, quer que a gente morra de tédio em casa! --
E convencia-o, subjugava-o com razões futeis, ditas graciosamente, a promessa d'um beijo e perguntando-lhe a sorrir com uma candura de ingenua --
-- Se tambem havia de ser assim mau para o seu netinho. --
Este ultimo argumento quebrava-lhe todas as energias, cedia logo
-- que remedio! não havia de contrarial-a n'aquelle estado, podia prejudicar a sua saude; não, coitadinha, ella não tinha culpa; mas depois havia de pôr cobro a isto, oh! se havia --
-- mas a elle mesmo -- considerava -- não convinha cortar radicalmente por todo aquelle superfluo de exteriorisações; que diriam os outros, os seus collegas, a praça, o commercio que o julgava com boas garantias de capital... não, não se podia fazer a cousa assim de vez, era preciso ir de vagar. --
e traçava combinações, adoptava um plano, um bom plano que o livrasse d'aquelles apertos sérios -- tinha em vista uma grande especulação de fundos, a cousa era certa, o capital do Banco figuraria e se houvesse algum revez, soffresse quem soffresse. --
Estas ideias chamavam-o á realidade das suas occupações; fôra distribuido o relatorio, propunha-se um bom dividendo, mas
-- francamente a coisa não estava muito sólida, -- já até se rosnava um pouco, mas emfim os accionistas pertenciam áquella das bem-aventuranças, que premeia com o reino do ceu, -- o que elles queriam era bons dividendos, e esses davam-se, a cousa havia de caminhar; a questão era resolver aquelles embaraços da crise e depois ficava mais desaffogado. --
Associava-se-lhe a este ultimo pensamento o encargo das despezas do genro,
-- um vadio afinal, nem mesmo confio já na tal herança; uma mystificação!... mas agora é aguentar por honra da firma... podéra, -- e lembrava-se de que seria talvez conveniente empregal-o, um lugar no banco não podendo ser n'outra parte, tinha boa lettra, ajudante do guarda-livros, uma pechincha; havia de lhe fallar. --
E quando estavam ao "dessert" insinuou a ideia:
-- que era preciso entreter-se, aquella vida enfastiava, o trabalho era pouco, e depois murmurava-se, era mesmo conveniente... --
O Alberto ficou silencioso, partia a marmelada aos pequeninos retalhos, uma distracção inconsciente de movimentos.
-- A coisa não lhe desagradava realmente, chegava para charutos, o resto viria, -- e acariciava a ideia de especulações estranhas, d'um arrojo funambulesco que o fizessem rapidamente rico, que lhe dessem um trem magnifico, cavallos de raça, um palacio luxuoso, de vastas escadarias de marmore; o Banco seria o meio, o caminho de lá chegar; sempre affagara o pensamento de se introduzir n'uma d'aquellas machinas de numerario, onde se rolam as cifras volumosas, como na roleta as moedas baratas; mas era estupido estar ali preso, amarrado como um macaco; o trabalho causava-lhe um tédio mortal. -- E para o sogro:
-- que havia de pensar n'isso, fallariam depois -- e desceu para o seu quarto.
Ermelinda teve um bom impulso de o aconselhar, --
-- faz-lhe a vontade, filho, faze; e depois é até mesmo bom, e tu distrahes, o trabalho tambem entretem; e é uma garantia de futuro... tu pensa... -- disse-lhe baixo, o rosto affogueando-se n'um rubor honesto de confissão custosa.
-- Ahi vens tu com a tua télha! ora adeus, d'aqui a lá não nos dôa a cabeça; n'este mundo todos se arranjam.
-- Mas as cousas levam-se de longe, menino...
-- Vae prégar moral a outra freguezia; que tem que vêr uma cousa com outra? o que vier veio, acabou-se, á fome não hade morrer e se morrer... era uma vez um anginho que voou ao ceu, pedirei ao Luiz Serra que lhe faça um necrologio em verso. --
Ermelinda revoltava-se no seu sentimento de maternidade contra estas rajadas que a feriam no ser que ella ainda desconhecia, mas que amava já; achava pouco delicado o proceder d'Alberto para com ella, tinha mesmo uma certa dôr por vêr que elle se não enchia de jubiloso alvoroço, sabendo que ella em breve o faria pae; mas desculpava-o, tomava como gracejo as suas palavras, e abrigava-se, como uma creança, na aza do seu carinho, a imaginação a sonhar um futuro de delicias para o entesinho que ia dever-lhe a vida, tendo exquisitices incoherentes, uma grande volubilidade caprichosa. --
Alberto passeiava no quarto, passos largos, o pensamento concentrado na proposta do Jorge.
-- Era o unico meio de se salvar, não via outro; o dinheiro do jogo ia dasapparecendo e depois... além d'isso o arranjo não era de todo mau; nem o deslustrava, lá estava o Visconde da Ribeira no Mercantil... e quem sabe; podia mesmo vir a ser o gerente do Banco; o sogro andava acabrunhado, aquillo não ia longe... --
e sentando-se junto d'Ermelinda, uma caricia affectada para a sua mulhersinha, batendo-lhe uma leve palmadinha nos joelhos:
-- Acho que aceito, Lili; que dizes tu?
-- Oh, filho, faze o que tu quizeres; mas eu digo-te que sim... olha, até depois o papá não nos receberá de tão mau humor, quando quizermos alguma cousa; vê lá tu, mas eu fazia-lhe a vontade, coitado, elle é tão nosso amigo...
-- Hum! hum!... ha a distinguir! --
-- Não, Alberto, não, tu és injusto. --
-- Bem, bem; fallemos n'outro assumpto; pois decido-me, faço-te a vontade; vá lá, é preciso sacrificar um poucochito ao futuro... tu tens razão, minha Lili...
-- Obrigada -- e tomou-lhe a testa, um beijo longo, muito carinhoso, como um agradecimento evolado do intimo.
Sentia-se feliz n'aquelle instante; uma como fluctuação luminosa palpitava dentro da sua alma de mulher, dando-lhe uma ebriedade suave; tinha vontade de absorver dentro de si toda a personalidade do seu Alberto, integrando-a n'um mesmo amor, com a do pequenino ser mysterioso, que vivia no sanctuario das suas entranhas. Queria ella ser o fóco de irradiação fecunda para os dous, que se confundiam n'um só, ser o carinho affectuoso, a consolação, a ambrozia que os ungisse na mesma embrocação de felicidade.
-- Porque não havia de ser sempre assim! para que se haviam de levantar espinhos no jardim da sua existencia? como era bom amar sendo amada!... --
Nem quiz sahir n'aquelle dia; foi para a varanda que deitava sobre o quintal, ver descer serenamente a tarde no ceu côr de rosa, deixando um sorriso de saudade ás franças das arvores, que matisavam, como grandes nodoas, o alvor das casarias da cidade; e á noute quando a meia luz do "abat-jour" lhe deixou ver o Alberto a seu lado, repoltreado n'uma cadeira de verga, pensou no seu tempo feliz de mulher solteira e lembrou-se de Bertha, áquellas horas ouvindo o sussurro eterno do mar, ao lado do seu Roberto.
Communicaram ao Jorge a resolução tomada,
-- ainda bem, ainda bem -- e jantou n'aquelle dia com mais appetite, a satisfação de ver dissipar-se uma nuvem que pesava sobre o seu espirito. -- E á noute nos seus colloquios entre amorosos e confidenciaes com a Joaquina:
-- o rapaz indireitou-se, vamos lá --
-- Deus queira que elle tome tento na bola, Snr. Jorge.
-- Ha-de tomar, ha-de tomar, cá estou eu para o dirigir. --
Estava contente, uma claridade a illuminar-lhe a soturnidade do pensamento, como um raio de sol na atmosphera humida d'um armazem sombrio. Ha muito tempo já que a Joaquina o não vira d'aquella fórma; tornara-se mais rapaz, brincalhão, dando-lhe umas palmadinhas sonoras no quadril arredondado, tendo exigencias segredadas a que ella reagia,
-- Ou elle, olha agora a lembrança. --
Dous dias depois tinha de reunir-se a Assembleia geral do Banco; o Jorge lá estava com os seus collegas, prompto para a defeza, varios papeis enrolados na mão, gravemente cintado na sua sobre-casaca preta.
Grupos de brazileiros e commerciantes questionavam; discutiam o relatorio, o parecer do conselho fiscal.
O commendador lá estava, os seus oculos d'ouro em refracções caprichosas de luz, um pouco importante, conscio do seu peso monetario, e da sua sciencia algarithmica.
Os brazileiros tinham-o como um corypheo da arithmetica.
-- Entende de cifras como poucos, dizia-se -- e depois este tem que perder, não é para ahi nenhum barlavento; nome respeitado na praça, --
e rodeavam-o, procurando saber a sua opinião sobre o relatorio e contas da direcção, consultando-o como um oraculo,
-- Que diz o commendador a esta embrulhada? eu por mim não sei o que quer dizer esta verba -- e apontavam-lhe uma parcella a figurar no Passivo, que não harmonisava com o Activo --
-- uma coisa inexplicavel, que ninguem era capaz de comprehender. --
O Mendes apostrophava --
-- Macacos mi mordam si eu entendo isto. --
O commendador dizia prudentemente, com receio de "raia":
-- Elles explicarão logo isso, ein; é pedir a palavra e fallar... mas me não parece que o Banco vá mal; oito por cento de dividendo, ein; não póde dizer-se mau negocio. --
-- Lá isso é verdade, vão elles dando e o diabo que os entenda -- aventurou um bacalhoeiro da rua de S. João.
-- Não é tanto assim, Snr. Araujo; se querem as cousas claras; no Rio se não vê um relatorio por esta fórma. --
-- Isto as cousas cá mudam de figura, meu caro senhor. --
-- Qual figura, nem qual carapuça; não ha lá banco que não tenha sua escripturação em dia. --
-- Isso tambem cá, meu rico senhor.
-- Me diz aonde, se faz favor? tudo uma embrulhada; quer que lhe diga eu ao senhor aqui em particular, tudo isto é uma capiranga e ai de nossos capitaes! Se faz politica, aqui, em todos os estabelecimentos bancarios. --
-- Isso me diga o senhor, --
e o bacalhoeiro lembrava-se, que elle já tinha recorrido ao credito n'uns embaraços sérios, fazendo pezar a sua influencia eleitoral.
A campainha da presidencia vibrou pela sala; homens irromperam dos corredores, descobrindo-se respeitosamente. Havia silencio.
O secretario procedeu á leitura da acta precedente, que uma inclinação de corpos sentados approvou por unanimidade. Dispensou-se a leitura do relatorio.
-- Se algum accionista pedia a palavra sobre o relatorio e contas da direcção -- perguntou a presidencia.
Um silencio geral, esperando todos que apparecesse o primeiro; mas ninguem, a larynge seccava-se-lhes n'um spasmo anti-rethorico; murmurios surdos se espalhavam.
-- E ninguem, ora esta! --
Segredou-se ao commendador que fallasse, o Mendes apontava aquella parcella inexplicavel.
A presidencia repetiu a pergunta.
O commendador pediu a palavra.
Libertaram-se os peitos n'um ah de satisfação;
-- até que emfim a cousa começava. --
A direcção estava um pouco trémula, presagiando tempestade; mas o Jorge conhecia o commendador, era seu amigo, d'ali não podia vir grande batalha. --
O orador foi breve --
-- que não tencionava pedir elle a palavra; mas que... no animo d'alguns senhores accionistas se apresentava uma duvida --
Muitos apoiados com vocalisação especial da Mendes --
-- e essa duvida dizia respeito á parcella A que figurava no Passivo, sem a correspondente do Activo.
Muitos accionistas procuravam no relatorio a falta de harmonia notada pelo orador.
-- que pois a digna direcção o esclarecesse a elle e á respeitavel assembleia, que se daria por satisfeito com essas explicações, e que no resto approvava o relatorio e contas e bem assim o parecer do digno conselho fiscal. -- E sentou-se, a mão ageitando os oculos para encobrir o rubor congestivo das suas faces.
Apoiados resoaram.
O Jorge pediu a palavra por parte da direcção.
-- Vamos a ver, o que elle responde; o commendador não é homem que se fique, -- sempre quero saber a historia da tal verba. --
O Jorge narrou as circunstancias do Banco, a epocha da crise, a historia de transacções, as difficuldades monetarias, multiplicou cifras apontando para o relatorio, de que lia variados trechos, foi prolixo, d'uma claridade confusa, torcendo os espiritos n'um labyrintho de arithmetica, e -- concluia -- tinha assim justificado aquella aliás justissima observação do seu amigo Commendador e da illustre Assembleia geral. --
Apoiados estalaram; o commendador declarou que se dava por satisfeito.
A presidencia perguntou se mais algum accionista tomava a palavra.
Então o Alberto levantou-se,
O Jorge olhou-o com sobresalto.
-- que ia elle fazer, aquelle doido -- e sentiu vontade de o fazer desapparecer, de o sumir pelo chão abaixo, como a um diabo das magicas. Os seus collegas interrogavam-o mudamente,
-- que significava aquillo? --
mas elle encolhia os hombros
-- estava absorto tambem, não podia dar a mais leve explicação.
Entretanto o Alberto principiara --
-- que o não prendiam n'aquelle lugar considerações de parentesco ou amizade, mas visto que alguns snrs. accionistas punham em duvida a sensata elaboração do relatorio, elle como accionista que zelava acima de tudo os seus interesses, não hesitava em tomar parte nos debates. --
O Jorge estava cada vez mais enfiado; a direcção impacientava-se.
Mas o gesto largo de Alberto, a sua "pose" d'orador impunham-se á massa bruta dos accionistas.
-- que estavam n'aquelles lugares -- e apontava para a direcção, -- homens d'uma probidade inconcussa, capitalistas respeitados, cujo nome nunca ninguem ousara macular com a mais leve suspeita,
Muito apoiados --
-- que melhor que ninguem elles tinham sabido atravessar com circumspecção e tacto financeiro a epocha da crise e a prova ali estava n'aquelle resultado final, os oito por cento de dividendo. -- E tecia um largo elogio, palavrões sonoros, com uma grande fluencia de expressão.
Apoiados mais calorosos ainda de possuidores de acções. -- Murmurava-se, como n'um applauso unanime --
-- falla bem o rapaz, e entende da póda, -- está dito --
Alberto continuava embriagado no seu triumpho --
-- que não hesitava por isso em propor uma recompensa pecuniaria á direcção, e que se não dissesse que era o interesse de familia que o impulsionava, por isso que da sua proposta excluia o cavalheiro, com quem estava ligado por laços de parentesco. --
Mas o publico bradou
-- que a proposta devia ser geral --
o commendador accrescentou até
-- que todos eram dignos d'essa gratificação -- e propoz ainda um voto de louvor ao conselho fiscal. --
O relogio batia quatro horas; a presidencia apresentou as propostas dos dous oradores e os accionistas approvaram
-- queriam ir jantar, que os levasse o diabo a todos. --
O Mendes dizia cá fóra aos grupos que o rodeavam --
-- que a historia da parcella ninguem a esclarecêra. --
Grupos formavam-se de novo; um discutir incoherente e tumultuario contrastando com o silencio que tinham guardado lá dentro. Commentava-se o Alberto
-- fallava bem, não havia que ver.
-- estava mesmo a pintar para uma direcção,
-- de vagar se ia ao longe --
E dispersavam-se na confluencia das ruas, contentes dos oito por cento, -- que vinham agora mesmo ao cahir da faneca -- dizia o merceeiro de S. João.
Trens rodavam subindo vagarosamente a rua de Ferreira Borges, um desfilar de população laboriosa que vai cuidar do estomago, burgueses pesados questionando aos bocados, caixeiros de escriptorio com rolos de papeis debaixo do braço.
O Jorge entretanto dava-se a si proprio os parabens por aquella revelação do genro --
-- Isto bem aproveitadinho, não lhes conto nada -- dizia para os collegas --
Se o rapaz quizesse entrar cá para o banco -- aventurou um dos directores.
-- Eu lhe fallarei, a cousa ha-de-se arranjar, -- um papagaio de vez em quando convém. -- E applaudia-se de ser elle o que lhe havia feito já a mesma proposta, mas que n'esta occasião occulta,
-- era sempre conveniente; são elles os agradecidos. --
E em casa, quando Ermelinda veio recebel-o ao cimo da escada, contou-lhe a proeza do Alberto, muito satisfeito, alegre com a desopilação d'aquelle peso do relatorio e contas, a gratificação a entre-sorrir-lhe no meio dos seus embaraços.
O Alberto deu-se uns ares de modestia recolhida
-- que outro qualquer faria o que elle fez; nada de extranho a final; tinha ouvido uns "zuns-zuns" de vespas importunas, aquillo indignara-o e resolvera-se a fallar, eis ahi estava. --
Ermelinda olhava-o com uma admiração mais terna; parecia-lhe aquillo um feito de semi-deus, erguia-lhe o culto fetichista dos heroes; e julgava-se reflectida no esplendor d'aquella acção, uma emphase vaidosa de ser sua mulher, de lhe chamar seu, eternamente seu. E as nuvens que até ahi tinham assombreado o ceu da sua união pareciam-lhe agora desfazer-se, como as neblinas tenues da manhã, deixando clarear um horisonte aberto, d'uma grande pureza luminosa.
E o Alberto, contente de si, applaudindo-se na execução da sua inspiração:
-- Boa ideia, com os diabos, a cousa ha-de seguir naturalmente, fui feliz, a questão é de aproveitar a maré, isto é melhor do que a roleta; os "pontos" teem a mais um pouco de dinheiro e uma dose de parvoice. --
Sonhava especulações estrondosas, que o enriquecessem em pouco tempo, um "el-dorado" onde podesse ser invejado, dar as leis no mundo financeiro, no mundo argentario. Atirava com a imaginação para um vasto horisonte d'ambições, fazendo-a descrever uma curva vertiginosa e brilhante, vendo-se respeitado com um grande poder, rodeado de todos os voluptuosos contactos do luxo; viagens ao estrangeiro, prazeres d'uma variedade infinita.
Estas ideias que elle communicava a Ermelinda inflammavam-os a ambos n'uma ambição mentirosa, o espirito desviando-se da realidade espinhosa das cousas praticas, e gastando por isso largamente, agora mais desaffrontados porque o Banco lhe dava um bom ordenado, atirando-se a uma extravagancia de despezas, uma loucura que os estonteava.
O Jorge inquietava-se, receiava uma derrocada fatal; a especulação que bafejara tinha-se gorado; iam cada vez mais em peior estado os negocios do Banco --
-- E ao Alberto não havia quem lhe dissesse uma palavra, um orgulhoso. -- Demais a Ermelinda sentia-se no ultimo periodo da gestação, adoentada, umas syncopes frequentes, que a prostravam muito -- o Dr. Roberto dissera que só melhoraria depois -- era por isso necessario esperar. --
Mas todas estas difficuldades torturavam-lhe o espirito; possuia-se d'uma tristeza grande, agitado, pouco communicativo até mesmo para com a Joaquina, -- que o aconselhava, -- uma partidaria do "Laisser faire, laisser passer".
-- Coma e beba e leve o diabo paixões, senhor Jorge --
-- fallas bem, fallas bem, se te visses n'ellas como eu -- e o pensamento engolphinhava-se n'aquelle labyrintho de embaraços, que o iam apertando como as malhas d'uma rede, uma accumulação consecutiva de difficuldades, que renasciam multiplicadas como uma fecunda geração de polypos, ao passo que ia cortando algumas.
Era menos frequente á noite no Club e quando apparecia, distracções imperdoaveis no "wist" faziam-o perder quasi sempre.
Comia menos, o seu vigor physico ia gradualmente diminuindo; appareciam uns achaquesitos, umas dores de cabeça que duravam dous a tres dias, a face cahindo n'uma pallidez doente; uma fraqueira no estomago.
-- Uns caldinhos de substancia, é o que isso precisa -- dizia-lhe a criada. --
Principiou a consultar o medico; o Dr. Roberto aconselhou-lhe tonicos, distracções, ares lavados do campo. -- E ao jantar com uma grande fé meticulosa tomava uns confeitosinhos brancos, de ferro, que andavam muito annunciados nos jornaes do dia. --
-- E talvez fosse "flato" -- aventurava a Joaquina --
-- Sim, tambem padecia! -- e tomava á noite umas quatro pilulas catharticas de Ayer, lendo sempre com minuciosa attenção o folheto que trasia as explicações sobre o seu modo de emprego, affiançando o seu effeito "salutar, tonico e natural", tendo a rara propriedade de serem "innocentes" e ao mesmo tempo "efficazes".
Isto tranquilisava-o bastante.
-- Se não fizessem bem, tambem não fariam mal.
Mas a saude, apesar das promessas do folheto, ia entrando n'uma decadencia gradual. A D. Gabriella já fazia promessas ao Senhor de Mathosinhos e a Joaquina essa tinha mais fé com o Senhor da Pedra.
-- Cacos velhos, cacos velhos, D. Gabriella. --
-- Nem diga isso, credo, velhos são os farrapos -- e lamentava aquelle derruir precoce de saude, onde iam as suas esperanças, como as heras que vivem radicadas nos velhos edificios e se destroem com a sua derrocada.
Alberto assistia áquelle esphacelar com uma secreta alegria intima, de quem se vê livre d'um fardo importuno.
-- Seria mais senhor das suas acções, não teria aquelle "Argus" constantemente a vigiar-lhe os passos, e agora... bem se importava... tinha uma posição segura no Banco; os collegas do Jorge respeitavam-o... os seus planos realisar-se-iam em breve; e o velho não ia longe, não, bem se conhecia. --
Ermelinda sentia-se agitada por uma forte impressionabilidade; amedrontava-a o receio d'uma maternidade dolorosa, consultava o medico amiudadas vezes, tomava conselhos com senhoras cazadas suas conhecidas.
-- Quem lhe dera já ver-se livre d'aquelle perigo -- dizia -- e ia entretanto occupando o pensamento com o enxoval do seu bebé, um enxoval rico, umas rendas finas a enfeitarem as camisinhas, as pequeninas saias, os vestidinhos de passeio. A Joaquina aconselhava com o bom senso pratico das filhas do povo --
-- que era preciso tratar das envoltas, das flanellas, de cousas que agasalhassem e trouxessem a creança sempre fresca, --
-- Tu sabes lá o que dizes!...
-- Pois a senhora verá... para que lhe servem os bonitinhos. --
Mas os bonitinhos encantavam a imaginação da futura mãe; via a sua filhinha, -- havia de ser uma menina -- toda aceiada no collo da ama, uma capa branca de fustão cobrindo-a toda n'uma ondulação macia, a touca de rendas circumdando, como uma auréola, o seu pequenino rosto de "cherubim", d'um côr de rosa pennugento;
-- passearia com ella no Palacio á hora da musica, nos formosos dias de primavera que vinham a despontar, quando o sol, como um bohemio alegre, fatigado do ar soturno do inverno, se rebolasse a sorrir na limpida atmosphera azul.
-- por-lhe-ia o nome de Rosina, um nome poetico, celebrado nos romances, uma heroina por quem se inflammara no capitoso aroma da paixão o coração do conde de Almaviva.
-- E a sua Rosina, seria linda, não admittia a possibilidade d'ella ser feia... nem mesmo tinha a quem sahir -- accrescentava n'um confronto vaidoso da sua e da plastica do Alberto. --
Via-a depois com a gracil formosura dos oito annos, vindo toda ladina do collegio, já uma senhora feita nos ditos espirituosos, uma precocidade nubil de namoros, e entrando mais tarde nos bailes, invejada como ella o fôra, requestada pelos mais elegantes, chegando a causar delirio na impetuosidade das walsas. --
A despertal-a d'estes embevecimentos a natureza annunciava a approximação da crise por vagas dores contrativas, e toda ella se recolhia n'um receio pueril, com panico de morrer, a imaginação a figurar-lhe casos muito funestos.
-- Não, que não era nenhuma brincadeira -- e consultava a Joaquina, tornara-se até mais amoravel para com ella, exigia a presença do pae, do Alberto, do Doutor. --
Riam-se muito, consolando-a, esforçando-se por lhe communicar uma alegria desafogada.
-- Nem que estivessem agora todos os perigos reservados para ti. --
-- Pois sim, tambem não dizia isso, mas só Deus sabia. --
O Alberto não comprehendia aquellas flebeis impressionabilidades de espirito doente.
-- Isso era nervoso -- dizia n'uma formula generica, que para elle abrangia todos os casos -- e recordava-se de que a Annita andara a pé quasi até ao fim, que nunca tivera aquellas exquisitices, a Magdalena viera na occasião e as duas, lá no quarto, tinham-se arranjado dentro de meia hora. -- Aborreciam-lhe aquellas pieguices, aquellas puerilidades, um enfado por todas aquellas exigencias d'ella, dando-lhe mesmo vontade de romper abruptamente --
mas soffreava as suas manifestações de irritação, era preciso contemporisar,
-- o diabo ás vezes tecia-as -- o Doutor recommendara tranquilidade d'espirito, a coisa era por pouco tempo, deixar correr, não queria responsabilidades. --
A crise dolorosa manifestou-se; foram chamar a parteira, a D. Anna Cardoso, uma loirita baixa, que tinha residencia no hospital e que o Dr. Roberto indicara como muito habil.
-- que se não affligisse, o parto promettia ser bom, -- e fallava baixinho á Joaquina, fazendo certas recommendações.
Ermelinda contorcia-se, uns gemidos entrecortados, o rosto a empallidecer.
-- Então, um bocadinho d'animo, descançasse um poucochinho -- e deslisava a mão por baixo da roupa, n'um auxilio de contracções provocadas.
A Joaquina tinha perdido a sua placidez apathica, andava aparvalhada, nunca imaginara que a Ermelinda podesse assim soffrer. Curvava-se sobre o leito, um carinho de mãe,
-- Não ha-de ter perigo, Nossa Senhora do Bom-successo lhe valha, já lhe prometti duas velinhas de quarta. --
Ermelinda continuava a gemer, um contrahir doloroso, as mãos segurando-se na cabeceira do leito, retesando-se, com grande violencia muscular.
A parteira annunciou o termo, curvou-se mais sobre o leito, e um vagido de creança, d'um timbre inimitavel, fez-se ouvir.
Ermelinda tinha ficado n'uma prostração apathica, syncopal.
O Doutor entrou, recommendou socego, fez-lhe engulir uma colher de vinho generoso. Despertou lentamente,
-- Então!? -- perguntou -- mas vendo o medico junto de si, sentiu-se confusa, um pejo do seu estado.
A Joaquina disse logo
-- Uma menina, D. Ermelindinha, uma menina. --
-- Oh, uma menina, tragam-m'a, quero vel-a. --
O Doutor sahiu.
Fóra o Alberto passeava lentamente; o Jorge sentara-se, os cotovellos fincados sobre uma meza.
-- Não ha perigo; está a cousa prompta; foi muito feliz até, vamos lá, por ser a primeira vez... parabens -- e o medico accendeu um charuto. --
Vou ainda para o escriptorio, ate ás quatro, se fôr necessario mandem dizer; a parteira é de confiança...
O Jorge alvoroçou d'uma alegria intima; parecia-lhe até que não sentira tanta, quando ha vinte e seis annos, lhe annunciaram a existencia d'aquella que agora o fazia avô.
-- Um baptisado de pompa, ein! --
-- Está dito -- concordou Alberto.
Elle, por si, não sentira accelerar-se muito a sua emotividade, confrontava o caso um pouco analogo com o da Annita,
-- era até um encargo que a gente tomava -- e de mais a mais uma menina; -- não via demasiado motivo para os parabens do Roberto. --
Mas apesar d'isto aquelle corpo pequenino, brando como uma gelatina, d'uma leveza de passaro, impressionava-o d'alguma fórma, parecia-lhe uma como integração do seu ser, de que só agora conhecia a falta, e alguma cousa o agitava extraordinariamente, fazendo-lhe borbulhar dentro da alma uma sensação nova de carinho, como o rebentar inesperado d'um jacto d'aguas gazozas, que rompe a crusta da terra n'um determinado ponto. A emoção affectiva abria brecha na sua sensibilidade gasta pelos prazeres e pelo cynismo; dominava-se comtudo.
-- Não lhe faltava mais nada que tornar-se piegas á ultima hora --
e accendia um charuto para distrahir de sobre si aquella ideia nova, que o envolvia como uma nuvem perfumada, de subtis aromas.
Ermelinda foi-se pouco a pouco restabelecendo. Procurou-se uma ama
-- achava estupido estar agora a alimentar a creança -- dizia Alberto -- isso era bom para a gente do povo.
Ermelinda concordava --
-- era realmente assim; fanava-se a belleza d'uma senhora, e depois uma creança tinha tantas impertinencias, seria sempre um empecilho, um estorvo a qualquer distracção. --
O Dr. Roberto contestou-lhe
-- que era o melhor o leite da mãe, que muitas vezes se deterioravam aquelles organismos debeis com a alimentação d'uma mulher mercenaria. --
-- Não, isso não, doutor; eu mesmo sou fraca, escolhe-se uma ama robusta, o papá escreve para a Maia, assim não tem duvida. --
-- Como V. Ex.ª quizer... --
A ama veio, uma aldeã vigorosa, muito palradeira,
-- que tivera até de passar o filho d'ella pela roda só para servir o Snr. Jorge, -- e então a menina, benzesse-a Deus, havia de ser uma latagona; nem a senhora a podia crear; o que ella precisava era leite, leite de sustancia --
e offerecia aos beiços da pequerrucha um seio farto, d'uma dilatação espapada de multipara.
Ermelinda deleitava-se em ver a sua pequenina a babujar n'aquelle peito que não tinha a brancura assetinada do seu,
-- mas deixal-o, o que ella quer é leitinho --
e beijava-a depois, os seus finos dedos, com aneis de cobra, acariciando a face vermelha e enrugada da creança.
Sentia-se mais alegre, mais gracil no seu novo papel de mãe; a febre do leite dando-lhe uma ternura entre voluptuosa e morbida, que lhe aquecia o sangue ainda depauperado. Exigia muito o Alberto junto de si, rodeava-o com caricias, impunha-se e offerecia-se, uma doudice de creança, as vibrações nervosas d'uma impressionabilidade doentia.
-- Elle porém não estava para a aturar, -- até ali contemporisara; mas era de mais!... enfadavam-o já aquellas momices!... E depois a nostalgia da reclusão, do banco para casa, de casa para o banco e isto por causa d'ella, para a não perturbar no seu estado grave! Mas isso acabara --
e repulsava-a com desabrimento, a sobrancelha sempre enrugada, um tédio por aquelle regimen de prisão cellular, um aborrecimento de ser cazado, a imaginação dourando-lhe os quadros da sua vida livre e licenciosa de rapaz.
Ermelinda pesava-lhe como um despotismo absoluto, um obstaculo invencivel ás suas aspirações de liberdade, á sua independencia pessoal; e d'ahi as revoltas repetidas contra aquelle jugo, questiunculas que os separavam, uma acrimonia em todos os actos que exigiam convergencia de reciprocidades.
Supportavam-se apenas; disputas incessantes se levantavam e aquella paz octaviana que durara pelo espaço do período grave d'Ermelinda, rompia-se agora a cada momento, em discordias muito tempo soffreadas, com uma effervescencia azeda, que depositava uma bilis odiosa no coração de cada um --
-- mas era um viver infernal -- dizia ella a cada momento, --
-- É ir tendo paciencia, filha, nem tudo são rosas na vida de cazados -- aconselhava o Jorge.
Porém aquelles queixumes d'Ermelinda amarguravam-o, ralavam-o d'uma mortificação cruciante; sentia-se cada vez mais adoentado, os embaraços pecuniarios cercavam-o, o vigor physico fallecia, e ainda por cima a filha, o seu idolo de fetiche, soffria d'um soffrimento irremediavel --
Lembrou-lhe o divorcio, chegou mesmo a fallar-lhe n'isso
-- mas era um escandalo, uma vergonha, fosse vendo se o levava por bons modos. --
Ermelinda tentou reconciliar-se; chegou mesmo a dar-se uns ares de martyr resignada, mas o Alberto
-- achava estupido que lhe distribuissem o papel de tyranno de comedia -- tinha phrases irritantes, d'uma grosseria mal educada, que a pungiam na sua delicadeza. --
Concordavam apenas n'uma tregua de harmonia, quando tinham de sahir juntos, alguma visita, um ou outro passeio, qualquer pequena "soirée" familiar... Ahi mesmo porém Ermelinda lacrimava-se com as suas intimas, aconselhava as solteiras a que não cazassem, -- havia muitos espinhos que só a experiencia revelava.
E deposta a mascara com que se tinham afivellado para apparecer ao publico, a tregua rompia-se, um motivo futil os irritava, cada um querendo a superioridade da sua opinião, distanciando-se n'uma separação odiosa, enojados de se verem, de terem de se corresponder a cada momento.
Ermelinda principiou assim a ter uma aversão da toilette, do aceio; deixava-se ficar todo o dia com o penteador encardido da gordura dos cabellos, um desleixo de si, uma preguiça sentimental occupada em se lastimar.
-- Não que valia a pena, realmente, estar a enfeitar-se para o senhor seu marido! nunca ella o tivera conhecido --
-- e tambem era só para lhe "fazer a raiva"; só porque elle gostava de luxo, é que ella se não vestiria. --
O Alberto ás vezes sentia ainda desejos de reconciliação; a natureza impulsionava-o, uns fermentos da paixão, que o tinha attrahido para a formosura de Ermelinda, levedavam no seu coração d'homem, tornando-o bom, momentaneamente acaroavel. Vinha de fóra com tenções conciliativas,
-- dar-lhe-ia um beijo, recordaria com ella as venturas formosas do passado -- combinaria planos sobre o futuro da pequena --
mas via-a desleixada, ainda com a roupa da manhã, bocejando de tédio, desabafando n'um mau humor de contrariada com a sua presença.
Enojava-o aquillo; --
-- fizera-se porca de mais a mais -- e a creança andava mal limpa, a ama só tratava de comer bem e de dormir, deixando-a n'uma immundicie revoltante, os olhos remelados, o babeirito sujo.
-- Era impossivel! não estava para se encommodar, -- a mãe que olhasse por ella, se quizesse --
E comia, n'um mutismo obstinado, uma ou outra palavra rapidamente proferida, levantava-se ao "dessert" sahia logo, ia tomar o seu café no Suisso. --
-- Vê, papai, é isto e eu que o ature! não... tambem já é de mais... agora só lá para as duas da noite.
e vinha para o quarto lastimar-se, arremeçava-se sobre o leito, a cabeça occulta no travesseiro, lagrimas a desfiarem n'uma torrente impetuosa, levantando-se com os olhos injectados, muito abatida e quebrada.
O Jorge, o cotovello sobre a meza, com um ar de compassividade, via-a sahir abruptamente.
-- Quem o havia de dizer, Joaquina.
-- Eu sempre o prophetisei; aquella cara nunca me enganou; e sabe que mais? o remedio é cada um para seu lado; olha agora o pandilha! a menina assim cae ahi doente e depois o verás...
-- Mas que vergonha, que vergonha!
Todas estas sensações desagradaveis se infiltravam no seu espirito, desmoronando-lhe a firmeza e claridade, como as aguas salitrosas que arruinam um bello edificio. Fallava pouco, um esquecimento de si mesmo em meditações prolongadas, a fixação d'uma ideia a absorver-lhe toda a actividade do pensamento. Os seus padecimentos aggravaram-se, tomava muitos remedios depauperando-se com dietas obrigadas; apparecia um achaque pelo mais ligeiro motivo, a cabeça que tinha dores nevralgicas, o estomago que depunha os alimentos quando a Joaquina apresentava um prato novo, o figado que se opilava á mais leve indisposição.
Andava hypocondriaco, tinha distracções imperdoaveis, os empregados do banco chegavam a ter por elle um sorriso de commiseração, quando o viam errar a mais simples conta de sommar.
O commendador chegou mesmo a provocal-o a uma confidencia,
-- Anda tão abatido o amigo Jorge!
-- Vai-se andando, vai-se andando.
-- Trate de si, homem.
-- Um pouco adoentado, realmente um pouco adoentado.
-- Vão-se os anneis e fiquem os dedos, você me entende, hein... quem cá ficar que se arranje...
No espirito do Jorge esta phrase cahiu como uma gotta de metal em fusão.
-- Quem cá ficar... ah, sim, ficava ella, se elle lhe faltasse de um momento para o outro... e sem amparo a pobre da rapariga, de mais a mais com a pequerrucha... "n'elle" nem queria pensar... estavam servidas as pobresinhas... ainda se lhes podesse deixar muito... mas as cousas estavam tão mal, os primeiros passos errados haviam sido como um meandro, que o envolvera... agora sim, era ver se lhe podia salvar algum bocadito... mas para isso só a "separação" de pessoa e bens... uma vergonha, Jesus, o que lhe estava reservado para o fim da vida.
Alheava-se n'estas considerações, um olhar espantado, d'uma tranquilidade triste, quando via a Ermelinda curvando-se sobre o berço da filha, fazendo umas festasinhas chilreadas á creança.
E a verdade é, que aquella familia se não desagregara talvez desde muito, porque tinha em Jorge um laço de cohesão, uma como columna a sustentar a estabilidade do edificio. Elle conheci-o; o Alberto respeitava-o um pouco, o seu interesse egoista a isso o obrigava,
-- Mas se eu falto, se eu falto, que ha de ser de tudo isto? --
Esta ideia atravessava-o com uma tenacidade impertinente de verruma; impunha-se-lhe a todos os pensamentos, pesava sobre elle como uma grande avalanche precipitando-se no declive d'uma serra.
Era necessario tomar uma resolução definitiva: -- não, assim aquillo não tinha geito. --
O Alberto não se emendava; sacudia com hypocrisia o jugo despotico da casa, ia conquistando pouco a pouco a sua liberdade sacrificada. Uma noute por outra não apparecia; e depois, quando no dia seguinte Ermelinda, com uma ejaculação represada de bilis, abria o capitulo das recriminações, elle ao sentir-se culpado, tomava uma attitude acriminosa, abafava com a sua voz trovejante as queixas d'ella, revestia-se d'uma pose sarcastica, a palavra secca de ironias, -- se tinha medo a menina havia de comprar um cãosinho. --
E não conseguiam reconciliar-se, obstinadamente mudos um para com o outro, olhando-se odiosamente durante dous ou tres dias até que uma futilidade qualquer os ia abonançando, supportando-se então, a paz calma dos vulcões suspensos. --
Mas as hostilidades abriam-se por um motivo ligeiro; questinculas pequenas surgiam, contradicções oppondo-se teimosas, mutuamente.
-- É o cão e o gato -- dizia a Joaquina ao vel-os de novo n'uma discussão quasi sempre futil. --
Havia já despedido a ama. A creança principiava já a balbuciar as primeiras palavras, as suas pernitas roliças tinham as hesitações dos primeiros movimentos; o Jorge sentia dilatar-se d'um amor paternal ao ver a pequerrucha trepando-lhe pelas pernas, n'uma tenacidade em vencer aquellas columnas que se lhe afiguravam collossaes.
-- Olha o diabrete, não chegas cá, ainda tens muito pão para comer.
A Rosina não desanimava porém, estendia o bracinho curto, queria apanhar-lhe a Suissa que voejava por sobre o collarinho, balbuciando a palavra -- Avô, -- chamando-o com imperio, querendo subjugal-o ao capricho da sua pequenina vontade.
Entrava n'esse periodo gracil da infancia, em que os mais indifferentes abrem um sorriso ás suas irriquietas travessuras, aos lampejos vibrantes das suas phantasias de "baby".
Ermelinda approximava-se d'ella mais; exhultava porque tivesse passado esse longo estadio de trabalhos e canceiras obscuras, e habituava-se agora a vel-a como um pequeno figurino trajando o costume da sua phantasia, uma boneca que ella tinha de enfeitar pondo n'isso toda a sua vaidade de mulher e de mãe. O Alberto mesmo demorava-se um pouco mais depois do jantar, a carne feliz d'uma boa digestão, alegrando-se de ouvir chilrear aquelle passarinho as notas phantasiosas d'umas mentiras imaginaveis.
-- Diabo da pequerrucha era mesmo um encanto -- e como ella inventava umas historias sem pés nem cabeça. --
A Rosina parecia pois pouco a pouco ir estabelecendo a harmonia entre os dous; esqueciam-se de si, a attenção convergindo para a filha, surprehendendo-se até de se verem agora tão amaveis, admirados de que houvessem adormecido aquellas disputas incessantes que até ahi os divorciavam em recriminações asperas e molestas.
Mas este periodo não se prolongou muito. O Alberto uma noite entrou tarde; por acaso o Jorge tinha-se encontrado mal. Ermelinda estava ainda a pé; e quando o viu chegar, uma esfusiada de ironias a atacou.
-- Bonito, não tinha duvida! Tres horas da manhã!... em casa tudo tinha andado em afflições, e o estroina lá por fóra... nas orgias... um bello comportamento de homem casado... o pae doente, tão mal, sem haver quem fosse chamar um medico... realmente...
Encolheu os hombros, friamente, resistindo na armadura d'uma indifferença fingida áquelle assalto de palavras irritantes.
Mas ella continuou, um phrenesi insaciado:
-- Isto só no inferno, só a minha paciencia! Mas é de mais, todas as cousas teem um termo. --
-- Pois é procural-o -- respondeu bruscamente.
-- Olé se hei-de, pois que pensava o meu menino!... --
E cantava ironicamente o diminutivo, o corpo saracoteando n'um movimento de rotação, uma attitude de escarneo provocante.
O Alberto avançou para ella, apertou-lhe os pulsos violentamente, os olhos injectados d'uma colera animal.
-- Tu não penses que brincas comigo! e sacudiu-a fortemente, com uma rudesa aspera. --
Ermelinda encarou n'elle com um olhar profundo de desprezo e de colera por se sentir fraca; e depois o corpo enteiriçando-se, muito pallida, a voz com um timbre imperativo:
-- Deixe-me, senhor. --
O Alberto largou-a, sahiu do quarto impetuosamente, os seus passos ouviam-se sonoramente no corredor emquanto ella atirando-se sobre o pequeno leito de Rosalina.
-- Oh, minha filha, como ambas fomos infelizes. --
No quarto de Jorge a luz mortiça d'uma lampada derramava uns tons lividos em todos os objectos. A roupa da cama, um pouco em desalinho, enroscava-se em volta do corpo do doente, cuja cabeça esbatida n'uma côr macillenta, revellava soffrimentos graves, irremediaveis, o corpo levantando-se nas almofadas, arquejando em movimentos rapidos, d'uma dyspnea violenta. O braço descarnado, com a brancura da camisola a envolvel-o, procurava a pequena escarradeira de porcellana que Ermelinda lhe apresentava com um carinho muito affectuoso.
O commendador, sentado n'uma cadeira aos pés do leito, tinha uma attitude gravemente composta, d'uma embecilidade passiva em face d'um mal, que não podia remediar.
Pronunciava palavras de conforto, de espaço a espaço, uma grande oppressão d'aquelle meio taciturno, com volatilisações acres de mostarda e um cheiro de doença, que provinha da renovação incompleta do ar.
A Joaquina entrava de quando em quando, com uma taça de caldo na mão, os olhos avermelhando-se na fricção de lagrimas absorvidas na ponta do avental, e sempre esquecendo um objecto necessario, a colhér para remecher o caldo, o guardanapo para limpar os labios, o copo d'agua que se lhe havia pedido, uma perturbação de sentidos que a alienava, fazendo-a entregar disparatadamente um objecto em logar d'outro.
Pedia a Deus:
-- que lhe valesse -- e sahia a cochichar umas resas, seduzindo a divindade e a patrocinação dos bem-aventurados com a promessa d'umas velas de cera, d'umas missas pedidas, d'umas voltas de joelhos em que flagellasse a propria carne em de redor da capella do santo invocado...
O Dr. Roberto dissera confidencialmente ao Alberto:
-- que não havia esperança, e depois, aquelle espirito estava n'um abatimento grave, algum desgosto profundo o havia prostrado. --
Estas palavras queimavam-lhe a alma; tinha vontade de entrar no quarto do sogro, pedir-lhe perdão, prometter que d'ali para o futuro seria sempre o leal amigo d'Ermelinda, que podia morrer descansado e confiando n'elle.
Mas o Jorge entrava sempre n'um paroxismo violento, quando a sua figura assomava á porta do quarto, rosnava umas palavras entrecortadas, que mal se entendiam e depois pedia a neta,
-- que lhe trouxessem a Rosina, porque não estava ali á beira do avô. --
Abraçava a pequena, beijando-a com soffreguidão, os olhos avivando-se d'um brilho excitado, --
O commendador recommendava-lhe prudencia --
-- que aquelles abalos lhe faziam até mal -- e pedia a Ermelinda, que retirasse a creança, que era necessario presença d'espirito.
-- e não chorasse, havia sempre esperança, emquanto havia vida. --
Ermelinda agradecia no seu intimo aquellas consolações, onde a sua fina perspicacia de mulher percebia um tremulo de amor e sinceridade! -- Oh, quanto não seria mais feliz em ter desposado aquelle homem, que agora a ampararia, que a respeitaria sempre como um escravo, que teria por ella todas as attenções delicadas d'uma alma leal; -- mas era irremediavel, estava unida ao outro!...
-- "Ao outro", que differença no confronto!... Sempre fôra bem creança em se apaixonar pelo que suppunha ser o romance da vida!... Oh, como estava arrependida. --
Vinham-lhe estas considerações, velando á cabeceira do leito, emquanto o Jorge, n'uma intermittencia calma, entregue a uma somnolencia de prostração, dormitava brandamente, o vigor alquebrando-se n'aquella madornice comatosa, como um fio de azeite que se escoa lentamente por um orificio aberto no fundo d'um vaso, e o Commendador e o Alberto, conversando baixo com o doutor, na saleta proxima, rumorejavam agouros funerarios.
O doente teve um momento de allivio; a respiração tornou-se-lhe calma, o rosto socegado deixou de se contorcer em contrações paroxisticas, a palavra, posto que branda, sahia com uma fluencia doce.
-- Melhorzinho, ein -- disse o commendador consolando-o. --
-- Melhor, realmente! Isto ha-de ir indo, ha-de ir indo. --
-- Coragem é o que se quer. --
O Jorge permaneceu calado; um pensamento agitava-lhe a imaginação.
-- Se não fossem ellas, commendador! -- bem me importava a mim a morte.
-- Deixe essas ideias, ouviu, isso lhe prejudica. --
-- Não posso, quer que lhe diga, não posso, levo-as aqui atravessadas -- e apontava para a garganta, como se um obstaculo invencivel estivera lá collocado. --
-- Mas então... se por fatalidade isso acontecesse, o que está muito longe de ser, ellas ficavam amparadas, ein!... quantas desejariam ficar assim. --
O Jorge quedou silencioso; dentro do seu espirito uma onda de verdade se agitava; mas o seu egoismo, a confissão do seu infortunio, um quebranto de cobardia sopesavam-o com toda a força. Depois, abruptamente, como quem atira de si um fardo pesado:
-- Oiça, commendador; eu sei que é meu amigo; Ermelinda é infeliz, ella... coitada, digna de tão boa sorte... e depois sabe... o banco... ai, não posso, não posso... e uma dor sobre o coração fel-o contorcer n'uma agonia violenta, a falta de ar reapparecia, a respiração agitava-se frequente. --
O commendador amparou-o, tinha palavras de consolação, d'uma sinceridade leal, n'aquelle momento em que presentia que um moribundo se debatia nos seus braços.
-- Eu velarei por ellas, descance, não tenho familia, serão a minha, amigo Jorge, vamos... coragem, isso passa... --
Mas o doente abria desmedidamente a bocca n'uma ancia de ar, os olhos voltavam-se nas orbitas, no estrabismo da agonia, um apagar da scintillação da vida, as mãos avincando-se como que procurando alguem.
O commendador chamou para fóra.
Veio o Alberto, a Ermelinda, a Joaquina. O Jorge exhalava o ultimo suspiro.
-- Meu pae, meu paesinho, olhe sou eu, é a sua filha, tem ali a sua netinha...
O Alberto teve uma phrase sonora.
-- Já te não ouve, Ermelinda. --
Um deliquio sobreveio, o rosto impallideceu rapidamente, e cahiu nos braços do commendador, que a amparou n'uma grande atrapalhação carinhosa, o espirito desejoso de prestar todas as consolações de affecto áquella mulher, que pela primeira vez sustentava nos seus braços, na mais critica das occasiões, quando o corpo do pae ainda quente lhe parecia lembrar na baça fixidez do seu olhar cadaverico, que velasse por ella, por aquella desgraçada...
Encheu-se de gente a casa; veio a D. Gabriella, a D. Clementina, a familia do Mendes, a Amelinha Bastos; todas porfiavam em prestar os seus serviços, installando-se provisoriamente, rodeando Ermelinda de consolações banaes, e murmurando entre si, calculando o estado de fortuna em que tinha ficado, commentando a morte do Jorge, muitos incidentes miudamente accumulados --
-- que ainda ha pouco tempo andava tão bom. --
-- um homem que parecia que vendia saude -- dizia a apaixonada D. Gabriella -- ai, se me lembro d'uma cousa assim. --
A D. Carola Mendes insinuava:
-- que talvez algum desgosto,... os negocios iam tão maus; ella d'alguma cousa sabia, o seu marido dissera-l'ho confidencialmente. --
-- pois desgosto houve e grande -- confirmava a D. Gabriella -- mas quanto a isso, D. Carola, talvez não, aqui era sempre do bom e do melhor... --
-- Onde se tira e se não põe, minha cára amiga...
A D. Clementina aventurou outra hypothese:
-- Não ia por alli o gato ás filhozes, a cousa era outra... --
Mas a D. Carola não se dava por vencida.
-- Pois se o Mendes m'o disse, menina. --
-- deixasse lá fallar os homens, elles ás vezes não eram dos primeiros que sabiam as cousas; que tambem -- accrescentava -- não dizia que não houvesse certos embaraços pecuniarios, porque luxo, louvado Deus, era o que se via, um desaforo... --
-- Lá isso era verdade. --
-- Mas aqui para nós a Ermelinda deu-me outro dia certas queixas; creio que o Jorge não vivia muito bem com o genro... --
-- Isso até o mais cego o percebia --
-- Vejam lá os "passetes" que elle fez; aquillo era tudo impostura, mas olhe lá agora, lagrimas, viste-as, nem eu!... --
Seguiu-se por unanimidade esta ultima hypothese,
-- que o Jorge morrera d'um grande desgosto motivado n'uma forte questão com o Alberto, que os dois se não podiam ver, que isso estava provado á evidencia --
-- quem devia saber pormenores havia de ser o commendador -- lembrou a D. Gabriella. --
-- sim, o commendador, esse devia saber -- concordou a D. Clementina affogueando-se d'um carminado serodio. --
-- mas aquillo era caixa fechada, não se descosia com facilidade. --
-- a questão era de saber tirar os nabos do pucaro sem a gente se escaldar. --
-- e realmente o commendador tinha o feitio d'um pucaro; havia de chamar-se d'ora em deante o commendador "Pucaro". --
Uma risadinha abafada acolheu o dito; a D. Clementina riu forçadamente para fazer côro, mas lá no seu intimo mordia com ferocidade o "espirito" d'aquellas pedantes,
-- umas tolas, capazes de festejar o "pucaro"... se elle lhes acenasse com a sua riqueza. --
Dentro, na saleta armada em camara ardente, o cadaver estendia-se na sua immobilidade, o rosto lividamente esbatido na reflexão dos lumes de cera, de casaca preta, o chapeu alto sobre o ventre, o braço esquerdo rigidamente estendido ao longo do corpo. Um criado do armador espevitava as velas, com uma grande indifferença de "habitué", fumando o mais voluptuosamente que podia o seu cigarro, em companhia do Christo, que o contemplava da sua cruz branca de marfim.
Um carro funebre parou á porta, um ruido surdo, de molas pesadas e lentas; e logo os mercenarios subiram, um tropel tumultuoso, phrases grosseiras em dialecto gallego.
Mas a Ermelinda ouviu-os; protestou, debateu-se nos braços d'Alberto. --
-- que o não levassem, queria despedir-se d'elle, era a ultima vez que o via -- e arremessada pela impetuosidade da sua dôr, entrou na camara ardente; os homens tiravam o chapéo que servira apenas ceremoniosamente e ella pôde ver ainda o cadaver, na sua lividez "mate", um fio vermelho ao canto do labio, o nariz afilado.
-- Meu pae -- e cahiu n'um deliquio, as senhoras vieram, affastaram-a presurosas, com um grande carinho affectado. --
A Joaquina veio tambem; quiz vel-o sahir, era a ultima vez...
-- e desatou a chorar, n'um largo pranto carpido, a voz rouqueando-lhe em gritos abafados, uma vontade de se atirar animalmente áquelle caixão, cingir nos braços o cadaver que lhe fugia e aquecel-o com os beijos da sua febre, reanimal-o para as efflorescencias da vida.
-- Meu rico patrãosinho, ai, meu querido sr. Jorge, que nunca mais o torno a ver, -- tão meu amiguinho era! --
E na dilatação expansiva da sua dor, a pobre mulher recordava inconveniente as scenas recolhidas do seu passado com elle, e a alma quebrada n'uma saudade dolorosa:
-- Nunca mais, nunca mais, tudo acabou ali. --
O Alberto percebeu a violencia d'esta saudade; as palavras da Joaquina revelavam-lhe o que elle apenas desconfiara e com um cynismo revoltante:
-- Vá lá para cima, Joaquina, era melhor que se lamentasse mais a sós; não lhe faltará quem o substitua. --
E com um desprezo para aquelle morto que sahia e por aquella mulher que ficava: --
-- Que bonita sogra me não dava o sr. director! -- realmente, oh moralidade dos bons paes de familia!
Accendeu um charuto; foi recostar-se n'uma poltrona da sala de visitas, onde alguns homens estavam para lhe fazer companhia.
Fóra ouvia-se o rodar abafado do carro funebre, e uma claridade luminosa, proveniente das tochas dos que o acompanhavam, penetrou atravez das janellas meio cerradas, derramando uns tons amarellados por sobre a sala.
Sugeitos batiam na escada entregando cartões de visita e o Alberto, com uma vaidade orgulhosa das suas relações, ia mostral-os a Ermelinda, um pouco com o fim de humilhar de inveja as suas amigas. --
-- Um bilhete da Viscondessa de Romualdo para ti, menina --
-- E outro do conselheiro Silva Monteiro. --
Ermelinda recebia-os com ar contristado.
-- Coitados, são verdadeiros amigos! -- e atirava-os para cima da meza, gloriosa dos brazões estampados, em que as amigas faziam uns minuciosos reparos.
Foi-se pouco a pouco esvaecendo a nuvem sombria d'aquelle drama de familia; os dias de nojo tinham passado e Alberto retomava as suas occupações no Banco; mas percebia que um certo desdem dos directores o envolvia, uma atmosphera de desconfiança, em que se não encontrava á sua vontade.
-- Pulhas -- dizia do alto da sua prosapia de imbecil -- acham o osso um pouco roido! tenham paciencia... ainda tem muito que devorar!... mas não hão-de ser os unicos, eu lhes protesto; não, que não faltava mais nada.
E meditava um lance de mestre, a riqueza fascinava-o, uma sêde de vida ociosa e facil lhe acenava á imaginação ambiciosa.
-- Agora de mais a mais estava livre do Jorge, livre d'uma vez para todo o sempre, não teria quem o estorvasse na sua marcha, era senhor seu, completamente seu, sem aquella peia que lhe vedava os passos. --
-- Em casa mesmo tudo havia de correr d'outra maneira; até ali em qualquer questãosinha a mulher tinha logo apoio no pae, e depois a criada vinha tambem, uns grandes ares dominativos, d'uma familiaridade, que se respeitava; mas a cousa ia mudar de figura... a Joaquina ia pôl-a no andar da rua, o mais pequeno motivo, uma questão qualquer... desejava uma creada "chic"... --
Ia a si destruindo tudo o que podesse lembrar-lhe o dominio imperativo do Jorge; esta ideia desafogava-o, fazia-o dilatar d'uma grande satisfação intima, e um dia, que uma indisposição o azedou com Ermelinda, ao ver que a Joaquina vinha intervir, como de costume, levando-lhe o conforto das consolações.
-- Quem lhe deu a Você liberdade de se metter onde não é chamada? --
-- Oh, senhor Alberto.
-- Já lhe disse, não quero em minha casa quem mande mais do que eu e se lhe não serve, procure, estou farto de a aturar.
-- E eu ao senhor; é já, é fazer-me contas e a porta da rua é larga...
O Alberto cresceu para ella --
-- Não me "fanfe", ouviu.
-- O senhor pensa que eu lhe tenho medo. --
Esbofeteou-a; o temperamento molle da Joaquina prorompeu n'um soluço comprimido, Ermelinda interveio, patrocinou a causa d'ella...
-- Nem quero ouvir fallar de tal mulher, contas e rua, já... -- e sahiu da sala, um ar embofado de D. Quixote --
-- Cá a espero no escriptorio.
-- Oh, minha rica senhora -- e abraçaram-se as duas, uma effusão tumultuosa de lagrimas, um adeus á convivencia de dezoito annos, --
-- Tem paciencia, Joaquina, eu hei-de fazer-te tudo que puder, mas que queres, tu bem o conheces --
-- Ah que se não fosse a senhora e a menina!
-- Então, mulher; olha, talvez a mais infeliz de todas seja eu... --
-- E é sim, já se vê, que é; ai agora, é que a senhora as vai penar com aquelle carrasco... mas olhe que para si eu sou sempre a mesma... casas não me hão-de faltar, ainda outro dia a D. Amelinha Bastos me fallou, quando ahi esteve por occasião da morte do Snr. Jorge... ai que grande falta elle fez n'esta casa...
-- Mas então com isso nada se remedeia!... --
Foi arranjar a caixa, veio entregar-lhe a chave, -- se a queria ver --
-- Oh, Joaquina que até me offendes com isso. --
O Alberto pagou-lhe pontualmente, despediu-a com um ar secco,
-- Que estimava que fosse feliz. --
E viu-a partir seguida d'um gallego, que levava a caixa, respirando emfim por se ter desfeito d'aquella testemunha das suas humilhações, d'aquella columna de apoio em que ainda se encostava affectuosamente a alma de sua mulher.
Mas a Joaquina fóra, o eixo sobre que girava a "menagerie" das cousas domesticas, havia-se partido: criadas inculcadas por adelas principiaram a succeder-se, uma indifferença por tudo quanto pertencia á casa, reclamando a sua liberdade dos Domingos, roubando escandalosamente nas compras, namorando ás tardes com os criados visinhos.
Ermelinda enfastiava-se d'estas pequenas minudencias de casa, confiara sempre na Joaquina e nunca se importara em dirigir a sua actividade n'esse sentido; e depois, agora que o tentava, que o seu instincto de "menagerie" se despertava, que tinha de pensar na educação da sua Rosina, um grande desgosto a minava surdamente, enchendo de tedio todos os seus actos.
O pae e a criada que quasi lhe fôra mãe, tinham-n'a abandonado, ficara entregue ao poder d'um marido, que principiava a detestar, a reconhecer como um tyranno insupportavel, a desmascarar d'aquella falsa douradura, com que até ahi encobrira todos os egoismos e todas as infamias; o caracter d'elle ia-se desenhando com uma nitidez de contornos assustadora e a cada revelação d'aquella alma tão vil o seu espirito recolhia-se como que dentro d'uma armadura crystallina, onde apenas se queria ver isolada com o sentimento da maternidade, o unico já agora que lhe restava.
Mas faltava-lhe a base d'uma educação solida; não sabia ter a tenacidade da lucta, um grande sentimento doentio a quebrantava, chorava como uma suppliciada diante das mais pequenas difficuldades que surgiam, orvalhava com lagrimas constantes o rosto assetinado da sua Rosina. O instincto da mulher levantava-se ás vezes como uma boa flôr que nasce por entre a aridez das urzes, mas o Alberto tinha sarcasmos crueis para aquelle rejuvenescer d'uma alma nova, murchava com o sopro das suas grosserias aquellas subtilezas perfumadas, em que o seu coração se desentranhava, todo cheio de esperanças e de risos limpidos.
Vivia por isso desgostosa, um aborrecimento por tudo o que a cercava, repoltreada na sua "chaise-longue", entregue á leitura d'um romance, deixando quasi sempre a direcção da casa confiada a uma creada que a illudia.
Gastava-se demasiado, o Alberto principiava a ter injurias insultantes,
-- que não queria litteratas em casa, que era preciso uma California para sustentar aquelles esbanjamentos, que olhasse pela sua vida, -- o dinheiro não se roubava. --
Ella replicava logo
-- que o não estragasse elle lá por fóra, -- para que tinha despedido a Joaquina, uma criada em quem se podia confiar!... só se queria que fosse ella varrer e cosinhar, não lhe faltava mais nada. --
Uma saraivada de insultos se trocava entre os dous; o Alberto sahia de casa para só voltar altas horas da noite, ella estancava-se em chorar, desgostosa por não ter um coração amigo, onde podesse entornar aquellas lagrimas que escaldavam o seu.
Foi n'uma situação d'estas que a D. Clementina a veio encontrar, n'uma visita á tarde,
-- tinha ido ao Palacio, mas estava tanto vento, lembrara-se de vir passar com ella um bocadinho.
-- agradecia-lh'o, estava tão só ultimamente. --
-- e teu marido, menina, e teu marido?
Encolheu os hombros, as lagrimas a pullularem irrequietas por entre as palpebras.
A possuidora do Tótó farejava um escandalo, um segredo de familia, um drama intimo de que ella ia ser a unica espectadora talvez.
-- E até estás mais magra, menina, crédo! parece que não vives muito feliz. --
-- As felicidades, D. Clementina, são boas para quem as merece a Deus. --
-- Oh, filha! desabafa, tu bem sabes que isto aqui é um poço -- e apontava para o coração -- as amigas não se fizeram para outro fim! Não sei se te lembras da Vicenciasinha, que morreu envenenada, pois olha que tudo me contou e eu... bôa... calada como um pêto... isso assim é de te matar lentamente; desafoga, menina, não ha mal que não tenha remedio. --
Insinuava-se, offerecia a sua alma como um consolo anodino e bom, um balsamo que se entorna sobre feridas irritadas. --
-- Não, não a deixaria sem que ella se tivesse aberto para com ella, fôra sempre muito sua amiga, desejava dar-lhe uma prova verdadeira d'isso. --
Ermelinda foi desfiando lentamente os espinhos do seu martyrio obscuro; sentia-se alliviada, uma oppressão que lhe deixava desafogado o peito, mais forte com as consolações affectuosas d'um carinho, que desde muito ninguem tinha para com ella. --
-- Narrou as groserias do Alberto, a despedida da Joaquina, uma criada de dezoito annos, que a trouxera ao collo tanta vez, o inferno do seu viver atormentado, as altas horas da noite a que elle recolhia, a sua indifferença por ella e até pela pequena, as revelações em que se patenteava a vilesa d'aquelle caracter; --
A D. Clementina benzia-se, interrogava minuciosamente, indagava com muita curiosidade.
-- Oh, filha, eras digna de melhor sorte.
-- então, que lhe havia de fazer... mas que dizia ella a tudo aquillo?
-- Eu sei cá, menina, vai tendo resignação, vai tendo paciencia; os homens ás vezes teem d'estes "rompantes", mas passa, passa, quem sabe até se andará por ahi mal "encaminhado". --
-- Oh, D. Clementina nem me diga...
-- Pois olha que não é outra cousa, e hei-de-o saber com certesa; tu verás como sae certo, isso são favas contadas...
Entornava-lhe na alma o veneno do ciume, com um grande desamor cruel, fazendo alarde da sua experiencia em casos d'aquella ordem.
-- Não era o primeiro, e depois olha "quem"!... se não se recordava d'aquella historia com a mulher do commendador Bernardo...; mas havia de o saber -- protestava com empenho -- e conversariam depois, viria agora visital-a mais a miudo, até lhe levava a mal que a não tivesse chamado ha mais tempo, as amigas conheciam-se nas occasiões. --
Ermelinda ficou como um doente a quem se acalma a dor com a ministração d'um veneno... aquellas palavras da sua amiga corriam-lhe na alma ao arrepio, como uma bafagem quente de verão, que respiramos mas que reconhecemos nociva; parecia-lhe que uma sensação extranha germinava dentro de si, crescendo com um grande vigor luxuriante, assombreando com as suas folhas envenenadas o pouco sol que ainda sorria e lhe cantava.
Tudo lhe perdoaria menos isso --
A sua vaidade de mulher formosa crispava-se em revoltas instinctivas, e a lembrança de que uma outra possuia aquelle homem, que ella rodeara dos perfumes calcinantes da sua paixão, batia-lhe a alma como uma onda tempestuosa de ciume, pungia-lhe o orgulho em humilhações amarguradas. --
-- Era talvez até a essa infame que ella devia o seu infortunio, -- agora estava explicado tudo. --
As palavras da D. Clementina tinham sido uma revelação, -- fizera-se a luz diante d'aquelle desvendar d'illusões --
-- oh não havia que duvidar --
E relacionava todos os seus dissabores, todas as irascibilidades, todas as suas questões com Alberto n'aquelle principio de causalidade, attribuindo-lhe a origem dos seus males, do seu viver infortunado e amargo.
-- mas vingar-se-hia! seria generosa e sublime, teria d'ora em diante para com elle todos os carinhos, todas as delicadezas, todas as submissões; seria uma lucta travada no desconhecido, sem que elle podesse penetrar a causa d'aquelle seu redobrar d'affectos; roubal-o-ia a essa mulher funesta, conquistando-o ainda com a sua belleza, com a força do seu ciume, com a energia de todos os seus direitos de esposa e de amante. --
E sentia-se agitada d'uma vida nova, o coração alvoroçado, a alma fortalecida para aquella peleja, elevando-se aos proprios olhos pelo seu papel de heroina e de martyr, o orgulho de se não deixar vencer, a vaidade propria espicaçada. --
A D. Clementina voltou alguns dias depois.
-- Altas novidades, menina, altas novidades. --
-- então, dissesse, estava anciosa por saber --
-- que lhe dizia ella?... era verdade, doia-lhe dar aquelle golpe, as cousas porém só se remedeiavam depois de sabidas, --
-- já estava resignada, era a sua sorte --
-- mas não valia a pena affligir; era a Annita, uma creatura á "toa", aquella que ás vezes apparecia no S. João, sósinha n'uma frisa...
-- São as peiores, D. Clementina, são funestas essas mulheres.
-- e demais tinham-lhe dito que estava por conta d'um brazileiro, ainda lhe não sabia o nome, mas não descançaria em quanto o não soubesse. --
Expunha com muita verbosidade casos identicos, aconselhando pequeninos tramas, muito contente do seu papel confidencial, creando uns fóros de indispensabilidade no decorrer d'aquelle drama domestico.
-- Fosse com ella o caso e veria. --
Por um d'esses phenomenos emotivos, de que só o capricho parece poder dar razão, quando se trata d'uma mulher, Annita, regalada na sua vida feliz, as ambições saciadas pela profusão aurea do commendador, principiou a sentir em si um grande tédio nostalgico, desde aquella noute, em que no S. João tinha visto o Alberto, o binoculo fito na sua frisa, curvando-se depois para segredar com Ermelinda.
Vinham-lhe as recordações alegres do seu passado, buliçosas de vida e de enthusiasmo, dominando na fluencia da sua luz as manchas escuras, que lhe tinham feito conhecer o travor de tantas lagrimas.
Ao ver o Alberto com aquella mulher, que lhe chamava seu, experimentava um pequeno ciume, uma como que irritação da sua vaidade, um obstaculo que se levantava á exigencia d'um seu capricho.
-- Quizesse eu e veriamos -- dizia para se consolar, uma grande confiança no seu poder de seducção, os labios contorcendo-se desdenhosamente.
-- mas não, não queria -- argumentava, buscando na sonoridade das negativas um ponto de apoio em que firmasse a sua vontade, que se ia quebrantando.. --
-- era o que lhe faltava! agora que estava como n'agua!...
Scismava um pouco,
-- mas tambem o commendador era tão aborrecido!... Ás vezes dava-lhe vontade de o enviar ao diabo para que o aturasse -- ... e era galante, uma pequena perfidiasinha..., --
O Alberto principiou a perseguil-a; offerecia-se com um grande cynismo indigno, apparecia-lhe em toda a parte, passava vagarosamente recostado n'uma "victoria" de praça por debaixo da sua janella.
Resistira-lhe muito tempo, mas -- elle era teimoso, ella não o ignorava -- e pouco a pouco amollecia n'aquella resistencia de vingança.
-- Alem d'isso escrevia-lhe, protestava-lhe que não era feliz, que nunca mais tivera um momento de santa alegria desde que rompera as relações com ella...
-- já o tinha desesperado bastante, o pobre rapaz,
sentia uma necessidade d'aquellas convivencias estroinas, que o commendador condemnava, com o seu ar pacato, o bom conselho d'uma prudencia moderada, -- de que os excessos prejudicavam a saude -- e além d'isso mordia-a a curiosidade de saber d'Alberto as intimidades da sua vida, das suas relações com aquella outra, por quem elle a havia trocado, que lhe chamava seu com tanta segurança. --
E quando á tarde o Alberto passou recostado nas almofadas da "victoria" um sorriso lhe escapou dos labios, fugitivo como uma promessa de perdão, suave como uma esperança de paz.
Tiveram em seguida todas as palpitações quentes do romance; o Alberto vinha quando o commendador não estava, sahiam disfarçados para o campo, tinham as suas ceias no gabinete azul de mobilia estofada, quando a "criada" despedia o brazileiro sob o pretexto d'um grande encommodo de cabeça, de que a menina fôra acommettida.
Annita achava tudo aquillo muito natural; partilhava o seu corpo entre os dous com uma rectidão segura de consciencia, como quem cumpre um dever de mercenaria e uma imposição do coração, espreguiçando a alma n'esta bonhomia deleitosa, contente por se ver rodeada d'um conforto, que tanto desejara.
O Alberto porém indignava-o aquella sociedade ignobil com o ouro do commendador; parecia-lhe pouco decente servir-se d'uma mulher que outrem sustentava, não porque elle achasse o facto indigno como um attentado contra um principio de honra, mas porque era realmente reles não poder sósinho sustentar todo aquelle luxo d'uma amante, ter de privar-se de certas liberdades, occultar-se timidamente como um estudante de dezoito annos. --
Meditava por isso um golpe de mestre; mordia-o a vileza das ambições de fortuna, e desejava ser rico dentro de pouco tempo, custasse o que custasse. --
Achava-se abjecto diante d'aquella secretaria, onde escrevia, quando no gabinete da thesouraria do Banco negociantes entravam e sahiam, ouvindo-se dentro o tilintar sonoro do ouro, os algarismos precipitando-se em accumulações estonteadoras.
-- Tentou as falsificações d'umas lettras de cambio; a fortuna protegeu-o, ninguem deu por tal; a felicidade deu-lhe azas á audacia, procurou fazer a imitação d'uma firma que assignava uma lettra no valor d'alguns contos de reis.
Mas a direcção apercebeu-se a tempo; chamou-o ao gabinete.
-- Estava despedido e não o mettiam n'uma cadeia por consideração para com a pobre senhora filha d'um collega. --
Empallideu. Nem podia dizer se era de raiva, se era de dor; -- aquella despedida desbaratava todos os seus castellos doirados, sentia-se pusillanime diante da perspectiva da vida de tribulações que se abria na sua frente.
E quando chegou a casa, um forte abatimento o prostrava, quebrando-lhe toda a energia; annunciou a sua despedida ainda com um ar de ironia...
-- Sabes, Lili, aquelles senhores do Banco, uns figurões "honrados", despediram-me. --
-- A ti!... perguntou surprehendida, --
-- Sim, a mim, não lhes fazia lá conta; achavam-me demasiado tolo para comprehender as suas gentilezas... --
Ermelinda teve a boa coragem consoladora das mulheres dignas; parecia-lhe até que d'ora em diante o amaria mais, achar-se-ia com mais força para se sacrificar por elle e levantava-o na ara do seu coração por ter sido um homem honrado, que não quizera compartilhar as indignidades d'uns ladrões engravatados.
-- Ora não te afflijas, seremos um pouco mais economicos, emquanto te não empregares de novo, --
Um enternecimento brando lhe dilatava a alma, acarinhando-o muito, beijando-o affectuosamente na fronte, a sua mão cofiando-lhe o cabello negro como que a excital-o corajosamente para as novas luctas, a palavra derramando-se untuosa como um balsamo por sobre aquelle golpe da adversidade.
Adormentava-o na dor, communicando-lhe a grande força da sua fé, conscia de que praticava formosamente um dever, o coração sentindo-se transbordar de sentimentos meigos e carinhosos, com que desejaria n'aquelle momento alastrar o chão da sua existencia, tornando-lh'a suave como um velludo.
Mas o Alberto achava-se ridiculo n'aquella posição; mordia-o cada vez mais a inveja de fortuna, tinha sêde d'uma vingança estrondosa, em que podesse abater o orgulho dos ricos que agora se affastavam d'elle; queria sobre tudo humilhar -- aquelles pulhas do Banco.
Quasi o importunavam os extremos de carinho que sua mulher lhe dispensava, e na sua imaginação excitada por aquelle insuccesso levantavam-se novos castellos de Hespanha, jogaria forte, o ouro viria como uma grande torrente que o innundasse:
-- faria um partida valente aos honrados burguezes, o commendador seria a primeira victima, tirar-lhe-ia definitivamente a Annita, installando-a n'um luxo de bom gosto, pompeando com a formosura d'ella por sobre a gula concupiscente dos pelintras, que adornavam a porta do Suisso. --
Á falta d'uma occupação que lhe gastasse o tempo pavoneava-se pelas mezas dos cafés, pelas esquinas das tabacarias, n'uma grande ociosidade vadia, commentando as pequenas intrigas de theatro, o escandalo ultimo, a marcha politica dos acontecimentos. E á noute a baeta verde chamava-o com fascinações irresistiveis; recolhia tarde, quasi sempre de madrugada, quando os lampeões principiavam a apagar-se, e que o movimento dos operarios começava ruidoso, o silvo agudo das fabricas vibrando atravez da neblina esfumada da manhã. --
Ermelinda esperava-o com mansa resignação,
-- que lhe faziam mal aquellas noitadas, se não tinha pena d'ella que ficava tão sósinha, -- que a Rosina tinha despertado duas vezes e perguntado pelo papá. --
Respondia-lhe com azedume, uma nortada rija,
-- que o deixasse, não estava para a aturar. --
Cahiam-lhe no espirito aquellas palavras mansas e cordatas, queimando-o como um cauterio de dever, preferindo que ella tivesse aquellas resistencias asperas, aquelle tom acrimonioso das questões d'outr'ora. Julgava esta mansidão uma hypocrisia, um egoismo refalsado:
-- Como não tinha o paesinho que lhe aquecesse as costas, era aquillo, tudo palavrinhas doces. --
E deitava-se brutamente fatigado, indifferente áquellas caricias que o provocavam, aos affagos da pequerrucha que vinha muitas vezes beijal-o com a alegria infantil das creanças, que despertam cedo.
Mas o jogo ia levando as economias de Ermelinda, o dinheiro escasseava, recorria-se um pouco ao credito; o Alberto protestava ressarcil-a de todas as perdas da occasião e pedia-lhe as joias com uma suavidade lamuriosa, --
-- que tinha entrado n'umas transacções que lhe dariam um lucro certo, esperava obter um emprego com aquelle dinheirito -- fazia muitos planos, um futuro delicioso em que ella e a filha tomavam a maior parte.
-- Levasse-as, levasse-as, oxalá déssem o resultado que elle desejava. --
Mas as joias entravam logo n'uma caixa penhorista; o Alberto jogava o dinheiro, pagava ceias, levava vida folgada emquanto durava o producto da venda.
Uma madrugada em que de vespera tinha empenhado uma d'essas joias, entrou em casa ébrio, cambaleando, uma phraseologia de bordel cumprimentando Ermelinda.
Foi preciso que a creada, juntamente com ella, o viessem auxiliar ao subir da escada. Mas elle protestava --
-- que não estava bebedo, apenas um poucochinho entrado -- e pedia um beijo á criada, uma trigueira que parecia descender directamente do chimpanzé, de feições largas, rindo maliciosamente d'aquelle pittoresco Noemico.
E já no quarto, a palavra balbuciante, pedia a Ermelinda:
-- que se lhe sentasse nos joelhos, haviam de fazer uma pirraça ao commendador, os dois estariam abraçados quando elle chegasse. Uma grande risada, estendia os braços tremulamente para a alcançar, fallando-lhe com uma alegria inconsciente.
-- Sempre o mesmo demonio, esta "gatinha parda", que viesse!... então... e a nossa filhinha, coitadinha da pequerrucha... que morreu --
e desatou a chorar, a embriaguez cahindo rapidamente n'um periodo comatoso, a palavra rareando, as phrases tartamudeadas.
Ermelinda sentiu uma pallidez branca invadir-lhe a face; revoltava-se de nojo perante aquelle homem, que via ébrio, patenteando na sua inconsciencia a alma lodacenta, que ella porfiava em regenerar, em attrahir para si.
-- Oh, não, não era possivel, tudo estava acabado para ella. --
Mas ao mesmo tempo que se revoltava, sentia uma grande commiseração por aquelle desgraçado, uma vontade de se sacrificar para poder salval-o, um desejo sincero de perdoar, amando-o muito.
-- Quem sabe, ás vezes qualquer cousa lhe podia fazer mal. Esgotemos o calix até ás fézes, tratemol-o bem, tem-se visto tantos exemplos... --
Armava-se com raciocinios pacientes, encadeando-os logicamente, tirando do seu coração de mulher energias com que resistir e vencer aquelle estado, que se lhe affigurava anormalmente transitorio.
O Alberto porém ia perdendo o respeito pela casa; repetia a miudo aquellas scenas de embriaguez, principiava a ser grosseiro, d'uma grosseria enodoada de taberna.
A sua paciencia de mulher esgotou-se, recalcitrou fortemente, impugnou-o com azedume.
-- Até que emfim a "santinha" arremessava a capa -- respondeu-lhe com ironia.
-- que não era santa, estava bem longe de o ser, mas que a paciencia tinha limites, um grosseiro, isto fazia desesperar, --
-- que repetisse, que repetisse, -- e crescia para ella, a face affogueada na congestão do alcool.
-- Não era elle que fallava, tinha desculpa. --
-- Ah, não, não era elle, pois tomasse lá -- e esbofeteou-a precipitadamente, arremessando-a contra um movel, animalmente feroz, a colera faiscando no seu olhar injectado, toda a serenidade perdida.
-- Era um inferno aquelle viver assim, infame! --
-- Não o irritasse mais, se queria os ossos direitos.
-- Não, aquillo assim não podia continuar.
-- Quando quizesse, até lhe fazia um grande favor.
-- Se o meu papá fosse vivo!...
-- Assobia-lhe agora, dize-lhe que te venha ca valer. --
Ermelinda empallideceu; e logo uma onda de sangue a escaldou, uma indignação que a suffocava. --
-- Demais a mais cobarde, a insultar um morto que lhe tinha feito bem; era revoltante! -- os seus pensamentos atropellavam-se, como creanças inscientes de um perigo, que se acotovellam sobre a aresta d'um precipicio. Debruçava-se sobre a sua dôr intima e uma grande escuridão sombria, onde apenas lucillava humilde a estrella do seu amor de mãe, se estendia diante dos seus olhos.
-- Era preferivel matar-se! -- dizia.
Mas a imagem de Rosina levantava-se, como uma margarida branca a indicar-lhe a grande lucta da vida; e foi d'ali abraçar-se n'ella demoradamente, os olhos copiosos de lagrimas:
-- Minha filha, minha pobre filha. --
Estas scenas continuavam; viviam mal, o Alberto, perdido uma vez o respeito por ella, usava d'uma violencia brutal pela mais leve questiuncula. Não queria que lhe exprobrassem o seu procedimento, e Ermelinda tinha muitas vezes de fechar-se no quarto com a filha para escapar á irritação da sua colera, do seu "mau vinho". Um dia porém levou o insulto mais longe; foi o cumulo dos opprobrios para ella; trouxe-lhe a Annita, offereceu-lhe de jantar, fez com que Ermelinda a servisse, obrigando-a pela ameaça da força.
-- Oh, era de mais, era de mais tambem -- dizia amargurando-se, imbelle para romper com elle, para fazer valer os seus direitos, para se fazer ao menos respeitar dignamente.
-- que lhe batésse, perdoava-lh'o já, mas apresentar-lhe aquella mulher em casa, obrigal-a a ser sua escrava, ver sobre o pescoço d'ella uma joia que fôra de sua mãe, -- não, não podia resistir --
mas quebrava nas lagrimas a sua reacção corajosa, não sabia mesmo o que havia de fazer, causava-lhe medo o ver-se depois isolada, sem forças para luctar, sentindo-se fraca e impotente diante do mundo que ainda talvez a condemnasse. --
Emmagrecia rapidamente, a sua formosura emmurchecida pelos dissabores e soffrimentos physicos, umas olheiras roxas occupando metade da face.
-- Sahiria, iria tomar conselho com alguem, queria desabafar, não podia mais! --
E procurou a D. Clementina; encontrou-a a brincar com o Tótó, muito folgada na sua vida de solteirona, as carnes cada vez mais dilatadas n'um contentamento de nutrição feliz.
-- Oh, mulher, tu parece que vens do Repouso!
-- Antes lá estivera, que não seria tão infeliz!
-- Desabafa, menina, desabafa. --
-- Oh, Pulcheria -- chamou para a criada -- leve a menina e dê-lhe biscoutos -- era preciso ter cautella em fallar diante de creanças -- dizia prudentemente.
-- E então a Rosina que era tão viva. --
-- Pois por isso mesmo; então menina, conta lá. --
Fez-lhe uma confidencia completa; narrou-lhe dolorosamente a inutilidade dos seus enthusiasmos em o regenerar, as suas noites perdidas, as violencias de que era victima
-- que visse, -- e mostrava-lhe os braços com largas echymoses, como nodoas de tinta postas na tez assetinada. --
-- Mas isso é um horror, filha, tu não pódes continuar a viver com esse monstro.
-- E ainda aquillo não era nada, que fosse vendo, que fosse vendo -- descobria-lhe o corpo, n'um impudor precipitado, nodoas roxas apparecendo a macular a brancura da pelle.
-- Mas eu tudo lhe perdoaria, tudo! a ultima, porém, que elle me fez, a de me levar a casa aquella maldita mulher, obrigar-me a servil-a, oh! D. Clementina, eu na presença d'ella não chorava, não lhe queria dar esse prazer; mas depois, quando estive só, as lagrimas eram como punhos, queimavam-me.
A D. Clementina enternecia-se, consolava-a com brandura, tinha para suavisar-lhe aquellas dôres palavras dôces, d'uma ternura lacrimosa, chorando tambem. --
-- Mas nem mais um dia com esse homem! é tratar da separação, e isto já, antes que elle te dê cabo do que é teu e da tua filha; ainda que não fosse senão por causa da pequena, que está a ser escandalosamente roubada, e depois que exemplo!... bradava ao ceu. --
Ermelinda tinha objecções fracas, adversativas hesitantes...
-- mas que diria o mundo...
-- o mundo, ora não faltava mais nada; estar uma victima ali debaixo do jugo do carrasco e ainda por cima havia de fallar! que lhe importava a ella! Com elle escusava tentar a felicidade, era remar contra a maré. --
-- sabia isso, mas tão só, que vergonha!... e depois que posição a sua! Nem solteira, nem casada!... Uma cousa assim! --
Mas a D. Clementina tinha a coragem da reacção, communicava-lhe energia
-- fosse ella homem e veria se a não fasia já assignar um requerimento ao juiz!... mas iria ella mesmo a um advogado! Não, que eu fui muito amiga de tua mãe, isto é, -- considerou -- ella era um pouco mais velha do que eu. --
-- se eu tivesse pae, D. Clementina. --
-- mas não tens, acabou-se, d'ahi não vem agora o remedio!... Descansa que eu ámanhã lá vou a tua casa; boa! eu te direi o que tens a fazer!...
Sentia-se contente do seu papel activo, uma solução rapida a todos os obstaculos, uma consciencia da sua imprescindibilidade, detalhando planos com uma volubilidade agitada, communicando-lhe uma excitação de energia, chicotando a sua mollesa hesitante e irresoluta. --
-- Tu verás, tu verás como tudo ha-de correr bem! É preciso pôr termo a esse martyrio. --
E quando a Ermelinda sahiu, a D. Clementina sentou-se a uma escrivaninha, fez um pequeno bilhete n'uma calligraphia miuda e redondinha, e chamando a Pulcheria:
-- Toma, vae levar isto ao hotel, ao Snr. commendador.
-- Ao Snr. commendador!
-- Sim, então, fica-te ahi pasmada se te parece! --
O commendador palitava os dentes, recostado n'uma cadeira de braços, muito satisfeito da sua digestão regular; o criado veiu:
-- que a moça da D. Clementina tinha entregado aquillo. --
-- Me não larga a carioca -- pensou o brazileiro.
E abriu o bilhete; uma pallidez leve o invadiu, ficou immovel; e logo, levantando-se, uma resolução tomada...
-- que dissesse á criada, que lá ia já. --
Veiu para o quarto, releu de novo; a D. Clementina dizia-lhe:
«Peço-lhe o obsequio de me vir fallar immediatamente; trata-se de arrancar a pobre Ermelinda a um martyrio cruel.»
-- Mas que martyrio será este, ein?... --
-- o marido talvez... me recordo agora que o Jorge ao morrer me disia que ella não era feliz... ha-de ser isto, ha-de... pois cumprirei a minha palavra... apesar de que a gente metter-se entre casados... veremos, veremos... a D. Clementina me explicará!... É mulher para revolver meio mundo. --
E apresentou-se em casa d'esta; atacou-o ex-abrupto.
-- Contei comsigo e parece-me ter feito bem...
-- Oh, minha senhora!... --
-- Eu lhe digo, se eu fôra homem, trabalharia só, assim não me é possivel. --
-- Mas estou inteiramente á sua disposição.
-- Trata-se de obter o divorcio de Ermelinda.
-- Mas isso é negocio tão grave -- atalhou o commendador. --
-- Por isso mesmo é que precisa ser resolvido e de prompto... desculpe-me, eu nem lhe roguei que se sentasse, mas tenho as ideias tão confusas... --
O commendador tomou logar no sophá; o Tótó rosnava roçando-lhe pelas pernas.
-- Oiça, ella esteve aqui ha um instante; é uma martyr, a pobre creatura! se lhe visse o corpo... tudo são manchas de pancadas, nodoas negras que o senhor não imagina. --
-- Mas isso é uma barbaridade!...
-- É, é, e para evitarmos que um dia qualquer aquelle monstro a mate, é que a auxiliaremos na separação; é capaz de tudo o maldito!... E depois se fôra só isso!...
-- Então ainda ha mais?
-- Olhe, vai bebado para casa, altas horas da noite, insulta-a, injuria-a, tem-lhe dado cabo das joias, aquella casa está pela agua abaixo.
-- Me espanta tudo isso que diz; não haverá exagero?!
-- Exagero, exagero! Nós as mulheres só nos revoltamos, quando mais não podemos soffrer; se a visse ha pouco, como eu a vi, está mirrada a pobre da rapariga; não tem feito senão chorar!
-- Me commove o seu estado, creia, D. Clementina! --
-- Podera não, só se o commendador não tivesse coração!... E ás vezes parece não o ter -- disse n'uma queixa d'amor não correspondido. --
-- Oh, minha senhora.
-- E sabe o resto, o que lhe fez aquelle infame!
-- Pois mais!...
-- Ouça e verá! Outro dia, elle anda para ahi a trote com uma mulher á tôa, uma Annita, a quem chamam a "Gatinha parda"! --
O commendador compoz os oculos com uma certa precipitação, ruborisou-se-lhe o rosto n'um carminado subito; abaixou-se para fazer uma festa ao Tótó, a primeira que lhe fasia em sua vida.
A D. Clementina continuou:
-- Pois outro dia teve o descaro de entrar com ella em casa, de lhe dar de jantar, de faser com que Ermelinda servisse a tal grande senhora.
-- Oh, é de mais, é de mais -- rompeu o commendador pondo-se em pé...
-- Já vê que a pobre martyr não póde continuar a viver com aquelle verdugo.
-- Não, não póde continuar, fez bem em me chamar; auxilial-a-hei em tudo o que possa; cumpro mesmo com um dever; o Jorge tinha-me dito que ella não era feliz, mas a morte veiu, não teve tempo de se explicar. --
-- Pois ahi está tudo explicado.
-- Infelizmente!... Mas ainda hoje eu irei fallar a um advogado, ein, e lhe protesto que ella se libertará d'aquelle despota.
O espirito do commendador nunca se sentira tão agitado, como desde aquella revelação da D. Clementina; por um lado, no seu coração uma chamma d'amor relampejava, inflammando na sua labareda todas aquellas recordações semi-extinctas que o tinham feito pensar em Ermelinda, como um ideal que se não attinge,
-- o baile da casa do Mendes, as noites da sueca, o debruçar do seu corpo gentil nos braços d'elle, quando o Jorge fallecera, esta scena sobre tudo, perpassavam-lhe na imaginação com um colorido quente e vivo, como se ali refervessem ondas tumultuosas de vapor, que não tivessem por onde se escapar.
E depois a revelação de que a Annita o trahia escandalosamente,
-- ella, a quem elle tinha levantado da miseria, a quem dera sêdas e brilhantes, a quem montara uma casa com todas as commodidades do luxo, -- para outro gozar, afinal --
-- ah, era de mais! -- protestava -- e vingar-se-ia, vingar-se-ia estrondosamente, despedil-a-ia como quem despede uma escrava, sentindo apenas que não podesse cortar-lhe as carnes com um bom chicote, como no Brazil se fazia aos negros! e a elle então tirar-lhe-ia a mulher como uma boa desforra, desmascarar-lhe-ia aquella refalsada hypocrisia, daria uma publicidade grande á sua infamia, exhaltando a martyr, e depois quem sabia -- talvez que no coração d'ella brotasse um perfume de gratidão e amor!... apesar de que a lei condemnava-a brutalmente a um celibatario perpetuo, uma lei estupida, que a collocava n'uma posição violenta e falsa, fechando-lhe a felicidade como um pomo vedado, -- mas veriamos, veriamos. --
Foi d'ali ter com um advogado.
-- Ella que requeresse, que requeresse, allegasse as violencias, os maus tratos, as infamias do marido, paragrapho 4.º do art. 1204 do codigo, elle dava-lhe já a norma, e não arrefecessem, conhecia bem aquelle patife, um vadio que todos despresavam; se sabia a historia do banco,
-- Não, não, ignorava...
-- Pois tinha-se querido abotoar a creança, uma falsificação de firma, a coisa abafara-se em attenção á pobre senhora...
-- Ainda mais essa!... se admirava de tanta audacia!...
-- É como lhe digo, e não descanse, não descanse. E o melhor será tambem que ella requeira o deposito, o patife é capaz de acabar com ella. --
Sahindo do escriptorio do advogado o commendador começou a delinear o melhor plano de se desfaser da Annita; lembrou-se primeiro d'um lance dramatico
-- elle iria, surprehendel-a-ia em flagrante, despedil-a-ia com violencia, seria inexhoravel, impetuoso como um tufão. --
Mas a prudencia aconselhava:
-- que a cousa podia tornar-se escandalosa, com aquellas mulheres tudo era de esperar, depois um conflicto com elle, nada, nada, o melhor era dar ao diabo tudo aquillo, despedir-se por uma carta, não querer saber d'ella para mais cousa nenhuma; faria de conta que tinha perdido aquelles cobres, não lhe fasiam falta, graças a Deus! e livrava o seu nome de compromettimentos, era melhor, muito melhor... --
Onze horas da noite, a Annita recostada n'um sophá, o Alberto com a cabeça poisada nos seus joelhos, o fumo d'um charuto a espreguiçar-se voluptuosamente, como um thuribulo que a perfumasse, sentiu a criada bater uma pancadinha na porta do gabinete.
-- Que é? -- perguntou contrariada.
-- uma carta com toda a urgencia.
Levantou-se, o Alberto ficou a vel-a caminhar, um movimento gracil na linha dos quadris, os braços nús sahindo provocadoramente das mangas rendilhadas da camisa. --
-- Então cartinhas a esta hora e urgentes, ah!... trahe o seu Albertinho, ora deixe estar. --
-- Oh, filho, não me bacoreja coisa boa.
Annita abriu a porta; viu-se a criada a estender uma carta, e fechou logo, um saltinho de "travesti" indo poisar n'uma banqueta que estava aos pés do Alberto.
-- Lê tu, filho. --
O Alberto tomou a carta.
-- Eu conheço esta lettra com toda a certesa... vejamos a assignatura, ah, é de S. Ex.ª o commendador -- disse ironicamente,
-- que não pôde cá vir, oh, que pandega, dormes cá, está dito; vou dizer á Emilia que traga "sandwichs" e champagne. --
-- Espera lá, espera lá. -- E o Alberto ao lêr, sentia-se tomar d'uma pallidez desesperadora. --
-- então!
-- ouve: -- «Minha Senhora»
-- Ora essa, nunca me tratou assim. --
-- não me interrompas, com todos os diabos!
-- credo, que cara a tua!
-- ouve lá: -- «Sabendo do seu comportamento indigno a meu respeito, envio esta carta como uma despedida formal na occasião talvez em que o seu amante a possa lêr.
Faria.»
-- Bonito, sim, senhor!... Eu sempre esperei isto d'aquelle carioca! Não diz mais nada?
-- Um post-scriptum.
-- Ah, que diz?
-- «P. S. -- Tudo o que existe n'essa casa lhe fica pertencendo; não mais desejo que me procure.»
-- Tó rola, eu procural-o depois d'uma d'estas! --
E enlaçando o pescoço do Alberto:
-- Oh, filho, agora sim, que somos livres. --
O commendador era d'uma actividade zelosa e multiplicada; conferenciava com a D. Clementina, consultava o advogado, fallava ao juiz, convidava o Mendes e o Dr. Roberto para membros do conselho de familia.
O Mendes ainda lembrava:
-- a conciliação... seria bom concilial-os... aquillo ás vezes era o diabo. --
-- Nada, nada, estava reconhecido que elle era um grande tratante; era preciso salvar a pobre senhora e a filha! que havia de ser da creança com aquelles exemplos! não lhe diria! --
-- visse na que se mettia! por elle estava prompto a acompanhal-o. --
O Doutor concordava tambem:
-- era um triste remedio, mas era infelizmente o unico; ella ficaria n'uma posição falsa, evidentemente falsa, condemnada pela brutalidade da lei a um ostracismo perpetuo, inutil para a sociedade, como aquellas antigas martyres que morriam entaipadas, mas que se lhe havia de fazer? o indispensavel era poupal-a ao menos ás violencias d'um infame. --
Poucos dias depois ás onze horas da manhã uma carruagem parou á porta do Alberto...
Sahiram dous homens e uma senhora ficou ainda.
Eram o juiz e um escrivão.
N'aquella manhã o Alberto recolhera tarde de casa d'Annita; o seu espirito andava irritado com as contrariedades que de toda a parte o rodeavam, e cheio de um mau humor canalha tinha ainda pouco tempo antes espancado brutalmente sua mulher.
O juiz encontrou-a ainda com os olhos humidos de lagrimas, as palpebras inchadas.
O Alberto, quando o magistrado se fez annunciar, sentiu-se invadir d'um terror cobarde; foi todavia amavel, d'uma amabilidade ironica, quando teve de dirigir-se a Ermelinda,
-- Se ella quer...
Ermelinda chorava, a Rosina chorava por ver chorar a mãe, e nos seus olhos limpidos, um espanto se desenhava como que adivinhando que alguma cousa de grave se estava passando.
Ermelinda hesitava; mas depois, como uma onda que se arremeça precipitadamente na praia:
-- Sim, senhor juiz, a fatalidade a isso me obriga; vou, acompanhal-o-hei, mas hei-de levar a minha filhinha!
-- Prepare-se então, minha senhora, a sua filha irá com V. Ex.ª, a lei authorisa-me essa providencia; o seu deposito provisorio far-se-ha em casa da D. Clementina. --
O Alberto perdeu a serenidade.
-- Eu logo vi que havia de ser esse bandalho. --
-- Lembro ao cavalheiro que está diante d'um magistrado, -- observou-lhe severamente o juiz.
Ermelinda sahiu para voltar logo; trajava de preto, um véo descido, as lagrimas a saltarem silenciosamente dos seus olhos, a filhinha pela mão,
-- Então nós vamos embora? -- perguntou a Rosina.
-- vamos, filha, para nunca mais voltar. --
-- quero levar então as minhas bonecas.
O juiz affagou-a:
-- A mamã dará outras depois --
e voltando-se para Ermelinda:
-- V. Ex.ª não quer mais nada d'esta casa?
-- não, senhor juiz, estou prompta.
-- n'esse caso partamos. --
A filha do Jorge sentia-se fraca, o espirito abatido diante d'aquelle momento, que ia cahir, como a louza d'um tumulo, sobre toda a sua existencia, apagando-a para a felicidade; a Rosina sentia tremer-lhe a mão e ao ver que a mamã continuava a chorar, os seus olhos d'uma candura d'anjo mareavam-se de lagrimas tambem.
O juiz esperava, um ar sereno, de gravidade compungida.
Ermelinda fez um esforço; dirigiu-se ao marido, apertou-lhe a mão.
-- Adeus, Alberto, sê feliz e perdoa-me! --
-- adeus, senhora -- respondeu seccamente.
A Rosina perguntou espantada:
-- O papá não vem?
-- não, filha, dá-lhe um beijo. --
O Alberto levantou a creança, beijou-a nervosamente, uma lagrima de emoção rolou precipitadamente sobre a sua face.
-- Adeus, filhinha!...
O juiz interveio:
-- Vamos, senhora, poupe-se a estas scenas dilacerantes.
Desceram a escada; o Alberto viu-os descer, a Ermelinda primeiro com a filha, depois o juiz, atraz o escrivão.
Uma voz de mulher, que vinha da rua, repercutiu na escada.
-- Coragem, menina, estás livre d'esse monstro! --
Era a voz da D. Clementina. A carruagem rodou, n'um murmurio fremente de calçada.
Passada a emoção de momento, o Alberto passeava phreneticamente no gabinete.
-- Então, ein, não fui comido! Tudo se conspira contra mim com mil diabos!...
Pensamentos de vingança, d'uma desforra estrondosa, lampejavam no seu cerebro escandecido; acalmava porém, reflectia:
-- E agora era tirar de tudo o melhor proveito! que a levasse o demonio! lá á pequena tinha-lhe um bocado de amisade, mas adeus, isso passava. --
Ideias se encadeiavam n'uma associação tumultuosa, e a sua reminescencia avivava as lembranças do passado, o namoro com ella, o casamento, que -- tinha sido afinal um logro porque tinha menos do que elle pensava --
a sua lua de mel, as primeiras questões, o seu emprego no Banco, a morte do Jorge, a reconciliação com a Annita.
-- eu fui um bocado violento, devemos confessar, -- mas com um raio, não era para me fazer isto! -- comparava-a com a Annita, que o tinha aturado um anno, vivendo na penuria, levando a sua dose, de quando em quando, e afinal uma mulher de cunho, amando-o sempre, uma escrava dos seus caprichos,
-- e vou-me até lá, trago-a para aqui... e viva a Gatinha parda, com mil diabos; muito se vae ella rir de toda esta trapalhada!... parece uma comedia, hei-de lembrar ao Luiz Serra que faça de mim um personagem... --
Fluctuava já indecisa a imagem d'Ermelinda; esbatia-se na sombra diante da figura arrebicada e "travessa" da Annita, -- que riria muito, e pediria champagne para festejar a sua liberdade d'elle. --
-- Vida airada, e nem se lembrava de tal! já devia ter sido ha mais tempo. --
Não o commovia o isolamento da casa; habituara-se desde muito ao seu egoismo n'aquelle meio que quasi lhe era estranho; não sentia a falta dos carinhos da espoza, nem das tranquinadas da filha que o aborreciam! O que elle queria era dormir, descançar, quando vinha de fóra, -- aquelles seres que se moviam em volta d'elle affiguravam-se-lhe sombras fluctuantes, como as visões de sonhos incompletos! E agora parecia-lhe que tudo se havia desfeito, evaporado, abrindo a janella da sua gelosia, vendo entrar o sol da liberdade n'uma poeira luminosa e embriagante.
Foi d'ali direito para casa d'Annita; encontrou-a ainda na cama, uns habitos preguiçosos de "cocotte", deshonrando-se, se tinha de por-se a pé antes da uma hora.
Sentou-se na margem do leito.
-- Sabes Annoca, estou sem mulher!...
-- sem mulher, conta lá isso -- e sentou-se, o corpo recostado na almofada, a camisa de rendas finissimas cahindo n'uma voluptuosidade preguiçosa por sobre a redondesa dos seios, as espaduas nuas, o collo levantando-se n'uma linha correcta d'uma côr leitosa e velludinea. --
Narrou-lhe tudo minuciosamente, com todos os incidentes; e no fim a Annita, muito galhofeira, o corpo rebolando-se no leito, descobrindo-se n'uma provocação concupiscente.
-- Ah, ah, oh, deixa-me rir; com que cara não havias tu de ficar, e dou-te os meus sentimentos, menino, dou-te os meus sentimentos; eu tambem estou sem homem! --
Ria muito, umas gargalhadas limpidas, espadanando-se de encontro áquelle caso tão serio, comparando a situação dos dous,
-- nem de proposito, só a nós!...
-- mas que graça lhe encontras tu!
-- graça, pois não tem!... a modo que ficaste com pena... a Gatinha tem ciumes, ouviste!...
beijou-o no pescoço, mordendo-o sensualmente, uma provocação excitando-o, cheia d'umas caricias felinas.
-- E estamos livres outra vez, é como d'antes!... agora sim que me agrada isto!.... Vamos ser um do outro para sempre... valeu?
-- Valeu, com mil demonios -- e enlaçou-a nos braços, queimando-se na quente languidez d'aquelle corpo, o olhar esvaecendo-se n'aquella nudez appetitosa, d'um trigueiro rosado, uma pennugem negra maculando-a.
Alguns dias depois, no tribunal, em audiencia secreta, tinha logar o julgamento da acção, que separava definitivamente de pessoa e bens os conjugues Alberto de Sá e Ermelinda Jorge.
Estavam o Commendador, o Mendes, o Dr. Roberto, o Luiz Serra e o Guilherme, cazado com a Amelinha Bastos, e ainda o Juiz, o escrivão, o delegado do ministerio publico, os advogados.
Ermelinda estava com a filha a um lado, Alberto a outro, uns bellos ares contristados d'uma gravidade composta.
Recolhidas as testemunhas o juiz dirigiu aos dous palavras prudentes de conciliação, d'uma severidade amiga e triste.
Mas o Alberto protestou logo, --
-- não, que pela parte d'elle não desejava tal conciliação, seria uma indignidade, quando fôra ella que requerera o divorcio. --
Ermelinda por sua vez dizia:
-- que bastava de martyrio, que esgotara o calix, não desejava de novo unir-se a elle; uma vez dado aquelle passo não voltaria atraz. --
As testemunhas então vieram depôr; a D. Clementina e a Joaquina especialmente foram eloquentes, d'uma convicção odiosa contra "aquelle senhor", que era peior que um selvagem -- dizia a ex-criada vingando-se d'aquelles bofetões, que a tinham despedido.
Os advogados fallaram, uma rhetorica eloquente, sobretudo o advogado d'Ermelinda, a quem o commendador promettera uma boa recompensa; e em seguida o juiz, os vogaes do conselho de familia, o ministerio publico, o escrivão recolheram-se a uma sala de conferencias, votaram a separação.
Depois, por um accordo reciproco, convencionou-se que a filha ficasse com a mãe, podendo ir visitar o pae todas as vezes que este o exigisse. A questão de bens tinha pouco litigio; o Alberto fôra desbaratando as pequenas economias do Jorge e alguma cousa que restava concordou-se, que ficasse como subsidio de alimentos e como dote para a pequena.
Vestida de preto, a Rosina pela mão, os olhos cubrindo-se de lagrimas, vexada no seu novo estado, cedendo ao peso da vergonha d'aquelle processo judicial, Ermelinda entrou em casa da D. Clementina, muito commovida, branca de marmore, a voz soluçante.
-- Tudo, tudo acabou!
-- ou elle credo, nem que tivesse morrido alguem. --
-- antes morrera eu, D. Clementina, teria sido mais feliz!...
-- e a tua filha, sim, não me dirás? o egoismo não te deixa ver o que seria d'essa creança sem pae, nem mãe?...
-- Tem razão, tem, é preciso viver para ella; ha-de ter mãe, já que não tem pae -- protestou.
As lagrimas foram rareando; a commoção esbatia-se na vulgaridade dos accidentes chãos, como nuvem que se esfarrapa, aclareando-se, em pedaços do azul; o tempo ia derramando um balsamo doce sobre aquella ferida, cicatrisando-a, n'uma suavidade lenta.
O commendador visitava-a de quando em quando, sempre muito attencioso, um pequeno "bijou" para a Rosina.
-- E porque não vinha mais vezes? -- dizia a D. Clementina, entre suspirosa e affogueada. --
-- seus negocios, seus negocios, mas não as esquecia, tudo que precisassem d'elle, era só dizer; não era homem de palavras, mas nas occasiões alli estava prompto. --
Ermelinda confirmava --
-- que lhe era muito grata, se não fôra elle e a D. Clementina, quem sabe, talvez já não existisse. --
-- e sabe noticias d'elle? -- perguntou a D. Clementina. --
-- mas seria melhor que não fallassem n'isso, -- observava -- fôra viajar, segundo lhe tinham dito, creio que com uma mulher á tôa. --
O rosto d'Ermelinda rosou-se levemente; um rubor de ciume, -- e os seus olhos quasi supplicaram ao commendador que a poupasse áquellas narrativas, --
-- mas não fallemos n'isso, nem vale a pena, -- obedeceu o brazileiro. --
Ia intrigado d'aquellas visitas, commovia-o o estado triste d'aquella mulher; uma onda de commiseração, que não estava longe do amor, principiava a enternecer-lhe fortemente a alma, com desejos impetuosos d'uma tyrannia cruel. Rareava por isso as visitas.
-- não queria que ella perdesse por sua causa, e depois, apesar de não ter marido, tambem não podia casar com ella, uma estupidez da lei --
mas enviava á Rosina lindas "corbeilles" de flôres, "bouquets" de violetas, umas prendasinhas graciosas, que pareciam levar intenções significativas. --
-- O commendador, realmente, -- disia a D. Clementina -- muito amigo é da tua pequena; nunca lhe conheci este affecto pelas creanças. --
-- é d'uma bondade grande, lá isso é, e delicado, tem uma alma generosa debaixo d'aquella apparencia -- disia Ermelinda -- e ficava calada, um pensamento volteando na sua imaginação ociosa, de romantismo desilludido, pensando n'aquelle baile em que pela primeira vez tinha conhecido os dous, o commendador baixo e desgracioso, como um tronco de velha arvore, o Alberto elegante e esbelto como um jasmineiro perfumado, --
-- como as apparencias enganavam -- suspirou. --
Mas a D. Clementina principiou a desconfiar d'aquelles elogios apparentemente banaes; uma pontinha de ciume a mordicava, umas picadas ao arrepio no seu sentimentalismo serodio, e tinha ás vezes respostas enviesadas, um pouco acrimoniosas, de quem está na sua casa, fazendo um favor e recebendo uma ingratidão em troca, isolando-se um pouco nos seus aposentos, pretextando visitas para deixar Ermelinda sósinha, dando-lhe a entender que lhe estava sendo pesada, picando-a no seu orgulho, como entendia que ella a picava no seu amor.
Ermelinda tragava em silencio aquellas desconsiderações que a magoavam,
-- sim, que havia ella de fazer n'uma casa sósinha com a filha?... e depois as despezas! ali não pagava aluguer de casa, nem criada, isto já não era pouco! --
Mas um dia a Joaquina veiu visital-a, encontrou-a a chorar, quiz saber o motivo e ella então contou-lhe:
-- as affrontas que soffria, um sorriso quando estava alguem, mas um mau modo quando estavam as duas, tornara-se impertinente, tinha respostas bruscas que offendiam, parecia que lhe comiam o pão tambem,
-- pois é arranjar uma casinha, olhe, eu já agora não a deixarei; não me dou muito bem com a Amelinha, ella não é má, mas aquillo é um desgoverno, é uma casa de Orates, ninguem se entende ali, cada um pucha para seu lado. --
Convencionaram por fim, em que seria a Joaquina que arranjasse a casa,
-- uma casinha barata, retirada podendo ser; haviam de levar a vida, não tivesse medo -- confortava a boa da criada. --
D. Clementina viu-a sahir com certa satisfação mal disfarçada.
-- que não sabia para que ella fasia aquillo, mas emfim não a impedia, estava mais á sua vontade; e se precisasse d'ella, bem sabia; --
-- nunca esqueceria as finesas que lhe devia, tinha sido uma boa amiga, mas não deveria abusar, não; --
-- bem conhecia que lhe estava sendo um pouco pesada. --
-- se eu fosse muito rica, menina --
-- mas não se despedia dos seus favores, ia trabalhar, precisava de o fazer, e a D. Clementina tinha relações, valer-lhe-ia de muito, uns bordados, obras de cabello. --
-- lá isso, podendo ella, estivesse descançada. --
Abraçaram-se, uns beijos lacrimosos,
-- que se visitariam a miudo: --
Mas as visitas da D. Clementina rarearam; quando lhe perguntavam por Ermelinda, disfarçava mal o seu ciume outomniço, uns desabafos contra a ingratidão, -- que a via agora poucas vezes -- , realmente sahira-lhe uma rôlha. --
E a filha do Jorge ia pouco a pouco cahindo no esquecimento; nem a Mendes, nem a Bastinhos, nem as Gomes, nem as amigas do "hig-life" a procuravam já. Alguma que o fasia era por curiosidade, uma vontadesinha de a humilhar, encommendando-lhe uns trabalhos futeis, --
-- realmente era pouco decoroso conservar relações com uma senhora n'aquelle estado; a sociedade não via bem essas relações, sempre era uma mulher sem posição! E depois, o escandalo d'um divorcio! --
Retesavam-se n'uma honestidade pruriginosa, muito meticulosas na escolha das pessoas amigas, um grande respeito pela moralidade da opinião,
-- não dava honra em verdade conviver com uma mulher divorciada. --
Apagavam-lhe com desculpas banaes a aureola de martyr, que n'um momento lhes dera o syncretismo do sentimento por ella e achavam que:
-- deveria ter tido mais paciencia, não fôra tão mimalho, não se apanhavam moscas com vinagre --
O commendador mesmo, obrigado a partir repentinamente para o Brazil a fim de obviar a uma crise commercial, que o ameaçara, teve de cortar as suas vizitas, em face d'esta força maior.
E era assim que Ermelinda se via gradualmente rechaçada das suas relações, accommodando-se no seu isolamento humilhante, um desejo de ver as outras cahir tambem, azedando-se n'uma fermentação acre de vinganças miudinhas, uma aspiração malquerente para com a sociedade, que a repellia injustamente, a energia quebrantada, amollecendo n'uma lassidão vadia de temperamento, um grande desmazelo de si, a vida figurando-se-lhe um fardo pesado, que tinha de arrastar no caminho ingreme da fatalidade. --
A filha sómente lograva purificar um pouco aquella alma que se corrompia; esquecia-se de si, como os pantanos se esquecem das suas aguas perniciosas, para alimentar a flôr luminosa de mocidade e candura, que se levantava como um lyrio, seivando-se no lodo d'um paul.
O trabalho rendia pouco, comia-se uma parte do pequeno capital, a Joaquina mesmo adoecera com a fadiga, e isto sobrecarregara o estado financeiro da casa; a miseria pairava, como um corvo, que se banqueteia n'um cadaver e Ermelinda sahia raras vezes, receiosa de encontrar uma antiga conhecida que lhe attentasse no vestido surrado, fóra da moda.
Emmagrecia, a sua formosura esvaecendo-se, como uma estrella que descora, o tom quente das faces substituido por um macillento doentio, de pobresa chlorotica de sangue, os bons alimentos que faltavam.
Perdia a energia para o trabalho e quedava-se ás vezes em longas contemplações scismaticas, um confronto do seu presente com o seu passado, a vida amargurada d'agora, com a vida facil e descuidosa d'então, maldisendo o seu destino, sem resignações corajosas para aquelle infortunio, que tinha de devorar ella só.
E apesar de que a imagem da filha vinha occupar, como um clarão amigo, quasi todo aquelle negror da sua alma, sentia que lá ficava ainda uma sombra, um vacuo que o amor de mãe não podia preencher, alguma cousa de desconsolador, que deixava no seu coração um arrepio gelado, como a corrente d'uma noute fria que penetra n'uma sala quente, atravez d'um vidro partido. Uma aspiração se elevava d'uma precisão mal definida, fluctuante e incorporea, como que devendo encher aquelle vasio --
-- Lembrava-se de que talvez a miseria lhe custaria menos se tivesse um companheiro que a comprehendesse e a alentasse, que tivesse para ella um sorriso amigo e carinhoso, que lhe incutisse força n'aquelle peregrinar atravez d'espinhos; --
-- Via tantos pobres felizes!... justamente o seu bairro mostrava-lhe frequentemente d'estes exemplos; morava em frente de si um operario honesto, um ensamblador, que tinha pela mulher uma adoração fanatica; havia dous filhos, uma santa paz, o trabalho alegre como uma benção, e ás tardes, quando elle largava o serviço, via os dous no quintal, á sombra fresca d'uma ramada, bebendo tranquillamente pela mesma caneca de vinho, os pequenos a faserem "hortinhas", uma bonhomia suave, que fasia lembrar um quadro hollandez, e depois o operario estender-se preguiçosamente sobre um banco de pinho, a cabeça no regaço da mulher, que o catava muito de manso, baixando-se a espaços para o beijar carinhosamente na testa. --
Não tirava os olhos d'elles e a agulha cahia-lhe da mão, a imaginação a pintar-lhe um quadro identico, em que ella tambem se baixaria para beijar a fronte pallida do seu marido, a Rosina traquinando com as suas bonecas a um canto do jardim.
-- Como fôra infeliz!... e era preciso tão pouco para se ter a felicidade -- suspirava. --
Quasi tinha inveja áquella mulher honrada e áquelle operario honesto; affigurava-se-lhe uma injustiça aquelle contraste de paz em frente da sua vida de amarguras, e ás vezes, ao vêr que os dous sahiam do quintal, braços enlaçados, rindo muito, alegres do seu amor, uma bafagem quente lhe subia no peito, um desejo incoherente de se sentir beijada nos labios varonis, a reminiscencia avivando lembranças felizes d'outros tempos, a energia do seu temperamento despertando indomita, n'um esfusiar esteril e impotente.
Vinha-lhe porém adjunta a recordação do Alberto, e uma onda tumultuosa de odios represados a dilatava toda. --
-- Nunca mais, odiava-o de morte; um pulha, um miseravel, um indigno que não quizera comprehendel-a, e que lhe tinha roubado para sempre a felicidade! --
-- quando se lembrava que a sua filha era filha d'elle, quasi a olhava com desamor,!... mas não tinha culpa, a pobre creança. --
E ficava n'uma exaltação nervosa, um atropellamento de pensamentos chocando-se violentamente, frenetica, incoherente, passarinhando muito pela casa, respondendo asperamente á Joaquina, repellindo as meiguices da pequena, arremeçando com aborrecimento a costura, tomando um livro para logo o deixar, até que se ia quebrantando este nervosismo, a excitação cahindo n'uma prostração apathica, que terminava sempre por um largo choro copioso, muito mansa e abatida, deitada de bruços sobre o leito, e fechada sósinha no seu quarto.
Foi n'uma occasião d'estas que o commendador, de volta do Rio de Janeiro, a veiu encontrar --
-- tinha-lhe custado saber onde moravam agora, ein, mas afinal se tinha informado bem; e como iam, como iam, a Rosina estava uma senhora --
-- coitada! tinha uma infancia bem desgraçada --
-- n'aquellas idades o que se queria era brincar; mas ella, ella, que a achava muito transformada, se estava doente? -- perguntava carinhoso --
-- doente, não, iria morrendo lentamente, o mundo já para ella não tinha alegrias, --
-- que deixasse lá, era nova! e depois a minina! --
Mas a Joaquina interveio.
-- que não era verdade, não, que ella queria encobrir, que a D. Ermelindinha andava muito doente, nem comia, era mesmo um passarinho de magresa! e depois aquelle desgosto que a matava. --
-- A gente se distrahe. --
-- vão lá fallar-lhe nisso!...
-- oh, Joaquina, cala-te por Deus, --
-- eu cá não tenho papas na lingua; sabe Vossa senhoria, pois é como lhe digo, não que eu tenho-lhe amisade, isso é que ella não póde negar; não sou como essas visitas que "alvoraram" todas, ninguem procura gente pobre!... E vai-se vivendo, Deus sabe como! --
-- Joaquina... então...
-- deixe ella dizer, deixe ella dizer. --
-- e digo, sim senhor; se Vossa senhoria cá tivesse estado, veria como as cousas tem corrido!... Agora nem a D. Clementina por cá pisa, boa... tem medo que lhe peçam alguma cousa; pois se Deus quizer, emquanto eu tiver dous braços, não se ha-de occupar aquella "sastrona"!...
-- Joaquina -- interveiu n'um tom reprehensivo.
Mas o commendador pedia-lhe:
-- que deixasse fallar, que deixasse fallar -- a sua indole harmonisava-se com aquelles desabafos expansivos da Joaquina, -- queria as cousas assim, não era homem do rodeios, pão pão, queijo queijo -- e commovia-se d'uma compassividade altruista por aquelle infortunio, em que as via,
-- Mas estava elle agora alli, não havia de ser assim -- protestava --
-- a Joaquina tinha-se sacrificado muito por ella, a unica pessoa que a não abandonara -- dizia depois Ermelinda ao commendador. --
-- boa criada, não as ha hoje assim! conserve-a, conserve-a sempre.
-- sempre, só se ella quizesse deixal-a; era quasi sua mãe. --
O commendador resolveu desde logo modificar-lhe as condições do seu viver.
-- mas que diria o mundo? não, não acceitava, em tudo se lançava veneno --
-- mas não podia consentir, o seu amigo tinha-lhe recommendado a filha na hora da morte, e depois, elle não tinha familia, dotaria a Rosina, já ella não tinha de que ter escrupulos. --
E principiou a enviar copiosos presentes, mobilia e comestiveis, um rodeio de confortos, sollicito em adivinhar-lhe os pensamentos, conta aberta na modista, uma submissão de escravo em todas as suas acções, alegrando-se de ver como Ermelinda se refasia, um pouco mais rosada já, engordando até, a nutrição sadia agradecendo os bons alimentos delicados, como a flor estiolada agradece o raio do sol que lhe faltava.
-- E não tinha que agradecer-lhe, pelo contrario, elle é que se considerava feliz em poder-lhe fazer algum bem; cumpria religiosamente um dever, andava contente, não precisava de mais. --
Ermelinda porém enchia-se por elle d'uma suave gratidão; o sangue novo que a revigorava, entumescia-a de incongruentes desejos; adivinhava a alma do commendador e sentia-se feliz em ser assim amada, submissamente, como uma rainha, com a adoração respeitosa e fervente d'um fanatico.
-- Como teria sido feliz, se o houvera desposado -- pensava -- que desgraça a sua, em ter conhecido o "outro"! --
-- e elle afinal, a que podia aspirar coitado?!... que falsa posição a sua -- como se lhe affigurava uma indignidade revoltante aquelle "voto" que a sociedade lhe houvera imposto com o processo de separação! --
-- porque não havia ella de ser livre, poder amal-o, poder dedicar-lhe o seu coração tão cheio de boa gratidão, principiar com elle uma vida nova, toda cheia de paz e de carinho, formando uma familia honesta e honrada! --
-- que era ella afinal? nem solteira, nem casada, nem viuva! que lei infame!... e não havia justiça na terra! --
Um circulo de ferro a envolvia de todos os lados, estreitando, diminuindo de raio, esmagando-a dentro d'aquellas interrogativas sem resposta.
E ao commendador, por seu lado, uma nostalgia da vida, tenue como um nevoeiro, o ia invadindo;
-- aquella mulher era o seu desejo, a sua felicidade, o seu bem! mas não abusaria, seria uma infamia! e entretanto a lei quasi o incitava, em face d'aquelle despotismo cruel, que tinha tyrannicamente roubado a liberdade áquella mulher... e porquê, não lhe diriam?... porque ella se tinha revoltado contra um bebado, um jogador, um patife que a espancava, -- era um absurdo, realmente. --
-- e entretanto, conhecia-o, não bastavam á sua natureza forte, aquelles idealismos cavalheirescos de Magriço, que o faziam sacrificar por ella; um grande tedio o aborrecia, aquella pura devoção não satisfazia a anciedade exigente do seu espirito. --
-- E talvez que ella o não repudiasse, presentia-o, o seu olhar fazia-lhe agora mais mal do que nunca, quando o surprehendia a pousar sobre si n'uma quietação contemplativa e muda --
-- era preciso affastar-se, vel-a menos vezes, fazer-lhe todo o bem que pudesse, mas fugir, fugir a final de contas. --
Ermelinda vendo que o commendador distanceava as suas vizitas, sentia-se intrigada, descontente de si, accusava-se de não ter sido mais accessivel, o ar um pouco severo de quem obstinadamente se recusa. --
-- E não, não era por isso -- uma gratidão por elle a envolvia, como uma nuvem de perfumes, e sentia-se bem, quando pensava que d'ella dependia a sua felicidade. --
A sua saude revigorando-se, energias de temperamento se despertavam; habitos adquiridos se reaccendiam em desejos brutaes, instigando a carne, n'uma provocação petulante. E na incoherencia d'estas ideias, que ainda não se vasavam n'uma fórma nitida, a imagem d'Alberto extinguia-se, esvaecendo-se n'uma penumbra indistincta, sacrificando-se á imagem do commendador, que se destacava luminosa, em toda a pujança d'uma vehemencia indomita, --
E Ermelinda, costurando silenciosamente, o espirito a divagar em sonhos incoerciveis, via no quintal visinho a mulher do ensamblador, debaixo da ramada, a beijar carinhosamente o marido, e depois, quando vinham de dentro, ella a cantar, como um passaro alegre, umas trovas cheias de fogosa paixão peninsular, muito satisfeita de si, a voz crystalina revoando, como um trinado sonoro, no azul d'aquelle ar, onde volitavam as andorinhas que regressavam a saudar a primavera.
Tinham passado mezes.
Uma lucta titanica, surdamente ferida, no mysterio concavo psychico das almas de Ermelinda e do commendador. Uma attração incoercivel os chamava, uma vontade de revolta contra o convencionalismo social, contra aquella tyrannia da lei que os expulsava da felicidade, como o archanjo expulsara do Eden, ferozmente, com uma brutalidade inquebrantavel, o primeiro par humano.
Vinham-lhes desejos de peccar, de bater de face aquella prohibição medonha, que os separava, de arrojar para longe o manto pudico d'uma honestidade eterna, a que a lei os comdemnara fatalmente.
Ermelinda estava mais gorda, o sangue vivo das alimentações fortes, o temperamento flammejante de exigencias, uma lassa morbidez quebrando-a na incoherencia insaciada e vaga de desejos, que se formulavam em pensamentos languidos.
Mudava muito de roupa, narcisando-se a miudo, horas esquecidas na sua "chaise-longue", o jornal do dia cahindo sobre o roupão claro, que a desenhava toda nas suas formas appetitosas, o pésinho bamboleando no sapato bronzeado, com as fitas enroscadas como uma cobra nas columnas assetinadas da meia côr de cinza.
Percorria os olhos pelo jornal; gostava muito do folhetim e do noticiario.
Um dia claro, de sol doirado, palpitava lá fóra, coando-se impertinente atravez dos "stores" de madeira; espreguiçou-se lentamente, bocejou, o jornal cahiu no chão, deslisando suave. Fez um grande esforço para o apanhar, o braço movendo-se lento, o corpo requebrado n'uma attitude madorrenta; mas de repente empallideceu; atirou o periodico com arremeço --
-- Que nojo!... -- e poz-se em pé, passeando para o lado contrario, como não querendo vel-o. --
Uma carruagem parou á porta.
-- Quem seria? -- e foi á janella muito curiosa, levantando um poucochinho o "store", o pescoço curvando-se para ver melhor.
-- Ah, o commendador!... e então que estava só, tinha de ir abrir-lhe a porta, a Joaquina fôra buscar a Rosina ao collegio... valesse-lhe Deus. --
A campainha vibrou; demorou-se um instantesinho em frente do espelho, anediou o cabello.
-- E nem tempo tinha do se vestir! Jesus! recebel-o-ia mesmo assim de roupão, elle não era de cerimonia! --
E foi abrir a porta; o commendador entrou, trasia um bello ramo de rosas, e um embrulhosinho,
-- uma lembrança para a Rosina --
-- tinha ido para o collegio estava só em casa, mas subisse, ella ficaria contente ao vel-o, já não apparecia ha tanto tempo!...
As escadas terminavam; entravam no gabinete, ella tomava o ramo de rosas, d'um perfume vivo, muito aromaticas, um avelludado formoso de petalas sanguineas.
-- Que lindas rosas! É muito galanteador, na verdade!...
-- Oh, D. Ermelinda!...
-- Aposto que as trouxe do Palacio.
-- Justamente, tinha adivinhado! -- e sentou-se, o corpo cahindo pesadamente n'uma cadeira pequena, situada junto da meza de costura. Ermelinda dispoz as rosas n'um vaso com agua; collocou-as ao centro,
-- gostava muito de flores! ella!... -- e então que era feito d'elle, porque não apparecia, -- disia n'um tom reprehensivo. --
Curvava-se para affagar as rosas, uma voluptuosidade em sorver aquelle perfume intenso, o corpo desenhando-se na justesa clara do roupão.
O commendador estava embaraçado; não sabia que responder; desejava ter n'aquelle momento a Rosina, que com as suas travessuras o tornasse menos timido, dando-lhe um tom alegre de creança.
-- Viu o jornal no chão, apanhou-o; mas Ermelinda fez-se corada, teve mesmo um movimento brusco, disse-lhe zangada:
-- Deixe o jornal; então não prefere conversar? se soubesse o que ahi vem!...
-- Aqui?
-- Ahi, sim, veja, -- e apontou uma local do noticiario, a mão nervosa affagando as flores, emquanto o commendador lia baixo:
-- CHRONICA POLICIAL -- Foi encontrado em estado de embriaguez Alberto de Sá, sendo conduzido para o Carmo, onde teve de passar a noute. --
-- E então, que diz a isso? -- perguntou com meiguice. --
-- Coisas d'este mundo!... Uma desgraça!...
-- Uma desgraça, sim, uma desgraça! -- e principiou a choramingar.
-- Então, vale a pena affligir; aguas passadas não moem moinho! o que lá vai, lá vai!...
-- Diz bem, porque é livre! commendador!... mas eu n'esta posição falsa e condemnada.
-- Livre, antes o não fôra!... Se soubesse o que me compunge o seu estado, se estivesse na minha mão fazel-a feliz...
-- Oh, obrigada, obrigada -- e tomou-lhe a mão com eternecimento, um tremor nervoso agitando-a, perdendo pouco a pouco a energia da vontade, um entorpecimento lasso quebrantando-a.
-- Como seriamos felizes -- balbuciou o commendador -- e vendo que Ermelinda se calava, uma esfusiada de palavras lhe sahia dos labios, as imagens colorindo-se n'um fogo calcinante de paixão, que se libertava, a allucinação dos sentidos torturando-se no leito procusteano do prazer e do soffrimento, a torrente espraiando-se n'um desafogo perdoado, supplicas urgentes, que a commoviam, a imaginação atordoada diante da formosura d'aquella mulher, que fôra o seu sonho, apertando-lhe as mãos, beijando-as com soffreguidão estonteadora. Ermelinda levantou-se.
-- Oh, não, não, é impossivel!
Uma risada christallina de creança explosiu á porta da rua. Era Rosina que voltava do collegio.
-- Está zangada commigo? -- perguntou o commendador entre confuso e meigo.
Calou-se um pouco.
-- Olhe, somos dous infelizes -- disse apertando-lhe a mão, -- que devo eu agora á dignidade d'um ébrio, que a policia levanta por caridade?... Se podessemos casar!...
-- Mas é impossivel, bem vê, a lei tem d'estes absurdos, d'estas tyrannias inqualificaveis. É uma fatalidade!
-- Sim, é uma fatalidade -- e pousando-lhe rapidamente um beijo na testa, Ermelinda sahiu, deixando o commendador estonteado, um atordoamento que deslumbra, a alma larga não cabendo na estreiteza da palavra, que se paralysa.
Alberto e Annita tinham dissipado a mãos cheias o que lhe restara de tempos de maior conforto; liquidado o dinheiro dos moveis de cada um partiram para Hespanha e só quando a exhaurição da bolsa lhes annunciou a hora ultima d'aquella folia, é que então se resolveram a regressar a Portugal, delineando fortes planos de combate, resolvidos a luctar no meio que os conhecia, muito corajosos de vontade artificiosa. Mas a desillusão veiu depressa; os habitos da ociosidade haviam-lhe tirado a energia do trabalho, e os dous, recriminando-se mutuamente a causualidade do infortunio proprio, principiavam a aborrecer-se, supportando-se uma intimidade que se enraisara no vicio do passado, mas praticando cada um a sua independencia. Alberto passando a noute na batota e nos cafés, Annita passarinhando pelas praças, e pelas lojas, acenando com os restos da sua belleza physica áquelles que um dia a tinham cubiçado.
A degradação veio pouco a pouco, uma decadencia embrutecedora, que embaciava as ultimas vibrações da dignidade, as roupas encardidas, a consciencia derreada, as nodoas das ultimas camadas alastrando-se por sobre os restos d'aquella fina elegancia.
Alberto embriagava-se frequentemente; o alcool era o seu amigo, a sua consolação, depois das noutes caliginosas do jogo, em que o azar o perseguia, com uma tenacidade medonha.
Embrutecia-se horrivelmente, a policia tomara-o já como incorrigivel, houvera mesmo umas pequenas historias pouco dignas, que o tinham compromettido com o codigo penal.
Resolveu ir com a Annita para Lisboa.
-- Outra cousa, a capital!... batotas a cada esquina, aquelles inglezes a cahirem como patos... --
-- E depois lá quasi não somos conhecidos -- concordava a Annita -- mas o peior era o dinheiro...
-- Com os diabos, a sorte nem sempre havia de falhar. --
Effectivamente uma bafagem de felicidade o favoreceu. Vestiram-se melhor, partiram. Mas o dinheiro esgotou-se depressa; as desillusões vieram, foram cahindo, dissolvendo-se no grande meio, incapazes para a lucta, uma degradação rapida e miseravel.
O Alberto fes-se cocheiro.
-- gostava d'aquillo!... guiaria os cavallos dos outros já que não podia guiar os seus!... --
e quando as effervescencias do alcool lhe produziam visões extravagantes, um sorriso se abria na sua imaginação, sonhando-se n'um "tylbury" elegante, uma formosa parelha d'egoas normandas, a pelle de tigre cobrindo-lhe os joelhos, o pingalim traçando uma curva no ar tremente das vibrações da carruagem.
-- Eh, lá, eh, eh! -- gritava no sonho, uma incitação animada, parecendo-lhe ouvir um rodar vertiginoso de trem. Mas o entorpecimento da embriaguez passava, os olhos abriam-se a custo, e atravez das pupillas ainda esfumadas e baças do alcool, elle entrevia a enxerga do catre policial, ou as taboas cobertas de palha da cavallariça, os cavallos ruminando silenciosamente na manjadora.
-- era bem estupido aquillo -- disia levantando-se -- e estava frio, precisava um golo de "geribita", um copinho que matasse o bicho, que desse calor. --
De vez em quando uma recordação do doce conforto do passado, lhe atravessava a memoria já muito gasta; mas não eram as imagens de Ermelinda ou da filha, que elle entrevia; essas fluctuavam vagamente, n'uma indecisão de contornos apagados.
-- bem se importava!... o que elle desejava era a boa cama, a boa meza, a "chelpa" sempre ás ordens para gastar! e a ellas que as levasse o diabo. --
O alcool ia fazendo estragos, a memoria esquecida, a intelligencia apagando-se nas rudezas bestialisadoras da sua nova vida, do contacto dos vadios e das cavallariças; a Annita mesmo abandonava-o um pouco, fizera-se corista d'um theatro barato, e por isso cuidava-o menos, deixava-lhe encardir a roupa branca, aborrecia-se d'aquellas vaidades de o trazer limpo.
-- que se arranjasse, o theatro tomava-lhe o tempo... e depois um brazileiro andava para cahir na rêde, quem sabe... talvez ainda podesse casar... era agora a sua ideia, bastava já de privações, e depois com elle nunca poderia fazel-o, era um homem casado... afinal. --
Uma commoção extraordinaria agitava os espiritos; alguma cousa de gigante, como o despertar de um povo, fazia palpitar o coração da patria; Portugal preparava-se para o tricentenario de Camões.
Chegara o mez de junho; os jornaes vinham cheios de noticias relativas á commemoração do poeta. A companhia dos Caminhos de Ferro estabelecera comboyos a preços reduzidos para Lisboa. Um formigueiro de povo esfervilhava em Santa Apolonia; os trens de praça alinhavam-se, convidando os viajantes. Illuminações no Tejo e no largo da Estação davam á cidade o aspecto d'uma creação feerica.
-- Como era lindo, como era lindo! -- dizia uma mulher que sahia da Estação pelo braço d'um sujeito baixo, todo envolvido no seu guarda-pó, um bonnet de seda a descer sobre os aros d'ouro d'uns oculos escuros.
Chamaram um trem.
-- Nos leva ao hotel Borges, ein, você sabe? --
Mas quando o cocheiro fechava a porta, um balão veneziano, ardendo, projectou um raio de claridade sobre o seu rosto.
Ermelinda escondeu-se na almofada, soltando um pequeno grito; tinha reconhecido o Alberto. --
-- Boa gorgeta, ein, -- dizia ainda o commendador com o corpo inclinado para fóra da janella. --
FIM